segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Celebrar o 25 de Novembro


Tem um ano esta crónica de Eugénio Lisboa. Eclodia , nessa época, em Portugal, uma acesa discussão  sobre a celebração do 25 de Novembro. Eugénio Lisboa não recuou perante essa estranha  balbúrdia ao  registar a sua opinião. Homem destemido, independente, nunca fugiu a pensar pela sua própria cabeça contra modas ou marés. A clarividência das suas asserções foram sempre  de uma profunda e inteligente justeza. 
A nossa eterna gratidão.
 
Celebrar o 25 de Novembro
por Eugénio Lisboa
“Vai por aí uma estranha balbúrdia, que é também uma vergonhosa balbúrdia: celebrar ou não celebrar o 25 de Novembro, conjuntamente com o 25 de Abril. A gente democraticamente moderada, que sempre se identificou com o movimento que, em 25 de Novembro, pôs cobro a fantasias totalitárias de vascogonçalvistas inconformados com o advento de uma “democracia burguesa”, mostra-se agora bizarramente desconfortável com a celebração daquele movimento salvífico. Porque tal celebração é “fracturante”, por outras palavras, pode desagradar ao PCP e ao BE.
Quanto ao fracturante, já lá vamos. Antes disso, quero apenas chamar a atenção para um importante pormenor: o 25 de Abril e o 25 de Novembro significam exactamente a mesma coisa: o 25 de Abril deitou abaixo uma ditadura e o 25 de Novembro impediu que outra ditadura se instalasse, em substituição daquela. Exactamente o mesmo, pelo que se não divisa a razão de celebrar uma e nos encolhermos, envergonhados, perante a outra.
Quanto à data de 25 de Novembro ser “fracturante”, temos conversado: todas, mas todas as datas que assinalamos são ou foram fracturantes. Celebrar o 25 de Dezembro é fracturante para os portugueses muçulmanos ou budistas ou simplesmente ateus ou agnósticos; o 1º de Dezembro é fracturante para os portugueses favoráveis à união de Portugal com a Espanha: havia muitos, na altura da Restauração, havia não poucos entre os do tempo da Geração de Setenta e bastantes portugueses haverá ainda hoje favoráveis a tal união, ou, no mínimo, nada preocupados com o advento dela; o 5 de Outubro é fracturante, para os monárquicos: há-os por aí e o nosso MNE acolhia, não há muito, um número não insignificante deles (até nunca percebi como, sendo monárquicos, aceitavam representar, no estrangeiro, um Estado republicano); os feriados de Fátima são fracturantes para os agnósticos, os ateus e os portugueses praticantes de outras religiões. Agradecia que me dessem, sendo capazes, uma data celebrativa que não seja fracturante. O 25 de Abril, a cuja celebração, justamente se não objecta, é também uma data fracturante: todos os saudosistas do Estado Novo não escondem a sua aversão a essa data. E todos nós sabemos de gente, ao mais alto escalão da hierarquia do Estado, que sempre se recusou a exibir um cravo vermelho na data da Revolução dos cravos. Portanto, invocar o carácter fracturante do 25 de Novembro é apenas uma vergonhosa cobardia de quem se assusta com o sururu que venham a fazer os suspeitos do costume. Para os quais, de resto, o 25 de Abril que gostam de celebrar, não é o mesmo 25 de Abril que assinalam os outros portugueses… Fractura? Por amor de todos os deuses do Olimpo: arranjem outra desculpa! Não celebrar o 25 de Novembro corresponderá a uma grande maioria de portugueses ajoelharem perante uma minoria recalcitrante e conhecidamente pouco amiga da liberdade de pensamento. Não vejo um Mário Soares a ceder desta maneira!”
                                                                        25.11.2023                     
Eugénio Lisboa,
           que não tem receio absolutamente nenhum dos Anónimos do Costume.

domingo, 24 de novembro de 2024

Ao Domingo Há Música

Cabo Verde

É assim, a música

A música é assim: pergunta,
insiste na demorada interrogação
– sobre o amor?, o mundo?, a vida?
Não sabemos, e nunca
nunca o saberemos.
Como se nada dissesse vai
afinal dizendo tudo.
Assim: fluindo, ardendo até ser
fulguração – por fim
o branco silêncio do deserto.
Antes porém, como sílaba trémula,
volta a romper, ferir,
acariciar a mais longínqua das estrelas.
Eugénio de Andrade, in "Os lugares do lume", Editores Assírio & Alvim, Junho de 2019

O poeta  sabe como a Música interroga sobre tudo,- o mundo, a vida-, e como, fulgurantemente, vai dizendo tudo sobre o que não se vislumbra para que nada fique por se sentir. 
O apontamento de hoje traz-nos uma  voz quente de Cabo Verde. Um autor e compositor que tem actuado nos mais variados palcos do mundo e tem  sido galardoado com distintos prémios.  Foi também Ministro da Cultura de Cabo Verde.

Mario Lucio, em Oh Linda (com Coro e Orquestra Gulbenkian).Arranjos: David Lloyd. Maestro: Rui Pinheiro. Maestrina do Coro: Inês Tavares Lopes. Mix e mastering: Rui Ferreira.
“Cretcheu», Mario Lucio com Coro e a Orquestra Gulbenkian, é fruto de um encontro entre o artista cabo-verdiano e uma das mais prestigiadas orquestras europeias, a Gulbenkian, que resultou em dois concertos realizados em Lisboa na Grande Sala da Fundação Calouste Gulbenkian, nos dias 8 e 9 de Junho de 2022. 
"Esteticamente, projectei este disco de modo a que o ambiente, a toada e o sentimento da minha música, a tradicional e a autoral, encontrassem a música do Outro. A minha música vem de muitas músicas, muitas músicas têm também da minha. A proposta não é trazer a música tradicional, ou popular, para o ambiente sinfónico, nem o inverso, mas, sim, conseguir uma confluência, um enlace", diz Mario Lucio.

.  

Mario Lucio, em Força de Cretcheu (com Coro e Orquestra Gulbenkian). Arranger: Élodie Bouny. Producer: Mario Lucio. Composer: Eugénio Tavares. Lyricist: Eugénio Tavares

 

Mario Lucio, em  Migrants (Shakespearience). Lyrics and Music: Mario Lucio. Arrangement: Rui Ferreira . Choir Arrangement: Sofia Adriana Portugal . Percussion/Bass: Rui Ferreira . Galician Tambourine: Tiago Manuel Soares . Electro-Acoustic Guitar/Electric Guitar: Telmo Sousa . French Horn/Wagner Tuba: Ricardo Matosinhos . Flute/Piccolo Flute: David Leão . Choir: Sofia Adriana Portugal .Vocal: Mario Lucio .

