quarta-feira, 30 de junho de 2021

Vozes do "cante jondo", vozes do flamenco


"O cante jondo («canto fundo») da cultura andaluza exprime através de uma ambiência sonora cristalizada ao longo de séculos o que de mais profundo encerra o espírito popular Cúmplice das penas e das alegrias do seu povo, o cantaor esconjura com «voz de sangre», através das sentidas letras e dos longos e dolorosos melismas, como num ritual, as angústias que lhe assaltam a alma, crendo que quem o escuta comungará, por empatia, da sua dor e que esta será, assim, mitigada. A importância do cante na cultura flamenca, todavia, não se esgota no carácter confessório da interpretação. A natureza ao mesmo tempo pagã, primeva e intuitiva do cante cativou a atenção de poetas e músicos. Um desses poetas, Federico García Lorca, figura de estatura ímpar no panorama literário espanhol do século XX, soube operar uma ruptura com a visão meramente folclorista do flamenco partilhada por alguns dos seus conterrâneos – nomeadamente Melchor de Palau, Salvador Ruedas e Manuel Machado, que em 1912 publicara um livro de coplas intitulado, justamente, Cante Jondo. A relação de Lorca com o «andaluzismo» não se cinge a um manusear curioso dos elementos castiços e potencialmente poéticos da cultura andaluza. Pelo contrário, a sinceridade da escrita lorquiana, a sedução incontida, obsessiva até, pelos temas e imagens da Andaluzia mítica e onírica trai a sua total identificação com o espírito a que aludimos. A somar a isso, ligam‑no estreitos laços ao mundo do café cantante onde aprenderá a partilhar, ao lado de cantaores, bailores e tocaores, dos verdadeiros valores religiosos e estéticos contidos na arte flamenca." Dicionário de Termos Literários

India Martinez, em  El Aire y El Baile,  tema incluído no novo  álbum "Palmeras".
NIÑA PASTORI & INDIA MARTÍNEZ , em "Cuando nadie me ve"
 
Pastora Soler , em  Que no daría yo , extraído do   álbum  “Directo a la calma”
 
Miguel Poveda , em  "Triana, puente y aparte" . Extraido do DVD "Miguel Poveda Real", uma produção  de Universal Music Spain y Discmedi, dirigida e realizada por Sarao Films.

terça-feira, 29 de junho de 2021

Nenhum dia se repete


"Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra parte vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. Se bem reparares, durante grande parte da vida agimos mal, durante a maior parte não agimos nada, durante toda a vida agimos inutilmente."
Lúcio Aneu Séneca, in Cartas a Lucílio, Fundação Calouste Gulbenkian

Há quanto tempo não canto

Há quanto tempo não canto
Na muda voz de sentir.
E tenho sofrido tanto
Que chorar fora sorrir.

Há quanto tempo não sinto
De maneira a o descrever,
Nem em ritmos vivos minto
O que não quero dizer...

Há quanto tempo me fecho
À chave dentro de mim.
E é porque já não me queixo
Que as queixas não têm fim.

Há tanto tempo assim duro
Sem vontade de falar!
Já estou amigo do escuro
Não quero o sol nem o ar.

Foi-me tão pesada e crescida
A tristeza que ficou
Que ficou toda na vida.
Para cantar não sonhou.
14-6-1930
Fernando Pessoa, em Poesias Inéditas (1919-1930). (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). - 133.



VITA BREVIS

Se a morte chega com passos de lã,
aguardemo-la com serenidade.
Irá ela chegar já amanhã,
de tudo mostrando a vacuidade?

Viver foi milagre acontecido
para nos deslumbrar sem se explicar:
foi um dom não de todo merecido
feito para sempre nos ofuscar.

Mas vida acaba como começou,
sem seus esquivos mistérios desvelar:
o espanto que um dia nos doou

deu-no-lo para curto deslumbrar.
A nossa vida é só breve passagem,
não deixa traços da nossa viagem.

01.12.2020
Eugénio Lisboa, em soneto inédito.


O mundo inteiro é um palco,
E todos os homens e mulheres são apenas actrizes:
Têm as suas saídas e entradas ;
E cada homem no seu tempo desempenha múltiplos papéis(...)
William Shakespeare, in "The Merry Wives of Windsor", Act V, Scene I

domingo, 27 de junho de 2021

Ao Domingo Há Música



Com as asas leves do amor superei esses muros, pois nem mesmo barreiras de pedra podem impedir a entrada do amor. E aquilo que o amor  pode fazer é exactamente o que o amor ousa tentar.

Oh, abençoada, abençoada noite! Temo, por ser noite, que tudo não passe de um sonho, sonho tão doce e lisonjeiro que não seria substancial.
                           William Shakespeare ,  Romeu e Julieta 

 

Os sonhos nem sempre comandam a vida, apesar de sonhar ser  uma constante na História da Humanidade. O mundo não passa de um sonho feito.
E há quem sonhe com o futuro que deseja, com o passado que teima em fugir ou com o presente que  não tem. Sonha-se o amor, a esperança, a felicidade, a vida. 
Sonha-se. E aquilo que o sonho pode fazer é exactamente aquilo que cada homem ousa tentar, pois nem mesmo barreiras de pedra o  podem impedir
Há vozes que souberam cantar o sonho. Cantaram-no com enfâse para que a música o fizesse acordar.
Eis algumas que trazem belas roupagens que vestiram muitos  sonhos.

A voz incomparável de Frank Sinatra, em  The impossible dream. Uma composição de grande sucesso que foi repetida e recriada por muitos cantores.
 
Bruce Springsteen, em Dream Baby Dream.  Video editado por  Thom Zimny,  Chris Hilson. A produção audio é de Ron Aniello,  a mistura de  Bob Clearmountain. 
"Dream Baby Dream" foi escrito por  Alan Vega e Martin Rev.
        
Roy Orbison, em Dreams, do CD/DVD Black & White Night 30.
 
E os famosos Abba , em  I Have a dream.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Desporto e Cultura ou a doença infantil do Futebol

