Sombra
Antes de sermos fomos uma sombra
Depois de termos sido que nos resta
É de longe que a vida nos aponta
É de perto que a morte nos aperta
David Mourão–Ferreira, in “Os Ramos Os Remos”
David Mourão-Ferreira ( 1927- 1996) poeta , novelista, crítico literário, ensaísta, professor universitário, dramaturgo, cronista é um nome superior, um mestre da Literatura Portuguesa. Traduzido em diversas línguas, a sua imensa obra literária é conhecida universalmente, colocando-o entre os grandes escritores da Literatura Universal. Criador magnânimo de uma escrita marcada por um forte rigor expressivo, ora a desvenda em abundante riqueza narrativa, ora a faz explodir em profuso fulgor e fascínio poéticos fazendo da sua obra uma perene singularidade literária. “ Mas é na poesia que o seu talento se desenvolve com incomparável mestria composicional ("A Secreta Viagem", 1950), aliando a experiência do sentimento (do tempo, do amor, da escrita, da cidade, da paisagem) ao virtuosismo da sua expressão poética, em obras como "Os Ramos os Remos", 1985, ou "Música de Cama", 1994. Pode dizer-se que a vida de David Mourão-Ferreira se estruturou quase inteiramente em torno de uma intimação literária bem cedo pressentida e revelada”
Nasceu há 85 anos. E quem teve, como eu, a possibilidade de o ter como Professor na disciplina de Teoria da Literatura, na Faculdade de Letras de Lisboa pertence, sem qualquer hesitação, ao círculo dos privilegiados. Foi um tempo de encantamento literário, de descoberta e de aprendizagem. A elegância verbal , a destreza vocabular e o conhecimento profundo das matérias abordadas marcavam eloquentemente cada aula. Era o poeta, o democrata, o professor gentil e exigente que transformava uma simples sala de Faculdade numa luminosa sala de aula, naqueles tempos escuros da Ditadura.
A XIII edição de "Sobre a Poesia " é preenchida com excertos da excelente Entrevista que David Mourão- Ferreira concedeu a Graziana Somai ,em Março-Julho de 1993.
- Nasci em Lisboa , no extremo ocidental do bairro da Lapa, ao pé da Estrela, mas mais junto do rio. Da casa onde nasci e onde vivi até aos quinze anos, via-se o rio até à barra. Nasci em 24 de Fevereiro de 1927.
(…)
- A poesia representa para si uma via de acesso privilegiada ao seu íntimo mais profundo?
- Sim, sim, não é um exercício. É também a mesma coisa que a Natália Ginzburg diz do sexo: pode ser um jogo, pode ser um acontecimento: “un gioco o un evento”. Às vezes , pode parecer um jogo, eu gosto muito dos jogos verbais, mas são jogos em que vai sempre implícito um conteúdo, nunca é o jogo pelo jogo, é o jogo como meio de exprimir o acontecimento.
- A poesia é um meio para escapar à contingência quotidiana e atingir a essência da vida ou é também um meio para enfrentar melhor a vida?
- As duas coisas. É uma fuga ao contingente, pela esperança ou pela tentativa de criar, através de um objecto verbal, qualquer coisa que possa ser menos efémera; na poesia há sempre , como dizia Éluard , a expressão do “ dur désir de durer” – o duro desejo de durar. Mas evidentemente que as duas coisas não parecem ser antagónicas, para mim não são antagónicas, não é isto ou aquilo, não é um dilema. É as duas coisas, porque justamente quando julgo libertar-me um tanto das contingências – porque todas as poesias nascem de circunstâncias, mas ultrapassam-nas -, também isso me eslarece em relação a mim próprio. Como todas as pessoas que escrevem, acho que a mim tem-me acontecido muitas vezes conhecer-me através daquilo que escrevo; por isso, também é uma catarse, ou também é uma terapia. Ajuda-me a enfrentar melhor a vida , dentro do meu modesto plano vital.
- Falou de jogos verbais. Os seus poemas são fruto de uma longa elaboração temática e semântica?
- Não são, não são. Se fossem, eu era capaz de escrever, não digo todos os dias – há poetas que escrevem poesia todos os dias - , mas todas as semanas ou todos os meses; eu cheguei a estar meses e meses e até mais de um ano sem escrever uma única poesia. Tem de haver uma coisinha qualquer, um interruptor, e então, nessa altura, quando me sinto em estado de escrever poesia , essas coisas que parecem jogos fazem parte integrante desse estado poético porque…
- Nascem espontaneamente?