  

"O júri da secção de world music da Académie Charles-Cros, a Academia Francesa de Música atribuiu o Prix de La Musique, na sua selecção dos melhores desse ano ( 2023), na categoria Criação ao álbum “Migrants”, de Mario Lucio - o músico e compositor cabo-verdiano – editado pela Banzé/MDC/PIAS. A cerimónia aconteceu na sexta-feira, 31 de Março de 2023, no Musée des Confluences de Lyon. Mario Lucio torna-se, assim, no segundo músico cabo-verdiano a merecer a prestigiosa distinção, depois de Cesária Évora, em 1995, ter recebido este prémio, tido como o equivalente francês do Grammy, atribuído anualmente a grandes destaques ou obras impactantes na cena musical mundial. A Académie Charles-Cros foi criada em 1947 por um grupo de críticos e especialistas em gravação. O atual presidente é o renomado maestro Alain Fantapié. A Academia, além de sua função deliberativa coletiva, trabalha com comissões especializadas (Música Clássica, Música Contemporânea, World Music, Jazz e Blues, Canção, Público Jovem, Letras e Documentos Sonoros). 
O disco "Migrants" foi produzido e arranjado por Rui Ferreira.

sábado, 23 de novembro de 2024

Dois escritores no quarto andar


Dois escritores no quarto andar 
por Rubem Braga
"A última crônica de meu livro Um pé de milho é sobre a rue Hamelin, de Paris, “onde morreu Proust”, faço notar doutamente, e onde vivi eu. Ao escrever aquela crônica eu ouvira cantar o galo, mas não sabia onde. Digo ali que “onde Proust morreu vive hoje um sindicato”. Era o que eu pensava na ocasião.
Eu vivia no quarto andar do número 44 e no segundo habitava meu amigo, o escritor gaúcho dom Carlos de Reverbel. Juntos fomos procurar o tal número onde morreu Proust e demos com o tal sindicato. Mas acontece que procurávamos um número errado. O verdadeiro — descobrimos depois — era o nosso 44 mesmo…
Não quero fazer pouco de dom Carlos de Reverbel, mas eu sou um proustiano mais íntimo do que ele. É verdade que meus inimigos assoalham que eu jamais li, no duro mesmo, todos aqueles volumes, embora, em conversas de salão eu seja capaz de discretear sobre Swann, descrever Combray ou Balbec, falar de Albertina ou da senhora duquesa de Guermantes. “O Braga tem as lantejoulas, mas não sabe as coisas” — murmuram os invejosos.
Pois que se mordam de inveja: Proust morreu exatamente no apartamento do quarto andar, de número 44, onde eu vivi. Dom Carlos morava, eu já disse, no segundo; pode alegar a seu favor que várias vezes foi ao quarto me visitar, o que o classifica, sem dúvida alguma, como o segundo proustiano do Brasil.
Léon Pierre-Quint conta que Marcel Proust alugou todo o quarto andar do edifício, que então devia ser novo; ali morreu em 1922, ano em que pela primeira vez eu vinha ao Rio de Janeiro, vestido de marinheiro do Encouraçado S. Paulo, trazido pela minha irmã para ver a Exposição do Centenário. Eu tinha nove anos de idade, nunca ouvira falar de Proust e estava longe de supor que 25 anos depois iria dormir na cama em que ele morria aquele ano. Mais pobre do que Marcel, aluguei apenas o grande quarto de frente com uma entradinha e um banheiro, o que me custava 6 mil francos em 1947; não era caro, levando-se em conta que nesse tempo eu era casado.
Conta Leon Pierre-Quint que Proust escolheu um quarto muito frio (não diz qual) temendo que a calefação central fizesse mal à sua asma. Não posso afirmar, mas devia ser o meu quarto; era friíssimo. Imagino quantas vezes ele não se quedou, como eu, a olhar a rua lá em baixo, pela vidraça encardida, a esfregar as mãos de frio. Ah, bem que me parecia suspeita aquela velha cama, bem que notei certos estremecimentos nas cortinas e pressenti, no tapete desbotado, o rasto de antigos pés que o pisaram em noites de insônia, e vagas nódoas de remédio. Posso informar com a maior segurança que, pelo menos nos últimos anos de sua vida, Proust não tomava banho de chuveiro. Não havia chuveiro na casa. Encontrei uma banheira com manchas de sujos imemoriáveis; mandei lavá-la, esfregá-la, flambá-la com álcool, mas nem assim me animei a tomar um banho nela; preferi comprar um chuveirinho de borracha que adaptamos à pia. Eu não podia adivinhar que era a banheira de Proust…
Às vezes, pela madrugada — conta o biógrafo — Proust despachava Odilon em um táxi para procurar algum amigo que viesse conversar com ele. Imagino-o perfeitamente à espera, escutando o ruído agônico do pequeno elevador que, no quarto andar, para perigosamente entre dois degraus da escada, uma velha escada sempre às escuras em que os passos reboam absurdamente alto. O amigo o encontrava na cama, com um lenço no pescoço, todo vestido sob os cobertores, com luvas de algodão, vários pares de meias e o plastron branco sobre a camisa amarrotada, no quarto fechado cheirando a remédios, a fumigações, a Proust. Eu positivamente ainda recolhi ali um pouco desse cheiro, dentro do qual foi escrito o último volume de Sodoma e Gomorra; homem bárbaro de um país semibárbaro, me lembro de que muitas vezes combati esse cheiro abrindo de par em par as portas que dão para a sacada e a que dá para o corredor, formando corrente de ar para grande pânico da arrumadeira. Ah, se eu soubesse aproveitar bem aquele cheiro, que coisas sutis não haveria escrito no lugar das croniquinhas triviais que eu mandava para O Globo!
Proust cochilava três dias à custa de veronal, depois ficava três dias desperto à custa de cafeína, falando de literatura, de pintura (esses jovens: Giraudoux, Picasso…), recitando Anatole ou Beaudelaire, discutindo finanças e mundanismo, falando em mandar vir seus livros, seus móveis, suas coisas, o que nunca chegou a fazer.
Também tive minhas noites de insônia na rue Hamelin; não terá ficado dentro de mim um pouco da angústia proustiana? Seria distintíssimo, mas receio que não; três copos de Beaujolais me punham facilmente em boa forma.
De qualquer modo, os jovens intelectuais que quiserem escrever sobre Proust devem me consultar para “fazer ambiente”. Posso, por exemplo, descrever o cubículo em que a concierge lá em baixo (uma velha, positivamente a mesma da era proustiana) está sempre fazendo contas, passando roupa a ferro ou espichando o nariz para ver quem entra, quando não atende ao telefone com sua voz chorosa:
– Passy, soixante-et-un deux fois…
Tomem nota, rapazes: Passy 61-61; é o antigo telefone do Proust e do Braga."
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana , Global Editora, São Paulo ,Brasil
Rubem Braga
AUTOR E OBRA 
"Rubem Braga (1913-1990) foi um escritor e jornalista que viajou e viveu em diferentes lugares do Brasil e do mundo. Além disso, entre 1961 e 1963, foi embaixador do Brasil em  Marrocos. Como escritor, lançou seu primeiro livro de crônicas, O Conde e o Passarinho, em 1936, seguido por diversos outros, e escreveu inúmeras crônicas que foram publicadas em diferentes jornais e revistas. Sobre a relevância como cronista, Miguel Sanches Neto, escritor e professor de literatura, explica: "As crônicas de Machado e de boa parte dos escritores do século XIX tinham um tom seco, quase jornalístico e eram cheias de referências históricas, próximas do gênero que hoje conhecemos como jornalismo literário. Rubem Braga conferiu à crônica o lirismo, a poesia e a leveza que antes não existiam". Assim, além de ser uma referência, pode ser considerado um precursor do desenvolvimento da crônica no Brasil, estabelecendo parâmetros que, até hoje, exercem influência no modo como esse gênero é pensado e feito.
 Ai de Ti, Copacabana! é uma seleção, feita pelo próprio autor, de crônicas escritas de abril de 1955 a fevereiro de 1960. São textos que trazem características como fluidez, brevidade e oralidade, e abordam uma variedade de temas como amores, tempo, morte, viagens, encontros e desencontros, sendo interessante notar que a leveza da linguagem utilizada pelo autor muitas vezes contrasta com a forte carga emocional, poética e subjetiva que essas crônicas carregam, fazendo o leitor se emocionar e ser tocado diante de situações corriqueiras como um encontro com velhos amigos ou a observação do sol que entra pela janela."