 
DESPORTO E CULTURA
Ou
A DOENÇA INFANTIL DO FUTEBOL
por Eugénio Lisboa
“A cultura do futebol actualmente em vigor infecta as mentalidades e os lugares públicos, fanatiza e estupidifica as pessoas e acobarda aflitivamente os políticos. Quase nenhum político, intelectual ou artista em evidência se atreve a dizer que não gosta de futebol ou, mais simplesmente, que lhe repugna toda esta horrorosa atmosfera e cultura futebolísticas que nos submergem e nos sufocam, onde quer que nos encontremos. Ressalvo um político português que, um dia, interrogado sobre por quem torcia, num qualquer desafio de futebol, que se ia disputar, teve a coragem de responder, com corajoso e saboroso acinte, que o assunto não lhe interessava minimamente. Refiro-me a Manuel Maria Carrilho.
Hoje, como no tempo cinzento do salazarismo pelintra e acomodatício, “ser do futebol”, “interessar-se” pelo futebol – é estar do lado seguro, é ser “da malta”, é ser de confiança, é…merecer o voto das maiorias. Quanto mais boçal, quanto mais futeboleiro, quanto mais primário, em termos de se “aquecer” fanaticamente por um clube qualquer, tanto mais simpático e “porreiro”, tanto mais merecedor de uma carreira política ascendente e bem recheada.
O futebol infecta os lugares públicos (por altura do mundial, não se conseguia entrar num café, restaurante ou pastelaria, para fins de um cavaco pacífico e apetecido, sem se ter os ouvidos trespassados pelos orgasmos histéricos de um relator de futebol), devora fracções pantagruélicas de jornais, revistas e noticiários de televisão, promove a megaconstrução de estádios obscenamente desnecessários à realização de um Euro 2004, estádios, repito, de que nem o país nem a competição precisam e que são pagos, injustificadamente, com o dinheiro do contribuinte. O futebol faz tudo isto e muito mais: polui ruas, estradas, praias, aldeias e cidades, devora orçamentos, gera o fanatismo, a competição mais doentia e até o ódio e a violência. Dizia Orwell, que dominou como um mestre a arte da objectividade fria, que “o desporto à séria nada tem que ver com o fair-play: está intimamente relacionado com o ódio, o ciúme, a gabarolice, o desprezo por todas as regras e o prazer sádico de ser espectador da violência – por outras palavras, é a guerra, menos o tiroteio.” Apetecer-me-ia corrigir: menos o tiroteio, mas com acréscimo de uma ou outra facada e de um ou outro murro violento a comporem o quadro. Não o desporto sério, mas o desporto à séria (o contrário de sério), perpetrado pelos que, ao profissionalizá-lo, o corromperam nas próprias raízes. O futebol profissional arrasa tudo, corrompe tudo: praticantes e espectadores: “O futebol é como a guerra nuclear”, dizia Frank Guifford, “ – não há vencedores, há apenas sobreviventes.”
No tempo de Salazar e parafraseando uma proclamação célebre dos marxistas, dizia-se que o futebol era o ópio das massas. Salazar não passava afinal de um “dinky toy”, de um inepto aprendiz de feiticeiro, ao lado dos promotores do opiário de hoje.  Dizia Leibnitz, um filósofo que provavelmente não gostava de desporto violento, que a educação pode tudo – até faz dançar os ursos. O futebol, tal como hoje existe e é promovido e venerado (do mais baixo trabalhador ou funcionário ao mais alto dirigente) não faz dançar os ursos mas transforma seguramente os homens em ursos. O verdadeiro desporto não deve ser convertido em “espectáculo” porque não foi concebido como tal: não é para se ver, é para se praticar. Lembrava Sílvio Lima que as épocas de ouro do desporto foram aquelas em que o espectador foi banido do estádio – ou só lá ia, em raríssimas ocasiões, para ser encorajado a praticar sempre o que vira uma vez. O futebol profissional é a corrupção deste verdadeiro espírito do desporto.
O futebol é hoje uma das mais eficazes e mais sinistras fábricas de fanáticos. E observava Huxley que, “definido em termos psicológicos, um fanático é um homem que sobrecompensa conscientemente as suas dúvidas secretas.” O futebol é pois essa fábrica de fanáticos que, aquecidos à mais elevada temperatura e gritando em excesso, duvidam, no fundo e secretamente, de si, do seu clube, da sua selecção nacional e do seu país. Por isso se compensam, se sobrecompensam, obscenamente, afirmando, até à caricatura (e ao ódio), a excelência de tudo em que, afinal, não sabem bem se acreditam. Quem se lhes opõe ou duvida de tais certezas é inimigo – porque lhes abala o edifício de (in)certezas.
A proeminência histérica e obsessiva deste “desporto-rei” imposta aos jovens desde a mais tenra idade infecta-os no que há de mais delicado e sensível: a sua capacidade de definirem valores. O que o futebol – a cultura futebolística em vigor – promove é a maior inversão de valores que a toda uma juventude se pode infligir. A competição violenta e parcial, a inveja, o ódio, a gabarolice vácua e projectada em intoleráveis decibéis, a grosseria triunfalista não são valores que uma sociedade civilizada apadrinhe e promova. Mas é ver o ar de babadice cúmplice e carinhosa que os políticos adoptam e os pivots televisivos promovem (com um sorriso doce, anunciando que o  noticiário chega, por fim, ao futebol…) O tempo televisivo, sempre tão precioso e tão caro, dizem eles, passa a ficar infinitamente disponível, quando se trata de futebol. Nem a Grande Informação (mais a Judite de Sousa) acharam que fosse demais consagrar uma edição inteira aos altos e baixos da equipa portuguesa na Coreia do Sul – com minúcias, com requintes de análise quase proustiana, quase bizantina, quase rendilhada, sobre o nascimento, vida e morte de jogadores, treinadores e árbitros. Quando achará a Grande Informação ser importante projectar, num momento nobre do seu canal, nomes grandes da arte, da literatura, da ciência, da música, da filosofia…(que os temos!), assim enriquecendo o leque de preocupações de um programa que se não deve confinar nem à política do futebol nem ao futebol da política?
Julgo que, se o futebol tudo tem infectado e corrompido, de poucos espaços se tem abusivamente apoderado tanto como do espaço televisivo. Chegou-se ao ponto grotesco, por altura do mundial, de se montar, televisivamente, todo um dispositivo que referendasse o espectador quanto às alterações a fazer na equipa do mundial… A esta estranha concepção de democracia (em que se pede aos ignaros atrevidos decisões sobre assuntos de especialidade) chamou o inesquecível Ortega y Gasset “democracia morbosa”. É contra este morbo sinistro do futebol, corruptor, em acelerado, das mentalidades e do futuro da democracia, que importa insurgirmo-nos todos – os que insistem em pensar com autonomia e cabeça fria. Sim, é importante conservar o segundo canal da televisão pública, mas como plataforma onde se respire um ar não demasiado poluído pelos ruídos extremistas, invasores e intolerantes desta histérica cultura do futebol – e não como canal em que se gaste quase metade do noticiário (ou mesmo mais do que metade) a falar do Mundial e a entrevistar gente palradora e debitadora de minúcias sobre o ex-Mundial… Um Mundial que se saldou por uma catadupa de revelações vergonhosas, todas elas a confirmarem o enterro definitivo (e não só entre nós) do verdadeiro “espírito desportivo” (um treinador a quem se pagava 3500 contos por mês, a pedir mais, em véspera de jogo, jogadores opiparamente pagos a pedirem isenção de impostos sobre os prémios, em tempo de austeridade fiscal, um Secretário de Estado a tomar, para si, as dores de um jogador que se drogava e a quem se ofereceu, “para conforto”, uma placa, etc., até à náusea). São estes exemplos que se doam a uma juventude que, de dia para dia, se afunda mais num pântano ou num vazio de valores, onde se não vê sombra nem de cultura nem de ética nem de gosto: num país onde o afundamento ético é tal que uma maioria parlamentar acha modo de violentar afrontosamente a Constituição, congeminando uma vergonhosa “lei de excepção”, para Barrancos, passando por cima do facto de que está aqui em jogo o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei…e permitindo assim aos que violam a lei há mais de 50 anos o que se não permite aos que a tenham violado apenas há poucos meses! Por outras palavras, o crime longamente repetido compensa, por se ter tornado tradição!
Observava esse grande “clerc” que dava pelo nome de Romain Rolland, que ”por toda a sua educação, por tudo o que vê e ouve à sua volta, a criança absorve uma tal soma de mentiras e de parvoíces, misturadas com verdades essenciais, que o primeiro dever do adolescente que vise ser um homem são é vomitar tudo isso.” O nosso dever – o dos educadores – é, pois, propiciar à juventude – e aos outros… - esse vomitório fundamental, que os purgue de toda essa infame cultura futebolística. Este meu texto pretendeu ser isso mesmo: um saudável vomitório.
NOTA: Este texto foi escrito em 2014, mas é, cada vez, mais actual. Neste preciso momento, em que uma pandemia mortífera não dá sinais de recuar, pelo contrário, o estimável Presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, incentiva os portugueses a irem em massa a Sevilha para apoiarem a selecção nacional de futebol, no jogo contra a Bélgica. Sevilha está classificada com o grau máximo da infecção viral e a ida de uns milhares de portugueses a essa cidade andaluza só pode ser altamente pernicioso. Parece incrível que um probo político, como Ferro Rodrigues, não resista a usar o mafioso futebol profissional como meio de aliciar mais alguns votos para eleições que se aproximam. O futebol profissional é um dos maiores cancros da nossa sociedade e quem nos governa devia preferentemente cuidar da prática do desporto nas escolas e universidades e perseguir severamente os clubes profissionais que corrompem moralmente a juventude, não pagam o que devem e procuram fugir a pagar impostos por todos os meios ao seu alcance.
Nem no tempo de Salazar a loucura futebolística foi tão longe, digo-o com grande tristeza."
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 24 de junho de 2021

