Quando a vida te exilou num cais de pedra,
teus vinte anos desabaram numa tarde do mundo...
e tu ficaste...
ficaste tão somente com o sal das tuas lágrimas,
preso à magia dos teus barcos de papel
e ao feitiço sonoro dos grandes caramujos
que te embalaram a infância com a sinfonia íntima dos mares.
Tuas lágrimas nunca molharam a tua face
mas transformaram tua alma numa laguna imensa.
Teu olhar... translúcido de pérola e verde
restou... sem a tatuagem dos oceanos.
Teu barco
atrelado à fantasia
soçobrou nas brechas das calçadas.
Teu canto, sem proa e sem rumo
silenciou nos abismos do teu ser.
E tu... ficaste
impotente...
atado ao mistério do destino.
Sim, tu ficaste
tu... o grande marítimo
e teu coração afogou-se na vazante
e a vida te partiu em dois pedaços
e tiveste que sobreviver entre as lembranças indeléveis do teu sonho
e a súbita consciência de um dever a ser cumprido.
(...)
Eis aí o inventário de tua alma
a herança de um sonho acalentado desde sempre.
Para ti, poeta
ou marujo ou companheiro
restou apenas um fragmento da tua mais legítima fantasia...
daqueles barcos de papel que navegaram em tua infância.
Restou uma imagem que somente a poesia te concede,
uma paisagem mágica que se impõe à revelia do tempo:
...numa praia do sul, salpicada de canoas, vai um barco sobre o mar...
é um veleiro deixando a baía numa manhã de sol
é o teu sonho navegando no rumo do horizonte... .
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Mar
amado mar
suntuoso mausoléu aberto ao náufrago
tu me negaste a glória
o sal da vida
tu me afogaste
sobre um cais de pedra
Curitiba, Janeiro de 65
Manoel de Andrade, in " Cantares", Editora Escrituras, São Paulo, Brasil, 2007
Manoel de Andrade em Lisboa, no Largo Camões |
Manoel de
Andrade, o poeta, o resistente, o intelectual, visitou Portugal,
após uma digressão pela Europa. Tínhamos encontro marcado em
Lisboa, com alguns roteiros culturais para percorrer. A cidade era para ele uma
descoberta. Era a primeira vez que a visitava. O fascínio, que o acometeu logo
no Cais das Colunas, traduziu, de imediato, o anseio que estivera guardado
até ao primeiro contacto com este nosso país. Num momento profundamente
crísico, como o que se vive na actualidade, descobrir, através do olhar
deslumbrado de um poeta, quanta riqueza histórica e civilizacional patenteia
Lisboa, faz-nos recordar que "o sonho é uma constante da vida"
e como nos faz falta a força da utopia.
"Manoel
de Andrade nasceu em Rio Negrinho, SC, Brasil, em 1940. Formado em Direito, é casado e
tem 5 filhos. Em 1965, recebe do Centro de Letras do Paraná, o 1º Prémio no
Concurso de Poesia Moderna. Ainda em 1965, com Helena Kolody, João Manuel
Simões , Paulo Leminski e outros participa na Noite de Poesia Paranaense, no
Teatro Guaíra. Em 1968, a revista Civilização
Brasileira publica a sua
" Canção para os homens sem face" e junto com Dalton Trevisan (Prémio
Camões 2012) e Jamil Snege é apontado, pela imprensa local, como um dos três
destaques literários de 1968, no Paraná.
Perseguido
pela ditadura, por fazer panfletagem da sua " Saudação a Che Guevara", é
obrigado ao exílio, em Março de 1969. Peregrina pela América, escrevendo e
divulgando os seus poemas. Em 1970, o seu primeiro livro, "Poemas para
la libertad" , é
publicado na Bolívia e, posteriormente, no Equador, nos Estados Unidos e na
Colômbia,onde uma edição de 1.500 exemplares se esgotou em poucas semanas nas
livrarias de Cali e Bogotá.
Atravessou
15 países de uma América incendiada de ideais e teve os seus poemas publicados em jornais revistas, cartazes e folhetos. Promoveu debates, ministrou palestras e declamou seus versos em universidades, teatros, galerias de Arte, Festivais de Cultura, Congressos de poetas, Sindicatos, reuniões públicas, privadas e clandestinas e até no interior das minas de estanho da Bolívia. As suas publicações eram rapidamente consumidas e o alcance da sua militância política como poeta pode ser avaliada pelo destaque que lhe deram os mais importantes jornais latino-americanos e as agências de informações , como a AP e a UPI."
Desse tempo, Manoel Andrade está a escrever um vasto e valioso registo memoralista do qual já temos publicado alguns excertos e outros se seguirão pelo valor documental, histórico e literário que representam.
Manoel de Andrade e esposa, Neiva Piacentini, em Sintra |
A simplicidade e a humildade que emanam do homem Manoel de Andrade deixaram-nos confirmar que todos aqueles que são grandes e verdadeiramente singulares na produção literária sabem sê-lo com a noção da fragilidade e da efemeridade da condição humana.
