Pressupostos
civilizacionais
São
José Almeida
29/11/2013
- 21:56
“Cortes de investimento público, que
empurram pessoas para fora do sistema, agravam movimentos de exclusão próprios
de momentos de fim de época. Maria Cavaco Silva foi assobiada e apupada, na
segunda-feira, na Moita, por um conjunto de trabalhadores, a maioria
funcionários da câmara. O protesto organizado pela União de Sindicatos de
Setúbal contra o Orçamento do Estado visou a mulher do Presidente da República.
Foi assim quebrada uma barreira simbólica. Esta inédita ousadia segue-se a um
outro protesto também inédito: na quinta-feira passada, membros das forças de
segurança, ao manifestarem-se, invadiram a escadaria do Parlamento, pondo em
causa a autoridade do Estado.
Os dois momentos não descambaram em
violência, graças aos sindicatos, que cumprem um papel de enquadramento social
da contestação reivindicativa. Na revolução civilizacional do modelo da
sociedade que se vive, pode, no entanto, vir a ser ultrapassado o papel
moderador desempenhado por sindicatos e movimentos inorgânicos, como o que
esteve na origem da manifestação de 12 de Março de 2011 ou o Que se Lixe a Troika, responsável pela
convocação do protesto a 15 de Setembro de 2012. Papel de enquadramento das
aspirações das pessoas que já não são satisfatoriamente representadas pelos
partidos e pelos dirigentes políticos, como é exemplo a pouca expressão que
tiveram a reunião organizada por Mário Soares a 21 de Novembro e a homenagem a
Ramalho Eanes a 25 do mesmo mês.
Os protestos verificaram-se quando era
aprovado o OE para 2014, em que o investimento público nos serviços sociais
volta a diminuir. Esta redução da despesa social resulta da mudança de modelo
de relações entre a sociedade e o Estado provocada pela hegemonia de uma
ideologia ultraliberal em que o lucro privado se sobrepõe ao interesse público e
à defesa da dignidade humana.
Um sistema de valores dominante que o
Papa Francisco condenou também esta semana, no documento que é o programa para
o seu Papado, ao afirmar, de acordo com a tradução da Conferência Episcopal
Portuguesa: “Assim como o mandamento ‘não matar’ põe um limite claro para
assegurar o valor da vida humana, assim também hoje devemos dizer ‘não a uma
economia de exclusão e da desigualdade’. Esta economia mata” (p. 30).
Acrescentando ainda que se vive num mundo em que “os excluídos não são
‘explorados’, mas resíduos, ‘sobras’” (p. 31), numa sociedade em que “a crise
mundial, que acomete as finanças e a economia, põe a descoberto os seus
próprios desequilíbrios e sobretudo a grave carência de uma orientação
antropológica que reduz o ser humano apenas a uma das suas necessidades: o
consumo” (p. 32).
Vive-se uma inversão de paradigma,
acelerada pela revolução tecnológica, que tem facilitado a implantação do
ultraliberalismo, ao implodir as noções de espaço e tempo e ao pulverizar as
estruturas tradicionais. Mas a actual transição histórica deveria despertar a
consciência da necessidade de preservação e do aprofundamento da garantia de
dignidade humana. Este despertar reveste-se de urgência especial num momento de
desestruturação do sistema, que é visível, por exemplo, no relatório da
Comissão Europeia sobre os jovens que não trabalham nem estudam e que, em
Portugal, atingem meio milhão, 92 mil dos quais surgidos desde 2008 (PÚBLICO,
24/11/2013).
Isto num país onde existem mais de 800
mil desempregados registados, segundo o INE. E numa União Europeia que tem um
quarto da sua população, cerca de 125,3 milhões de pessoas, em risco de pobreza
ou de exclusão social, 6,7 milhões das quais surgidos desde 2010, como
reconheceu esta semana Durão Barroso, ao admitir o falhanço da Estratégia
Europa 2020 da Comissão Europeia (PÚBLICO, 27/11/2013).
É verdade que o pleno emprego é um
mito nunca atingido de facto. É bom mesmo que se tenha noção de que o conceito
de trabalho, enquanto emprego estruturante da sociedade, é uma novidade surgida
no pós-revolução industrial. Mas é preciso também não esquecer que a evolução
histórica não é sempre sinónimo de progresso. Há regressões civilizacionais.
Daí que seja urgente ter em conta que cortes de investimento público, que
empurram pessoas para fora do sistema, agravam movimentos de exclusão próprios
de momentos de fim de época, de fim de civilização, em que tantos deserdados da
sorte são jogados para fora do comboio da história.
Por isso mesmo, numa época de
revolução e ruptura, para procurar evitar regressões civilizacionais, é urgente
estar atento à defesa dos direitos humanos, na sua totalidade de direitos
fundamentais, individuais, sociais, na certeza de que, por serem relativos e
vividos em função do contexto histórico, são tão mais frágeis e tão perecíveis.
Porque é isso que permite a defesa da diversidade e da dignidade humana que
deve caracterizar as democracias. E preservar o pressuposto civilizacional de
que as pessoas têm direito a uma vida justa e digna.” Público