E onde está toda a gente?


Hamnet, de Maggie O’Farrell é «Um romance histórico excepcional.», escreve The New Yorker. Foi o vencedor do Women's Prize for Fiction 2020. Numa narrativa que mistura realidade e ficção, a autora irlandesa cria uma das mais importantes obras literárias deste início do século XXI.
Hamnet é um romance sobre o filho de Shakespeare. Mas esse é apenas o ponto de partida para Maggie O’Farrell construir uma obra actual, que interroga a origem da dor e envereda por caminhos menos conhecidos do amor e da maternidade."
Eis um excerto :

Hamnet
por Maggie O’Farrell
“Um rapazinho desce um lanço de escadas. A passagem é estreita e em ângulo. Avança em passos vagarosos, deslizando o corpo pela parede; as botas assentam em cada degrau com um ruído surdo. Perto do fundo detém‑se um instante a olhar para trás, para o caminho por onde veio. Depois, tomando uma resolução súbita, salta os três últimos degraus, como é seu hábito. Tropeça ao aterrar e cai sobre os joelhos no chão de lajes. Está um dia abafado, sem vento, de final de Verão, e a divisão do rés‑do‑chão é sulcada por longas faixas de luz. O sol olha‑o do exterior com hostilidade, as placas de treliça das janelas, em amarelo, fixadas ao estuque. Levanta‑se, esfregando as pernas. Olha para um lado, para o cimo das escadas; olha para o outro, incapaz de decidir que caminho tomar. A divisão está vazia, o lume cogita na sua grade, brasas alaranjadas sob o fumo suave que sobe em espiral. As rótulas feridas latejam ao mesmo ritmo da pulsação. Tem uma mão pousada na aldraba da porta das escadas, e a ponta de cabedal coçado da bota arrebitada está pronta para andar, para voar. O cabelo, de cor clara, quase dourado, eleva‑se da fronte em tufos. Não há ali ninguém. Suspira, inalando o ar tépido e poeirento, atravessa o aposento, sai pela porta da frente e está na rua. O ruído de barris, cavalos, vendedores, pessoas que chamam umas pelas outras e de um homem que atira um saco de uma janela superior não o atinge. Segue pela frente da casa e penetra na porta contígua.
O cheiro da casa dos avós é sempre o mesmo: um misto de fumo de lenha, cera, cabedal, lã. É semelhante, porém indizivelmente diferente do apartamento anexo, de duas divisões, construído pelo avô num espaço estreito ao lado da casa maior, onde ele vive com a mãe e as irmãs. Às vezes não consegue compreender porque assim é. As duas habitações, ao fim e ao cabo, estão separadas apenas por uma fina parede de tabique, mas o ar, num sítio e noutro, é de tipo diferente, de cheiro diferente e temperatura diferente. Esta casa assobia com correntes de ar e remoinhos, com as pancadinhas e marteladas da oficina do avô, com as batidas e chamamentos dos clientes à janela, com os ruídos e o rebuliço lá atrás, no quintal, e com o rumor dos tios a andar de um lado para o outro. Mas hoje, não. O rapaz detém‑se na entrada, à escuta de sinais de vida. Dali vê que na oficina, à direita, não está ninguém, os assentos junto às bancadas estão desocupados, as ferramentas indolentes nos balcões, um tabuleiro de luvas ao abandono, parecem reproduções de mãos deixadas ali para que todos as vejam. A janela das vendas está fechada e com todos os ferrolhos bem apertados. Não há vivalma na sala de jantar, à esquerda. Sobre a grande mesa, uma porção de guardanapos empilhados, uma vela apagada, um monte de penas. Nada mais. Ele chama, é um grito de saudação, um som inquiridor. Repete aquele som uma, duas vezes. Depois põe a cabeça de lado, à escuta de uma resposta. Nada. Apenas o ranger de vigas que se dilatam suavemente ao sol, o suspiro do ar a passar por baixo das portas, entre os quartos, o sibilar de tecidos de linho, o estalejar do lume, os ruídos indefiníveis de uma casa em repouso, vazia. Os seus dedos apertam‑se em torno do ferro do manípulo da porta. O calor do dia, mesmo a esta hora avançada, faz com que o suor se lhe escoe da pele da testa e lhe desça pelas costas. A dor nos joelhos aviva‑se, agudiza‑se, depois esmorece de novo. O rapaz abre a boca. Um por um, chama pelos nomes de todos quantos ali vivem, naquela casa. A avó. A criada. Os tios. A tia. O aprendiz. O avô. Experimenta todos, um após outro. Por um instante, passa‑lhe pela ideia gritar o nome do pai, chamar por ele, mas o pai encontra‑se a milhas, a horas e dias de distância, em Londres, onde ele nunca esteve. Mas onde, gostaria de saber, estão a mãe, a irmã mais velha, a avó, os tios? Onde está a criada? Onde está o avô, que não costuma sair de casa durante o dia, que normalmente se encontra na oficina, massacrando o aprendiz ou registando os lucros no livro‑razão? Onde está toda a gente? Como é possível que ambas as casas estejam desertas? Avança pelo corredor. À porta da oficina, pára. Lança um olhar rápido por cima do ombro para se certificar de que não está ali ninguém, e depois entra. A oficina de luvas do avô é um sítio onde raramente lhe é permitido entrar. Mesmo deter‑se à porta é proibido. Não estejas aí a mandriar, rugirá o avô. Já um homem não pode fazer o seu honesto trabalho diário sem que alguém fique embasbacado a olhar para ele? Não tens nada melhor para fazer do que ficar aí parado, às moscas? A mente de Hamnet é expedita: não tem qualquer dificuldade em perceber as lições do mestre‑escola. É capaz de compreender a lógica e o sentido daquilo que está a ser dito, e consegue memorizar prontamente. Lembrar‑se dos verbos, da gramática, dos tempos, da retórica e dos números e cálculos acontece‑lhe com uma facilidade que pode, por vezes, atrair a inveja dos outros rapazes. Mas a sua mente também se distrai facilmente. Uma carroça que passe pela rua durante uma aula de Grego desviará a sua atenção da ardósia para conjecturas como, por exemplo, para onde irá a carroça e o que transportará, e que poucos dias antes o tio lhe proporcionou, assim como às suas irmãs, um passeio numa carroça de feno, e que bom que foi, o cheiro