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

A propósito da Apresentação do último livro de Eugénio Lisboa, "Manual Prático de Gatos para Uso Diário e Intenso"



Um gato tem absoluta honestidade emocional: os seres humanos, por uma razão ou outra, podem esconder seus sentimentos, mas um gato não.
Ernest Hemingway

Como aquelas grandes esfinges que vagam pela eternidade em atitudes nobres sobre a areia do deserto, eles olham sem curiosidade para o nada, calmos e sábios.
Charles Baudelaire

 

No passado dia 19, na magnífica Livraria Travessa, em Lisboa, aconteceu um belíssimo momento entre Eugénio Lisboa e muitos amigos. Amigos especiais porque  vinham à celebração do seu último livro , um hino ao felino mais protegido e amado por todos, sua Alteza Real , o Gato. 
O convite, formulado pela Editora Guerra & Paz , avisava , com  todas as letras, do carácter de tal evento, ou seja, a apresentação de um terno e intenso livro  de homenagem a gatos. 
Não sei se o livro fosse apenas dedicado a gatos, sem a pena brilhante e clarividente de Eugénio Lisboa, teria feito acorrer tantos amantes de gatos. Sei  que, quem lá foi, pretendeu homenagear Eugénio Lisboa e a sua longa e persistente paixão por gatos , sem  esquecer o lema  de  Mark Twain: Quando um homem ama gatos, sou seu amigo e camarada, sem maiores apresentações.
No início da sessão , a cantora Amélia Muge cantou , a cappella, um poema de Eugénio Lisboa que fará parte do seu  novo disco. E a rede, em torno do poeta, estabeleceu-se. Os elos  apertaram-se em  afecto, apreço por tanta ventura literária, proporcionada por este poeta maior.
Manuel S. Fonseca, além de  editor , tem, nas palavras, o manejo talentoso de quem sabe escrever para, de um modo empático e eficaz,  apresentar  os dois intervenientes na sessão. Luís Caetano , o grande promotor da Literatura  da Antena 2, com programas dedicados às diversas áreas.  E o filho de Eugénio Lisboa, João Lisboa, crítico de música do Jornal Expresso.
Luís Caetano , também um amante de gatos, era, pois,  o apresentador natural   e de mérito deste opíparo Manual de Gatos.  Entrevistou , variadas vezes,  Eugénio Lisboa nos seus programas.
Entre as merecidas referências feitas  por  Manuel da Fonseca, destacamos estas: Pela força das coisas e pela ronda da noite, o Luís Caetano tem agarrado na literatura, na sua irmã poesia, no seu irmão romance, e tem-lhes oferecido uma aventura dialogada, sussurrada, musicada.
Pesa nos ombros de Luís Caetano um rosário de assombrosos desabafos literários: Portugal deve ao Luís Caetano, horas de confissões íntimas, de autoras e autores, até de alguns editores, horas de prazer, as pequenas e grandes delícias, dulcíssimos abades de Priscos da literatura. Obrigado Luís, por estar connosco.
Sobre João Lisboa, Manuel Fonseca  teceu o seguinte: E quero dizer obrigado ao João Lisboa que acompanhou a preparação desta edição e deste lançamento. Vamos ouvi-lo, no final, depois da apresentação do Luís Caetano.
O João falará do seu pai, certamente, mas também deste livro onde, afinal, o João também está, como personagem, de corpo inteiro, em romanesca e felina relação com a Ísis, com a Artemísia. Obrigado, João, por nos honrar com a sua presença.
Quer um  quer outro souberam evocar o poeta e dar ao livro a dimensão que merece. Um livro de extraordinário fulgor e de infinda e deliciosa ternura por esse elegante e misterioso felino.
O momento maior foi proporcionado pela audição da gravação de um poema de Eugénio Lisboa , lido pelo próprio poeta,  realizada num programa de Luís Caetano. A comunhão foi total. Eugénio Lisboa era um entre todos os que ali estavam. Num instante, a  sua presença passou a ser real, física. Se a emoção fosse mensurável, seria possível ter atingido a grandeza máxima, a eternidade do instante.
As palavras do poeta  Giuseppe Ungaretti ganharam ,de novo, forma:  O gato é um amigo silencioso que nos ensina a encontrar a paz dentro de nós.
E a preciosa aferição de que os poetas não morrem rendeu-se à  verdade do momento.  Eugénio Lisboa provou-o . 
Manuel S. Fonseca soube homenageá-lo. Para ele, junto um veemente e grato aplauso, tal como aquele  que  solicitou para  Eugénio Lisboa.

Título: Manual Prático de Gatos para Uso Diário e Intenso
Autor: Eugénio Lisboa
Categoria(s): Ficção, Poesia, Sem categoria
Nº de Páginas: 92
Ano de Edição: Novembro 2024
Editora: Guerra & Paz
Preço: 18,00 €

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Viver com gatos ajuda a ser sábio

Quem o afirma é Eugénio Lisboa e acreditamos plenamente. Eugénio Lisboa era um  amante de gatos. Teve vários e a última, Ísis,  foi a grande companheira de todos os dias. Além de um fulgurante e multifacetado escritor , Eugénio Lisboa era um homem cultíssimo e detentor de uma  magna sabedoria. 
Acaba de ser publicado um livro dedicado ao Gato, Manual Prático de Gatos Para Uso Diário e Intenso, mas Eugénio Lisboa  escrevia muito e nunca deixou de compor  outros poemas felinos até nos deixar, a 9 de Abril deste trágico ano.  Eis alguns :

Ode (insuficiente) ao gato

De bons condimentos, é, de certeza,
feito o gato, emissor de beleza,
inventor de quanto é esbelteza,
descendente da mui alta nobreza,
dotado de altíssima destreza,
com momentos raros de safadeza,
e tiques de inigualável leveza,
mesmo meditando, a cocar a preza,
filósofo, todo ele subtileza,
implacável, mas sempre com fineza,
dado a ademanes de Sua Alteza,
fazendo tal inveja à gentileza,
de cauda perpendicular e tesa,
é tudo isto o gato, de certeza,
pra já não falar da sua esperteza!
          24.12.2023
Eugénio Lisboa
Um gato no inverno

Um gato no inverno é outro gato,
muito secreto, mas muito próximo.
Aquece-se com seu espesso fato,
de pelo muito lustroso e finíssimo.

No inverno o gato descobre nichos
impensáveis: só ele os imagina,
entre todos os concebíveis bichos,
co’a sua imaginação felina!

No inverno, melhor que nós, ele sabe
o modo sábio como se aquece
e os bons sítios onde um gato cabe!

Quentinho, escondido, o gato esquece
a actividade que embrutece
e louva o não fazer, que engrandece!
          24.12.2023
Eugénio Lisboa


NOTA: Este título – UM GATO NO INVERNO – foi-me sugerido pelo título de um romance célebre – UN SINGE EN HIVER – cujo talentoso autor, Antoine Blondin, pertenceu, com Roger Nimier, ao movimento literário conhecido como dos “hussards”.
O gato de Leonardo
Ser gato

Não é gato quem quer, é só quem pode
Se nem Leonardo inventou o gato,
o melhor é que ninguém se incomode
a querer entrar nesse campeonato.

Ser gato é empresa transcendente,
muito além de qualquer poder humano.
Sonhar sê-lo é sonho de demente,
que ignora as subtilezas do bichano.

O mais que se pode é tender pra gato,
mas sem nunca lá se poder chegar!
O percurso a fazer, longo e chato,

convida o candidato a meditar:
antes, talvez, evitar as alturas,
do que ficar com nódoas e fracturas.
          29.12.2023
Eugénio Lisboa

Inventário de razões para se ser gato

Os gatos nunca sonham com impérios,
não trocam nunca uma boa soneca
pela honra de dirigir ministérios
ou pelo direito a usar beca.

Os gatos não cambiam um petisco
por um Rolls-Royce ou por um Ferrari.
Se pretendem estender-lhes um isco,
mostrem-lhes um prato de calamari.

