domingo, 31 de janeiro de 2010

Há uma música do povo



Há uma música do povo

Há uma música do povo,
Nem sei dizer se é um fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado...

Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser...
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver...

E ouço-a embalado e sozinho...
É isso mesmo que eu quis ...
Perdi a fé e o caminho...
Quem não fui é que é feliz.

Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção ...
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração ...

Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido...
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!

Fernando Pessoa, in "Poesias Inéditas"

sábado, 30 de janeiro de 2010

Reconstituição da revolta de 31 de Janeiro de 1891

Corinne Bailey Rae, John Legend & John Mayer

Corinne Bailey Rae, John Legend, and John Mayer cantaram juntos, em 2007, na cerimónia da entrega dos Grammy. Corrinne Rae iniciou o Medley com "Like a Star" continuado por John Legend com "Coming Home" e finalizado com " Gravity" por John Mayer. Todos se acompanharam e se agregaram em coro, enquanto cada um interpretava a respectiva canção, realizando um óptimo registo.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Bioética da Protecção



Bioética da Protecção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização
Fermin Roland Schramm

Resumo
A Bioética da Protecção é um subconjunto da bioética, constituída por ferramentas teóricas e práticas que visam entender, descrever e resolver conflitos de interesses entre quem tem os meios que o capacitam para realizar sua vida e quem não os tem. Ao priorizar os "vulnerados" que não dispõem de tais meios, pretende respeitar concretamente o princípio de justiça, já que aplica a equidade como condição sine qua non da efectivação do próprio princípio de justiça para atingir a igualdade. Este é o sentido stricto sensu da Bioética da Protecção. Mas existe um sentido lato sensu, que aplica no contexto da globalização e visa proteger todos os seres vivos contra o sofrimento e a destruição evitáveis.
O artigo tenta mostrar como o conceito de protecção se situa no âmago da própria ética e como se relaciona com os conceitos de ethos, oikos, zoé, bíos, nomos e oikonómia, implícitos nos debates actuais acerca dos efeitos negativos sobre o ambiente natural, modos de vida e a própria saúde humana. Nesse sentido, a Bioética da Protecção pretende reflectir sobre a problemática da sobrevivência do mundo vital e da qualidade de vida de seus integrantes ou hóspedes.
Excerto do Artigo
(...)Em particular, a Bioética da Protecção pode ser aplicada à situação do mundo globalizado na medida em que esse está, cada vez mais, afectado por uma sinergia "catastrófica", de causas e efeitos, visto que: vivemos, daqui em diante, na sombra trazida por catástrofes futuras que, postas em sistema, provocarão, possivelmente, o desaparecimento de nossa espécie. Por isso, a nossa responsabilidade é enorme, pois somos a única causa daquilo que se passa connosco. Mas ao persuadirmo-nos que o bem-estar (salut) do mundo está nas nossas mãos e que a humanidade deve a si mesma a obrigação de ser a sua própria salvação arriscamos precipitar cada vez mais nesta corrida para a frente, neste grande movimento pânico com que se parece, cada dia mais, a história mundial. Existem, evidentemente, condições mais específicas da assim chamada parte em desenvolvimento (ou "subdesenvolvida") do mundo, como a pobreza extrema, que pode tornar as pessoas reféns e vítimas da violação de outras liberdades necessárias para realizar os seus projectos de vida, ou seja, condições que as privam da competência (capability) para ter uma vida objectiva e subjectivamente digna. Assim, a Bioética da Protecção tem o seu foco principal nos indivíduos e populações de afectados, vulnerados e excluídos do processo de globalização em curso. Mas existem também outros problemas globais, como parecem mostrar as práticas predatórias que afectam o planeta como um todo e a humanidade como espécie, e cujos efeitos presentes mais visíveis são a poluição generalizada; as mudanças climáticas; o desflorestamento insensato; a desertificação crescente; a redução da biodiversidade; a poluição e escassez de água, criando o imaginário da escassez. A palavra de ordem da Unesco fazendo as pazes com a Terra, propõe o resgate de conceitos já bastante antigos como "desenvolvimento sustentável", "conhecimento global" e "contrato natural", cuja sinergia se encontra entre os determinantes negativos da saúde e da complexidade de seus problemas e soluções . Com outras palavras – e de acordo com um pensamento ecologicamente correcto – devemos não só pensar globalmente e agir localmente (como admoestam os militantes ecologistas), mas também saber pensar nos problemas locais e agir com sabedoria tendo em vista uma estratégia global de sobrevivência, como pretendia o oncologista e bioeticista Potter. Aqui defende-se a pertinência e legitimidade da Bioética da Protecção, entendida como uma corrente da bioética mundial, a ser levada em consideração por estar, ao mesmo tempo, adaptada às contingências latino-americanas e atenta à moralidade dos problemas globais.
Sentido e contexto da Bioética da Protecção
A expressão Bioética da Protecção contém dois conceitos: 1) "bioética", com o significado genérico de "ética da vida", e 2) "protecção", que indica uma prática consistente em dar amparo a quem necessita e que se refere à função principal do ethos, que é, justamente, a de proteger os vulnerados (e não genericamente "vulneráveis"). Mas, bioética pode ter um significado mais restrito, pois é, literalmente, a ética aplicada ao bíos, à vida humana naquilo que ela teria de específico: a vida moral, isto é, a competência em distinguir entre o bem e o mal, que constituiria – de acordo com Montalcini – o mais alto grau da evolução darwiniana. Tais conceitos estão, por um lado, intimamente ligados, mas, por outro, também distintos. Ligados porque, com a emergência, cada vez mais patente, de amplos grupos de humanos indigentes, vulnerados e excluídos da globalização, e das questões ambientais percebidas e "sentidas" em termos catastróficos, a bioética parece instada a assumir tais questões como uma de suas preocupações específicas, e a dar soluções normativas e pragmáticas para tentar resolvê-las da maneira mais razoável e justa possível. Essa função permite aproximar os conceitos de bioética e protecção, tanto do ponto de vista etimológico – visto que o sentido de proteger está contido no próprio significado da palavra ethos – quanto do ponto de vista teórico-prático que reúne, desde sua origem, as funções de dar amparo e estabelecer normas de convivência. Em suma, a bioética pode ser pensada como meio prático para proteger seres e entes vivos contra ameaças que podem prejudicar de maneira irreversível suas existências, além de ser também um meio "de segunda ordem" para entender a moralidade e seus conflitos, imanentes ao próprio viver "juntos". Mas os termos bioética e protecção devem, também, ser distintos porque, apesar dos vínculos que se possa estabelecer entre eles (e que podem eventualmente corresponder a estados de coisas – ou fenómenos – que de facto acontecem), não se pode confundi-los.
