"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
sexta-feira, 30 de abril de 2010
Portugal
Eduardo Galeano
quarta-feira, 28 de abril de 2010
Urgentemente
É urgente o amor
É urgente um barco no mar
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio de Andrade, in "Até Amanhã
terça-feira, 27 de abril de 2010
domingo, 25 de abril de 2010
LIBERDADE
Fernando Pessoa
Liberdade
— Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
— Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
Miguel Torga, in 'Diário XII',1975
Liberdade
O poema é
A liberdade
Um poema não se programa
Porém a disciplina
— Sílaba por sílaba —
O acompanha
Sílaba por sílaba
O poema emerge
— Como se os deuses o dessem
O fazemos
Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas",1977
Explicação do País de Abril
País de Abril é o sítio do poema
Não fica nos terraços da saudade
não fica em longes terras. Fica {exactamente aqui
tão perto que parece longe.
Tem pinheiros e mar tem rios
tem muita gente e muita solidão
dias de festa que são dias tristes às avessas
é rua e sonho é dolorosa intimidade.
Não procurem nos livros que não vem nos livros
País de Abril fica no ventre das manhãs
fica na mágoa de o sabermos tão presente
que nos torna doentes sua ausência.
(...)
País de Abril é uma saudade de vindima
é terra e sonho e melodia de ser terra e sonho
território de fruta no pomar das veias
onde operários erguem as cidades do poema.
(...)
Manuel Alegre, in " Praça da Canção ", 1965
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Os LIVROS no Dia Mundial do Livro
A minha relação com os livros é de permanente enleio. Comecei a deixar-me enlevar era ainda muito pequena. Recordo as estantes cheias de livros na casa da minha infância. Os meus pais liam muito e todos os dias se celebrava a leitura após o lanche e antes de deitar. A minha Mãe emprestava a voz a mil e uma histórias que nos faziam sonhar. Os livros cresciam semanalmente e para todos nós existia sempre um novo título a descobrir. O fascínio das palavras ficava nos nossos ouvidos e povoava de sonho a nossa imaginação. Com o tempo acedi às letras e passei a devorar com consentimento ou sem ele os livros da casa. Fui crescendo e vieram as letras proibidas pela ditadura. Essa leitura fruía como manancial inesgotável de deleite e de afirmação identitária, colocando-me lucidamente no lugar oposto ao da ideologia vigente, castradora da liberdade. Os livros proibidos por uma censura legalizada e oficializada enchiam muitas das prateleiras mais recônditas da casa. Esses devorava-os com um maior deslumbramento , roubando à noite muitas horas de sono. Tinham, então, para mim um redobrado apelo: o sabor supremo da palavra e a descoberta de um novo mundo mais justo e livre. Portugal , além de um pequeno ponto no extremo da Europa, estava fechado, encarcerado numa ideologia fascista que nos obrigava a resistir e a escavar os Subterrâneos da Liberdade.
As cinzas de Abril
Entre tornados, chuvas torrenciais, sismos e vendavais chegaram as cinzas vulcânicas produzidas por erupções há muito previstas, mas cujos nefastos efeitos não tinham sido eficaz e preventivamente tratados por esta Europa de céus vulneráveis. Em Portugal , terra sísmica e de tradição catastrófica, os milhões da crise entraram e, de suborno em suborno, eles aí andam nas primeiras páginas dos jornais e no "prime time" dos noticiários televisivos. Não queimam as mãos de quem os agarrou e muito menos de quem os perdeu. Comissões de Inquérito, Audições Parlamentares, Investigações Policiais e são milhões e milhões que voam, de bolso em bolso, neste país de pobres onde ainda se contam os tostões para que a fome não cresça antes do final do mês. A amplitude da diferença é tão aberrante que emerge quase assassina na forma como se impõe. Milhões para uns e tostões para muitos outros. E o Abril do nosso encanto assim se transformou em cinzas. Que o digam as rosas que de tão coloridas se tornaram cinzentas.