Os gatos têm ambições modestas:
cama, mesa e roupa bem lavada,
de vez em quando, umas lindas festas,

e, de preferência, não fazer nada!
Se o gato em qualquer nicho cabe,
o gato, acima de tudo, sabe!
          31.12.2023
Eugénio Lisboa
Metamorfose

Transformei-me finalmente num gato,
isto é, aprendi a bem viver:
trabalho e chatices não acato
e porreiríssimo é o lazer!

Viver com gatos ajuda a ser sábio,
e a descobrir tesouros escondidos :
em vez de frequentar o alfarrábio,
observar o felino bem flectido.

Os olhos do gato inculcam mistérios,
que muito importa desvendar:
antes isso que conquistar impérios,

que apenas servem para devastar.
O gato é o melhor instrutor
e, do bom viver, o melhor gestor!
          03.02.2024
Eugénio Lisboa

domingo, 17 de novembro de 2024

Ao Domingo Há Música

 

Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos – onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida
E é um sonho louco este nosso mundo…
Mario Quintana, Os Degraus

Que mais desejar, quando as cordas se soltam ou as teclas acordam. A música impregna o ar e, se nos abrirmos ao momento, o sonho    acomete-nos e a loucura, que tolda o mundo, desaparece. É esse o próprio enigma da Música.
Schindler´s List Theme, de John Williams, com o virtuosismo do violinista Itzhak Perlman, acompanhado pela Los Angeles Philharmonic, sob a direcção do Maestro Gustavo Dudamel
  
Chopin, “Raindrop” Prelude, pelo perfeccionista do piano Lang Lang.
Vivaldi Winter (1st movement), com o virtuoso do violoncelo Luka Sulic , acompanhado por  outras preciosas cordas. 
 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

A magnificência da natureza


Ao longe, os rios de águas prateadas
Por entre os verdes canaviais, esguios,
São como estradas liquidas, e as estradas
Ao luar, parecem verdadeiros rios!
António Nobre,

Um registo dos melhores momentos da Natureza  para lembrar quão desastrosa tem sido a mão humana  ao agredi-la com desleixo, ganância e severa destruição. Basta um olhar para que se conclua que se vai perdendo  essa beleza gratuita, com tanta agressão e algumas calamidades incontroláveis. 
Não há cimeiras climáticas que sejam suficientes para estancar a poluição, se o Homem o não  quiser.
Os melhores momentos da Mãe Natureza ,em 4K HDR 60 FPS Dolby Vision 

"Mergulhe na beleza, de tirar o fôlego,  do nosso planeta com "Os melhores momentos da Mãe Natureza em 4K HDR 60 FPS Dolby Vision". Este vídeo impressionante captura as paisagens dramáticas e inspiradoras que a natureza tem a oferecer, exibindo cores vibrantes e detalhes intrincados que ganham vida em ultra-alta definição. De pores-do-sol serenos a cachoeiras estrondosas, cada quadro é uma celebração do mundo natural, habilmente filmado em resolução 4K e aprimorado com tecnologia HDR para uma experiência de visualização incomparável. Sinta o poder da natureza enquanto explora montanhas majestosas, florestas exuberantes e oceanos tranquilos, todos apresentados em hipnotizantes 60 quadros por segundo para um movimento fluido que dá vida a cada cena. Seja  um amante da natureza, um viajante ou simplesmente buscando um momento de paz e tranquilidade, este vídeo certamente o  cativará e inspirará. Não se esqueça de desfrutar, comentar e se inscrever para mais experiências visuais impressionantes que destacam a beleza do nosso mundo. Ative suas configurações Dolby Vision para a melhor experiência de visualização! Junte-se a nós nesta jornada visual e testemunhe os melhores momentos da Mãe Natureza como nunca antes!"

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Aqui , ao lado, mora um povo que canta

Fotografia de Emilio Beauchy, aproximadamente 1885.Sevilha, Espanha

Aqui , ao lado, mora um povo com história . História que, tal como a nossa, tem raízes profundas onde se entrelaçam portugueses e espanhóis ou não partilhássemos todos a vetusta Península Ibérica. 
Há quem diga que o choro do "Cante Jondo" tem  idêntico trinar  no Fado. Que se descortina  a alma de cada povo através desses cantares.  
"O 'cante jondo' é um estilo dentro do flamenco, uma forma de expressão. De acordo com o dicionário da Real Academia Espanhola, o 'cante jondo' ou 'cante hondo' é o canto andaluz mais genuíno, de sentimento profundo. O termo 'jondo' não é mais do que a forma dialetal andaluza da palavra 'hondo', que é aquilo que tem profundidade. Federico García Lorca, (1870-1920), um dos poetas espanhóis mais representativos do século XX, reivindicou-o como o canto andaluz por excelência, um canto profundo, sincero, de tom grave e de grande intensidade. No flamenco, esse canto é o de maior emotividade. Segundo o poeta, é o canto mais escuro e misterioso onde a magia do duende se manifesta  num momento imóvel e único. O cante jondo aproxima-se do ritmo dos pássaros e da música natural do álamo preto e das ondas; é simples em antiguidade e estilo. É também um raro exemplo de canção primitiva, a mais antiga de toda a Europa . Para Lorca, o duende é uma espécie de espírito mágico, passional e original que só pode ser sentido em momentos pontuais e que  não tem nada a ver com a técnica, e sim com o sentimento. Como dizia Goëthe, é um poder misterioso que todos sentem e que nenhum filósofo explica."
Em 2010, a Unesco declarou o flamenco Património Cultural Imaterial da Humanidade. 

Nestes dias calamitosos da região de Valência (Espanha), vítima de uma  pesada intempérie,  acorrem-nos, em jeito de grande apreço e solidariedade, as vozes de excelentes cantores de flamenco.
Niña Pastori e  Miguel Poveda, em   Ya No Quiero Ser,  do Álbum " Realmente Volando ", gravado em directo  do  Teatro Real de Madrid,  em 2018.
 
Um dos maiores nomes do flamenco, Enrique Morente, (1942-2010), em La Alhambra lloraba.
   
Estrella Morente, filha de Enrique Morente, em La gazpacha - La repompa - La tía Concha.
   
 India Martinez , em  El Aire y El Baile.
   
Ángeles Toledano,  uma das mais promissoras vozes da nova geração  de flamenco, em  Bulerías, (Música para mis oídos) .
 

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Pensamento do dia

" Em épocas de perigo político, os homens adoptam doutrinas idiotas e destruidoras e abdicam de pensar com justeza.  Perseguem ainda aqueles que o fazem , com ferocidade maior ou menor , conforme o grau de medo que atingiram . Até que ponto este processo foi levado na Rússia, todos nós o sabemos.  Temos muitas razões para recear  que, ainda que talvez sob uma forma menos feroz , algo que não será de todo dissemelhante venha a acontecer no Ocidente. "
Bertrand Russell, in Realidade e Ficção, Publicações Europa-América, p 155

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Os dez melhores romances que li