e as picadelas do feno acabado de cortar, as rodas que giravam ao ritmo dos cascos fatigados da égua. Nas últimas semanas foi açoitado mais do que duas vezes na escola, por não estar com atenção (a avó disse que, se isso acontecer outra vez, uma só que seja, mandará recado ao pai). Os mestres não conseguem compreender. Hamnet aprende depressa, é capaz de recitar de cor, mas não se mantém concentrado no trabalho. O ruído de um pássaro no céu pode fazer com que ele pare de falar, a meio de uma frase, como se o próprio firmamento o tivesse tornado surdo e mudo de um momento para o outro. Ver, pelo canto do olho, uma pessoa entrar numa sala pode levá‑lo a interromper aquilo que está a fazer — a comer, a ler, a copiar o trabalho escolar — e a ficar pasmado a olhar para ela, como se trouxesse alguma mensagem importante precisamente para ele. Tem tendência para sair dos limites do mundo real e tangível que o rodeia e penetrar noutro lugar. Estará sentado numa sala, corporalmente presente, mas a sua cabeça encontrar‑se‑á noutro sítio, noutra pessoa, num lugar que só ele conhece. Acorda, filho, gritará a avó, estalando os dedos para lhe chamar a atenção. Regressa à terra, sibilará a irmã mais velha, Susanna, dando‑lhe um piparote na orelha. Presta atenção, gritarão os seus mestres na escola. Onde é que tu foste?, sussurrar‑lhe‑á Judith, quando ele finalmente regressar à terra, quando voltar a si, quando olhar em redor para se certificar de que está de volta à sua casa, à sua mesa, rodeado pela família, enquanto a mãe olha para ele, meio a sorrir, como se soubesse exactamente onde ele esteve. Do mesmo modo, agora, ao entrar no espaço proibido da oficina de luvas, Hamnet perdeu a noção daquilo que lhe competia fazer. Soltou‑se momentaneamente das suas amarras, do facto de Judith não estar bem e precisar de alguém que fosse cuidar dela, e de que o seu objectivo era encontrar a mãe ou a avó, ou outra pessoa que soubesse como proceder. Há peles penduradas de um varão. Hamnet sabe o suficiente para reconhecer o couro às manchas cor de ferrugem de um veado, a delicada e maleável pele de cabrito, as peles mais pequenas, de esquilos, a grosseira e hirsuta pele de javali. Conforme se aproxima delas, as peles começam a rumorejar e a balançar nos seus ganchos, como se ainda restasse nelas alguma vida, só um pouquinho, apenas o suficiente para o ouvirem aproximar‑se. Hamnet estica um dedo e toca na pele de cabra. É incrivelmente macia, como a carícia das algas do rio nas suas pernas, quando vai nadar nos dias quentes. Oscila suavemente para cá e para lá, com as pernas abertas, esticadas, como se voasse, idêntica a um pássaro ou a um vampiro. Hamnet volta‑se, inspecciona os dois assentos junto à bancada: o almofadado, de cabedal, polido pela fricção das bragas do avô, e o banco duro, de madeira, para Ned, o aprendiz. Vê as ferramentas suspensas de ganchos na parede, por cima da bancada. Sabe identificar as que são para cortar, as que são para esticar e as que servem para prender e para coser. Vê que o esticador de luvas mais estreito — para as de mulher — está fora do lugar, foi deixado sobre a bancada onde Ned trabalha, com a cabeça inclinada e os ombros curvados, e dedos ansiosos e velozes. Hamnet sabe que basta uma pequena provocação para que o avô grite com o rapaz, ou talvez pior, por isso pega no esticador de luvas, tomando o peso ao objecto de madeira cálida, e arruma‑o no respectivo gancho. Prepara‑se para abrir a gaveta onde as bobines de fio estão guardadas, e as caixas de botões — com muito cuidado, pois sabe que a gaveta vai ranger —, quando um ruído, um leve movimento ou um arranhar, lhe chega aos ouvidos. Em poucos segundos, Hamnet escapuliu‑se dali e atravessou o corredor até ao quintal. Voltam‑lhe à cabeça as suas incumbências. O que anda a fazer, a charaviscar na oficina? A irmã sente‑se mal e a obrigação dele é encontrar alguém que lhe acuda. Abre ruidosamente, uma a uma, as portas que dão para a cozinha, para a cervejaria, para a lavandaria. Todas elas desertas, os seus interiores escuros e frescos. Chama de novo, desta vez um pouco rouco, tem a garganta arranhada da gritaria. Encosta‑se à parede da cozinha e dá um pontapé numa casca de noz, fazendo‑a atravessar o quintal num ápice. Sente‑se muito intrigado por se encontrar tão só. Devia estar ali alguém, está sempre ali alguém. Onde será que estão? O que há‑de fazer? Como é possível que todos tenham saído? Como é possível que a mãe e a avó não estejam em casa, como normalmente estão, a abrir as portas do forno, a mexer uma panela que está ao lume? Fica especado no quintal, olhando em volta, para a porta que dá para o corredor, para a da cervejaria, para a que vai para o apartamento dele. Onde haverá de ir? Quem devia chamar para pedir ajuda? E onde está toda a gente? Todas as vidas têm o seu cerne, o seu eixo, o seu epicentro, de onde todas as coisas dimanam, ao qual todas as coisas regressam. Este momento é o da mãe ausente: o rapaz, a casa vazia, o quintal deserto, o grito não ouvido. “
Maggie O’Farrell, in Hamnet, , Relógio D’Água Editores, 05/2021, pp.15-19, Preço em promoção: 16,20 €

SOBRE A AUTORA:
Maggie O’Farrell

"Maggie O’Farrell nasceu em Maio de 1972 ,na Irlanda do Norte e cresceu no País de Gales e na Escócia. Teve várias profissões, como a de jornalista no The Independent ou Sunday. Foi também professora de Escrita Criativa na Universidade de Warwick e na Goldsmith’s College, em Londres. É autora de oito romances, vários deles premiados. O primeiro, After You’d Gone, recebeu o Betty Trask Award. Venceu, em 2010, o Costa Book Award com The Hand That First Held Mine. A sua obra está traduzida em mais de trinta línguas. Vive actualmente com a família em Edimburgo."

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Parabéns, Lana...

Lana
        
          La vie est un défi à relever, un bonheur à mériter, une aventure à tenter.