De facto, o campo semântico de cada conceito não é idêntico. Os dois conceitos não podem ser sobrepostos como equivalentes, nem serem subsumidos um ao outro, pois nem toda bioética é bioética da protecção e nem todo meio de protecção é meio da bioética: existem aspectos da vida importantes e pertinentes para a bioética (como, por exemplo, o exercício da autonomia pessoal no que se refere ao "estilo" de vida que não afecta negativamente a vida alheia) que não podem ser subsumidos a algum tipo de protecção – que negaria a própria autonomia -, assim como existem meios de protecção que podem ser questionados do ponto de vista ético (como a medicalização dos comportamentos que não prejudiquem terceiros, mas que, mesmo assim, se tornam objecto de formas de estigmatização, controle e interdição, supostamente para proteger o agente moral contra si mesmo, mas indicam, sobretudo, um mal-estar colectivo frente a outros problemas globais). Parece, portanto, indispensável evitar que a Bioética da Protecção se torne passe-partout para qualquer problema moral que surja no mundo vital, ou seja, deve-se efectivamente evitar que essa perspectiva teórica se torne espécie de "solução mágica", supostamente capaz de responder a qualquer conflito ético no âmbito das práticas humanas que afectem de maneira significativa e irreversível o mundo vital. Tais soluções geralmente não funcionam ou tendem a ser ineficazes na prática, devido à diferenciação funcional, considerada necessária à gestão das sociedades complexas actuais. Se não se faz essa delimitação do campo de aplicação da Bioética da Protecção, a mesma poderia revelar-se mais uma fonte de frustração do que autêntica ferramenta de inteligibilidade e de actuação para a possível solução de conflitos morais no âmbito das práticas que envolvem seres vivos, sejam nossos semelhantes – próximos ou longínquos – ou outros seres vivos, inclusive o ambiente natural entendido como sistema dos sistemas vivos.
A expressão Bioética da Protecção denota uma realidade complexa, tanto do ponto de vista dos problemas reais que deve enfrentar como daquele das ferramentas conceptuais e pragmáticas dos quais deve lançar mão para tentar resolver tais problemas. Ela é, de facto, expressão-problema, no duplo sentido de apontar problemas e de ser, por sua vez, problemática devido às suas tensões internas e ao risco de ser considerada espécie de "chave mestra" (passe-partout), quando de facto não é.
O que é, então, a Bioética da Protecção?
Como vimos, a palavra bioética é composta pelo prefixo bíos e a palavra ethiké, ambos de origem grega. O prefixo bíos tem – pelo menos desde Aristóteles – o significado de vida prática humana por oposição à vida meramente orgânica, indicada pela palavra zoé. Por sua vez, ética vem de ethos, tradicionalmente concebido como sinónimo de moral, ou seja, como costume (aplicado aos hábitos vigentes e aceites na polis ou sociedade) ou carácter (aplicado ao cidadão). Mas deve-se distinguir ética e moral, pois ética tem o sentido geral de discurso sobre o ethos ou – nos termos propostos por Maliandi – de tematização do ethos . Historicamente, o termo ethos parece ser mais antigo que o termo ethiké, pois o primeiro já está atestado em época homérica com o significado de guarida com função, portanto, protectora; inicialmente reservada aos animais, para defendê-los contra seus eventuais predadores e, em seguida, aplicada aos humanos com sentido semelhante, tendo, assim, uma proximidade semântica com a palavra oikos, que tem os sentidos de casa e ambiente. Os antecedentes da Bioética da Protecção parecem confundir-se com a emergência da própria ética, no universo imaginário simbólico grego antigo em que surge a Filosofia, sempre acompanhada de algum nível de reflexão, embora não necessariamente crítica. Isso pode explicar, talvez, porque muitos pensem na bioética como uma ética da vida, estabelecendo, assim, intuitivamente, um nexo semântico entre ethos (guarida) e oikos (casa), mas que pode também ser "tematizado" pelos bioeticistas criando nexos prático-teóricos. Visto que a ética tem sempre alguma forma de pretensão normativa, aproxima-se semanticamente da palavra nomos (regra, norma), de tal forma que há, também, uma proximidade semântica entre ética e oikonómia (regras que regem a casa). Sendo assim, temos um conjunto de termos e conceitos que estão relacionados e formam uma série: ethos-oikos-ethiké-oikonómia, que nada mais é que o campo semântico ao qual se refere a actual problemática ecológica e a que podemos chamar de intuição e inteligência ecoética. Entretanto, há algo a mais, pois, embora Aristóteles fizesse a distinção entre biós e zoé, entre vida prática humana e orgânica, nunca os separou totalmente. Com efeito, na Política (1278b) afirmara que se não há um excesso de dificuldade quanto ao modo de viver [biós]... os homens apegam-se à vida [zoé] [e podem unir-se e manter] a comunidade política até mesmo tendo em vista o mero facto de viver [zen]. Dessa forma, temos a série (provisoriamente) completa oikos-zoé-ethos-bíos nomos-oikonómia- ethiké, com a qual se pode indicar algo que reaparece, explicitamente, na contemporaneidade e que a Bioética da Protecção deve assumir como uma de suas tarefas específicas: reflectir sobre a problemática da sobrevivência do mundo vital e da qualidade de vida de seus integrantes, presentes e futuros. É o que o senso comum, embora talvez só intuitiva e parcialmente, indica ao dizer que a bioética é a ética da vida.
Outra variante no senso comum consiste em pensar a bioética da vida como sendo uma bioética de minha vida, ou seja, introduzindo um sentido individual (ou "individualístico") no campo. Com certa razão essa acepção é vista com desconfiança, já que, apesar de poder existir uma ética totalmente centrada no indivíduo (como em algumas vertentes neo-aristotélicas ou no foucaultiano cuidar de si), não faz plenamente sentido, a rigor, pois só existe ética, propriamente dita, se for inscrita em uma estrutura relacional, do tipo eu-outro ou eu-tu. Não se pode esquecer que o "individualismo" é uma das conquistas do humanismo ocidental – simbolizada pela cultura dos direitos humanos – e faz parte da concepção moderna de cidadania, entendida em sua dupla dimensão individual e colectiva, que em muitos casos pode entrar em conflito. De facto, o individualismo pode ser visto, hoje, como o produto histórico de uma pluralidade de lógicas em interacção: a lógica económica do management capitalista, termo que Agamben traduz e actualiza, do termo grego oikonómia que gera a sociedade de consumidores; a lógica do individualismo democrático, que outorga ao indivíduo uma série de direitos e deveres; a dinâmica jurídica dos direitos individuais; e a lógica societária referente às transformações na esfera da família e da intimidade. Assim sendo, ambas as interpretações – ética da vida e ética de minha vida – não são inteiramente estranhas à problemática bioética actual, pois essa pode referir-se tanto às preocupações autênticas e legítimas de cada humano com seu sofrimento e finitude, mortalidade e sobrevivência pessoal, como à qualidade de vida de todos os outros seres vivos, humanos ou não. Entretanto, conceber a bioética – intuitivamente – como ética da vida pode ser insuficiente quando se pensa em termos menos imediatos e "imparciais", ou seja, quando se consegue entrar na dimensão crítica, que é aquela propriamente técnica da ética aplicada à moralidade; das consequências das acções humanas sobre o mundo da vida em geral e da vida humana em particular. Ela é criticável, em especial quando se pensa na dimensão complexa do fenómeno vida, mas, também, quando se procuram os meios mais adequados para avaliar a prática, pois para isso é preciso ter ferramentas racionais, capazes de conjecturar criticamente sobre a práxis transformadora do mundo vital. Este é certamente o caso das implicações das políticas biotecnocientíficas que afectam, directa ou indirectamente – para o bem ou para o mal – os indivíduos humanos, a sociedade, a humanidade, a cultura, as instituições e a própria natureza como um todo. Para dar conta dessa problemática a Bioética da Protecção pode ser pensada de duas maneiras: em stricto sensu e lato sensu. No sentido stricto, visa dar amparo aos sujeitos e populações que não possuem competência suficiente – ou "capacitação" (capability) – para realizar os seus projectos de vida razoáveis e justos, ou seja, capazes de alcançar uma vida digna no sentido preconizado pela assim chamada cultura dos direitos humanos; como aquilo que é moralmente correcto e necessário para o convívio humano. No sentido lato, e partindo da premissa de que existem interesses colectivos e ecológicos que não podem ser subsumidos a interesses de indivíduos ou de grupos humanos particulares, a Bioética da Protecção ocupa-se das condições necessárias à própria antropogenese (ou talvez a outra antropogenese), ou seja, da sobrevivência da espécie humana (ainda que essa possa ser transformada graças à biotecnociência, inclusive intervindo no próprio processo da evolução).