Os dez melhores romances que li
por Eugénio Lisboa
" Pedem-me que indique os dez melhores romances que até hoje li. A resposta é evidente que é impossível. Porquê dez? Porque não doze, ou vinte ou cinquenta? Há, neste número, dez, um não sei quê de arbitrário. Seja como for , entremos no jogo. Suponhamos , por exemplo, que se trata de limites de espaço, de limites de bagagem...
Segundo André Gide, foi Jules Lemaître que lançou a moda destes jogos: " Tendo que passar o resto dos seus dias numa ilha deserta, quais os vinte livros que desejaria levar consigo?" Jules Lemaître era menos rigoroso: vinte em vez de dez, e livros, em geral, sem indicação de que devessem ser romances. Romances, limita. Por outro lado, esta escolha reflecte sempre as inclinações pessoais de cada um. Como dizia Somerset Maugham, a quem também perguntaram pelos seus dez, uma pessoa apaixonada por música tenderá a incluir livros que tenham que ver com esse mundo (o Doutor Fausto, de Thomas Mann, por exemplo). Um espanhol ou um francês, segundo Maugham, nunca se lembrariam de incluir o Pride and Prejudice, de Jane Austen que, para um inglês, é provável que se torne obrigatório. Por outro lado, a Princesse de Clèves, de Madame de Lafayette, inevitável para um francês , poderá ser esquecida pelo inglês, pelo espanhol ou pelo alemão. E por ai fora. Quis apenas dar uma ideia, ainda que superficial, das armadilhas que espreitam este tipo de escolhas.
Por outro lado, quando se ama profundamente um autor, a tentação é grande de escolher os livros todos desse autor e esquecer os outros. Porque não? Porquê escolher o Le Rouge et le Noir de Stendhal e deixar de fora La Chartreuse de Parme e o Lucien Leuwen?
Porquê aceitar a convenção (arbitrária e, se calhar, injusta) de que se não deve seleccionar mais do que um livro de cada autor? Porquê os Karamazov e não Os possessos , o Crime e Castigo ou O Idiota? Quase percebo a tentação em que se deixou cair um crítico inglês, quando lhe perguntaram quais os seis maiores romances deste século. respondeu, sem hesitar: " Quaisquer seis , desde que sejam todos de Conrad." A mim, quando um dia me perguntaram pelos meus três compositores preferidos, também não hesitei: " Mozart, Mozart e Mozart". Há que ter a coragem das nossas convicções...
Feitas as reservas anteriores, irei dar, não a minha lista de dez, mas duas, três ou quatro listas de dez, todas elas viáveis e duvido que alguma delas especialmente melhor do que as outras. É o meu modo de afirmar, com ênfase, a relatividade destas escolhas:
Primeira Lista:
Le Rouge et Le Noir, Stendhal
Le Cousin Pons, Balzac
Middlemarch, George Eliot
David Copperfield, Charles Dickens
Os Irmãos Karamazov, Dostoievsky
Ana Karenina, Tolstoi
Les Liaisons Dangereuses, Choderlos de Laclos
Nostromo, Joseph Conrad
Os Maias, Eça de Queirós
Jogo da Cabra Cega, José Régio

Segunda Lista
La Chartreuse de Parme, Stendhal
Adolphe, Benjamin Constant
Guerra e Paz, Tolstoi
Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco
As Aventuras de Huckleberry Finn, Mark Twain
À la Recherche du Temps Perdu, Marcel Proust
O Processo , Kafka
O Doutor Fausto, Thomas Mann
Moby Dick, Herman Melville
Le Chaos et La Nuit, Henry de Montherlant

Terceira Lista
Vilette, Charlotte Brontë
Great Expectations, Charles Dickens
Tess of the D'Urbervilles, Thomas Hardy
Amor de Salvação, Camilo Castelo Branco
A Loucura de Peredonov ( ou O Demónio Mesquinho) , Fiodor Sologub
Dom Casmurro, Machado de Assis
Les Faux Monnayeurs, André Gide
Les Thibault, Roger Martin du Gard
A Confissão Impúdica, Junichiro Tanizaki
Para Sempre, Vergílio Ferreira

Quarta Lista
Wuthering Heights, Emily Brontë
Os Possessos, Dostoievsky
Niels Lyhne, Jens Peter Jacobsen
Madame Bovary, Flaubert
L'Immoraliste, André Gide
Etzel Andergast, Jacob Wasseman
Les Jeunes Filles, Henry de Montherlant
The Heart of the Matter, Graham Greene
Nome de Guerra, Almada Negreiros
Sons and Lovers, D.H. Lawrence

Posto o que, fico perfeitamente inconsolável por causa de todos os nomes e títulos que deixei de fora... os quais me ficam a azedar a alma, sussurando-lhe que são indesculpáveis as exclusões que fiz. Onde ficaram Cervantes, Sterne, Fielding, Musil, Svevo, Goncharov, Teixeira Gomes, Guimarães Rosa, Faulkner, Gogol etc.,etc., etc.? Até à náusea... Não me perdoarei nunca, por exemplo, não ter incluído esse notabilissimo romance que é The Sun Also Rises, de Hemingway. E, depois, a palavra "romance" exclui do mundo da ficção as histórias menos longas de Karen Blixen, de Isaac Bashevis Singer, de Irene Lisboa... Mais vale terminar mesmo! De uma vez por todas."
                                                            Londres, Março de 1985
Eugénio Lisboa, in Portugaliae Monumenta Frivola, Universitária Editora, Lisboa,pp.301-303

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Canto para Angola


Canto para Angola
 
Hei-de compor um dia
um canto sem lirismo
nem tristeza
digno de ti, ó minha terra.
 
Hei-de compor um canto
livre e sem regras
que de boca em boca vai partir
nos lábios de velhos e meninos.
 
Será o canto do pescador
com todos os sons do mar
com os gemidos do contratado
nas roças de São Tomé.
 
Será o canto de todos os dramas
do algodão do Lagos & Irmão
o das tragédias nas minas
da kitota e da Diamang.
 
Será o canto do povo
o canto do lavrador
e do estudante
do poeta
do operário
e do guerrilheiro
falando de toda Angola
e seus filhos generosos.
Jofre Rocha, in Assim se fez madrugada, Edições 70, 1977

Andar de olhos abertos. Descobrir. Absorver. Deixar entrar tudo o que se abarca numa diversidade desconcertante é o desassossego dos dias em África. Imparável, inebriante, imprevista, incómoda, infinda, inigualável, inquieta… importuna quem avista  para se intrometer sem permissão. Em África, estar ou viver é sempre in e dificilmente out.

Quem nasceu, viveu ou visitou África ficou preso na beleza  daqueles largos horizontes. O fascínio  desse imenso continente captura para sempre quem ousa mergulhar no mar dos muitos e longos areais, quem se perde na frondosa vegetação das suas terras ,  quem se atreve a descobrir a savana, o planalto ou o deserto. 
Escolher para onde ir, quando tudo se insinua em desconhecida volúpia paisagística, é o maior desafio para quem chega ou (re) torna a Angola. 
Angola, país africano,  que celebra hoje  o 49º  aniversário da independência. Um país de gente que labuta e que sonha .Um país de gente que  sempre almejou um futuro sem pobreza e  sem injustiça social. 
Descobrir  Angola é também ouvir o seu cantar . A canção foi e será uma das mais vigorosas expressões do sentir angolano. 

Bonga e Paulo Flores , em Mona Ki Ngi Xica.  
    
 Paulo Flores com Yuri da Cunha , em Njila ia Dikanga .
     
Rui Mingas, em  Undengue Uami  ("A minha Infância") .[Legendado]
   
O incomparável Waldemar Bastos, em  Muxima. 

domingo, 10 de novembro de 2024

Ao Domingo Há Música


Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca,
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender…
Carlos Drummond de Andrade, O Amor bate na aorta

O mundo , essa grande e constante incógnita . Vê-se, assiste-se, tenta-se compreender mas,  num ápice, tudo se modifica . No entanto,  o poeta vai mais longe. Descortina o amor que viaja  sem mapa  e não ousa compreender aquilo mais que também vê. É essa a sabedoria da poesia.  Assim o faz a música. 
Ouçamo-la.

Mahler's 8th symphony Finale , pela Wiener  Philharmoniker, sob a direcção do Maestro Welser-Möst e pelos coros :Chöre:Wiener Sängerknaben, Wiener Singverein e  Wiener Singakademi.