Madre Teresa

On ne voit bien qu'avec le coeur. L'essentiel est invisible pour les yeux.                                                                Antoine De Saint-Exupéry

Nasceu há um ano. Ficou isolada com a mãe. Era tempo de pandemia. Vimo-la apenas dias depois, em casa, já embrulhada nos lençóis do berço. Um ser pequenino ,ali , à nossa espera. Como todos os recém-nascidos, o mundo era-lhe estranho. Nem o sabia. E nós, seres desse mundo,  também não sabíamos lidar com esta peste que nos tolhia. 
Como chegar junto deste novo ser, de rosto alterado por uma máscara?! Como abraçá-lo ?! Como beijá-lo?! Como mostrar os afectos?! Como inaugurar a nossa história ?! Eram tempos difíceis, sem explicação, sem remissão. 
A vida é um desafio a enfrentar,  a construir. E esta menina mostrou como é possível nascer em tempos adversos e ser feliz. E deixou-se amar,  olhando-nos do fundo do mar dos seus olhos. De um azul límpido, profundos e observadores , passou a reconhecer quem a queria. E se ao princípio apenas nos via , descobriu, com o rodar dos dias,  o sorriso. E dá-los de todos os jeitos e formas: longos, sonoros , tímidos , silenciosos, ruidosos e festivos. É assim a Lana, a minha neta. Mima-me do alto do seu primeiro ano. Ensina-me que  basta  sentir com o coração . Descobre-me que não é o tempo que marca a vida, mas sim a vida que faz o tempo. Exige-me que  viva e a ame. Deixa-me a ternura de todos os dias. Permite-me a felicidade de ser a sua avó. 
Obrigada,  Lana. O futuro será o que tu quiseres.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Celebrar José Régio


José Régio

JOSÉ RÉGIO – 120 ANOS
por Eugénio Lisboa
« Cumprindo-se, no próximo mês de Setembro, 120 anos do nascimento do grande escritor José Régio, ofereceu-se-me fazer algumas considerações que me parecem pertinentes. Tanto mais quanto o operoso Centro de Estudos Regianos (CER), de Vila do Conde, acaba de lançar uma notável adição à extensa bibliografia regiana: o livro MAS RÉGIO É GRANDE!, da autoria de Isabel Ponce de Leão.
Um país pode – e deve – ser julgado pelo modo como (mal)trata os seus grandes homens e também pelo modo como acarinha e promove os seus falsos grandes homens. Neste aspecto, Portugal é um “estudo de caso” bem peculiar. Adoramos os “génios” preguiçosos e estéreis e detestamos os trabalhadores produtivos, acarinhamos os vigaristas espertos e detestamos os homens sérios, perdoamos mais facilmente ao malandro desenrascado do que ao pobre honesto que teve um momento de fraqueza. Em suma, gostamos de aplaudir ao contrário.
Poucos verdadeiros grandes homens produziu, no século XX, a pátria de Camões e Camilo, com a indiscutível estatura – em profundidade e variedade de dons – de um José Régio. Mas também poucos foram tão enviesadamente avaliados e quase sempre pelas más razões. No entanto, curiosamente, o autor de Biografia foi sendo treslido por todos os “ismos” que se sucederam à Presença, que liderou e orientou, mas nunca foi esquecido ou negligenciado. Não foi sendo desprezado, antes foi sendo calorosamente atacado – óptimo sinal, `à rebours…Seja como for, uns torciam o nariz porque ele era “religioso”, outros fizeram-lhe boquinhas porque ele, afinal, não era religioso ou era um falso religioso e até escrevera sátiras contundentes à Igreja Católica daqueles tempos, dizendo, preto no branco, que ela nada tinha a ver com o cristianismo. Uns, porque ele só fazia “psicologia” (embora ele se fartasse de fazer, abundante e intensamente, outras coisas), não se preocupando, diziam, com os “verdadeiros problemas do nosso tempo” (como se o universo que a psicologia sonda não tivesse que ver com problemas de todos os tempos, incluindo o nosso). Os neorrealistas, mesmo os bem intencionados e admiradores dos dotes artísticos de Régio, lamentavam que ele se não deixasse orientar pela cartilha do soviético Jdanov, que indicava com muito cuidado a arte que os artistas deviam fazer e os temas que deviam glosar (sempre com um optimismo, de rigor, em relação aos belos e cantantes amanhãs). Régio, corajoso em extremo, como, de vários modos, demonstrou, achava, porém, tal como Karl Marx (ignorado pelos jdanovistas), que os artistas deviam ser deixados em paz, para fazerem o que muito bem entendessem: e fazendo-o, seguirem apenas os ditames do seu “canto profundo” e não os ditames dos obtusos burocratas da cultura. Homens cultos, como Marx, Engels e Lenine, nunca julgaram os artistas pela sua inclinação ideológica, mas antes pela qualidade da sua arte (vale a pena notar que Lenine preferia, em voz alta, o Pushkine burguês e decadente, ao Maiakowsky, revolucionário e tudo, e nunca escondeu a sua imensa admiração pelo conde e místico Tolstoi). É pois paradoxal e muito doloroso ter de vir aqui dizer, porque é verdade, que o vilipendiado autor de As Encruzilhadas de Deus afinava infinitamente mais pelo diapasão de Marx – com a sua abertura à arte, sem pruridos de ideologia – do que os neorrealistas, sempre a reboque de um Jdanov ignorante, obtuso e normativo.
A esquerda via com maus olhos o alegado “apolitismo” de Régio, quando este, sendo embora funcionário público vulnerável, nunca se esquivou, ao longo de toda a sua vida profissional, a mostrar claramente de que lado se encontrava, assumindo as mais vigorosas posições, em textos frontais dirigidos a Salazar e ao Estado Novo e tendo sido o único professor do Liceu Mouzinho da Silveira, em Portalegre, a dar a sua inequívoca solidariedade – depondo a seu favor – a um colega suspenso por razões políticas (a um aluno que entrara na aula, vestido com farda da Mocidade Portuguesa, o docente mandara-o para casa, para se vestir convenientemente).Textos violentíssimos, como “O Recurso ao Medo” e as sátiras acutilantes dirigidas ao Estado Novo e à Igreja Católica então vigente, no seu livro A Chaga do Lado (1954), não têm muitos iguais, em eloquência vituperativa, na nossa literatura de escárnio e maldizer. A Igreja Católica virou-lhe decididamente as costas, a partir deste livro pestiferado e Régio preparou as malas (confessou-mo mais tarde) para ir viver do jornalismo, por acreditar que seria expulso do ensino após ter publicado aquele livro contundente. Não foi, nem ele soube nunca porquê. Talvez porque fosse já demasiado célebre, dentro e fora de Portugal, por Vilaret lhe ter divulgado a sua poesia por todo o lado, e porque, apesar de tudo, ainda teria, dentro da Igreja e das estruturas do regime, alguém poderoso e suficientemente astuto para entender que seria mau para o dito regime agredir aquela figura de velho bardo recitado e cantado por todo o lado (dizia-se que Caetano, mesmo rilhando os dentes, o admirava).
Grande na poesia, na ficção, no teatro, na crítica, no ensaísmo, na autobiografia, Régio foi quase sempre avaliado com relutante empatia, em grande parte, porque perguntava mais do que respondia, embora, diga-se de passagem, os verdadeiros patrões do marxismo não vissem nisto inconveniente e o sempre oportuno Voltaire tivesse afirmado que “devemos julgar um homem mais pelas suas perguntas do que pelas suas respostas.” Régio era, resumindo, incómodo. Não oferecia receitas garantidas para a felicidade e analisava com grande lucidez e sem analgésicos as armadilhas que o ser humano encontra no seu caminho em busca do triunfo, do amor, da amizade e de algum sentido que a vida possa ter. Inquietava, não sossegava. Analisava e descrevia, agonizava, mas não confortava nem fazia batota com os escolhos encontrados. Mas amaciava a dor que a lucidez trazia com o prazer estético que a arte propicia aos que a sabem fruir. Prazer que não é promessa de nada a não ser de uma certa elegância no compreender a aventura humana, sem lhe decifrar nem a causa do começo nem o propósito que possa ter.
Vendo bem, que o país lhe tenha agradecido o dom da obra, de modo enviesado, também está na natureza destas coisas. O grande Baudelaire, que muito bem sabia do que falava, porque as suas Flores do Mal o tinham arrastado às barras dos tribunais, observou, justiceiramente, que “as nações só têm grandes homens apesar delas” , isto é, apesar da obstrução que elas normalmente põem ao percurso criador deles. Régio, como outros antes e depois dele, foi grande apesar de Portugal.
Vem tudo isto a propósito do belíssimo livro que Isabel Ponce de Leão acaba de publicar, intitulado MAS RÉGIO É GRANDE!, em recheadíssima edição do incansável Centro de Estudos Regianos (CER), de Vila do Conde. Tendo dedicado toda uma vida de atenção minuciosa e altamente perceptiva à obra literária e plástica e aos manuscritos do grande escritor, Isabel Ponce Leão está, como poucos, apetrechada para uma sondagem profunda e diversificada desta obra complexa, dolorosamente lúcida, intrépida e genial que é a do autor de MAS DEUS É GRANDE! Sondagem sem preconceitos (que são sempre hostis a uma leitura límpida), ao contrário do que foram frequentemente as aproximações feitas à sua obra por contemporâneos devorados por prevenções ideológicas de toda a ordem (e sempre passando ao lado da cintilância dos factos).
O lado “religioso” da obra regiana sempre incomodou as esquerdas, que não perceberam ter o autor de Jacob e o Anjo usado a mitologia cristã em registo metafórico e profano, como outros têm usado as mitologias grega e romana (ou outras), sem inconveniente de maior. Por outro lado, mesmo que a obra de Régio fosse – e não é – religiosa, no sentido corrente, gostaria de saber se os mesmos relutantes críticos de esquerda também mandam pela borda fora toda a grande pintura religiosa de Leonardo, Michelangelo, Rembrandt, Veronese, Raphael, Bruegel, o Velho, El Greco, Dali ou, já agora, a Missa Solene, de Beethoven ou o Requiem de Mozart. Aparentemente, só os incomoda o teor “religioso” do bardo de Vila do Conde, isto é, as metáforas que Régio aproveita, para ungir de sentido universal os conflitos dos seus atormentados fantoches. Por que serão as mitologias grega e romana, que servem de veículo a tanto teatro moderno, mesmo de esquerda, mais aceitáveis do que a mitologia cristã que visa exactamente o mesmo propósito? Não se tratará de puro preconceito, sem qualquer fundamento sério que fundamente a rejeição?
Isabel Ponce de Leão, neste seu livro, valorizado por uma riquíssima iconografia, sonda com uma firmeza que não exclui subtileza e enorme conhecimento, áreas fundamentais como a “escrita do eu”, a “epistolografia”, o Literaturismo” isto é, o aproveitamento de alguma poesia regiana para um turismo culto, o diálogo frutuoso entre poesia e artes plásticas e a sondagem dos singulares manuscritos do autor de POEMAS DE DEUS E DO DIABO.
Muito mais teria a dizer deste livro aliciante e enriquecedor, mas vou limitar-me a transcrever uma curta passagem do prefácio que, para ele, escrevi, e com isso termino:
“Lendo-se estes textos, facilmente se chega à conclusão de que Isabel Ponce de Leão não leu Régio: viveu com ele, ao longo de muitos anos, manuseando-o com ‘mão diurna e nocturna’. (…)… a autora de MAS RÉGIO É GRANDE! dá, em grande, uma resposta e uma lição aos pequenotes ressentidos que têm querido apoucar a estatura do autor de BIOGRAFIA e de HISTÓRIAS DE MULHERES (suspeito, cada vez mais, que muito deste apoucamento tem que ver com o conhecido “estão verdes, não prestam”, da deliciosa fábula de La Fontaine.”)»                                                           
Eugénio Lisboa, em ensaio inédito de 20.06.2021