quinta-feira, 22 de abril de 2010
As mãos
Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Manuel Alegre, in "O CANTO E AS ARMAS ", 1ª edição, Nova Realidade, 1967
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Cantigas de Abril
A cantiga é uma arma
eu não sabia
tudo depende da bala
e da pontaria
Tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
e eu não sabia
Há quem cante por interesse
há quem cante por cantar
e há quem faça profissão
de combater a cantar
e há quem cante de pantufas
p'ra não perder o lugar
O faduncho choradinho
de tavernas e salões
semeia só desalento
misticismo e ilusões
canto mole em letra dura
nunca fez revoluções
Letra e Música de José Mário Branco, 1975
terça-feira, 20 de abril de 2010
ABRIL DE ABRIL
Na dissertação que proferiu nesta sessão inaugural, Manuel Alegre afirmou : (...)"Não sou um académico. Estou aqui como poeta e agradeço que seja nessa qualidade que me recebem, já que, no meu país, historicamente, poesia e língua quase se confundem." ” Eduardo Lourenço, num ensaio sobre a minha escrita, fala da "nostalgia da epopeia". Eu tenho essa nostalgia. A minha visão de Portugal é uma visão poética, uma visão integradora, em que se misturam poemas, batalhas, revoluções.” (...) "Hoje, como sempre, poesia é liberdade".
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.
Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.
Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.
Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.
Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.
Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.
Manuel Alegre, in "Atlântico", Moraes Editora, 1981
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Viver na mentira e no medo do futuro
Um ensaio muito sério, muito original e muito estimulante, editado em 2007, por um intelectual para quem Portugal está longe de ser uma nação condenada. "É necessário encontrar novas vias para a reforma radical do modelo de sociedade e de economia que se impôs nos países desenvolvidos, à custa do atraso, da pobreza e até da guerra em que vivem os demais." Eis um dos poucos livros que criticam o capitalismo, cuja análise anda arredia das nossas preocupações. Na imprensa, então, o supérfluo representa uma simbiose da imperícia e do desconhecimento das lógicas de poder.
Sócrates fez o que lhe era possível, dir-se-á. Não. Sócrates fez o que a consciência socialista (o que quer que isto seja) verberaria com impetuosidade. A extensão e os danos deste ciclo político podem pôr em causa a democracia. No nosso caso, o pouco que dela resta. O primeiro-ministro abriu caminho para o que de pior certamente advirá. E os putativos substitutos podem mesmo reclamar ainda mais penosos sacrifícios da nossa parte. Sócrates exacerbou as dimensões racionais da vida social. A sociedade portuguesa vive na ambivalência da inferiorização e da revolta. Quando ele diz que não vai aumentar impostos; que os ricos irão pagar mais; que as nossas penas e os nossos pesares serão minimizados, está a fugir da verdade a sete pés. A associação da ética republicana (de que tanto fala), com a assunção da linguagem dos factos, distingue a honra e a decência da trapalhice e da ambiguidade. José Sócrates, que arrastou consigo um pesado descrédito para o PS, conjugou a sua debilidade ideológica com uma insaciável sede de poder - que percorre, invariavelmente, aqueles que são passíveis de variações consideráveis.
Artigo de Opinião de Baptista Bastos publicado no "Diário de Notícias", em 10/03/2010
domingo, 18 de abril de 2010
Os anos dourados
"Smoke Gets In Your Eyes" dos Platters de 1958 foi um sucesso que perdura até aos nossos dias.
sábado, 17 de abril de 2010
sexta-feira, 16 de abril de 2010
Islândia, o vulcão e a Primavera
A erupção do vulcão , no sul da Islândia, está a provocar o degelo do glaciar Eyjafjllajokull ameaçando assustadoramente as zonas envolventes, enquanto as cinzas continuam a invadir os céus da Europa impedindo qualquer circulação de aviões. Em terra nunca se ficou tanto tempo a ver as nuvens.