Resumindo, a Bioética da Protecção pode ser entendida como a parte da ética aplicada constituída por ferramentas teóricas e práticas que visam entender, descrever e resolver conflitos de interesses entre quem tem os meios que o "capacitam" (ou tornam competente) para realizar sua vida e quem, ao contrário, não os tem. Para isso, estabelecer a prioridade léxica de quem não dispõe de tais meios é primordial para respeitar concretamente o princípio de justiça, já que aplicar o valor da equidade como meio para atingir a igualdade é condição sine qua non da efectivação do próprio princípio de justiça. Os interesses conflituantes redundam em outro tipo de conflitos – chamados conflitos morais – e que só podem ser resolvidos dando suporte (protegendo) aos afectados para que possam desenvolver as suas potencialidades e deixem de precisar desta protecção ou – como se diz – de "passar necessidades". De facto, os grupos particularmente vulnerados, ou literalmente vulnerados (ou afectados), não são capazes, por alguma razão independente de suas vontades, de se defenderem sozinhos pelas condições desfavoráveis em que vivem ou devido ao abandono das instituições vigentes que não lhes oferecem o suporte necessário para enfrentar a sua condição de afectados e tentar sair dela. Nesse sentido, a Bioética da Protecção não se aplica, via de regra, aos indivíduos e às populações que – embora afectados negativamente ou susceptíveis de serem concretamente afectados – conseguem enfrentar essa condição existencial com seus próprios meios ou com os meios oferecidos pelas instituições vigentes e actuantes. Caso contrário, a protecção – considerada condição necessária para que a pessoa vulnerada saia de sua condição de vulneração e desenvolva a sua competência para ter uma vida pelo menos decente – poderia ser confundida, pertinentemente, com "paternalismo", porque proteger visa dar o suporte necessário para que o próprio indivíduo potencialize as suas capacidades e possa fazer as suas escolhas de forma competente, ao passo que o paternalismo pode, em nome do (suposto) bem-estar do outro, infantilizá-lo e sufocá-lo, impedindo sua capacitação para viver uma vida decente e livre, tornando-o, assim, sempre dependente das escolhas alheias. Em suma, proteger significa dar as condições de vida que cada qual julgue necessárias para capacitá-lo na tomada de suas próprias decisões enquanto ser racional e razoável. Se não for assim, a Bioética da Protecção contraditaria um dos valores básicos das sociedades seculares e democráticas modernas, que é o direito ao exercício da autonomia pessoal e, em alguns casos, o dever de exercê-la, sendo, portanto, responsável por seus actos. Com outras palavras, a Bioética da Protecção pode ser vista como a ferramenta que só se ocupa do "negativo" implicado pela práxis humana, tentando detectá-lo, examiná-lo e avaliá-lo de acordo com algum parâmetro moral que possa ser compartilhado por agentes racionais e razoáveis, os quais estejam dispostos a negociar seus pontos de vista respectivos; ou que compartilhem alguma cosmovisão (Weltanschauung) como no caso das assim chamadas comunidades morais. Mas existe também um objecto da bioética referente aos efeitos positivos de nossas práticas que poderia, eventualmente, ser chamada uma bioética "do bem".Nesse caso, parece intuitivamente evidente que os afectados não precisam de nenhuma protecção, por não serem desprotegidos contra o negativo, isto é, necessitados. Ademais, a Bioética da Protecção, stricto sensu não se aplica tampouco a quem – embora afectado negativamente ou susceptível de sê-lo – consegue fazer frente ao mal/negativo com seus próprios meios ou graças aos meios oferecidos pelas instituições vigentes e actuantes. Caso contrário redundaria, novamente, em paternalismo, desta vez mais preocupante, pois não visaria evitar um dano, mas, substancialmente, impor um bem a terceiros. (...)
Considerações finais
Sobre a Bioética da Protecção existe, evidentemente, uma série de questões críticas pertinentes. Uma primeira crítica que surge diz respeito à relação possível entre proteger alguém e a competência de cada um em se proteger a si mesmo, que é nada mais que o problema das liberdades e do exercício da autonomia individual numa comunidade ou sociedade determinada, regida por normas de convivência voltadas a evitar a hobbesiana guerra de todos contra todos. A questão é ao mesmo tempo teórica e prática. Teórica porque diz respeito à relação lógica que podemos estabelecer entre protecção e autonomia e à ponderação necessária quando tais categorias entram em conflito, visto que os dois conceitos parecem ser mutuamente excludentes. Prática porque se refere ao campo de sua aplicação; em particular, à pergunta se a Bioética da Protecção deve ser reservada aos casos evidentes de seres concretamente afectados (vulnerados) ou se pode ser aplicada também a seres susceptíveis e até aos seres genericamente vulneráveis, que somos todos pelo simples facto de sermos mortais e podermos ser atingidos. Historicamente, um princípio moral de protecção está implícito nas obrigações do Estado, que deve proteger seus cidadãos contra calamidades, guerras etc., chamado também de Estado mínimo. Entretanto, poderia muito bem ser chamado de Estado protector, pois parece intuitivamente compreensível que todos os cidadãos não se conseguem proteger sozinhos contra tudo e todos, podendo tornar-se susceptíveis e até vulnerados em determinadas circunstâncias. Mas, neste caso, devemos distinguir a mera vulnerabilidade – condição ontológica de qualquer ser vivo e, portanto, característica universal que não pode ser protegida – da susceptibilidade ou vulnerabilidade secundária (por oposição à vulnerabilidade primária ou vulnerabilidade em geral). Ademais, os susceptíveis podem tornar-se vulnerados, ou seja, directamente afectados, estando na condição existencial de não poderem exercer suas potencialidades (capabilities) para ter uma vida digna e de qualidade. Portanto, dever-se-ia distinguir graus de protecção de acordo com a condição existencial de vulnerabilidade, susceptibilidade e vulneração, o que pode ser objecto de discussões infindáveis sobre como quantificar e qualificar tais estados existenciais. Outra questão pertinente é saber quem são de facto os susceptíveis ou vulnerados, pois, como aponta Sen, ainda predomina a definição de uma pessoa a partir de seu pertencimento geográfico ou cultura a que está adstrita. Nesse caso, o risco de estigmatização e os riscos de paternalismo e autoritarismo são grandes e, sobretudo, há a possibilidade de desconsiderar indevidamente as diferenças, o multiculturalismo e a pluralidade moral das sociedades complexas contemporâneas. Em suma, surge a questão de como fazer para focalizar os indivíduos vulnerados e lhes fornecer a protecção necessária para desenvolver suas potencialidades e sair da condição de vulneração e, ao mesmo tempo, respeitar a diversidade de culturas, as visões de mundo, hábitos e moralidades diferentes e que fazem parte da vida em comum, complexificando- a e enriquecendo-a, como bem mostram países como o Brasil, graças à sua prática de antropofagia cultural?
Concluindo, a Bioética da Protecção, assim como a entendemos aqui, parece levantar mais problemas do que resolver. Pode ser, mas ao tentar levantar tais problemas e abordá-los de forma crítica e imparcial, tentando superar o olhar meramente antropocêntrico, indica as ferramentas para pensar a moralidade do agir humano de forma tal a responder à exigência moral humana de evitar sua autodestruição, inclusive nos protegendo contra nós mesmos. Em suma, ao se descentrar criticamente com relação ao antropocentrismo, mas sem recalcá-lo desconsideramente, a bioética aponta as condições para repensar outra antropogenese situada correctamente no paradigma oikos-zoé-ethos-bíos-nomos-polis-oikonómia- ethiké. Paradigma que é – ou pretende ser – simultaneamente local e global, mas sobretudo, evolutivo no sentido de aprimorar a "segunda natureza" humana, que inclui certamente a competência moral do indivíduo, cidadão de seus lugares e do mundo.

