"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
quarta-feira, 30 de junho de 2021
Vozes do "cante jondo", vozes do flamenco
terça-feira, 29 de junho de 2021
Nenhum dia se repete
Há quanto tempo não canto
Na muda voz de sentir.
E tenho sofrido tanto
Que chorar fora sorrir.
Há quanto tempo não sinto
De maneira a o descrever,
Nem em ritmos vivos minto
O que não quero dizer...
Há quanto tempo me fecho
À chave dentro de mim.
E é porque já não me queixo
Que as queixas não têm fim.
Há tanto tempo assim duro
Sem vontade de falar!
Já estou amigo do escuro
Não quero o sol nem o ar.
Foi-me tão pesada e crescida
A tristeza que ficou
Que ficou toda na vida.
Para cantar não sonhou.
14-6-1930
Fernando Pessoa, em Poesias Inéditas (1919-1930). (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). - 133.
Se a morte chega com passos de lã,
aguardemo-la com serenidade.
Irá ela chegar já amanhã,
de tudo mostrando a vacuidade?
Viver foi milagre acontecido
para nos deslumbrar sem se explicar:
foi um dom não de todo merecido
feito para sempre nos ofuscar.
Mas vida acaba como começou,
sem seus esquivos mistérios desvelar:
o espanto que um dia nos doou
A nossa vida é só breve passagem,
não deixa traços da nossa viagem.
01.12.2020
domingo, 27 de junho de 2021
Ao Domingo Há Música
Com as asas leves do amor superei esses muros, pois nem mesmo barreiras de pedra podem impedir a entrada do amor. E aquilo que o amor pode fazer é exactamente o que o amor ousa tentar.
Oh, abençoada, abençoada noite! Temo, por ser noite, que tudo não passe de um sonho, sonho tão doce e lisonjeiro que não seria substancial.
William Shakespeare , Romeu e Julieta
sexta-feira, 25 de junho de 2021
Desporto e Cultura ou a doença infantil do Futebol
Ou
A DOENÇA INFANTIL DO FUTEBOL
por Eugénio Lisboa
“A cultura do futebol actualmente em vigor infecta as mentalidades e os lugares públicos, fanatiza e estupidifica as pessoas e acobarda aflitivamente os políticos. Quase nenhum político, intelectual ou artista em evidência se atreve a dizer que não gosta de futebol ou, mais simplesmente, que lhe repugna toda esta horrorosa atmosfera e cultura futebolísticas que nos submergem e nos sufocam, onde quer que nos encontremos. Ressalvo um político português que, um dia, interrogado sobre por quem torcia, num qualquer desafio de futebol, que se ia disputar, teve a coragem de responder, com corajoso e saboroso acinte, que o assunto não lhe interessava minimamente. Refiro-me a Manuel Maria Carrilho.
Hoje, como no tempo cinzento do salazarismo pelintra e acomodatício, “ser do futebol”, “interessar-se” pelo futebol – é estar do lado seguro, é ser “da malta”, é ser de confiança, é…merecer o voto das maiorias. Quanto mais boçal, quanto mais futeboleiro, quanto mais primário, em termos de se “aquecer” fanaticamente por um clube qualquer, tanto mais simpático e “porreiro”, tanto mais merecedor de uma carreira política ascendente e bem recheada.
O futebol infecta os lugares públicos (por altura do mundial, não se conseguia entrar num café, restaurante ou pastelaria, para fins de um cavaco pacífico e apetecido, sem se ter os ouvidos trespassados pelos orgasmos histéricos de um relator de futebol), devora fracções pantagruélicas de jornais, revistas e noticiários de televisão, promove a megaconstrução de estádios obscenamente desnecessários à realização de um Euro 2004, estádios, repito, de que nem o país nem a competição precisam e que são pagos, injustificadamente, com o dinheiro do contribuinte. O futebol faz tudo isto e muito mais: polui ruas, estradas, praias, aldeias e cidades, devora orçamentos, gera o fanatismo, a competição mais doentia e até o ódio e a violência. Dizia Orwell, que dominou como um mestre a arte da objectividade fria, que “o desporto à séria nada tem que ver com o fair-play: está intimamente relacionado com o ódio, o ciúme, a gabarolice, o desprezo por todas as regras e o prazer sádico de ser espectador da violência – por outras palavras, é a guerra, menos o tiroteio.” Apetecer-me-ia corrigir: menos o tiroteio, mas com acréscimo de uma ou outra facada e de um ou outro murro violento a comporem o quadro. Não o desporto sério, mas o desporto à séria (o contrário de sério), perpetrado pelos que, ao profissionalizá-lo, o corromperam nas próprias raízes. O futebol profissional arrasa tudo, corrompe tudo: praticantes e espectadores: “O futebol é como a guerra nuclear”, dizia Frank Guifford, “ – não há vencedores, há apenas sobreviventes.”