domingo, 20 de junho de 2021

Ao Domingo Há Música


A compreensão da música é, no homem, uma expressão de vida.
                                      Wittgenstein

 

Nas pregas da memória , há um repertório  musical que representa  a  expressão de grandes e pequenos momentos da vida de cada um.  Desse caudaloso abrigo, retiramos duas belas composições que correram mundo e nunca deixaram de seduzir.

Pink Floyd, em  The Great Gig In The Sky do Álbum Dark Side Of The Moon .
Pink Floyd , num espectáculo em  Knebworth 1990 , regravado pela primeira vez em  CD, double vinyl LP e  plataformas digitais.
 
Roger Hodgson,  em  Only Because of You, acompanhado pela Stuttgart Philharmonic Orchestra, num concerto do Jazzopen  Stuttgart , Alemanha, em  Julho de 2013 .
Roger Hodgson,  ex-Supertramp, é o co-fundador da banda e cantor / compositor de grandes sucessos, como Dreamer, Give a Bit, Breakfast in America, The Logical Song, Take the Long Way Home, Fool's Overture.
Only Because of You pertence ao Roger Hodgson’s 1984 album, In the Eye of the Storm. 
 

sábado, 19 de junho de 2021

Picasso por Picasso

Picasso (auto retrato,) 1899-1900.
Museu Picasso - Barcelona

Os Verdes anos
(1881-1900)
"Picasso nasce  em Málaga, em 1881. Segundo a tradição catalã, tem um verdadeiro aranzel de nomes próprios e, como patrónimo, os apelidos do pai (Ruiz) e da mãe (Picasso) . A fazer fé na certidão de baptismo , o seu nome completo é Pablo Diego, José Francisco de Paulo, Juan Nepomuceno, Maria de Los Remedios, Crispiniano de la Santissima Trinidade Ruiz-Picasso.

A mãe
Em criança , Picasso era já muito bonito e a mãe disse um dia a Gertrude Stein:
- Oh, se o achou belo, garanto-lhe que não é nada em comparação com a época em que era um rapazinho.  Era um anjo e um demónio de beleza; uma pessoa não se cansava de olhar para ele,
Esta mãe sempre acreditou nele, mesmo quando outros membros da família duvidavam. Numa carta de 1936, escreve-lhe:
- Dizem-me que agora escreves. De ti , acredito em tudo. Se me disseres que cantaste missa, também acreditaria.
A confiança transparece igualmente nesta frase:
- Se te tornares soldado, serás general; se te tornares monge, acabarás papa!

Picasso a propósito do seu nome:
- Os meus amigos de Barcelona tratavam-me já por esse nome...Era mais estranho, mais sonoro do que Ruiz. E foi provavelmente por essa razão que o adoptei...Sabem o que me atraiu nesse nome? Pois bem, sem dúvida os dois «esses», tão pouco comuns  em Espanha... Picasso é um nome de origem italiana, sabiam? Ora, o nome que uma pessoa tem ou que adopta  tem a sua importância...Imaginam-me a chamar-me Ruiz? Ou Juan Nepomuceno Ruiz? Deram-me não sei quantos nomes próprios... Repararam, de resto, nos dois  «esses» nos nomes de Matisse, de Poussin, do Douanier Rousseau?