Artigo publicado na Revista Bioética , vol.16 de 2008

domingo, 24 de janeiro de 2010

LET IT BE

Grande interpretação da lendária canção dos Beatles "Let it be " por Jennifer Hudson no espectáculo " Hope For Haiti", conduzido por George Clooney, em Los Angeles.

sábado, 23 de janeiro de 2010

A nova Constituição angolana

A nova Constituição angolana não é democrática

Esta semana, a Assembleia Constituinte de Angola prepara-se para ratificar uma nova Constituição que acaba com a eleição directa do Presidente, instituindo um regime em que esta figura, que acumula as funções de chefe de Estado e de chefe do governo é simplesmente o líder do partido mais votado nas legislativas.
Em Angola, figuras da oposição ao regime de José Eduardo dos Santos têm-se oposto a esta nova Constituição, aprovada em tempo recorde no meio do campeonato de futebol "Taça Africana das Nações" que está a decorrer naquele país entre 10 e 31 de Janeiro.
As várias mudanças propostas conjugam-se para apontar no sentido de uma continuidade na falta de democraticidade do regime. O objectivo do MPLA parecia ser não apenas perpetuar-se no poder, como também adquirir um verniz de respeitabilidade democrática para exibir perante os parceiros internacionais. Um olhar atento ao novo texto constitucional sugere que o primeiro objectivo parece completamente assegurado, mas o segundo poderá ser difícil de alcançar.
A nova Constituição institui um regime em que o Presidente acumulará tanto as funções de chefe de governo como de chefe de Estado, ou seja congrega todo o poder executivo. Além de deter todos os poderes de governação que normalmente cabem a um primeiro-ministro, o Presidente terá a seu cargo a representação do país, a liderança das forças armadas, a marcação da data das eleições, as nomeações de altos cargos administrativos e políticos, a convocação de referendos, o veto, e o envio de diplomas para verificação da constitucionalidade ao Tribunal Constitucional.
A concentração do poder executivo por si só não é excepcional. Por exemplo é o que acontece na maior parte dos regimes políticos da América Latina. Especialmente nos países mais pobres, e dada a fraqueza das instituições, existem hiper-presidentes. Mas Angola ainda consegue distinguir-se de países como a Venezuela, o Equador, as Honduras. É que a par desta concentração de poderes, também se acabou com a eleição directa do Presidente. As democracias onde o poder executivo está concentrado numa única figura do Estado tendem a sufragá-la de forma directa para que o eleitorado possa responsabilizar o Presidente pelos seus actos.
Se o novo Presidente tem muitos poderes, e deixa de ser eleito de forma directa, talvez isso não o distinga muito de primeiros-ministros com maiorias absolutas, pense-se por exemplo em Thatcher ou Blair, lideres fortes que não foram eleitos directamente. A legitimidade do executivo nestes países, isto é nos regimes parlamentares, é assegurada pelo facto do chefe de governo exercer as suas funções apenas e só enquanto tiver o apoio do Parlamento.
Pois bem, neste critério e segundo a nova Constituição angolana, só será possível destituir o Presidente num processo de "impeachment" em que dois terços dos deputados em efectividade de funções votarem a favor da sua perda de mandato. Não existe na nova Constituição qualquer menção à possibilidade do Parlamento votar uma moção de censura ao Presidente. Está por isso o Presidente completamente blindado nas suas funções, e o Parlamento de mãos atadas.
Na África do Sul, por exemplo, país onde o Presidente também não é eleito de forma directa, sendo antes o líder do partido mais votado, existe, claro, a possibilidade do Parlamento votar uma moção de censura ao Presidente e ao seu governo que, se for aprovada por maioria simples, implica a queda do Presidente.
Podemos pois começar a compreender a gravidade do sentido desta mudança constitucional. Resta agora juntar a informação sobre o panorama partidário angolano: neste momento, e desde 2008, o partido do Presidente José Eduardo dos Santos controla mais de dois terços do Parlamento. Com este total predomínio do partido único sobre as instituições qualquer revisão constitucional faria pouca diferença no avanço da democraticidade do regime. Mas esta nova Constituição angolana elimina a réstia de legitimidade que a Constituição anterior emprestava ao regime, ao acabar com a eleição directa do Presidente sem o responsabilizar perante o Parlamento. Oremos.
Marina Costa Lobo
Politóloga

Assina quinzenalmente à quinta-feira uma coluna de Opinião no "Jornal de Negócios". Este artigo foi publicado nesse Jornal, em 21 de Janeiro de 2010.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Janis Joplin, To Love somebody

18 de Julho de 1969, Janis Joplin no Dick Cavett Show

Reconstruir o Haiti





As autoridades do Haiti anunciaram que vão realojar mais de 400.000 sobreviventes do sismo de 12 de Janeiro em novas povoações que serão edificadas fora da capital, Port-au-Prince.
Esperemos que sejam dimensionadas povoações onde a dignidade humana seja um valor e os direitos fundamentais prevaleçam sobre o oportunismo económico para que as imagens de um país em miséria colectiva nunca mais sejam realidade.

Maria do Mar

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Recordando...

Bruce Springsteen com "working on a dream" deu voz ao sonho que uniu os Estados Unidos da América, em 20 de Janeiro de 2009.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Os amantes sem dinheiro


Tinham o rosto aberto a quem passava
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos,
mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Haiti, o horror do sofrimento


Haiti continua a chocar-nos todos os dias. As imagens que nos chegam são avassaladoras. Tanto sofrimento, tanta miséria e um nada nas mãos de tanta gente desamparada, que só quer (sobre)viver. Imaginar um lugar como este é uma enormidade medonha, mas estar nele e ser seu refém deve ser como encarnar compulsivamente a dor extrema.
Nos rostos desta criança e de tantas outras mutiladas por esta terrível intempérie fica a marca trágica de uma ausência de felicidade que dói.
Maria do Mar

domingo, 17 de janeiro de 2010

Miguel Torga morreu há 15 anos


Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia Rocha, (São Martinho de Anta, Vila Real, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995), morreu há quinze anos.
Recordá-lo através da sua poesia é sempre um pretexto para um novo reencontro com a arte da palavra.

UM POEMA
Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...

Miguel Torga, in "Diário XIII", 7/10/79

AMEAÇA DE MORTE

Não basta ter-me dado nos meus versos:
pedem a carne e a pele, os inimigos.
Os olhos, dois postigos
de olhar o mundo sem ninguém me ver,
querem-nos entaipados;
e quebrados
os braços, que eram ramos a crescer.