Gustav Mahler: Symphony No. 2 , pela Rundfunkchor Berlin  e  Berliner Philharmoniker,  sob a direcção do Maestro Simon Rattle. Gravado no Berlin Philharmonie, em 31 de Janeiro 2015.

sábado, 9 de novembro de 2024

Sobre o novo e opíparo livro de Eugénio Lisboa: Manual Prático de Gatos...

De gatos falemos! De que mais havíamos de falar?  é este o título de um poema de produção ulterior à conclusão do opíparo manual felino  que a editora Guerra & Paz acaba de publicar. O seu autor , Eugénio Lisboa, aprovaria  o formato e a ilustração da obra que não teve tempo de folhear. É uma obra póstuma, de extraordinário fulgor e vivacidade,  já que se trata de um precioso  Manual prático de Gatos para uso diário e intenso. 
O gato é uma beleza máxima que eternamente desafia, afirmava, com profunda convicção, este  apaixonado poeta do feérico felino . A paixão e o  fascínio por essa majestosa esbelteza  eram tão intensos  que, num texto de 2023, "Leonardo e o Gato",  revela : “Leonardo não inventou o gato. Criou beleza como ninguém, congeminou engenharias, máquinas de guerra, aviões e conheceu a anatomia dos seres vivos, com uma abundância e minúcia que não tiveram nem antecedentes nem herdeiros. Mas não inventou o gato. O advento do gato é anterior ao advento de Leonardo. Como criador, Leonardo competiu com Deus e ganhou, mas nem Leonardo nem Deus criaram o gato. Quem criou o gato? É o mais indecifrável mistério do Universo. Há uma teoria que sustenta ter sido o gato que se inventou a si mesmo, visto não se conceber outro poder capaz de o fazer. Mas, quando observamos os olhos de um gato, tudo o que vemos é mistério insondável. (...)  Quando Leonardo o viu, pela primeira vez, teve a mais singular e perturbante das sensações: um misto de deslumbramento e dor. Deslumbramento, porque nunca vira, na natureza dos vivos, uma tal esbelteza, uma tal perfeição, um tal acerto dos números. O gato era a fórmula final da perfeição." 
E porque cantar o gato e tecer-lhe loas não é  labor para qualquer métrica , apenas os rigorosos catorze decassílabos o servem. Assim confessa Eugénio Lisboa na Nota Introdutória ao felino Manual:  "A majestade divina do gato exige uma oficina mais rigorosa e mais aristocrática: exige o formato mais nobre da poesia – o SONETO. O rigor, a densidade, o muito no pouco. A liberdade máxima conseguida dentro do mais apertado colete de forças: a prisão que não prende, mas liberta. Menos do que o soneto é muito menos do que o gato merece."
Os sonetos, que compõem o livro, são ilustrados  por uma prole de formosos gatos que se irmana  numa quase possível confraria a que a insigne Ísis, a  gatinha  de Eugénio Lisboa, preside.
É ela que,  num rememorar do tempo primeiro, carregado de emoção, dá início ao Manual com o poema " A minha companheira Ísis",  - Cabias na palma da minha mão/quando chegaste , naquela manhã./ Ver-te tão pequenina , que emoção,/ tu mínima e peluda castelã!
De 2012 a  2024, Ísis cimentou o seu lugar. Instalou-se, cresceu, deixou-se mimar e  fez-se soberana até  se tornar a grande e única companheira de Eugénio Lisboa.
No soneto " O gato é quem mais ordena", de 22.05.2023 é já  a assertiva  Ísis a ditar as directivas  que podem conduzir à sabedoria e à felicidade do poeta:

Repousada no meu computador,
a minha gatinha  Ísis, repete-me,
com assertividade  e sem pudor
que eu preciso dela e compete-me

em tudo mas em tudo, obedecer
às suas directivas  de felino.
Só assim , felicidade e saber
serão, de certeza, o meu destino.
   (...)   

Da paixão inicial ao amor ilimitado, Ísis encheu páginas e páginas da vasta obra deste grande escritor.
O Manual é apenas um pequeno repositório, mas um repositório de grande sedução não fosse o GATO a única e exclusiva musa.   Gato que se expande em  vários representantes  a quem o poeta dedica alguns dos sonetos. Ao fazê-lo, permite que o leitor conclua que  existe  uma rede de amantes deste singular animal  que partilha, amiúde, essa grande admiração por esse ser perfeito que é Gato.
Ao longo da obra , vão surgindo poemas  que, para  além de todos os gatos vivos e não vivos do poeta,  são dedicados a outros  garbosos gatos   dessa rede,  tais como o  Lindo, a Lua, a  Matilde ou a  Moon.
E se a construção da obra se fez em torno  do Gato ,  a Ísis, inteligente gatinha,  soube nomear Eugénio Lisboa ( informação fornecida pelo próprio) como seu director de recursos humanos para que  nunca se deixasse de acreditar que : Amizade de gato é coroa / de grande glória e de aparato, / que não pode vir  senão de gato/ e nunca por nunca  ser,  de pessoa! 
No último soneto, A Ascensão do Gatoentroniza-se definitivamente o Gato, para que não persista qualquer dúvida: 
(...)
Conta-se que um dia , o Altíssimo,
querendo a si próprio ultrapassar-se,
congeminou um animal belíssimo, 

que o fez completamente babar-se !
Chamou-lhe gato e este, olhando Deus,
perguntou: És um dos criados meus?

O posfácio de Onésimo Teotónio de Almeida celebra o livro e celebra o brilhante  intelectual, o singular escritor e o homem verdadeiramente grande  que foi e sempre será Eugénio Lisboa. 
As palavras esclarecedoras de Otília Pires Martins fecham o Manual . Algumas servem para  dar  nome e contextualizar as imagens dos gatos que embelezam a obra , outras vêm carregadas de uma verdadeira e longa amizade  pelo  colega, o Doutor Eugénio. E todas, em comovido e afectuoso  uníssono, não deixarão de tocar profundamente qualquer leitor. 
Manuel da Fonseca, o editor da Guerra & Paz,  comprometera-se com a edição e publicação do livro com o poeta Eugénio Lisboa, em vida . Honrou esse compromisso e fez desta obra um belíssimo e saboroso presente de Natal, tal como ambicionava o seu autor.

Título: Manual prático de Gatos para uso diário e intenso
Autor: Eugénio Lisboa
Categoria(s): Ficção, Poesia, Sem categoria
Nº de Páginas: 92
Ano de Edição: Novembro 2024
Editora: Guerra & Paz
Preço: 18,00 €

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Pensamento do dia

Eugénio Lisboa
" O escritor pode ser sempre uma consciência do seu tempo, em  vários sentidos que reveste o termo "consciência", o que não pode nunca deixar de ser é uma grande consciência artística do seu e de todos os tempos. Os que se opõem a esta verdade de sempre andam por certo a pescar em águas turvas - e a promover a mediocridade que sempre teme  e há-de continuar a temer a verdadeira arte. O verdadeiro escritor não deve temer dificuldades inerentes ao seu ofício. São elas , em última análise  a sua salvação: « Um homem é um poeta», dizia Valéry, «se as dificuldades inerentes à sua arte lhe proporcionam ideias, e não é um poeta se elas o privam dessas ideias». A dificuldade , serve, em suma, para facilitar e não para dificultar - serve para facilitar o acesso aos outros, à emoção dos outros e à verdade dos outros. Ser artista é a melhor  - talvez a única - forma de ser plural. "
Eugénio Lisboa, in A arte é arte porque não é natureza , de Portugaliae  Monumenta Frivola, Universitária Editora, 2000,  pp.109-110