No tempo de Salazar e parafraseando uma proclamação célebre dos marxistas, dizia-se que o futebol era o ópio das massas. Salazar não passava afinal de um “dinky toy”, de um inepto aprendiz de feiticeiro, ao lado dos promotores do opiário de hoje. Dizia Leibnitz, um filósofo que provavelmente não gostava de desporto violento, que a educação pode tudo – até faz dançar os ursos. O futebol, tal como hoje existe e é promovido e venerado (do mais baixo trabalhador ou funcionário ao mais alto dirigente) não faz dançar os ursos mas transforma seguramente os homens em ursos. O verdadeiro desporto não deve ser convertido em “espectáculo” porque não foi concebido como tal: não é para se ver, é para se praticar. Lembrava Sílvio Lima que as épocas de ouro do desporto foram aquelas em que o espectador foi banido do estádio – ou só lá ia, em raríssimas ocasiões, para ser encorajado a praticar sempre o que vira uma vez. O futebol profissional é a corrupção deste verdadeiro espírito do desporto.
O futebol é hoje uma das mais eficazes e mais sinistras fábricas de fanáticos. E observava Huxley que, “definido em termos psicológicos, um fanático é um homem que sobrecompensa conscientemente as suas dúvidas secretas.” O futebol é pois essa fábrica de fanáticos que, aquecidos à mais elevada temperatura e gritando em excesso, duvidam, no fundo e secretamente, de si, do seu clube, da sua selecção nacional e do seu país. Por isso se compensam, se sobrecompensam, obscenamente, afirmando, até à caricatura (e ao ódio), a excelência de tudo em que, afinal, não sabem bem se acreditam. Quem se lhes opõe ou duvida de tais certezas é inimigo – porque lhes abala o edifício de (in)certezas.
A proeminência histérica e obsessiva deste “desporto-rei” imposta aos jovens desde a mais tenra idade infecta-os no que há de mais delicado e sensível: a sua capacidade de definirem valores. O que o futebol – a cultura futebolística em vigor – promove é a maior inversão de valores que a toda uma juventude se pode infligir. A competição violenta e parcial, a inveja, o ódio, a gabarolice vácua e projectada em intoleráveis decibéis, a grosseria triunfalista não são valores que uma sociedade civilizada apadrinhe e promova. Mas é ver o ar de babadice cúmplice e carinhosa que os políticos adoptam e os pivots televisivos promovem (com um sorriso doce, anunciando que o noticiário chega, por fim, ao futebol…) O tempo televisivo, sempre tão precioso e tão caro, dizem eles, passa a ficar infinitamente disponível, quando se trata de futebol. Nem a Grande Informação (mais a Judite de Sousa) acharam que fosse demais consagrar uma edição inteira aos altos e baixos da equipa portuguesa na Coreia do Sul – com minúcias, com requintes de análise quase proustiana, quase bizantina, quase rendilhada, sobre o nascimento, vida e morte de jogadores, treinadores e árbitros. Quando achará a Grande Informação ser importante projectar, num momento nobre do seu canal, nomes grandes da arte, da literatura, da ciência, da música, da filosofia…(que os temos!), assim enriquecendo o leque de preocupações de um programa que se não deve confinar nem à política do futebol nem ao futebol da política?