Luto, digo que não, peço socorro,
mas saiu-me ao caminho uma alcateia.
Lobos da liberdade alheia
que me seguem os passos hora a hora,
sem que eu possa sequer adivinhar,
na paisagem de medo tumular,
qual deles salta primeiro e me devora.

Miguel Torga , in "Orpheu Rebelde " 1958

O Viajante Sem Sono



O Viajante Sem Sono
Autor: José Tolentino Mendonça
Editora: Assírio & Alvim
N.º de páginas: 51
ISBN: 978-972-37-1440-1
Ano de publicação: 2009

Em 2006, José Tolentino Mendonça reuniu a sua poesia no volume A Noite Abre Meus Olhos (Assírio & Alvim), súmula dos seis primeiros livros. Regressa agora à publicação de originais com O Viajante Sem Sono, um precioso livrinho que prossegue, sem grandes mudanças de rumo, aquilo a que poderíamos talvez chamar uma investigação estética do mundo e dos seus mistérios.
Os quatro versos iniciais do primeiro poema (intitulado Para ler aos noviços) definem desde logo uma fronteira: «Deus não aparece no poema / apenas escutamos a sua voz de cinza / e assistimos sem compreender / a escuras perícias». Embora o poema seja o «acto espiritual por excelência», como recorda uma epígrafe de Levinas, Tolentino separa a experiência religiosa da experiência poética, aparta a luz da fé das «escuras perícias» a que a escrita o conduz. O horizonte de alguns destes textos até pode ser a revelação de uma verdade, o «infinito alcance», a epifania que ilumina, mas o poeta sabe que os trilhos para lá chegar são intransitáveis: há sempre um vento gelado que os apaga, ou declives e intervalos que os desviam para «aonde ninguém sabe».
Esta é uma poesia do espanto e do «louvor» diante da beleza mais pura das coisas, beleza sentida na pele – «por uma elipse, um rasgão, uma alteração cutânea» – mas impossível de nomear. Porque «o mundo é aquilo que nos separa do mundo» e estamos sempre à mercê da «ordem aleatória do tempo», sem o consolo sequer de uma «certeza culminante». A matéria do poema é mineral, feita de nácar e osso, húmus e folhas mortas, uma matéria que se inclina e «desliza», como as esculturas de José Pedro Croft. A transcendência não se procura, encontra-se. «Imaginamos lugares estritos / para o sublime que vem afinal / depositar-se à nossa soleira».
No poema, cabe tudo. A verdade e o erro, a perfeição e a trivialidade, «correntes marítimas em vez de correntes literárias», uma «paciência quase animal», uma resignada incerteza. As palavras que atribui a Lourdes Castro, Tolentino Mendonça podia tomá-las (e toma-as) para si mesmo: «A minha arte é uma espécie de pacto: / não distingo as áreas selvagens das cultivadas / e elas não distinguem a minha sombra / da minha luz».

Avaliação: 8/10

[Texto publicado no número 85 da revista Ler]

sábado, 16 de janeiro de 2010

Sorry

O protesto e a dissidência

Baptista Bastos
O protesto e a dissidência
Maria de Lurdes Rodrigues foi, durante quatro anos, o rosto de uma guerra suja, aparentemente de dúbio significado, quando se tem em conta os recentes resultados obtidos por Isabel Alçada. Refiro-me, está bem de ver, ao conflito, sem precedentes, que a ex-ministra da Educação manteve, implacável e obstinada, com os professores. Maria de Lurdes Rodrigues foi o rosto de uma política ordenada e desencadeada por José Sócrates. Num Governo, qualquer que ele seja, não há decisões unilaterais: obedecem a um todo e assentam, fundamentalmente, na doutrina do primeiro-ministro. Maria de Lurdes Rodrigues foi enxovalhada, alvo de medonhas chacotas, objecto das críticas mais violentas, e aguentou, firme e inabalável, assumindo, pessoalmente, uma responsabilidade que lhe não pertencia em sistema de exclusividade.
As idas da senhora ao Parlamento chegaram a ser pungentes. Não sabia o que dizer, e o que dizia não convencia ninguém. Apenas um pormenor permanecia: ela não arredava um milímetro das resoluções tomadas, por mais absurdas e tresmalhadas que fossem. Impávido e sereno, José Sócrates parecia talhado em pedra. De vez em quando, Augusto Santos Silva ia em socorro da senhora, sussurrando umas frases solidárias, quando as intervenções da oposição atingiam as raias da impiedade.
Quatro anos, quatro longos e dolorosos anos durou esta guerra sem sentido. Quando o tormento passou, Maria de Lurdes Rodrigues confessou-se extenuada, mas que descansaria durante um ano sabático. Bom. Soube-se, agora, que, em breve, vai sentar-se no gabinete de presidente da FLAD (Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento), substituindo Rui Machete, que considerou a escolha de Sócrates muito acertada. Dias antes, na RTP, Marcelo Rebelo de Sousa, ironicamente cauto, declarou ignorar os méritos da ex-ministra relativamente às questões atlânticas.
Devo dizer, à puridade, que não me espanta ou indigna a nomeação. No entanto, a celeridade do acto não deixa de causar engulhos. Mas o poder é assim que procede a quem obedece sem recalcitrar. O número de fundações, instituições semipúblicas ou públicas, bancos, associações de reflexão, que, ao longo dos anos, têm dado guarida, acaso com chorudos vencimentos e trabalhos que não tuberculizam ninguém, ao pessoal sem emprego momentâneo, mas que serviu o chefe (qualquer que ele seja) com devoção e zelo.
Há outras "aberturas", bem entendido. Uma das quais, certamente a mais apetecida, ser deputado no Parlamento Europeu. O forte cheiro a suor que evola dos sovacos daqueles senhores fornece-nos a medida exacta das suas fadigas. Se passearmos, displicentemente, os olhos pela lista de "políticos" promovidos, nos últimos anos, a serviçais da pátria, por desinteressados serviços prestados ao povo - chegamo-nos a comover, com tamanha abnegação e tal espírito de sacrifício.
Quando chego a este ponto, recordo a espantosa declaração feita por um estipendiado do PS que, em entrevista célebre, confessou: "Estou muito cansado da política; mas disponível para me deslocar para a Europa." Obviamente, deslocou-se. Claro que há mais, sobretudo de gente procedente dos dois partidos "do arco do poder." São pagamentos de favores, retribuição de obediências, soldadas aos que não se insurgiram. Não há volta a dar. O pior de isto tudo é que isto tudo é considerado normal.
Certo jornalismo, tão propenso ao varejo de insignificâncias e às manigâncias dos ajustes de contas, talvez devesse seguir a "carreira" de muita gente e revelar o que de apreciável ela fez para merecer o fruto e o usufruto da situação de que beneficia. Não se trata de moralização de costumes. Não há ninguém imaculado, e os moralistas irritam-me por sacripantas. Trata-se, sobretudo, de assear a democracia, de limpar os ideais republicanos, sobre os quais têm tripudiado aqueles que passam impunes a todas as malfeitorias.
Há dias, Mário Soares incitou-nos a combater o "derrotismo" que se apoderou dos nossos espíritos. O nosso "derrotismo" generalizou-se quando nos apercebemos de que quem pagava as favas eram sempre os mesmos. E que não há dinheiro para nada a não ser para salvar bancos. As iniquidades são ultrajantes. As injustiças, imperdoáveis. O "derrotismo" português resulta das derrotas constantes, dos vexames insuportáveis, das humilhações inomináveis a que somos submetidos por uma classe dirigente desprovida de sentido de honra e calafetada no interior dos seus interesses.
O poder está lá para premiar quem é dócil, para promover quem é submisso. O "derrotismo" nasce das desproporções. E viceja quando morreram os motivos das grandes exaltações cívicas. Isto é de mais. Que fazer? Manifestar o nosso direito à indignação, seguindo a frase famosa do próprio Mário Soares. Copiar os professores. Duzentos mil a gritarem "não" deixa de ser um protesto para constituir uma dissidência.