Wilson Martins, um grande crítico literário do Brasil, escreveu que " A grande poesia (...) na Literatura Brasileira dos nossos dias, foi escrita por Manoel de Andrade: " vivendo desse sonho/ eu fui partindo(...)/embarcava com os tripulantes (...) fiz amigos e inimigos entre marinheiros, aprendi a língua deles(...)" É um longo poema(1) de fulgurações whitmanianas e profunda consciência da condição humana, poesia de um homem no mundo dos homens, e também o testemunho das suas ansiedades. Basta ler estes versos, simultaneamente com a maior parte dos que compõem estas antologias, para perceber a diferença de natureza entre o poeta , de um lado, e, de outro, as pesadas legiões de menores."
A Manoel de Andrade apresentamo-nos rendidos à sua franca afabilidade , ao sentido carinho que nutre pela cultura portuguesa , à cordialidade do trato, às longas conversas vivas e harmoniosas e ao encanto que advém sempre de um encontro desejado. Tê-lo , entre nós, foi um caro acontecimento que nos leva a desejar um " Até breve".
(1)Trata-se do poema "Um homem no cais" de Manoel de Andrade, in " Cantares", Ed. EscriturasDistopia
(...)E
contudo...senhores, é imprescindível sonhar...
juntar os
cacos da utopia
e crer,
incondicionalmente, num amanhã...
É
imprescindível sustentar a vida
para que os
filhos da esperança possam respirar sua beleza.
Senhores... é
também imprescindível indignar-se
não se
acovardar ante a maldade,
porque é
imprescindível virar o jogo
saber que só
o que é justo faz sentido
e empunhar
com paixão essa bandeira.
É sobretudo
imprescindível unir nossas mãos em prece,
falar consigo mesmo e com as estrelas
e
acreditar..., que sobre esse vale de lágrimas,
um olhar
compassivo nos ampara.
Curitiba, 12 de Dezembro de 2006
Manoel de Andrade, in " Cantares", Editora Escrituras, São Paulo, Brasil, 2007
Impossibilitado de estar presente em Lisboa, por razões profissionais, estou a saudá-lo, Manoel de Andrade, e aproveito a agradecer-lhe desde já os exemplares das suas obras publicadas que se dignou oferecer-me, e que conto chegarem-me às mãos, em muito breve tempo, através da autora deste Blog. Abraço literário e cumprimentos a sua esposa. Os meus votos de continuação de boa viagem pela Europa e de saudável regresso a terras brasileiras.
ResponderEliminarDevemos, Neiva e eu, a Maria José Vieira de Sousa, editora desse Blog, e seu esposo Manuel os mais belos momentos que passamos em Lisboa e seus arredores durante o tempo que estivemos na Capital. Esse despojamento de deixar o Algarve para estar conosco foi o que de mais belo recebemos da fraterna alma portuguesa. Que misteriosas razões “conspiraram” para merecermos de dois corações tão sensíveis o carinho dessa presença e sermos ciceroneados com visitas e informações marcadas por um invejável conhecimento da história da arte e da literatura? Encheram-nos primeiro os olhos com essa paisagem majestosa do Tejo, depois levaram-nos a conhecer o café e restaurante onde transitou Fernando Pessoa. Mostraram-nos os cantos e encantos do Rossio, e no fim da tarde subimos juntos as escadas da Fundação José Saramago para ouvir Nuno Judice dizer seus poemas e sentir tanta vida e tantos sonhos na conversa com Pilar del Rio. Quando a noite chegou, saboreamos com seus familiares, num recanto de artistas, a cozinha portuguesa e a voz do fado. Tudo isso e muito mais foi a extensa programação que marcou a agenda do nosso encontro. Contudo foi também inesquecível o dia seguinte: a visita ao Palácio e Convento de Mafra ante a visão deslumbrante de uma Biblioteca somente comparável à Biblioteca da Universidade de Coimbra; a solene interioridade da suntuosa Basílica; o encantamento de pousar os olhos num barroco tão perfeito e sobre a pintura dos mestres italianos e portugueses. Depois os caminhos pela exuberante vegetação dos Parques de Sintra, a visita ao romântico Palácio da Pena e, por fim, a visão grandiosa do mar.
ResponderEliminarObrigado, amigos, pela dimensão de gestos que jamais poderemos resgatar. Obrigado também por este texto honrando nossos passos por Portugal.
Este é também o momento para expressar, publicamente, a minha imperecível gratidão a você, Maria José, pelo carinho literário com que tem se referido à minha poesia em Livres Pensantes, e por ter vários de meus poemas e artigos publicados ao longo dos dois últimos anos.
Quando a você, Varela Pires -- a quem agradeço pelos comentários com que honra meus textos e que admiro pela sapiência e constância com que enriquece as publicações deste blog – sinto-me gratificado pela intenção do encontro, mas digo-lhe que nos faltou apenas o calor do seu abraço para sentir que estaria completa a rica bagagem sentimental que trouxemos de nossa venturosa passagem por Portugal.
Um fraterno abraço..., Manoel de Andrade
Ao poeta e escritor Manoel de Andrade, a minha indelével gratidão pelas referências aqui deixadas à simples colaboração que insiro neste Blog!...
EliminarE sobretudo, a minha Homenagem pública ao escritor, poeta e democrata, e à sua pessoa e à sua vasta obra literária, e ainda à sua longa, incontornável e persistente luta pela Liberdade e pela Democracia, e que tantos sacrifícios, renúncias, e dor lhe trouxeram ao longo da vida!
Aquele abraço leal e fraterno de... Varela Pires.