Julgo que, se o futebol tudo tem infectado e corrompido, de poucos espaços se tem abusivamente apoderado tanto como do espaço televisivo. Chegou-se ao ponto grotesco, por altura do mundial, de se montar, televisivamente, todo um dispositivo que referendasse o espectador quanto às alterações a fazer na equipa do mundial… A esta estranha concepção de democracia (em que se pede aos ignaros atrevidos decisões sobre assuntos de especialidade) chamou o inesquecível Ortega y Gasset “democracia morbosa”. É contra este morbo sinistro do futebol, corruptor, em acelerado, das mentalidades e do futuro da democracia, que importa insurgirmo-nos todos – os que insistem em pensar com autonomia e cabeça fria. Sim, é importante conservar o segundo canal da televisão pública, mas como plataforma onde se respire um ar não demasiado poluído pelos ruídos extremistas, invasores e intolerantes desta histérica cultura do futebol – e não como canal em que se gaste quase metade do noticiário (ou mesmo mais do que metade) a falar do Mundial e a entrevistar gente palradora e debitadora de minúcias sobre o ex-Mundial… Um Mundial que se saldou por uma catadupa de revelações vergonhosas, todas elas a confirmarem o enterro definitivo (e não só entre nós) do verdadeiro “espírito desportivo” (um treinador a quem se pagava 3500 contos por mês, a pedir mais, em véspera de jogo, jogadores opiparamente pagos a pedirem isenção de impostos sobre os prémios, em tempo de austeridade fiscal, um Secretário de Estado a tomar, para si, as dores de um jogador que se drogava e a quem se ofereceu, “para conforto”, uma placa, etc., até à náusea). São estes exemplos que se doam a uma juventude que, de dia para dia, se afunda mais num pântano ou num vazio de valores, onde se não vê sombra nem de cultura nem de ética nem de gosto: num país onde o afundamento ético é tal que uma maioria parlamentar acha modo de violentar afrontosamente a Constituição, congeminando uma vergonhosa “lei de excepção”, para Barrancos, passando por cima do facto de que está aqui em jogo o princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei…e permitindo assim aos que violam a lei há mais de 50 anos o que se não permite aos que a tenham violado apenas há poucos meses! Por outras palavras, o crime longamente repetido compensa, por se ter tornado tradição!
Observava esse grande “clerc” que dava pelo nome de Romain Rolland, que ”por toda a sua educação, por tudo o que vê e ouve à sua volta, a criança absorve uma tal soma de mentiras e de parvoíces, misturadas com verdades essenciais, que o primeiro dever do adolescente que vise ser um homem são é vomitar tudo isso.” O nosso dever – o dos educadores – é, pois, propiciar à juventude – e aos outros… - esse vomitório fundamental, que os purgue de toda essa infame cultura futebolística. Este meu texto pretendeu ser isso mesmo: um saudável vomitório.
NOTA: Este texto foi escrito em 2014, mas é, cada vez, mais actual. Neste preciso momento, em que uma pandemia mortífera não dá sinais de recuar, pelo contrário, o estimável Presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, incentiva os portugueses a irem em massa a Sevilha para apoiarem a selecção nacional de futebol, no jogo contra a Bélgica. Sevilha está classificada com o grau máximo da infecção viral e a ida de uns milhares de portugueses a essa cidade andaluza só pode ser altamente pernicioso. Parece incrível que um probo político, como Ferro Rodrigues, não resista a usar o mafioso futebol profissional como meio de aliciar mais alguns votos para eleições que se aproximam. O futebol profissional é um dos maiores cancros da nossa sociedade e quem nos governa devia preferentemente cuidar da prática do desporto nas escolas e universidades e perseguir severamente os clubes profissionais que corrompem moralmente a juventude, não pagam o que devem e procuram fugir a pagar impostos por todos os meios ao seu alcance.