Artigo de Opinião de Baptista Bastos, publicado no "Jornal de Negócios" de 15/01/2010

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Estar Vivo


O sismo que destruiu Port-au-Prince, no Haiti, evidenciou quão fragil é a estrutura que suporta grande parte deste nosso planeta. Perante este terror que magoa os olhos e dilacera a alma, esperemos que o mundo desperte e corrija a desmedida assimetria económica que grassa nesta era globalizada. A miséria da miséria é ainda mais dolorosa para quem nada tem, mas tudo perde.
Estar vivo, quando a morte se materializa, torna-se um imenso e incomensurável valor.
Maria do Mar

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Silêncio









Já o silêncio não é de oiro: é de cristal;
redoma de cristal este silêncio imposto.
Que lívido museu! Velado, sepulcral.
Ai de quem se atrever a mostrar bem o rosto!

Um hálito de medo embaciando o vidrado
dá-nos um estranho ar de fantasmas ou fetos.
Na silente armadura, e sobre si fechado,
ninguém sonha sequer sonhar sonhos completos.

Tão mal consegue o luar insinuar-se em nós
que a própria voz do mar segue o risco de um disco...
Não cessa de tocar; não cessa a sua voz.
Mas já ninguém pretende exp'rimentar-lhe o risco!

David Mourão-Ferreira, in "Tempestade de Verão"

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Morreu Eric Rohmer

O cineasta francês Eric Rohmer morreu segunda feira, 11 de Janeiro, com 89 anos. Era juntamente com Jean-Luc Godard, François Truffaut ou ainda Claude Chabrol um dos fundadores da Nouvelle Vague no final dos anos 50.
Com a morte de Eric Rohmer, é uma lenda do cinema francês que se extingue. Como toda a lenda, tem uma parte de lugar comum e uma parte de verdade singular.
O seu verdadeiro nome era Maurice Schérer e começou por ser Professor de Letras, em seguida Crítico, tendo fundado a "Gazette du Cinéma" com Jacques Rivette, em 1950. Realizou o seu primeiro filme no final da década de cinquenta e, em 2007, assina o seu último filme," Les amours d'Astrée et de Céladon".
Rohmer colocava a palavra no coração das suas obras. Costumava dizer " Eu considero que os meus filmes são contos de fadas, mas contos realistas como os de Maupassant".
É de realçar a inteligência com a qual o realizador soube reinventar o cinema, segundo os parâmetros que não se limitam apenas a comprometer a palavra, mas associando-lhe também uma concepção de espaço e de tempo, uma encarnação das personagens, um frémito dos sentidos, uma sensibilidade pela natureza . " Eu não digo, eu mostro.", reivindicava Rohmer. Quanto ao dito classicismo "rohmérien" era de tal maneira impregnado por uma recusa às convenções, por uma inclinação para a fantasia e por um gosto pela ambiguidade moral que não se poderia atribuir-lhe plenamente esse estatuto.
Eric Rohmer realizou 25 longas metragens, um documentário sobre os filmes Lumière e programas escolares para a Televisão. Foi premiado várias vezes, tendo recebido um Leão de Oiro, em 2001.


Adaptação de um artigo de Jacques Mandelbaum, publicado no jornal "Le Monde", em 13/01/2010

domingo, 10 de janeiro de 2010

SITTING ON THE DOCK OF THE BAY

(SITTIN' ON) THE DOCK OF THE BAY, uma das grandes canções composta por Otis Redding e Steve Cropper gravada na versão original, em 7 de Dezembro de 1967, três dias antes da morte de Otis Redding juntamente com a sua banda The Bar-Keys, num desastre de avião, no Wisconsin. "(Sittin' On) the Dock of the Bay" só viria a ficar famosa um ano após a sua morte (1968), tornando-se uma canção emblemática e inesquecível.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Os americanos são de Itália e os europeus do Japão



Hans Werner Sinn
Os americanos são de Itália e os europeus do Japão


O modelo de negócio norte-americano desmoronou-se. Nos últimos anos, os Estados Unidos pediram emprestado ao resto do mundo elevados montantes de dinheiro. Só em 2008, as importações líquidas de capital excederam 80 mil milhões de dólares. Grande parte deste dinheiro veio da venda de produtos de titularização de crédito hipotecário e das obrigações da dívida que apresenta colaterais como garantia, das reivindicações contra uma cadeia de reivindicações cujo último elo é o proprietário imobiliário norte-americano (ou, para ser preciso, as próprias casas, já que os proprietários beneficiam da protecção de carência de recursos).
Agora, o mercado destes activos desapareceu. Enquanto, em 2006, o volume de novas emissões foi de 1,9 biliões de dólares, em 2009 foi de apenas 50 mil milhões de dólares, de acordo com as mais recentes estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI). O mercado caiu 97%. Nenhum número revela, como este, a verdadeira catástrofe do sistema financeiro norte-americano.
Como o fluxo de fundos de todo o mundo para os proprietários norte-americanos foi interrompido, o preço das casas caiu 30% e a construção de novas casas mais de 70%. A recessão era inevitável. Os trabalhadores do sector da construção que foram despedidos e os proprietários tiveram que apertar o cinto. Alguns fizeram-no porque se sentiam pobres. Outros porque os bancos, afectados pelo colapso da securitização, pararam de conceder empréstimos ao consumo.
Nos últimos anos antes da crise, o fluxo de novas hipotecas era 60% superior ao valor da construção de habitações. Agora está 150% abaixo.
Os primeiros onze meses de recessão que se seguiram foram tão severos como os primeiros onze meses da Grande Depressão que começou em 1929. Mas gigantescos pacotes de estímulo económico keynesianos, no valor de 1,4 biliões de dólares, em conjunto com resgates de bancos no valor de 8 biliões de dólares, tiveram o seu efeito. Pararam a queda na Primavera e início do Verão de 2009, interrompendo a recessão, espero eu, mais do que temporariamente.
A subutilização da capacidade continua, no entanto, a ser enorme. Vai demorar anos até que a economia mundial regresse ao normal, em particular devido às perspectivas de crescimento pouco prometedoras e ao aumento do desemprego nos Estados Unidos e na Europa.
A dívida governamental foi o tratamento que ajudou e que continua a ser necessário. Os governos absorvem o excesso de poupanças privadas "over private investment" e injectam-no na economia, estabilizando a procura agregada e o sistema financeiro.
Como resultado, os défices públicos estão a disparar. Quase todos os países da União Europeia vão violar o limite de 3% do PIB definido no Pacto de Estabilidade e Crescimento e muitos deles vão ter défices iguais ou superiores a 10% do PIB, como a Espanha (10%), o Reino Unido (14%) e a Irlanda (16%).
Os Estados Unidos, o epicentro da crise, enfrentam enormes dificuldades. O rácio da dívida deverá ter fechado o ano nos 87%, após ter atingido os 73% em 2008, e, com o défice deste ano a chegar aos 11%, é quase certo que irá superar os 100% em 2011. O país que costumava ser o símbolo da força e da estabilidade do capitalismo mostra agora semelhanças alarmantes com os países em desenvolvimento que sofreram com a crise da dívida mundial no início dos anos 80.
Apesar dos países poderem ficar insolventes, há muitas formas de reduzir a dívida soberana antes que isso aconteça. Os Estados Unidos estão a ponderar a possibilidade de aplicar um imposto sucessório sobre as acções norte-americanas que sejam adquiridas no estrangeiro, e muitas pessoas acreditam que o país vai tentar seguir a estratégia italiana: subir a inflação para reduzir a dívida pública e desvalorizar a moeda para manter a competitividade internacional.
É difícil elevar a taxa de inflação quando as taxas de juro de curto prazo estão perto do zero - e não podem sofrer novas reduções sem provocar uma acumulação maciça de liquidez. No entanto, os investidores de todo o mundo receiam este cenário, e isto pode criar uma profecia auto-realizável, porque leva a uma queda do dólar, aumenta a procura de exportações e torna as importações norte-americanas mais caras.
Ironicamente, as taxas de câmbio flexíveis ajudaram o país a causar esta crise. Não existe justiça nos mecanismos económicos.
O contrário acontece na Europa, onde o Banco Central Europeu também usou o seu poder e não pode criar inflação mesmo que quisesse (o Tratado de Maastricht define a estabilidade de preços como o único objectivo do BCE).
Mas a subida do euro reduz os preços das importações e a procura de exportações, o que provoca a queda dos preços. O mais provável é que a Europa não siga a estratégia italiana. Em vez disso, a Europa vai enfrentar grandes dificuldades para se libertar da estagnação actual. O risco para a Europa é seguir o exemplo japonês, em vez do italiano.
Após a crise bancária de 1987-1989, o Japão viveu décadas de estagnação e deflação com uma elevada dívida governamental. Evitar um cenário semelhante é o principal desafio dos decisores políticos europeus durante os próximos anos.