Por cá, a chuva voltou intensa , o vento entre uivos e rugidos sibila asperamente e juntos, em indesejada cumplicidade, transformaram a Primavera em plena invernia.
quinta-feira, 15 de abril de 2010
Os céus da Europa estão fechados
O vulcão, no glaciar Eyjafjllajokull, no sul da Islândia, entrou em erupção, pela primeira vez em 200 anos, a 20 de Março e retoma, agora, as erupções que levaram ao condicionamento do espaço aéreo europeu. A nuvem de cinzas ameaça a visibilidade e a segurança nos céus da Europa.Os voos foram cancelados e a maior parte dos Aeroportos do Norte da Europa encerrou. As cinzas que emergem da erupção podem danificar e obstruir os motores dos aviões provocando acidentes catastróficos. Em trânsito ficam milhares de pessoas olhando para o ar.
Ontem, quarta feira, no Sul da Islândia, cerca de 800 pessoas foram retiradas preventivamente das suas habitações por se encontrarem na rota da actividade vulcânica.
2010 continua a ser o ano de todas as intempéries. Esta fecha os céus da Europa.
quarta-feira, 14 de abril de 2010
Oh gente da minha terra
É meu e vosso este fado
Destino que nos amarra
Por mais que seja negado
Às cordas de uma guitarra
Sempre que se ouve o gemido
De uma guitarra a cantar
Fica-se logo perdido
Com vontade de chorar
Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que a recebi
E pareceria ternura
Se eu me deixasse embalar
Era maior a amargura
Menos triste o meu cantar
Ó gente da minha terra
Agora é que eu percebi
Esta tristeza que trago
Foi de vós que a recebi
Letra de Amália Rodrigues
Música de Tiago Machado
terça-feira, 13 de abril de 2010
"A ARTE DE MORRER LONGE"
«Descortina o leitor um tipo de português largo e inflado, ovante e intrusivo, propenso à calvície, com sobrancelhas de escovilhão, riso beiçudo, pelame encaracolado em todo o corpo, amador da piadola e da pirraça, grosseiro para os mais fracos, airoso para os superiores, em absoluto impenetrável a noções básicas de decência e decoro? Uma figura digna das Metamorfoses, em que se hibridam o entranhado lanzudo e o atávico malandrim? Não descortina? Então é porque este Quintão Malpique era uma raridade e convém, na passagem, examiná-lo mais de perto como espécime singular.
Se lhe perguntassem por que é que ele se tinha queixado à polícia, por carta anónima, duma velha dependurava os cobertores nas traseiras do prédio, sem que isso afectasse ninguém, e muito menos os empregados duma empresa que não moravam ali, ele responderia, rindo: «É só p`ra chatear.» Do mesmo modo, quando telefonava para a Câmara, disfarçando a voz , a denunciar um vizinho que fazia obras clandestinas numa casa de banho, era «só p`ra chatear». Também era «só p`ra chatear» o gesto de deixar o elevador encravado no nono andar para que um casal de idosos , com o seu velho cão, tivesse de se arrastar pelas escadas.
Comprazia-se, naturalmente, com a incomodidade dos outros. Uma acção que tivesse como motivação «chatear» parecia-lhe absolutamente justificada, desde que não fosse ele o chateado. Uma representação popular – aliás falsa e caluniosa – que atribui o incêndio de Roma a Tibério Nero Enobarbo, para depois celebrar a catástrofe, a toque de cítara, poderá não andar longe do feitio de Quintão Malpique, descontando o pendor artístico.
Desde que descobrira a Internet, aliás tardiamente, tinha sido um alvoroço. Aplicava boa parte das horas de serviço a escrever comentários anónimos nos blogues alheios e nas páginas que os admitissem. Apreciava especialmente os jornais e as suas colunas de posts.
Eis uma amostra de uma contribuição de Quintão Malpique para o debate nacional, que pode ser encontrada facilmente na imprensa electrónica, a propósito da questão, hoje esquecida, dos apoios ao cinema português:
Esses senhores o que querem é repimpar-se!!! É só mama!!! Banquetes de lagosta, em Nice e em Cannes, aproveitando os favores do Estado e o dinheiro dos contribuintes. Isto é tudo sempre no poleiro, a chuchar no orçamento, à custa do Zé Povinho, e a gastar os nossos ricos carcanhóis com filmalhadas que ninguém percebe nem ninguém vê. Topam? Deviam era mandá-los todos cavar batatas e elas coser meias, a ver se ganhavam calos nas mãos e eram úteis ao povo que é quem mais ordena. Tá? Ao menos o doutor Salazar tinha critério e dava ao povo aquilo que o povo queria.»