Eugénio Lisboa
quinta-feira, 24 de junho de 2021
E onde está toda a gente?
por Maggie O’Farrell
"Maggie O’Farrell nasceu em Maio de 1972 ,na Irlanda do Norte e cresceu no País de Gales e na Escócia. Teve várias profissões, como a de jornalista no The Independent ou Sunday. Foi também professora de Escrita Criativa na Universidade de Warwick e na Goldsmith’s College, em Londres. É autora de oito romances, vários deles premiados. O primeiro, After You’d Gone, recebeu o Betty Trask Award. Venceu, em 2010, o Costa Book Award com The Hand That First Held Mine. A sua obra está traduzida em mais de trinta línguas. Vive actualmente com a família em Edimburgo."
quarta-feira, 23 de junho de 2021
Parabéns, Lana...
Lana |
La vie est un défi à relever, un bonheur à mériter, une aventure à tenter.
Madre Teresa
On ne voit bien qu'avec le coeur. L'essentiel est invisible pour les yeux. Antoine De Saint-Exupéry
segunda-feira, 21 de junho de 2021
Celebrar José Régio
por Eugénio Lisboa
« Cumprindo-se, no próximo mês de Setembro, 120 anos do nascimento do grande escritor José Régio, ofereceu-se-me fazer algumas considerações que me parecem pertinentes. Tanto mais quanto o operoso Centro de Estudos Regianos (CER), de Vila do Conde, acaba de lançar uma notável adição à extensa bibliografia regiana: o livro MAS RÉGIO É GRANDE!, da autoria de Isabel Ponce de Leão.
Um país pode – e deve – ser julgado pelo modo como (mal)trata os seus grandes homens e também pelo modo como acarinha e promove os seus falsos grandes homens. Neste aspecto, Portugal é um “estudo de caso” bem peculiar. Adoramos os “génios” preguiçosos e estéreis e detestamos os trabalhadores produtivos, acarinhamos os vigaristas espertos e detestamos os homens sérios, perdoamos mais facilmente ao malandro desenrascado do que ao pobre honesto que teve um momento de fraqueza. Em suma, gostamos de aplaudir ao contrário.
Poucos verdadeiros grandes homens produziu, no século XX, a pátria de Camões e Camilo, com a indiscutível estatura – em profundidade e variedade de dons – de um José Régio. Mas também poucos foram tão enviesadamente avaliados e quase sempre pelas más razões. No entanto, curiosamente, o autor de Biografia foi sendo treslido por todos os “ismos” que se sucederam à Presença, que liderou e orientou, mas nunca foi esquecido ou negligenciado. Não foi sendo desprezado, antes foi sendo calorosamente atacado – óptimo sinal, `à rebours…Seja como for, uns torciam o nariz porque ele era “religioso”, outros fizeram-lhe boquinhas porque ele, afinal, não era religioso ou era um falso religioso e até escrevera sátiras contundentes à Igreja Católica daqueles tempos, dizendo, preto no branco, que ela nada tinha a ver com o cristianismo. Uns, porque ele só fazia “psicologia” (embora ele se fartasse de fazer, abundante e intensamente, outras coisas), não se preocupando, diziam, com os “verdadeiros problemas do nosso tempo” (como se o universo que a psicologia sonda não tivesse que ver com problemas de todos os tempos, incluindo o nosso). Os neorrealistas, mesmo os bem intencionados e admiradores dos dotes artísticos de Régio, lamentavam que ele se não deixasse orientar pela cartilha do soviético Jdanov, que indicava com muito cuidado a arte que os artistas deviam fazer e os temas que deviam glosar (sempre com um optimismo, de rigor, em relação aos belos e cantantes amanhãs). Régio, corajoso em extremo, como, de vários modos, demonstrou, achava, porém, tal como Karl Marx (ignorado pelos jdanovistas), que os artistas deviam ser deixados em paz, para fazerem o que muito bem entendessem: e fazendo-o, seguirem apenas os ditames do seu “canto profundo” e não os ditames dos obtusos burocratas da cultura. Homens cultos, como Marx, Engels e Lenine, nunca julgaram os artistas pela sua inclinação ideológica, mas antes pela qualidade da sua arte (vale a pena notar que Lenine preferia, em voz alta, o Pushkine burguês e decadente, ao Maiakowsky, revolucionário e tudo, e nunca escondeu a sua imensa admiração pelo conde e místico Tolstoi). É pois paradoxal e muito doloroso ter de vir aqui dizer, porque é verdade, que o vilipendiado autor de As Encruzilhadas de Deus afinava infinitamente mais pelo diapasão de Marx – com a sua abertura à arte, sem pruridos de ideologia – do que os neorrealistas, sempre a reboque de um Jdanov ignorante, obtuso e normativo.