Hans-Werner Sinn é professor de Economia e Finanças Públicas na Universidade de Munique e presidente do Instituto Ifo.
Artigo de Opinião publicado no "Jornal de Negócios" de 8 de Janeiro de 2010

© Project Syndicate, 2009.
www.project-syndicate.org
Tradução: Ana Luísa Marques

Yvonne Elliman, I don't know how to love him, 1973

De Jesus Christ Superstar, a inconfundível voz de Yvonne Elliman em "I don't know how to love him".





I don't know how to love him.
What to do, how to move him.
I've been changed, yes really changed.
In these past few days, when I've seen myself,
I seem like someone else.
I don't know how to take this.
I don't see why he moves me.
He's a man. He's just a man.
And I've had so many men before,
In very many ways,
He's just one more.
Should I bring him down?
Should I scream and shout?
Should I speak of love,
Let my feelings out?
I never thought I'd come to this.
What's it all about?
Don't you think it's rather funny,
I should be in this position.
I'm the one who's always been
So calm, so cool, no lover's fool,
Running every show.
He scares me so.
I never thought I'd come to this.
What's it all about?
Yet, if he said he loved me,
I'd be lost. I'd be frightened.
I couldn't cope, just couldn't cope.
I'd turn my head. I'd back away.
I wouldn't want to know.
He scares me so.
I want him so.
I love him so.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O SAL DA LÍNGUA


Escuta, escuta: tenho ainda

uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai

salvar o mundo, não mudará

a vida de ninguém - mas quem

é hoje capaz de salvar o mundo

ou apenas mudar o sentido

da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.

É coisa pouca, como a chuvinha

que vem vindo devagar.

São três, quatro palavras, pouco

mais. Palavras que te quero confiar,

para que não se extinga o seu lume,

o seu lume breve.

Palavras que muito amei,

que talvez ame ainda.

Elas são a casa, o sal da língua.


Eugénio de Andrade in " O Sal da Língua",1995

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Cantar as Janeiras



José Afonso - Natal dos Simples

Vamos cantar as janeiras
Vamos cantar as janeiras
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas solteiras

Vamos cantar orvalhadas
Vamos cantar orvalhadas
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas casadas

Vira o vento e muda a sorte
Vira o vento e muda a sorte
Por aqueles olivais perdidos
Foi-se embora o vento norte

Muita neve cai na serra
Muita neve cai na serra
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra

Quem tem a candeia acesa
Quem tem a candeia acesa
Rabanadas pão e vinho novo
Matava a fome à pobreza

Já nos cansa esta lonjura
Já nos cansa esta lonjura
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem anda à noite à ventura

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A PALAVRA MÁGICA

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.


Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera'

