NÃO
HÁ GUERRAS BOAS
por Eugénio Lisboa
Os poetas odeiam o ódio
e fazem guerra à guerra.
Pablo
Neruda
Nunca houve uma guerra
boa nem uma paz ruim.
Benjamin Franklin
“Eis um problema que
tem angustiado os homens, de não há muito tempo a esta parte. As mulheres, que,
durante muitos séculos, não tiveram de participar activamente na carnificina,
mas tiveram de a sofrer, na sombra, sem poder intervir, mas arcando, depois, com
as consequências da destruição, dos ferimentos e da morte dos seus, reagiram,
desde muito cedo, à folia bélica com que os homens se entretinham a resolver
problemas, muitas vezes de lana caprina. Mais ligadas à terra e à vida (são
elas que geram vida), mais sensatas, menos dadas a fantasias com pés de barro,
as mulheres opuseram-se, desde cedo, à folia mortífera da guerra. Já no ano de
411 A. C. o famoso comediógrafo grego Aristófanes pôs em cena uma hoje famosa
comédia, intitulada LISISTRATA, criticando a guerra de uma maneira muito
imaginativa e provavelmente eficaz. Nessa peça, as mulheres gregas, lideradas
pela dinâmica Lisistrata, fartas das guerras entre Atenas e Esparta, resolvem
trancar-se num templo e fazer greve sexual, enquanto se não pusesse termo à
guerra. Aristófanes dava certamente voz, na sua comédia, ao sentimento que as
suas conterrâneas gregas deviam andar a tornar bem visível e audível. Contudo,
até tempos relativamente recentes (vésperas da primeira guerra mundial),
aceitava-se, sem grandes estados de alma, o conceito de Clausewitz: “A guerra é
a continuação da política por outros meios”. A guerra era o último recurso,
quando a diplomacia esgotava os seus. Não havia, por assim dizer, um problema
ético. Grandes fazedores de guerras, como Napoleão, eram admirados por gigantes
como Goethe, Stendhal e Beethoven, não necessariamente, por causa da guerra,
mas, pelo menos, apesar dela.
Quando se tornou claro,
nos primeiros anos do século XX, que se estava à porta de um novo grande
conflito europeu – que viria de facto a começar em Agosto de 1914 – vozes
corajosas de alguns grandes escritores começaram a erguer-se, com grande
coragem e eloquência, contra a insensatez e a imoralidade da guerra, como modo
de resolver conflitos de interesses. De entre os intelectuais europeus, que se
destacaram nesse destemido e arriscado combate, citarei três: Romain Rolland,
Bertrand Russell e Stefan Zweig. Romain Rolland provocou, com os textos pacifistas
depois recolhidos no seu famoso e vituperado livro AU DESSUS DE LA MÉLÉE, uma reacção violenta, da parte dos
belicistas, que o levou a emigrar para a Suíça, de onde continuou a lutar pela
paz. Bertrand Russell pagaria com a prisão o seu credo pacifista.
Curiosamente, dois dos
maiores escritores do século XX, Anatole France e Thomas Mann alinharam, por
esta altura, com os arautos da guerra, mas não demorariam a mudar de opinião,
tendo-se o escritor alemão voltado contra a emergente peste nazi, que lhe valeu
o exílio e a perda do título académico que lhe fora dado por uma universidade
alemã, para não falar na queima dos seus livros, na praça pública.
A carnificina nas
trincheiras da Europa foi de tal natureza e dimensão, que originou em vários
escritores europeus, que tinham vivido o horror da guerra, de um lado e do
outro do conflito, o desejo de produzirem obras de ficção, centradas naquele
morticínio, com o objectivo de fazer com que ele se não voltasse a repetir: por
reacção dos leitores à dramatização daquela monstruosidade. Henri Barbusse,
Roger Vercel, Roland Dorgelès, Erich Maria Remarque, Georges Duhamel, Roger
Martin du Gard, Ernest Hemingway, na ficção, ou Rupert Brooke e Siegfried
Sassoon, na poesia, foram impressionantes testemunhos. Nalguns, como Roger
Martin du Gard, a impressão causada por aquele inferno de mortos e mutilados –
ele trabalhou no serviço de ambulâncias – foi tal, que ficou irredutivelmente
contra a guerra, fosse ela qual fosse. De tal maneira que, sendo um homem de
esquerda, quando Hitler começou a devorar a Europa, Martin du Gard disse aos
amigos, que tudo era melhor do que resistir ao ditador alemão, originando uma
reedição da carnificina de 1914 – 1918. Nada era, para ele, tão mau como uma
nova guerra. Mais adiante, mudaria de opinião, quando se apercebeu do que
Hitler representava e de que se tornava tragicamente necessário resistir-lhe. O
mesmo se passou com Bertrand Russell, que pôs entre parêntesis o seu pacifismo,
reconhecendo que esta guerra era inevitável. Todavia, outro enorme escritor
francês, Jean Giono, que percorrera os anos da primeira guerra mundial a
carregar uma espingarda que nunca disparou, mas a ver o lado mais monstruoso da
condição humana, jurou e cumpriu, que nunca mais voltaria a participar numa
nova guerra. Pacifista radical, recusou-se a combater os exércitos nazis e
escreveu porquê. Para Russell e Martin du Gard, não havia guerras boas, mas
havia guerras inevitáveis. Para Giono, havia só guerras más, ponto final.
Pertencendo ao Mouvement du Contadour,
que se opunha a qualquer conflito armado, pagou-o com a prisão. Pode-se não
concordar com a decisão dele, mas não se pode deixar de respeitar a coerência
do seu radicalismo. Não há, de facto, guerras boas: são todas más, embora
algumas sejam inevitáveis. A corajosa resistência da Ucrânia ao monstruoso
poder militar de Putine originou uma guerra má, mas inevitável, ainda que
desnecessária. São pessoas como Hitler e Putine que cometem o pecado supremo de
originarem guerras inevitáveis. E más como a peste.”
Eugénio Lisboa,
23.03.2022