A esquerda via com maus olhos o alegado “apolitismo” de Régio, quando este, sendo embora funcionário público vulnerável, nunca se esquivou, ao longo de toda a sua vida profissional, a mostrar claramente de que lado se encontrava, assumindo as mais vigorosas posições, em textos frontais dirigidos a Salazar e ao Estado Novo e tendo sido o único professor do Liceu Mouzinho da Silveira, em Portalegre, a dar a sua inequívoca solidariedade – depondo a seu favor – a um colega suspenso por razões políticas (a um aluno que entrara na aula, vestido com farda da Mocidade Portuguesa, o docente mandara-o para casa, para se vestir convenientemente).Textos violentíssimos, como “O Recurso ao Medo” e as sátiras acutilantes dirigidas ao Estado Novo e à Igreja Católica então vigente, no seu livro A Chaga do Lado (1954), não têm muitos iguais, em eloquência vituperativa, na nossa literatura de escárnio e maldizer. A Igreja Católica virou-lhe decididamente as costas, a partir deste livro pestiferado e Régio preparou as malas (confessou-mo mais tarde) para ir viver do jornalismo, por acreditar que seria expulso do ensino após ter publicado aquele livro contundente. Não foi, nem ele soube nunca porquê. Talvez porque fosse já demasiado célebre, dentro e fora de Portugal, por Vilaret lhe ter divulgado a sua poesia por todo o lado, e porque, apesar de tudo, ainda teria, dentro da Igreja e das estruturas do regime, alguém poderoso e suficientemente astuto para entender que seria mau para o dito regime agredir aquela figura de velho bardo recitado e cantado por todo o lado (dizia-se que Caetano, mesmo rilhando os dentes, o admirava).
Grande na poesia, na ficção, no teatro, na crítica, no ensaísmo, na autobiografia, Régio foi quase sempre avaliado com relutante empatia, em grande parte, porque perguntava mais do que respondia, embora, diga-se de passagem, os verdadeiros patrões do marxismo não vissem nisto inconveniente e o sempre oportuno Voltaire tivesse afirmado que “devemos julgar um homem mais pelas suas perguntas do que pelas suas respostas.” Régio era, resumindo, incómodo. Não oferecia receitas garantidas para a felicidade e analisava com grande lucidez e sem analgésicos as armadilhas que o ser humano encontra no seu caminho em busca do triunfo, do amor, da amizade e de algum sentido que a vida possa ter. Inquietava, não sossegava. Analisava e descrevia, agonizava, mas não confortava nem fazia batota com os escolhos encontrados. Mas amaciava a dor que a lucidez trazia com o prazer estético que a arte propicia aos que a sabem fruir. Prazer que não é promessa de nada a não ser de uma certa elegância no compreender a aventura humana, sem lhe decifrar nem a causa do começo nem o propósito que possa ter.
Vendo bem, que o país lhe tenha agradecido o dom da obra, de modo enviesado, também está na natureza destas coisas. O grande Baudelaire, que muito bem sabia do que falava, porque as suas Flores do Mal o tinham arrastado às barras dos tribunais, observou, justiceiramente, que “as nações só têm grandes homens apesar delas” , isto é, apesar da obstrução que elas normalmente põem ao percurso criador deles. Régio, como outros antes e depois dele, foi grande apesar de Portugal.