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

A loucura de Churchill

Winston Churchill (30 de Novembro de 1874 - 24 de Janeiro de 1965)
A loucura de Churchill: como Winston Churchill moldou o moderno Iraque e o Médio Oriente
Capítulo I
De Abraão a Allenby
por Christopher Catherwood
"Em Março de 1921, Winston Churchill, recentemente nomeado ministro das Colónias, convocou um grande grupo de conselheiros para se encontrarem num hotel de luxo no Cairo. Ao longo de alguns dias, os peritos ali reunidos, que incluíam individualidades como T. E. Lawrence (Lawrence da Arábia), Gertrude Bell, a eminente arqueóloga, e outros especialistas, criaram um país completamente novo: o Iraque. Desde a sua criação em 1922, este nome tem estado associado a guerras, a conspirações, à opressão e à ideia de um caos generalizado. Todos conhecemos, porém, a história do território que constitui o Iraque, especialmente, se nalguma fase da nossa vida tivermos estudado história antiga ou aprendido episódios da Bíblia na catequese. É por partilharmos a herança da história bíblica que se assistiu à indignação internacional perante os saques dos museus de Bagdade, em 2003. São raros os grandes museus ocidentais que não têm entre as suas colecções peças provenientes das principais expedições arqueológicas realizadas na região no início no século XX (incluindo as duas efectuadas pelos principais conselheiros de Churchill, Gertrude Bell e T. E. Lawrence). Actualmente, pelo menos na Europa Ocidental, o número de pessoas que lê a Bíblia é muito menor do que terá sido nos anos 20 do século XX, na época de Churchill e dos seus contemporâneos, que mesmo que não frequentassem com regularidade a missa durante a vida adulta, teriam muito provavelmente aprendido as histórias da Bíblia em criança. Devido às nossas memórias de infância, muitos de nós pensam conhecer a história da região, mas aquilo de que nos recordamos é geralmente incorrecto. Vejam‑se os seguintes exemplos:
Abraão era um exilado iraquiano que se refugiou em Israel… Rapidamente, vemos que isso é um anacronismo, bastante parecido com os famosos versos de Shakespeare na peça Júlio César, em que um dos conspiradores ouve as badaladas de um relógio, um instrumento que só foi inventado mais de mil anos depois da morte de César. Infelizmente, a história está cheia desses anacronismos, com as pessoas a projectar as realidades e os conflitos actuais no passado. Tragicamente, durante o século XX, milhões de pessoas foram massacradas com base unicamente nesse tipo de interpretações da história — esse é o tema de muitos livros e um dos tópicos principais desta obra: Churchill inventou o Iraque e o país hoje com esse nome não existia antes de ter sido criado pelo estadista britânico. Para compreendermos como essa afirmação é anacrónica, basta‑nos apenas recuar até ao período pré‑histórico dessa zona geográfica que é hoje delimitada pelas fronteiras do Iraque. Para compreendermos os perigos desta visão da história, temos somente de olhar para um dos seus principais adeptos — trata‑se, nem mais nem menos, de Saddam Hussein, que deturpou o passado para reforçar o controlo do poder. Abraão, o pai da nação judaica, era incontestavelmente natural de Ur, actualmente uma cidade no Iraque, mas considerá‑lo um iraquiano seria obviamente ridículo. Contudo, Saddam Hussein não hesitou em comparar‑se ao grande rei assírio Nabucodonosor. Saddam chegou mesmo a gastar uma vasta fortuna para reconstruir a antiga cidade de Babilónia, gravando o seu próprio nome nas fachadas das réplicas dos edifícios originais, tal como os antigos chefes da cidade tinham feito. As pretensões de Saddam eram tão absurdas como considerar Abraão um iraquiano, mas Saddam não hesitou em apropriar‑se do poder simbólico das imagens produzidas pelos grandiosos regimes anteriores de forma a manter um controlo repressivo sobre o seu povo, que durou até à altura em que foi deposto, no ano de 2003. É essencial não esquecer esta perspectiva histórica, ao fazermos a nossa viagem panorâmica sobre a história da terra entre dois rios — o Tigre e o Eufrates, o berço de uma grande parte da civilização humana. Não há textos onde surja o nome do Iraque antes da criação deste país por Churchill, e nos memorandos que enviava para os funcionários do Ministério das Colónias tinha de lhes lembrar que usassem o nome do novo Estado e não o nome antigo da região, Mesopotâmia, um termo de origem grega que significa a terra entre os rios. Essa região também é conhecida como o Crescente Fértil, pois os territórios que rodeiam o vale entre o Tigre e o Eufrates não são mais do que um deserto inabitável.
Tentar apresentar uma visão unificada da história desta região geográfica também pode ser considerado um anacronismo, pois é algo que antigamente não teria sido feito. Por exemplo, apesar de grande parte do Iraque actual ter sido em tempos uma parcela do território do grande califado dos Abássidas ou, mais tarde, do igualmente poderoso Império Otomano, outras áreas do país estiveram durante séculos sob o domínio de vários reis da Pérsia, que corresponde actualmente ao Irão. Tendo isso presente, faremos uma rápida viagem sobre o passado complexo e extremamente rico da terra entre os rios, a região em que foram descobertos alguns dos primeiros vestígios da civilização humana. Embora existam outros lugares, como Mohenjo Daro, no vale do rio Indo, que são igualmente antigos, podemos considerar a cultura da antiga Mesopotâmia como «um berço da civilização», mesmo se já não possamos utilizar a expressão «o berço». Exemplos das primeiras formas de escrita (conhecidas como cuneiformes) foram descobertos em placas de argila em algumas das cidades mais antigas do mundo, situadas na Mesopotâmia. Muitos dos mitos que mais admiramos, como a história do dilúvio, o épico Gilgamesh, têm também a sua origem em contos narrados há muitos milhares de anos em cidades como Ur. Sem dúvida que, pelos menos no que diz respeito ao Ocidente, grande parte do que agora chamamos civilização Judaico‑Cristã teve a sua origem há vários milénios nas planícies aluviais dos rios Tigre e Eufrates. Foi também aí que surgiram alguns dos primeiros grandes legisladores da história da humanidade: o Código de Hammurabi pode já ter milhares de anos, mas nele reconhecemos uma tentativa antiga de criar um sistema de justiça que, ao se preocupar não só com os ricos, mas também com os pobres e desprivilegiados da sociedade, revelava uma visão extremamente progressista. Hammurabi, o rei legislador, foi, infelizmente, mais uma das personagens da antiguidade de que Saddam Hussein se apropriou, baptizando uma das suas divisões militares com o nome dessa figura histórica. As ruínas de Ur, a a cidade caldeia de Abraão, pode ser hoje visitada no Iraque, e embora seja incorrecto referir‑nos aos Judeus como exilados iraquianos, aqueles pertencem incontestavelmente ao vasto grupo de povos semíticos da região. Abraão também conheceria os signos do Zodíaco, assim como a se‑ mana de sete dias. Tudo isso devemos igualmente aos primeiros mesopotâmios. A Bíblia diz‑nos que Saddam não foi o primeiro governante agressor a surgir na região. No Velho Testamento encontramos um dos exemplos mais antigos da invasão de um território estrangeiro: a subjugação da Mesopotâmia no século VIII a.E.C. pelo rei assírio Tiglath‑pileser III, cujos métodos sanguinários que utilizava para capturar as cidades soam‑ ‑nos tragicamente familiares. O povo Assírio, nome por que é actualmente conhecido, converteu‑se ao Cristianismo e, ao contrário de muitos dos povos que o rodeavam, permaneceu fiel à sua fé durante toda a era islâmica. (Os aterrorizados refugiados cristãos assírios foram uma das principais preocupações de Churchill durante a Conferência do Cairo de 1921). Por serem cristãos, muitos assírios não se opuseram tanto à interferência das nações cristãs ocidentais e, hoje, no século XXI, esta minoria, que não é assim tão pequena no Iraque, encara a possível chegada de um Estado declaradamente islâmico com bastante receio. O famoso quadro de Rembrandt, O Banquete de Belshazar, onde um Belshazar ansioso lê o aviso de Deus escrito na parede, lembra‑nos de que nem um império agressivo e beligerante como era o Assírio conseguiu durar eternamente. Uma vez que o passado da Mesopotâmia é, porém, parte da nossa herança cultural, a história da Assíria é também a nossa história. 