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Ter uma Ideia do Mundo
Eu tenho ideias não as tendo. Passo a vida a dar voltas às ideias dos outros para concluir que não são ideias que valha a pena ter. À parte um ou outro homem ninguém tem senão ideias que são de toda a gente como o ar que se respira. Eles não as têm e pensam que têm. Eu não as tenho, sei que não as tenho, sofro por não as ter e luto para tê-las, pois ter uma ideia do mundo (a Ideia do Mundo) é a única coisa que me interessa na vida.»
domingo, 11 de abril de 2010
Acordai
Antes que Seja Tarde
Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
Manuel da Fonseca, in "Poemas Dispersos"
sábado, 10 de abril de 2010
O Bolero
Ravel compôs uma nova obra que ficou para sempre conhecida como " O Bolero de Ravel". A estreia efectuou-se a 22 de Novembro de 1928, em Paris, na Ópera Garnier sob a direcção de Walther Straram, com coreografia de Bronislava Nijinska e cenários de Alexandre Benois. A grande dançarina foi Ida Rubinstein.
"Os últimos compassos do Bolero são tensos, violentos, quase insuportáveis. O som sobe, enche a sala, agora toda a assistência está de pé, olha para o palco onde os bailarinos rodopiam, aceleram o movimento. Há pessoas que gritam, os tantãs retumbam e sobrepõem-se às vozes. Ida Rubinstein, os bailarinos são fantoches arrebatados pela loucura. As flautas, os clarinetes, os saxofones, os violinos, os tambores, os címbalos, os timbales, todos os instrumentos se flectem, extremamente tensos, até à estrangulação, até quebrarem as cordas e as vozes, até quebrarem o egoísta silêncio do mundo.
A minha mãe , quando me contou a estreia do Bolero, falou-me da sua emoção, dos gritos, dos aplausos e dos assobios, do tumulto. Algures na mesma sala encontrava-se um homem que ela nunca conheceu, Claude Lévi-Strauss. Como ele , muito mais tarde, minha mãe confiou-me que aquela música mudara a sua vida.
Agora, compreendo porquê. Sei o que significava para a sua geração aquela frase repetida, seringada, imposta pelo ritmo e o crescendo. O Bolero não é uma peça musical como as outras. É uma profecia. Conta a história de uma raiva, de uma fome. Quando termina em violência, o silêncio que se segue é terrível para os sobreviventes atordoados."
sexta-feira, 9 de abril de 2010
A Primavera aparecia quando o calendário a dava
Dois séculos passados não se conjectura mais. A poluição devastou , destruiu e ameaça gravemente a sobrevivência das gerações vindouras.
A incúria do Homem cresceu ao longo dos séculos numa cegueira galopante e desmedida. A modernidade de Camilo não bastou para alterar a rota perversa do Progresso e prevenir um desenvolvimento sustentável.
(…)«Naquele tempo, os dias de Maio no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava. Ninguém saía de sua casa às cinco horas duma tarde cálida de Maio, com um casaco de reserva no braço para resisitir ao frio das sete horas; nem o peralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante.
O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinada pelos astrónomos. A gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e as ciências dos factos repetidos.
Depois, porém, daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar em acabamento do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, volvido um indeterminado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído na substância dos sólidos e fluídos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e dos arames eléctricos, afinal, acabaria de todo com a primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias em Maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para nosso uso em Julho.»
(…)
Camilo Castelo Branco in “A Sereia”, (1ª edição, 1865)
“A Sereia”
de Camilo Castelo Branco
Edição/reimpressão: 2006
Páginas: 272
Editor: Edições Caixotim
ISBN: 9789728651565
Colecção: Caixotim Clássico
quinta-feira, 8 de abril de 2010
Portugal em Abril
" IV
Ou poderemos Abril ter perdido
Será que vamos paralelamente
E sua luz de prumo e de projecto? "
Reflectindo sobre as palavras sagazes e poéticas de Sophia poderemos reinterrogar-nos sobre este Portugal em Abril. Estará como o rosa diluido, desbotado sem rumo ou sem projecto? E o dia inicial inteiro e concreto terá sido perdido?