Vem tudo isto a propósito do belíssimo livro que Isabel Ponce de Leão acaba de publicar, intitulado MAS RÉGIO É GRANDE!, em recheadíssima edição do incansável Centro de Estudos Regianos (CER), de Vila do Conde. Tendo dedicado toda uma vida de atenção minuciosa e altamente perceptiva à obra literária e plástica e aos manuscritos do grande escritor, Isabel Ponce Leão está, como poucos, apetrechada para uma sondagem profunda e diversificada desta obra complexa, dolorosamente lúcida, intrépida e genial que é a do autor de MAS DEUS É GRANDE! Sondagem sem preconceitos (que são sempre hostis a uma leitura límpida), ao contrário do que foram frequentemente as aproximações feitas à sua obra por contemporâneos devorados por prevenções ideológicas de toda a ordem (e sempre passando ao lado da cintilância dos factos).
O lado “religioso” da obra regiana sempre incomodou as esquerdas, que não perceberam ter o autor de Jacob e o Anjo usado a mitologia cristã em registo metafórico e profano, como outros têm usado as mitologias grega e romana (ou outras), sem inconveniente de maior. Por outro lado, mesmo que a obra de Régio fosse – e não é – religiosa, no sentido corrente, gostaria de saber se os mesmos relutantes críticos de esquerda também mandam pela borda fora toda a grande pintura religiosa de Leonardo, Michelangelo, Rembrandt, Veronese, Raphael, Bruegel, o Velho, El Greco, Dali ou, já agora, a Missa Solene, de Beethoven ou o Requiem de Mozart. Aparentemente, só os incomoda o teor “religioso” do bardo de Vila do Conde, isto é, as metáforas que Régio aproveita, para ungir de sentido universal os conflitos dos seus atormentados fantoches. Por que serão as mitologias grega e romana, que servem de veículo a tanto teatro moderno, mesmo de esquerda, mais aceitáveis do que a mitologia cristã que visa exactamente o mesmo propósito? Não se tratará de puro preconceito, sem qualquer fundamento sério que fundamente a rejeição?
Isabel Ponce de Leão, neste seu livro, valorizado por uma riquíssima iconografia, sonda com uma firmeza que não exclui subtileza e enorme conhecimento, áreas fundamentais como a “escrita do eu”, a “epistolografia”, o Literaturismo” isto é, o aproveitamento de alguma poesia regiana para um turismo culto, o diálogo frutuoso entre poesia e artes plásticas e a sondagem dos singulares manuscritos do autor de POEMAS DE DEUS E DO DIABO.
Muito mais teria a dizer deste livro aliciante e enriquecedor, mas vou limitar-me a transcrever uma curta passagem do prefácio que, para ele, escrevi, e com isso termino:
“Lendo-se estes textos, facilmente se chega à conclusão de que Isabel Ponce de Leão não leu Régio: viveu com ele, ao longo de muitos anos, manuseando-o com ‘mão diurna e nocturna’. (…)… a autora de MAS RÉGIO É GRANDE! dá, em grande, uma resposta e uma lição aos pequenotes ressentidos que têm querido apoucar a estatura do autor de BIOGRAFIA e de HISTÓRIAS DE MULHERES (suspeito, cada vez mais, que muito deste apoucamento tem que ver com o conhecido “estão verdes, não prestam”, da deliciosa fábula de La Fontaine.”)»