Segundo os registos históricos, a terra entre os rios foi sempre um campo de batalha entre impérios. Nos séculos antes de Cristo, as batalhas eram geralmente entre o grande Império Romano e o vasto Império Sassânida situado a oriente e com base durante um longo tempo em Ctesifonte, agora uma cidade em ruínas, não muito distante da actual Bagdade. A Mesopotâmia foi um território de fronteira muito disputado, por vezes dividido entre dois impérios em guerra e outras dominado predominantemente por um deles. Durante milhares de anos, o território que hoje é o Iraque nunca chegou a ser totalmente parte de um dos impérios em guerra. 
No Ocidente, esquecemo‑nos que, embora o Império Romano do Ocidente tenha caído no século V em resultado das invasões bárbaras, o Império Romano do Oriente, mais conhecido geralmente como Império Bizantino, sobreviveu, de uma forma ou doutra, quase ininterruptamente, até à sua queda em 1453. Além disso, os Bizantinos, embora falassem grego, consideravam‑se romanos, isto apesar de a sua ligação ao antigo Império Romano, cuja língua era o latim, se ter tornado ténue e distante.  
Reis e aspirantes a conquistadores chegaram e partiram da região da Mesopotâmia durante milénios, mas houve um elemento constante ao longo dos tempos: uma guerra fronteiriça permanente com os povos que controlavam o território que é hoje o Irão, um país com um percurso, em termos da sua história política, que é, juntamente com o da China, dos poucos que podemos descrever como contínuo ao longo de milhares de anos. Isso não significa que as dinastias que governaram o Irão não mudaram ou que os líderes foram sempre originários da mesma região a que pertenciam os seus súbditos. Mas o Irão tem realmente uma história cultural ininterrupta, o que já não é bem verdade no caso dos povos árabes que habitavam na região situada entre o Tigre e o Eufrates. 
Por volta do século VIII E.C., os conflitos que duravam há milénios entre o principal império a dominar a região, hoje conhecida como o Médio Oriente — o Império Bizantino —, e quem estivesse a controlar o Irão começavam, como era de esperar, a esgotar ambos os lados. Em resultado disso, apesar da sua antiguidade, os dois adversários estavam bastante vulneráveis a qualquer ataque de uma nova força que surgisse na região. 
Foi precisamente o que aconteceu em 622 E.C. com o aparecimento do Islão. 
O próprio Maomé era originário da região actualmente conhecida como Arábia Saudita. Não é do âmbito deste livro avançar com muitos detalhes sobre as impressionantes conquistas árabes e a conversão ao islamismo que se seguiram. É suficiente dizer que, no espaço de apenas alguns anos, os Árabes criaram um império que se estendia desde o Hindu Kush, a oriente, até à costa atlântica da Península Ibérica, a ocidente. (A expansão árabe proporcionou ainda ao Irão a rara experiência de ser, pela primeira vez desde as conquistas de Alexandre, o Grande, nove séculos antes, apenas um entre os vários territórios de um vasto império.) 
Como actualmente a esmagadora maioria dos iraquianos é muçulmana, temos de parar e olhar para alguns acontecimentos significativos que ocorreram no início da história do Islão e que criaram grandes divisões na sociedade e cultura iraquianas. 
Maomé, o fundador do Islão, morreu em 626, tendo conquistado com êxito a maior parte da península Arábica. Foi sob o poder dos seus quatro principais sucessores, os Quatro Califas Bem‑Guiados, que a expansão entrou numa fase verdadeiramente exponencial — a da propagação da nova fé, propriamente dita, e da expansão dos territórios que os seus seguidores governavam.
Infelizmente, Maomé não deixou uma linha clara de sucessão e alguns muçulmanos devotos acreditaram, e ainda o crêem hoje em dia, que o cargo de Califa (o sucessor militar, político e teológico) devia ser elegível, o califa seria escolhido por uma umma (a comunidade dos crentes muçulmanos)."
Christopher Catherwood, in A loucura de Churchill: como Winston Churchill moldou o moderno Iraque e o Médio Oriente, Relógio D'Água, Novembro de 2024pp.23-27
LIVRO EM PRÉ-VENDA. ENVIOS DIA 14 DE NOVEMBRO (Relógio D'Água Editores)
Sobre o livro:
"Este livro revela-nos o que aconteceu durante a primeira tentativa de reorganizar o Médio Oriente após a derrota do Império Otomano, levada a cabo por Winston Churchill após a I Guerra Mundial. Enquanto ministro das Colónias do governo britânico, durante os anos 20, Churchill cometeu um erro com consequências desastrosas e repercussões incalculáveis ainda visíveis no século XXI. Christopher Catherwood analisa a forma como Winston Churchill criou a monarquia do Iraque, forçando os curdos sunitas, os árabes sunitas e os xiitas a viverem sob o domínio de um único governante, produzindo, sem o saber, um verdadeiro barril de pólvora no Médio Oriente. Catherwood examina as acções de Churchill que viriam a resultar posteriormente no golpe de Estado de 1958 contra o governo hachemita do Iraque e, a seguir, numa série de regimes cada vez mais sanguinários.
Ao mesmo tempo é analisado o modo como Churchill moldou o Médio Oriente, levando ao actual mapa de conflitos na região, nomeadamente entre israelitas e palestinianos."
«Este livro é um bom ponto de partida para quem quer compreender porque é que o Iraque parece estar condenado ao conflito (e porque é que isso está a mudar as nossas vidas).»
[Alexander McCall Smith]
«Um estudo impressionante sobre a criação do actual Iraque, com todas as suas crises e catástrofes.»
[Kirkus Reviews]
SOBRE O AUTOR:
"Christopher Catherwood é um historiador e escritor que divide o seu tempo entre Cambridge, em Inglaterra, e Richmond, no estado norte-americano da Virgínia. Foi casado com a musicóloga Paulette Moore Catherwood, e ambos foram professores no Institute of Continuing Education da Universidade de Cambridge. Catherwood também ensina História na School of Continuing Studies, na Universidade de Richmond, na Virgínia, onde todos os anos, durante o Verão, é escritor residente no Departamento de História. Além disso, lecciona História do Século XX no INSTEP. É autor de vários livros, entre os quais se destacam Christians, Muslims, and Islamic Rage, The Balkans in World War Two e Why the Nations Rage.
Christopher Catherwood foi consultor da equipa do Strategic Futures, um projecto da Unidade de Estratégia do governo de Tony Blair, onde trabalhou no edifício utilizado por Churchill quando este era primeiro lorde do Almirantado durante as duas guerras mundiais. Possui graus académicos das universidades de Oxford e de Cambridge e foi bolseiro Rockefeller da Virginia Foundation for the Humanities and Public Policy da Universidade da Virgínia."
TítuloA loucura de Churchill: como Winston Churchill moldou o moderno Iraque e o Médio Oriente
Autor: Christopher Catherwood
Categoria: Ensaios
Tradução: João Vilhena
Data de publicação: 12/11/2024
Nº de páginas: 268
Acabamento: capa mole
Peso: 500 gramas
Preço 17.10 €