domingo, 3 de janeiro de 2010

O MITO E A REALIDADE


Albert Camus (Mondovi, 7 de Novembro de 1913 — Villeblevin, 4 de Janeiro de 1960)
Entre as maiores manifestações da consciência crítica do século XX, a presença de Camus é certamente uma das mais generosas. Sobretudo agora,(...)quando tantas das suas reflexões podem ser redescobertas como advertências ou ‘diagnósticos’ de espantosa acuidade e rigor intelectual. Não há como duvidar de que o homem dos nossos dias tem tudo para abrigar conflitos ainda mais intensos — e mais devastadores, ou mais fecundos — que os de todas as outras épocas. É certo que ele contou com enormes precursores, mestres que foram ao fundo do desenvolvimento moderno de suas emoções — e suas razões — como Nietzsche, Dostoiévski, Proust, Kierkegaard, Kafka (para só ficarmos em alguns dos nomes mais caros a Camus), e chega, hoje em dia, aos desdobramentos efectivos e consistentes das revoluções de Darwin, Marx, Freud, Einstein. Mas, até mesmo por isso tudo, ‘os homens presentes’, n’ “a vida presente”, estão ainda mais sós e dilacerados. Há uma busca desesperada — mas persistente — de novos valores. Como toda possibilidade dos sistemas mágicos ou metafísicos se encontra pulverizada, como só insiste ou resmunga nos desvãos do medo, nos laboratórios da psicopatologia ou em sinistros desvios de igreja e dissimulação, esse homem presente só pode contar consigo mesmo, seu cérebro, seus sentidos, suas mãos, seus meios. Daí o encontro — cada vez mais frequente — com o absurdo. E face a face com a sua condição, esse homem tem muito poucos amigos. Um deles, de extraordinária inteligência e lealdade, é Albert Camus.
Particularmente neste caso de O mito de Sísifo, livro de terrível beleza com a sua aguda apreensão do horror nas armadilhas do quotidiano, seu reforço ao inconformismo e à recusa a todas as fugas, seu empenho intransigente em valorizar e enriquecer as lutas da lucidez. Camus escreveu -o no começo da Segunda Guerra Mundial. É extremamente curioso — mas de toda coerência com o seu pensamento — que ele não se detenha no problema da guerra e a rejeite radicalmente nas entrelinhas, fazendo do “homem absurdo” o último a poder aceitá-la ou a compactuar com as suas aberrações. Quem coloca em primeiro plano a revolta, o discernimento, a discussão da morte voluntária, a oposição às esperas e esperanças infundadas, a realidade física ou a repulsa a qualquer tipo de servidão está plasmado indirectamente a atitude do antiautoritarismo e, em conseqüência, propondo uma paz insubmissa, guiada ao mesmo tempo pela razão e pela paixão amorosa (especialmente em seus “modelos” do “homem absurdo” — quando trata de Don Juan, dos comediantes e dos conquistadores). Mesmo neste último caso, mobilizado como todo o mundo, o filósofo passa a opção pela luta e pela resistência, mas também o desprezo pela guerra e seus ingredientes: “A grandeza mudou de campo. Ela está no protesto e no sacrifício sem futuro”.
Mais especificamente, Le mythe de Sisyphe (1942) — que, não vamos esquecer, o autor publicou aos vinte e nove anos — é a primeira formulação teórica da noção de absurdidade, isto é, da tomada de consciência, pelo ser humano, da falta de sentido (ou, portanto, do sentido absurdo) da sua condição. Situando a questão nos planos da sensibilidade e da inteligência, Camus trabalha com designações que muitas vezes se confundem, na base de estímulo e resposta assumidos com o mesmo nome. Assim, o “homem” é o que enfrenta lucidamente a condição — e a humanidade — absurda. Antecedido intuitiva e literariamente (como reconhece e aplaude no último ensaio do livro) pelo génio de Franz Kafka, Camus é o primeiro a descrever objectivamente as situações e conseqüências da absurdidade, compreendendo a sua lógica e propondo a sua moral.
De lá para cá, ao mesmo tempo que o “homem absurdo” se exprimiu em toda a sua verdade na literatura, no teatro e em outros campos ou vertentes da arte e do pensamento (de Jorge Luis Borges à dramaturgia de autores como Beckett, Ionesco, Genet, Pinter, Albee, Arrabal — e tantos escritores contemporâneos), a absurdidade do humano se estendeu, fez metástases por toda parte, prosperou. Como, nos seus rumos políticos, o autoritarismo já não anda de braçadeiras ou suásticas às claras, a humanidade absurda também adoptou disfarces e novos colarinhos para as respectivas coleiras. Os esquemas burocráticos de falso paternalismo e servidão, a estéril, mas afanosa vaidade de hierarquias inteiras que superpõem andróides às voltas com obrigações e incumbências inúteis mostram-nos hoje como viu longe a actividade crítica e criativa de homens em corpo inteiro como Franz Kafka (muitas vezes chamado “profeta do absurdo”) e Albert Camus — inclusive em suas obras posteriores, principalmente La peste (1947) e L’homme revolté (1951). Por todos esses motivos, a actualidade e oportunidade de O mito de Sísifo são absolutamente exemplares. Estão aqui os antídotos certos, a palavra certa para uma rara humanidade que ainda merece continuar a se distinguir dos insetos e dos ratos. Como se depreende do ensaio-título deste livro, pode-se até rolar a pedra até o alto da montanha, de onde ela desce de novo: desde que, nos intervalos, se mantenha e se renove a consciência do processo. A grande maioria, no entanto, já prefere naqueles momentos tão-somente rolar também de volta, ladeira abaixo. E já consegue chegar um pouco antes da pedra.

Introdução à Edição original de "O MITO DE SÍSIFO",(Ensaio sobre o Absurdo), de Albert Camus por Mauro Gama
Tradução e Apresentação de Mauro Gama, "Le Mythe de Sisyphe", Copyright by Éditions Gallimard, 1942

sábado, 2 de janeiro de 2010

2010 Ano Europeu do Combate à Pobreza e à Exclusão Social

2010 é o Ano Europeu do Combate à Pobreza e à Exclusão Social
A Comissão Europeia declarou 2010 o Ano Europeu do Combate à Pobreza e à Exclusão Social. Com uma dotação de 17 milhões de euros, a campanha visa reafirmar o empenho da UE em tomar medidas decisivas para erradicar a pobreza até 2010.
Há três meses, o inquérito Eurobarómetro revelava que 62 por cento dos portugueses diziam ter alguma dificuldade em viver com o rendimento doméstico mensal, enquanto 15 por cento consideravam ser difícil.
Por outro lado, o inquérito europeu refere que em Portugal 88 por cento dos inquiridos consideram que a pobreza é um problema internacional. As estimativas no país apontam para dois milhões de pobres.No Ano Europeu da Luta Contra a Pobreza e Exclusão Social, Portugal gastará 700 mil euros para colocar o tema na agenda.
«O combate à pobreza e à exclusão social é um dos objectivos centrais da UE. A nossa abordagem comum do problema tem-se revelado um importante instrumento para guiar e apoiar a acção dos Estados-Membros», afirmou Vladimír Špidla, Comissário Europeu dos Assuntos Sociais. «O Ano Europeu irá ainda mais longe na sensibilização da opinião pública para a forma como a pobreza continua a assolar a vida quotidiana de tantos europeus.»
Na UE, há 78 milhões de pessoas – o correspondente a 16% da população – que vivem em risco de pobreza.
O Ano Europeu de 2010 pretende chegar aos cidadãos da UE e a todos os intervenientes públicos, sociais e económicos. São quatro os seus objectivos específicos:
Reconhecer o direito das pessoas em situação de pobreza e exclusão social a viver com dignidade e a participar activamente na sociedade.
Reforçar a adesão do público às políticas e acções de inclusão social, sublinhando a responsabilidade de cada um na resolução do problema da pobreza e da marginalização.
Assegurar uma maior coesão da sociedade, onde haja a certeza de que todos beneficiam com a erradicação da pobreza.
Mobilizar todos os intervenientes, já que, para haver progressos tangíveis, é necessário um esforço continuado a todos os níveis de governação.
Dados recentes dos inquéritos Eurobarómetro revelam que os europeus têm uma percepção da pobreza enquanto problema generalizado. Na UE, os cidadãos consideram que à sua volta uma em cada três pessoas (29%) vive em situação de pobreza e que uma em cada 10 sofre de pobreza extrema. Em todos os Estados-Membros, parte da população está sujeita à exclusão e a privações, enfrentando frequentemente restrições no acesso aos serviços básicos. 19% das crianças estão em risco de pobreza e uma em cada 10 vive em agregados familiares onde ninguém trabalha.
A solidariedade é uma imagem de marca da União Europeia. Os modelos europeus de sociedade e de previdência têm por objectivo intrínseco fazer com que as pessoas beneficiem do progresso económico e social e para ele contribuam. A construção de uma Europa mais inclusiva é vital para a consecução do objectivo do crescimento económico sustentável, de mais e melhores empregos e de maior coesão social.
O processo europeu de protecção social e de inclusão social apoia os Estados-Membros nos seus esforços em prol de maior coesão social na Europa, através do método aberto de coordenação. No período compreendido entre 2007 e 2013, serão distribuídos cerca de 75 mil milhões de euros provenientes do Fundo Social Europeu e destinados aos Estados-Membros e às regiões.
A edição de 2010 do Ano Europeu coincide com a celebração dos dez anos da estratégia de crescimento e emprego da UE. As acções empreendidas durante o Ano Europeu reafirmarão o empenho político inicial da UE quando foi lançada a estratégia de Lisboa, em 2000, no sentido de produzir um «impacto decisivo no que respeita à erradicação da pobreza» até 2010. O Ano Europeu marca também o lançamento de um processo que foi anunciado na Agenda Social 2005-2010.
Publicado no Jornal “Público” de 1 de Janeiro de 2010 e no site da UN