Eugénio Lisboa, em ensaio inédito de 20.06.2021
domingo, 20 de junho de 2021
Ao Domingo Há Música
A compreensão da música é, no homem, uma expressão de vida.Wittgenstein
sábado, 19 de junho de 2021
Picasso por Picasso
Picasso (auto retrato,) 1899-1900. Museu Picasso - Barcelona |
quinta-feira, 17 de junho de 2021
Foi no verão de 1994
Acabava de fazer quarenta anos, mas felizmente – ou porque não sou um bom escritor, mas também não sou mau jornalista; ou , mais provavelmente, porque no jornal não dispunham de ninguém que quisesse fazer o meu trabalho por um salário tão exíguo como o meu - aceitaram-me. Fui destacado para a secção de cultura , que é onde se colocam as pessoas que não se sabe onde colocar. Ao princípio, com o fim não declarado mas evidente de castigar a minha deslealdade – uma vez que, para alguns jornalistas , um colega que abandona o jornalismo para se dedicar ao romance, acaba por ser pouco menos que um traidor -, fui obrigado a fazer de tudo , salvo trazer cafés do bar da esquina para o director , e só alguns colegas não incorreram em sarcasmos ou ironias à minha custa. O tempo acabou por atenuar a minha infelicidade : rapidamente comecei a redigir pequenos artigos, a fazer entrevistas. Foi assim que em Julho de 1994 entrevistei Rafael Sánchez Ferlosio, que naquele tempo estava a proferir , na universidade , um ciclo de conferências. Eu sabia que Ferlosio era extremamente relutante em falar a jornalistas , mas graças a um amigo ( ou melhor, a uma amiga desse amigo, que tinha organizado a estada de Ferlosiona cidade), consegui que acedesse a conversar um pouco comigo. Porque chamar àquilo entrevista seria excessivo ; se o foi, foi também a mais estranha que fiz na minha vida . Para começar Ferlosio apareceu na esplanada do Bistrot envolto numa nuvem de amigos, discípulos, admiradores e turiferários; este facto ,unido ao descuido da sua indumentária e a um físico onde se misturavam de uma forma inextricável ar de aristocrata castelhano envergonhado de o ser e o de um velho guerreiro oriental –a cabeça poderosa, o cabelo revolto e entremeado de cinza, o rosto duro, emaciado e difícil , de nariz judeu e faces sombreadas de barba – fazia que um observador desprevenido o tomasse por um guru religioso rodeado de acólitos. O pior é que, além disso, Ferlosio se recusou rotundamente a responder a uma única das perguntas que lhe formulei, alegando que nos seus livros tinha dado as melhores respostas de que era capaz.”
Javier Cercas , in Soldados de Salamina, Tradução de Helena Pitta, Edições Asa
quarta-feira, 16 de junho de 2021
Crer na desesperança?
terça-feira, 15 de junho de 2021
Budapeste
segunda-feira, 14 de junho de 2021
Sobre os Avós
domingo, 13 de junho de 2021
Ao Domingo Há Música
sexta-feira, 11 de junho de 2021
Do amor, sendo sempre tudo ...
O amor não é
nem paz nem batalha
nem fogo amealhado
na escura fornalha.
O amor é nevoeiro
a branquidão que esconde
a pedra suspensa
no despenhadeiro.
E sendo sempre tudo
como o sonho dos mudos
o amor não é nada
diante da morte
do vento que sopra
de madrugada.
Lêdo Ivo, in "Curral de Peixe", Topbooks, 1995.
Tus ojos son la patria del relámpago y de la lágrima,
silencio que habla,
tempestades sin viento, mar sin olas,
pájaros presos, doradas fieras adormecidas,
topacios impíos como la verdad,
otoño en un claro del bosque en donde la luz
canta en el hombro de un árbol y son pájaros todas las hojas,
playa que la mañana encuentra constelada de ojos,
cesta de frutos de fuego,
mentira que alimenta,
espejos de este mundo, puertas del más allá,
pulsación tranquila del mar a mediodía,
absoluto que parpadea,
páramo.
OCTAVIO PAZ ,(1935-1957), in Lo mejor de Octavio Paz ,Planeta Mexicana, 1999
A nudez da palavra que te despe.
Que treme, esquiva.
Com os olhos dela te quero ver,
que não te vejo.
Boca na boca através de que boca
posso eu abrir-te e ver-te?
É meu receio que escreve e não o gosto
do sol de ver-te?
Todo o espaço dou ao espelho vivo
e do vazio te escuto.
Silêncio de vertigem, pausa, côncavo
de onde nasces, morres, brilhas, branca?
És palavra ou és corpo unido em nada?
É de mim que nasces ou do mundo solta?
Amorosa confusão, te perco e te acho,
à beira de nasceres tua boca toco
e o beijo é já perder-te.
António Ramos Rosa, in "Nos Seus Olhos de Silêncio", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1970; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001.
quinta-feira, 10 de junho de 2021
Do amor a Portugal
Não mais , musa, não mais que a lira tenhoDestemperada e a voz enrouquecida ,E não do canto , mas de ver que venhoCantar a gente surda e endurecida.
Os Lusíadas, Canto X