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Assim vai o Mundo
Foi classificado como o maior dilúvio dos últimos 44 anos. "Em 15 horas, entre as 17:00 (21:00 em Lisboa) de segunda-feira e as 08:00 de terça-feira as estações meteorológicas registaram 288 milímetros.
O Governador da capital carioca, Sérgio Cabral, já decretou três dias de luto nacional. Segundo o Globo que cita fonte do Instituto de Geotécnica do Rio, «as zonas Oeste e Norte, especialmente as regiões perto do centro da cidade do Rio de Janeiro, e o município de Niterói, na região metropolitana, foram as mais atingidas».
terça-feira, 6 de abril de 2010
Tejo Que Levas As Águas
Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar
Lava-a de crimes espantos
de roubos, fomes, terrores,
lava a cidade de quantos
do ódio fingem amores
Leva nas águas as grades
de aço e silêncio forjadas
deixa soltar-se a verdade
das bocas amordaçadas
Lava bancos e empresas
dos comedores de dinheiro
que dos salários de tristeza
arrecadam lucro inteiro
Lava palácios vivendas
casebres bairros da lata
leva negócios e rendas
que a uns farta e a outros mata
Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar
Lava avenidas de vícios
vielas de amores venais
lava albergues e hospícios
cadeias e hospitais
Afoga empenhos favores
vãs glórias, ocas palmas
leva o poder dos senhores
que compram corpos e almas
Leva nas águas as grades
...
Das camas de amor comprado
desata abraços de lodo
rostos corpos destroçados
lava-os com sal e iodo
Tejo que levas nas águas
Infelizmente, as palavras deste "Tejo que Levas as Águas" encaixam na realidade actual. Que infortúnio o nosso e quão frágil é a memória dos homens. Preservar a pluralidade em liberdade deve ser sempre e primodialmente um ideário permanente de todos os Homens.
Em memória de Adriano Correia de Oliveira, neste Abril de 2010, fica esta excelente canção que pertence ao Album “Que Nunca Mais” com textos de Manuel da Fonseca, arranjos e direcção musical de Fausto.
A esperança da Primavera
As mimosas em flor são sempre um espectáculo que prende o nosso olhar e faz com que a beleza do devir natural do tempo, em Primavera renascida, nos reconforte e quase nos faça acreditar que as intémpéries invernosas, que tanto nos têm fustigado, desapareceram em recolhimento permanente e vitalício.
segunda-feira, 5 de abril de 2010
O homem que se entregou a nós
No Museu do Neorealismo, em Vila Franca de Xira, foi inaugurada, no último sábado, uma exposição, que estará aberta até 26 de Setembro, sobre a vida e a obra de António Borges Coelho. Este homem modesto e discreto, investigador incansável e de uma probidade exemplar, é um dos dois ou três maiores historiadores portugueses contemporâneos. Como se escreve no texto que antecede o livro da exposição, ele navegou sempre no outro lado do rio, onde estão aqueles que, "em baixo fazem andar a História." Uma obra monumental, de características únicas, acrescentada, agora, com o fascinante "Donde Viemos", primeiro volume da História de Portugal, a que Borges Coelho, com 82 anos, meteu ombros.
Prisões nas masmorras do fascismo, perseguições de todo o jaez e estilo, dificuldades inúmeras, obstáculos inauditos jamais tiraram do belo rosto deste português maior o sorriso infantil, nem lhe toldaram a capacidade de recomeçar. "Não guardo ressentimento de coisa alguma", disse, na sessão de abertura, acrescentando a sua inabalável convicção nas infinitas possibilidades do homem. É muito difícil ouvir-lhe lamúrias, queixumes ou manifestações, por breves que fossem, de rancores. Ele dá sempre a volta às coisas negras e expõe logo a certeza de que a História é como "procurar a luz para ver as sombras."