O pai 
O pai de Picasso era pintor e professor de desenho. Muito rapidamente , apercebe-se do dom prodigioso do filho e encoraja-o. Um dia , tendo tomado consciência dos seus próprios limites, oferece-lhe  a sua paleta  e os seus pincéis e nunca mais volta a pintar.
(...)

O menino prodígio
Os seu dons excepcionais são muito rapidamente reconhecidos. O pai encoraja-o, mas orienta-o para uma arte académica, o que o levava a dizer que nunca tinha feito desenhos de criança. No Verão de 1945, em Antibes, declarou:
- Nunca pude desenhar assim. Aos doze anos, já desenhava como Rafael.
Frequentemente estas palavras foram mal interpretadas. Pierre Daix explica que não se deve ver nelas uma gabarolice. Picasso apenas lamenta ter sido precocemente ensinado a desenhar como Rafael. 
(...) A Academia de Belas-Artes de Barcelona (La Lonja) é uma instituição um pouco ronronante, onde, em 1895, o pai de Pablo é nomeado professor de desenho. Pablo, que tem apenas catorze anos, é demasiado jovem para apresentar-se a concurso de admissão, mas o pai consegue-lhe uma dispensa.  Num só dia termina, com uma mestria deslumbrante, um trabalho para cuja execução havia sido concedido aos estudantes o prazo de um mês. Toda a gente compreende , a partir daí, que um destino excepcional se abrirá para ele."
Picasso por Picasso, pensamentos e várias memórias, organização de  Paul Désalmand, Contexto Editora, Lisboa, Outubro de 2000, pp.14,15,19,20, 21

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Foi no verão de 1994

«Foi no verão de 1994, faz agora seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas. Três coisas acabavam de me acontecer por essa altura: a primeira foi o meu pai ter morrido; a segunda foi a minha mulher ter-me abandonado; a terceira foi eu ter abandonado a minha carreira de escritor. Minto. A verdade é que, dessas três coisas, as duas primeiras são exactas, exactíssimas, mas não a terceira. Na realidade, a minha carreira de escritor não havia maneira de arrancar, de modo que dificilmente poderia abandoná-la. Mais justo seria dizer que a tinha abandonado recém-iniciada. Em 1989 tinha publicado o meu primeiro romance; tal como o conjunto de contos surgido dois anos antes, o livro foi recebido com notória indiferença, mas a vaidade e uma resenha elogiosa de um amigo daquela época aliaram-se para me convencer de que poderia chegar a ser romancista e de que, para o ser, o melhor era deixar o meu trabalho na redacção do jornal e dedicar-me totalmente a escrever. O resultado desta mudança de vida foi cinco anos de angústia económica, física e metafísica, três romances inacabados e uma depressão pavorosa que me prostrou durante dois meses numa poltrona, diante do televisor. Farta de pagar as facturas, incluindo a do enterro do meu pai, e de ver-me olhar para o televisor apagado a chorar, a minha mulher saiu de casa assim que comecei a recuperar, e eu não tive outro remédio senão esquecer para sempre as minhas ambições literárias e pedir a minha reintegração no jornal.- uma vez que, para alguns jornalistas,
Acabava de fazer quarenta anos, mas felizmente – ou porque não sou um bom escritor, mas também não sou mau jornalista; ou , mais provavelmente, porque no jornal não dispunham de ninguém que quisesse fazer o meu trabalho por um salário tão exíguo como o meu  - aceitaram-me. Fui destacado para a secção de cultura , que é onde se colocam as pessoas que não se sabe onde colocar. Ao princípio, com o fim não declarado  mas evidente de castigar   a minha deslealdade – uma vez que, para alguns jornalistas , um colega que abandona o jornalismo para se dedicar ao romance, acaba por ser pouco menos que um traidor  -, fui obrigado a fazer de tudo , salvo trazer cafés do bar da esquina para o director , e só alguns  colegas não incorreram  em sarcasmos ou ironias à minha custa.  O tempo acabou por atenuar a minha infelicidade : rapidamente comecei a redigir pequenos artigos, a fazer entrevistas. Foi assim que em Julho  de 1994 entrevistei Rafael Sánchez Ferlosio, que naquele tempo estava a proferir , na universidade , um ciclo de conferências. Eu sabia que Ferlosio era extremamente relutante em falar a jornalistas , mas graças a um amigo ( ou melhor, a uma amiga desse amigo, que tinha organizado a estada de Ferlosiona cidade), consegui que acedesse a conversar um pouco comigo. Porque chamar àquilo entrevista seria excessivo ; se o foi, foi também a mais estranha que fiz na minha vida . Para começar Ferlosio apareceu na esplanada do Bistrot envolto numa nuvem  de amigos, discípulos, admiradores e turiferários; este facto ,unido ao descuido da sua indumentária e a um físico onde se misturavam de uma forma inextricável ar de aristocrata castelhano envergonhado de o ser e o de um velho guerreiro oriental –a cabeça poderosa, o cabelo revolto e entremeado de cinza, o rosto duro, emaciado e difícil , de nariz judeu e faces sombreadas de barba – fazia que um observador  desprevenido o tomasse por um guru religioso rodeado de acólitos. O pior é que, além disso, Ferlosio se recusou rotundamente a responder a uma única das perguntas que lhe formulei, alegando que nos seus livros tinha dado as melhores respostas de que era capaz.”
Javier Cercas
 , in  Soldados de Salamina, Tradução de  Helena Pitta, Edições Asa

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Crer na desesperança?

" Entre o talento e o génio existe um abismo - e, por vezes, inultrapassável. 
« Quem não mente já é bastante original» - traduzi , hoje, à tarde.
Quem se espanta ainda que os homens -  aparentemente mudem tão facilmente de ideias  ( ou , como gostam de dizer, de «convicções» ) ? Cada  « convicção» mascara  um tipo de homem, e, seja qual for a convicção com que se mascara, ele permanece o mesmo , faz sempre a mesma coisa.
É absolutamente  verdadeiro aquilo em que desemboca Wittgenstein: que , na crença religiosa, é sobretudo, e essencialmente, o ponto de partida  que é verdadeiro, a saber, que a situação do homem é desesperada. Pergunto: podemos também crer  na desesperança? Pois, para mim, essa fé já é bastante; e não estou desesperado. 
(...)
Não compreender o mundo , unicamente porque é incompreensível : diletantismo. Não compreendemos o mundo, porque não é essa a nossa tarefa na terra.
O acto de muito reflectir torna-nos infelizes, ou místicos. Wittgenstein, no fim de contas, também era um místico, como Kafka.  Só que ele trabalhava com outra matéria : a lógica. Precisou de destruir mundos , até que , sob as ruínas como pedra preciosa brilhante, subitamente cintilou a sua fé. Imagino-o nesse instante, com o seu tesouro na mão: olha, olha, e não lhe encontra nome . Mas sabe que aconteceu  um milagre, e que ele está salvo."
Imre Kertész, in Um outro, crónica de uma metamorfose, ( Tradução de Ernesto Rodrigues), Editorial Presença, Junho de 2009, pp. 18, 20, 21

