LIBERDADE
Bandeira
mutilada
onde
enrolaste um coração de pássaro.
Se
foi para abafar o canto
e
a voz de um povo,
pois
que se faça amiga da revolta.
Liberdade
é
o teu nome
e
toada dos companheiros em marcha.
Liberdade,
liberdade...
este
auto-conhecer-te
faz-se
em meu peito o mais imenso respirar.
Primeiro
tu foste a inocência
correndo
pelas areias ensolaradas do meu mar,
correndo
no pátio dos recreios
no
bairro operário onde vivi
e
na praça principal da minha infância.
Depois foste minha rebelde bandeira
e
a mágica certeza na adolescência do meu ser.
Tu
me trouxeste a paixão e a fantasia
e
aquele sonho imenso de ser marinheiro um dia.
Mais
tarde
a
história me mostrou que era ainda maior tua beleza,
e
me ensinou a escrever teu nome
na
saga gloriosa de Espártaco,
no
martírio heróico de Tupac Amaru e de Caupolican
e
no exemplo imperecível dos Inconfidentes.
E
assim... de busca em busca,
na
biografia dos heróis,
pelas
páginas da poesia
e
pela verve da eloqüência,
tu
te abriste, dia a dia, como uma rosa no meu peito...
e
depois, quando a pátria cavou suas trincheiras,
como
um corcel de luz,
ressurgiste
na aldeia de minh’alma,
com
teu galope indomável
tua
resistência
teu
rastro clandestino
e me trouxeste tuas cicatrizes
tuas
amarras rompidas
e
o teu sonho inabalável.
E
desde então marcho nos teus passos...
e
éramos dez, éramos cem, éramos mil...
e
eras então o ar com que respiravam os ideais de um povo inteiro...
e
no coração do nordestino eras a esperança do pão,
da
água e da terra repartida.
Eras
tu que no sul comandavas a greve,
o
comício e a passeata...
cantávamos
contigo a canção popular...
eras
tu que inspiravas a arte, o teatro e a poesia...
tu
eras em toda a nação a véspera de um amanhecer inadiável.
Subitamente...
te
atiraram ao chão...
e
te pisaram...
te
torturaram e te baniram.
E
como Prometeu,
foste
acorrentada a estes anos de martírio,
onde
uma hierarquia de abutres se sucede e te
devora;
e
sentimos em nossas entranhas
a
tua própria entranha devorada.
Um
murmúrio apenas é hoje o teu nome na solidão da pátria...
uma
legião de sombras te observa
segue
teus passos
te
vigia nas ruas, nas casas, nas escolas, nas fábricas...
mil
línguas mercenárias delatam os que te pronunciam
teus
lábios de rocio... há sete anos amordaçados
tua
boca bebendo a taça do tormento
teus
punhos algemados
teu
corpo flagelado
teu
nome silenciado com o grito dos caídos.
Liberdade,
liberdade...
um
pedaço de ti sobrevive aqui,
na
intimidade e no lirismo do meu canto.
Em
alguma parte da América,
por
essas terras e montes,
apesar
dos meus pesares,
cantam
os rios e cantam as fontes...
mas
eu canto a negra angústia
por
teu sangue...liberdade
na
minha pátria ferida.
E
aqui, à beira desse longo caminhar...
aqui
onde por ti caíram Hidalgo, Morelos e Zapata,
daqui
convoco meu povo emudecido
para
recompor teu semblante massacrado.
Liberdade,
liberdade...
suprema
promessa da esperança...
tu serás ainda a terra por inteira repartida,
os
campos finalmente semeados
e
o nosso sonho a dançar nas espigas onduladas pelo vento.
Na
imorredoura certeza do amanhã
renascerás
como raiz ardente;
e
no seio de uma primavera palpitante
tu
crescerás como uma árvore de beijos
para
seduzir os homens, as aves e as estrelas...
e,
flor da insurreição
irás
desabrochar no retalhado coração dos oprimidos.
Liberdade,
liberdade...
lâmpada
do abismo, estandarte de luz,
melodia
do vento na rota das aves peregrinas,
barca
misteriosa do destino
a
singrar... sempre a singrar
formosa
e impassível em busca do amanhecer.
Liberdade...
ó liberdade...
hoje
somos apenas os guardiões de um sonho
os
que sustentamos em tantas pátrias a bandeira da bravura
hoje
somos os guerreiros do silêncio
para
que teu hino possa ser entoado com
alegria pelos filhos do amanhã.
Cidade
do México, fevereiro de 1971
Manoel
de Andrade, poeta brasileiro, in “Poemas para a Liberdade”, Ed. Escrituras,
S.Paulo