Não há maniqueísmo no trabalho majestoso de António Borges Coelho; mas há, isso sim, a procura da grandeza do homem, mesmo quando o homem se deixa envolver pelas sombras. Os livros que tem publicado são a demonstração dessa busca soberana entre as demais: o que nos fez, o que atraiu, o que nos galvanizou e o que nos esmoreceu. Sem jamais se deixar hipnotizar pelo que escreve (e como escreve, este prosador sem par!), ele não passa pela História como um espelho pelo caminho. Desvenda o porquê das coisas, as causas e os despojos. Escreve a olhar para trás, para andar sempre para a frente. Borges Coelho ensina-nos, com a simplicidade, a decência e o escrúpulo, que é na tentativa de escrever que reside a coragem de escrever, e que, em História, não se acredita nem deixa de se acreditar: em História, ou se a conhece, ou não.
A exposição no Museu do Neorealismo é um esforço assinalável pela honestidade do propósito e pela justiça do alcance. António Borges Coelho tem pago, pela inteireza de carácter e de convicções, o preço de deliberados "esquecimentos" e de omissões propositadas. Os seus pares, os seus amigos, numerosos, variados, exactos e inamovíveis, assistem à mediatização de medíocres, premiados e incensados por uma Televisão ignorante, por um jornalismo sem alma e sem critérios de valor e por estratégias políticas desprovidas de elevação. Com o encantador sorriso de garoto que ilumina a sua face e nos ilumina a nós, seus parceiros e companheiros de vida e de batalhas, ele passa de lado e vai à vida: horas e horas de trabalho à banca do zelo, da honra da rectidão.
Não sabe dizer que não. Não se nega a um pedido, a uma solicitação de palestrar. Nunca fala de si nem dos tormentos passados. O pudor impede. A educação impossibilita. Como é possível não gostar, não apreciar este homem que fez da vida uma outra moral em acção, e a quem apetece aplicar a frase de Malraux sobre André Gide: o contemporâneo capital.
Casou-se na cadeia. Com uma mulher que Salazar também encafuara na prisão. Costumo pensar que não há ela sem ele, nem ele sem essa escora fundamental do edifício por ambos construído. Uma memória a dois, que se expande nesse fixar o que fica, nesse ficar o que o tempo deixou para trás. "A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento", escreveu Milan Kundera, em "O Livro do Riso e do Esquecimento." Isso mesmo.
A história como memória e interpretação do que a memória dos homens nos legou em livros e em acções. Eleger como os fundamentos das coisas o trabalho, as fadigas do "povo meudo" de que falou Fernão Lopes e cuja lição modelar Borges Coelho tem seguido, com interpretações próprias e exemplares.
É indispensável ler a obra de António Borges Coelho. Não se deixe manobrar, meu Dilecto; não volte as costas ao conhecimento; não desconheça donde viemos para saber quem somos. Sobretudo para saber quem somos. Sem fadiga, enfrentando todos os óbices, desafiando todas as dificuldades, António Borges Coelho tem entregue a sua vida a esse cuidado e a essa tarefa. Para se entregar a nós, Dilecto, para se entregar a nós!
Artigo de Opinião de Baptista Bastos, publicado no "Jornal de Negócios", em 26/03/2010
domingo, 4 de abril de 2010
Domingo de Páscoa
" Após as vésperas de Sábado, ao romper da aurora do primeiro dia depois de Sábado, Maria Madalena e a outra Maria foram visitar o Sepulcro. Houve, então, um grande tremor de terra: e um Anjo do Senhor desceu do céu, aproximando-se do túmulo, revolvendo a pedra, e assentou-se sobre ela. O seu rosto tinha o brilho de um relâmpago e os seus vestidos eram brancos como a neve. Os guardas, logo que o viram , encheram-se de tal pavor, que ficaram como mortos! E o Anjo, começando a falar, disse às mulheres: " Não tenhais medo! Sei que procurais Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui, porque ressuscitou, como dissera! Vinde e vede o lugar onde o senhor havia sido colocado! Ide depressa dizer aos seus discípulos que Ele ressuscitou e que vos precederá na Galileia, onde O vereis. Eis o que antecipadamente vos anuncio."
Evangelho segundo S. Mateus 28, 1-7