Lagos II
I
Lagos onde reinventei o mundo num verão ido
Lagos onde reinventei o mundo num verão ido
Lagos onde encontrei
Uma nova forma do visível sem memória
Clara como a cal concreta como a cal
Lagos onde aprendi a viver rente
Ao instante mais nítido e recente
Lagos onde aprendi a viver rente
Ao instante mais nítido e recente
Lagos que digo como passado agora
Como verão ido absurdamente ausente
Quase estranho a mim e nunca tido
II
II
Foi um país que eu encontrei de frente
Desde sempre esperado e prometido
Um puro dom total de ter nascido
E o sol reinava em Lagos transparente
Desde sempre esperado e prometido
Um puro dom total de ter nascido
E o sol reinava em Lagos transparente
III
Lagos lição de lucidez e liso
Onde estar vivo se torna mais completo
-Como pode meu ser distraído
De sua luz de prumo e de projecto?
IV
Ou poderemos Abril ter perdido
O dia inicial inteiro e limpo
Que habitou nosso tempo mais concreto?
Será que vamos paralelamente
Relembrar e chorar como um verão ido
O país linear e transparente
E sua luz de prumo e de projecto?
1975
Sophia de Mello Breyner Andresen, in " O Nome das Coisas", 1977, Editorial Caminho
Nas Artes Poéticas
I, II, III, IV e V, sínteses meditativas sobre a própria Arte Poética, Sophia
Mello Breyner Andresen, através de uma incessante busca, foi tecendo e desvendando o seu próprio ser poético que se revelou com genialidade e de forma universal numa extensa produção lírica que se coloca no patamar da melhor poesia de sempre.
Na Arte Poética I , Sophia traça "*as linhas fulcrais do seu “estar poético” que
respira a “aliança das coisas”, ou seja, a aliança conducente à construção de
um “reino”, que o sujeito lírico procura e encontra, e que considera extensivo
à procura e conquista de cada um de nós, no agora da passagem desta vida – “o
reino que com paixão encontro, reúno e edifico ; o reino agora é só aquele que
cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece” - que se opõe ao “ mundo onde a aliança é quebrada".
A cidade de
Lagos é o ponto de partida, na Arte Poética I, para a meditação sobre a
limpidez, o rigor, a realização, a vivência e a beleza poética - não estética-,
a da poesia.
A cidade de
Lagos é também espaço de nitidez e brancura, nostalgia, identificação, de um
projecto poético individual e colectivo – “acorda em mim a nostalgia de um
projecto/ racional, limpo e poético” . Lagos é ainda símbolo de aprendizagem da
vida próxima do concreto, do quotidiano, bem como símbolo de um país
de espera e promessa, o espaço do dom de nascer e conhecer a luz".
Arte Poética I
«Em Lagos em
Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado. O sol é pesado
e a luz leve. Caminho no passeio rente ao muro mas não caibo na sombra. A
sombra é uma fita estreita.
Mergulho a
mão na sombra como se a mergulhasse na água.
A loja dos
barros fica numa pequena rua do outro lado da praça. Fica depois da taberna
fresca e da oficina do ferreiro.
Entro na loja
dos barros. A mulher que os vende é pequena e velha, vestida de preto. Está
em frente de mim rodeada de ânforas. A direita e à esquerda o chão e as
prateleiras estão cobertos de louças alinhadas, empilhadas e amontoadas:
pratos, bilhas, tigelas, ânforas. Há duas espécies de barro: barro
cor-de-rosa-pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos imemoriais
os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que através dos
séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de Creta. Olho as
ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte deste
tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor.
Talvez a arte
deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar.
A beleza da
ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas
eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si
mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser
separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética.
Olho para a
ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de
beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação.
Olho para a
ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce penumbra. Lá fora está
o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol.
Olho para a
ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente repetida mas
que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio
incorruptível.
Porém, lá
fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas
diferentes.
Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a
aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem à lua, nem a
Ísis, nem a Deméter, nem aos astros, nem ao eterno. Mundo que pode ser um
habitat mas não é um reino.
O reino agora
é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada
um tece.
Este é o
reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na
pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão, Semelhante ao
corpo de Orfeu dilacerado pelas fúrias este reino está dividido. Nós
procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa.
É por isso
que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o
muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas.
Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino
vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.» Sophia Mello Breyner Andresen,
in "Obra Poética III" Ed. Caminho
Lagos permanecerá no horizonte de Sophia , ocupando um lugar forte e privilegiado no seu
sentir poético , na sua escrita. Uma cidade que já não é como ela a conheceu.
Uma cidade que também apresenta alguma erosão provocada pela
transformação arquitectónica que varreu quase todo o Algarve.
Eis o
Mercado, que já sofreu obras de restauro, brilhante e vivo de gente, lapidarmente descrito por Sophia de Mello Breyner Andresen em :
Caminho da
Manhã
“Vais pela
estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão
o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a
curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas;
mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a
pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima
e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa
debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até
encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no
centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois
de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo
pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o
branco de cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não
encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do
mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares
em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e
brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como
as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e
como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e
vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas,
os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar
salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita
então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce
devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e
leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que
morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de
salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não
são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima
de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos,
hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e
caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu
uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num
dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até
encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro
ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos
azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor
pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível. “
Sophia de
Mello Breyner Andresen, in” Livro Sexto”, Obra Poética I, Círculo de Leitores,
1992
*in Sophia de Mello Breyner Andresen:Transmutação da palavra em Poesia, Artes Poéticas, Aedos e Cidades" por Helena S. C. Langrouva em Colóquio Internacional III, Lisboa
*in Sophia de Mello Breyner Andresen:Transmutação da palavra em Poesia, Artes Poéticas, Aedos e Cidades" por Helena S. C. Langrouva em Colóquio Internacional III, Lisboa
A Poesia e as Cidades, essa simbiose perfeita, ou quase perfeita.
ResponderEliminarDe um modo geral, os poetas preferem as cidades, preferem esconder um pouco da sua poética pelas ruelas, pelas ruas de uma cidade, da cidade que mais amam, da cidade-província que os acolhe e tempera a sua ousadia, a ousadia da palavra, dessa arma a que a Poesia deu uso e símbolo.
Neste caso, Sofia, a Mulher-Poeta, e Lagos, terra cheia de História, cidade sulina, solar, no sul da Europa, daquela Europa que se volta toda ela para o AtLântico, em direcção às Américas.