terça-feira, 15 de junho de 2021

Budapeste

 
Budapest: The Taste of Europe
“Este  videoclipe baseado em imagens sobre Budapeste é o resultado de uma colaboração internacional entre o estúdio de vídeo russo TimeLab e o músico húngaro mundialmente famoso Havasi. No vídeo, vemos os sonolentos eléctricos de Budapeste  a cruzar  a Ponte das Correntes de Széchenyi; o amanhecer sobre o rio Danúbio; o layout majestoso da cidade vista por um pássaro; as luzes brilhantes de Budapeste à noite;  o pôr do sol sobre a Basílica de Santo Estêvão e tudo isso justaposto com a música surpreendente de Havasi.
A música do clip é a faixa 'Golden Eagle' de Havasi que capta a atmosfera especial, a incrível sensação de voo - e a nobreza subjacente da cidade.
A equipa de vídeo ficou extremamente impressionada com Budapeste - é uma cidade fenomenal. Absorveu o melhor de muitas das maiores cidades da Europa. 
Olhe atentamente para a arquitectura e encontrará um pouco de tudo - um pouco de Paris, um pouco de São Petersburgo, trechos de Londres ... O que realmente nos surpreendeu foi a Ponte das Correntes sobre o Danúbio - é um símbolo icónico da cidade. Não há restrições para filmar com drones em Budapeste. As autoridades húngaras são muito tranquilas em relação a tudo isso e querem  partilhar o que têm com os turistas. Quer dizer  que a equipa de vídeo tinha total liberdade criativa."

 
HAVASI, em Oh Saint Stephen (Official Concert Video).

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Sobre os Avós


UM TEXTO QUE ALMADA NEGREIROS GOSTARIA DE TER ESCRITO
"Disse um poeta que todas as crianças têm génio e que somos nós, os adultos, com os tabus e inibições que lhes vamos impondo (“O menino não diga disparates”), que acabamos por embotá-lo. Realmente, muitos ditos de crianças, alguns recolhidos em livros que marcaram data, surpreendem por uma formulação extremamente feliz e pela candura de uma visão ainda não ardida. Chegou-me agora às mãos uma deliciosa redacção feita, no Brasil, por uma criança de oito anos – Maria Eduarda – e publicada pelo Jornal do Cartaxo, de Florianópolis. É sobre os avós. E passo a transcrever este delicioso texto, sem mais comentários a não ser aquele que está no título que dei a este verbete."
Eugénio Lisboa
Um avô é um homem que não tem filhos, por isso gosta dos filhos dos outros.
Os avôs não têm nada para fazer, a não ser estarem ali.
Quando nos levam a passear, andam sempre devagar e não pisam as flores bonitas nem as lagartas.
Nunca dizem: Some daqui! Vai dormir! Agora não! Vai pro quarto pensar!
Normalmente são gordos, mas mesmo assim conseguem abotoar os nossos sapatos.
Sabem sempre o que a gente quer. Só eles sabem como ninguém a comida que a gente quer comer.
Os avôs usam óculos e às vezes, até conseguem tirar os dentes.
Os avôs não precisam ir ao cabeleireiro, pois são carecas ou estão sempre com os cabelos arrumadinhos.
Quando nos contam histórias nunca pulam partes e não se importam de contar a mesma história várias vezes.
Os avôs são as únicas pessoas grandes que sempre têm tempo para nós.
Não são tão fracos como dizem, apesar de morrerem mais vezes do que nós.
Todas as pessoas deviam fazer o possível para terem um avô, ainda mais se não tiverem televisão.
MARIA EDUARDA

domingo, 13 de junho de 2021

Ao Domingo Há Música

  
Se eu Pudesse , de “O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.
 (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946. 
 Narração de Mundo Dos Poemas

É domingo. Há 133 anos , 13 de Junho de 1888, nascia o poeta Fernando Pessoa . Em sentido oposto, há 790 anos, a 13 de Junho de 1231, morria o padroeiro de Lisboa, Santo António. Talvez não fosse domingo . Mas se um ficou para proteger Lisboa , um outro engrandeceu Portugal.
Domingo é o espaço que medeia entre a semana que termina e uma outra que começa. Espaço que se enche de um outro tempo menos cronometrado pelo relógio. Aos domingos tudo volta ao princípio. E pode ser a música a fazer a mudança. Assim o queremos. Assim o desejamos. E , será em português , para que se desfaça a cantar o dia deste novo domingo de Junho, embora diferente de um outro que já foi faceiro e popular, mas que continua a ser um marco singular na História da Literatura Portuguesa e na Liturgia cristã.

Cuca Roseta , em  "Amor de Domingo" .
"Amor de Domingo" é o mais recente tema lançado por Cuca Roseta, com letra e música com assinatura da fadista.

Camané & Mário Laginha, em  Se Amanhã Fosse Domingo [Official Music Video].Tema retirado do álbum Aqui Está-se Sossegado. Letra: João Monge; Música: Mário Laginha; Voz: Camané e Piano: Mário Laginha.
Marisa, em Cavaleiro Monge (do poema  Do vale à montanha,  de Fernando Pessoa) acompanhada pela Sinfonietta de Lisboa , sob a regência de Jacques Morelenbaum. 
O poema Do vale à montanha, de 24-10-1932, está incluído na Obra édita de Fernando Pessoa, Poesias, com Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor. Lisboa: Ática, 1942 .
 

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Do amor, sendo sempre tudo ...

Nevoeiro

O amor não é
nem paz nem batalha
nem fogo amealhado
na escura fornalha.

O amor é nevoeiro
a branquidão que esconde
a pedra suspensa
no despenhadeiro.

E sendo sempre tudo
como o sonho dos mudos
o amor não é nada

diante da morte
do vento que sopra
de madrugada.
Lêdo Ivo, in "Curral de Peixe", Topbooks, 1995.
Tus Ojos 

Tus ojos son la patria del relámpago y de la lágrima,
silencio que habla,
tempestades sin viento, mar sin olas,
pájaros presos, doradas fieras adormecidas,
topacios impíos como la verdad,
otoño en un claro del bosque en donde la luz
canta en el hombro de un árbol y son pájaros todas las hojas,
playa que la mañana encuentra constelada de ojos,
cesta de frutos de fuego,
mentira que alimenta,
espejos de este mundo, puertas del más allá,
pulsación tranquila del mar a mediodía,
absoluto que parpadea,
páramo.
OCTAVIO PAZ 
,(1935-1957), in Lo mejor de Octavio Paz ,Planeta Mexicana, 1999
breve os nossos olhos amam-se

breve
os nossos olhos amam-se
como lume

e constroem muros
contra a melancolia
Lourenço de Carvalho, in minha ave africana, Tempográfica, Lourenço Marques
AMOR DA PALAVRA, AMOR DO CORPO

A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que não te vejo.
Boca na boca através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.
António Ramos Rosa, in "Nos Seus Olhos de Silêncio", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.

Tu

Com a noite dos teus olhos
escusava lua e estrelas.

Com a fonte da tua boca
não mais teria sede.

Com a raiz do teu ombro
para quê tecto ou abrigo?

Só a luz me faria falta
para poder olhar-te.
Luísa Dacosta, in A maresia e o sargaço dos dias, Edições ASA

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Do amor a Portugal

 
  Dulce Pontes, em O amor a Portugal,  música de Ennio Morricone.

Entretanto, das profundezas, Luís de Camões,  o grande vate português,  entre soluços,  canta: 

Não mais , musa, não mais que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida ,
E não do canto , mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.

                                                        Os Lusíadas, Canto X