- Excepto raríssimos caso, uma poesia sai escrita e enquanto é escrita eu acho que há de facto um labor que é simultaneamente emocional e intelectual; depois, posso fazer uma pequena emenda, mais tarde, um acerto, porque a poesia queria ficar assim e não estava ainda como queria ficar, mas não tenho uma escrita lenta em poesia (a da prosa é mais lenta, muito mais lenta). Nem é uma escrita laboriosa para procurar este efeito ou aquele, porque os efeitos vêm plasmados no conteúdo, se assim me posso exprimir.
- A língua portuguesa permite-lhe exprimir-se como deseja?
- Permite; não tenho razões de queixa da língua portuguesa. O meu grande mestre, mestre na Faculdade e mestre em termos literários e em termos afectivos, Vitorino Nemésio, uma figura absolutamente extraordinária que conhecia a língua portuguesa como eu nunca conhecerei ( só encontrei mais duas pessoas assim: o Aquilino Ribeiro e o Tomaz de Figueiredo – este é praticamente ignorado , e é injusto), disse-me uma vez: “ Nunca apanhei a língua portuguesa em falta.” Isto a propósito duma tradução que tinha feito. Por mais difícil que seja aparentemente ou à primeira vista dar em português qualquer coisa que estava dada numa outra língua, consegue-se sempre; eu acho que isto acontece com todas as línguas, no fim de contas. O problema da proliferação ou da pluriexistência de línguas no mundo é um fenómeno muito estranho e foi objecto dum ensaio notabilíssimo do George Steiner chamado “After Babel” . Claro que o que eu disse só pode ser verdade dentro duma determinada família de línguas. Na família românica , eu creio que é verdade: o que se diz numa pode dizer-se noutra, sem ser uma tradução literal, que é quase sempre empobrecedora, redutora. Mas se formos comparar com outros sistemas linguísticos, talvez seja um pouco diferente. Há muitas línguas no mundo: hoje sabe-se que existem perto de cinco mil! Há muitas que não têm , por exemplo, o futuro, o que corresponde a uma mentalidade de determinadas comunidades que não podem exprimir o que virá. É claro que traduzir para uma dessas línguas qualquer texto duma língua românica ou mesmo duma língua germânica ou duma língua eslava deve ser particularmente difícil. Por outro lado , nós, que temos o futuro, não temos , por exemplo, o aoristo, que os gregos tinham; temos o singular e o plural, não temos o dual ou só o temos em raros casos como em “ ambos”…
- E o infinito pessoal que há em Portugal?
- Sim, é verdade , o infinito pessoal há só em português, mas pode ser perfeitamente traduzido em italiano ou em francês pelo infinito impessoal. E também não foi por acaso que chamei a um livro meu de poesia “Infinito Pessoal”. É realmente uma singularidade em que se reúne uma possibilidade infindável com uma subjectividade extrema, com uma grande pessoalidade.
- A um leitor que se aproxime pela primeira vez da sua poesia , como é que o aconselharia a lê-la, com que espírito?
- Com espírito de abertura, que é também aquele espírito com que eu leio a poesia dos outros. Ou por outras palavras, num espírito de, tanto quanto possível, absoluta receptividade. É preciso deixar que os poemas encontrem eco no espírito de quem os lê para aí se completarem, porque um texto poético ou mesmo narrativo, não está completo quando sai das mãos do seu autor: é o leitor que o completa.(…)»In “Entrevista de David Mourão- Ferreira conduzida por Graziana Somai em Março-Julho de 1993”,publicada em "Infinito Pessoal", edição especial da revista Colóquio totalmente dedicada a David Mourão-Ferreira.
Quantos em ti lagos e rios
Quantos em ti os oceanos
Água vermelha que aos ouvidos
traz o aviso
de nenhuns campos
É bom sondarmos os abismos
que nunca vão cicatrizando
E ao som da água pressentirmos
de onde provimos
aonde vamos
David Mourão Ferreira, in “O Corpo Iluminado”1987,Obra Poética 1948-1988, 4.ª Edição, Editorial Presença