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Eugénio Lisboa, 2017 |
… viajar é sempre um desafio mental, e
até no que tem de mais difícil viajar pode ser uma iluminação.
Paul
Theroux, A
Arte da Viagem
Os viajantes mais apaixonados também
são sempre leitores e escritores
apaixonados.
Paul Theroux, A
Arte
da Viagem
Viajar
com Eugénio Lisboa
Assisti , em 21 de Fevereiro, à apresentação do último livro de Eugénio Lisboa, “Diário de Viagens Fora da Minha Terra”, no Cine-Teatro Garrett, durante o Festival Literário Correntes
d’Escritas. Contrariamente ao famoso desafio
lançado pelo patrono deste
Teatro, Almeida Garrett, em “Viagens da minha Terra”, Eugénio Lisboa convida-nos a viajar fora da
sua ( nossa) Terra.
Aceitamos o convite e,
sem que tenhamos partido, tomamos conhecimento de que esta obra diarística é composta por entradas relativas a viagens realizadas
durante o período abrangido pelo último e V volume das Memórias do autor. Trata-se,
por isso, de um anexo àquela obra .
Curiosos, partimos,
então, em viagem com Eugénio Lisboa. O voo primeiro destina-se a Montevideo. O
registo do “Diário de Montevideo “ abre-se
a 14.09.1996
Voando
para Montevideo.
Ontem
todo o mundo avisava que era sexta-feira, dia 13. Cuidado, o melhor é não sair
de casa. Apesar dos avisos, saí para o aeroporto. A viagem era com escala por Madrid. Chegava ali às
21h15 e partia para Montevideo às 23h00. À chegada, a surpresa: havia um atraso
grande e a partida de Madrid ficava para as 7h00 da manhã seguinte. Noitada no
“Hotel Barajas”. Estava confirmada a previsão de azar. “Que las hay, las hay”,
dirão os supersticiosos…
Nesta
celebração pessoana, que vai ter lugar em Montevideo ( capital da cultura da
América Latina, em 1996) , estava prevista a vinda do Saramago que, afinal não vem.
Porque seria? A mim torna-me a viagem simplesmente mais agradável.
Eugénio Lisboa ia a
Montevideo para participar num Seminário sobre Fernando Pessoa. Com ele, outros
palestrantes que se lhe juntariam em
interessantes conversas e em passeios pela cidade:
15.09.1996
O
dia está chuvoso e feioso. Chegado ontem à noite, depois de uma viagem
tormentosa e alongada de 10 horas em cima das já muitas previstas, entrei no
hotel, arrasado, de barba de mais de 24 horas – e dei com a Cleonice (
Berardinelli) e a Leyla ( Perrone Moisés), no hall, discutindo pormenores. Fui
tomar banho, lavar os dentes, fazer a barba e desci para o jantar. Conversa
animada e very friendly. Falámos de pessoanos e de feridas e intrigas
pessoanas.
(…)
Montevideo parece uma cidade bem maior e
mais interessante do que o meu preconceito
e a minha ignorância tinham feito supor.
Já Flaubert dizia
–“Viajar torna uma pessoa modesta – vê-se como é pequeno o lugar que ocupamos
no mundo. “ Acompanhar Eugénio Lisboa nunca deixa de ser um exercício de
aprendizagem e de intensa descoberta.
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Montevideo |
19.
09.1996
O
seminário chega hoje ao fim. (…) Hoje, falo eu, no fim. Estarão todos já
cansados e fartos e mortos por se rasparem para casa. E eu a debitar-lhes as
náuseas e os exílios de Pessoa.
(…)
Ontem, com o Fernando Martinho e a Cleonice, fui, pela segunda vez, ver o Museu
Torres Garcia. A secção de retratos é impressionante: o Goya, o Filipe II, o
Leonardo, o Cézanne, o Greco e o Ticiano nunca mais me “aparecerão” a não ser
nos traços inesquecíveis que lhes deu Torres Garcia. É, sem dúvida, um grande
pintor.
Na
manhã de ontem, passeio, compra de algum artesanato e visita à Biblioteca Nacional, com a
Cleonice. Investigámos um pouco o ficheiro. Eça de Queirós, bastante bem
representado ( 1,5 cm de fichas). Machado de Assis, ainda melhor (2 cm de
fichas). De Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, quase nada. De
Pessoa, alguma coisa (pouca), mas nada do núcleo duro. Apenas o “Fausto”, “ O
Banqueiro Anarquista” e quase mais nada.
Eugénio Lisboa dissertou
sobre Fernando Pessoa, numa alocução subordinada ao título “ O exílio e o reino”,no final do Seminário, conforme estava previsto. Abriu e fechou este
evento com a claridade e justa sabedoria
que lhe permite o seu extenso conhecimento e farta cultura. Dissertação que foi
saudada e assaz ovacionada por todos os presentes.
Entretanto, as viagens
prosseguem. Esperam-nos Los Angeles, Peru, Viena, Budapeste, Praga, São Tomé ,
Havana, Paris e Marrocos.
Se Peru, Viena,
Budapeste, Praga e Havana foram viagens de recreio ou de carácter pessoal, as
restantes tiveram como finalidade a intervenção em eventos culturais ou literários. No entanto, há em todas estas
viagens um traço comum , um denominador de intensa riqueza: o olhar perspicaz e
profundo de um grande intelectual. Ver através desse olhar é ver diferente.
Senão vejamos:
Diário de Viagem ao
Peru
22.08.2005
No
avião, a caminho de Lima, via Caracas. Chegaremos à Venezuela, dentro de pouco.
Agosto – o avião à cunha. O turismo de massa: um dos monstros congeminados pelo século XX e agravando-se imparavelmente
no XXI.
Durmo
e leio, leio e durmo. Faço quadriga romana entre o TLS e um romance de Ludlum, “
The Prometheus Deception” . Desconforto máximo- desejo que isto acabe de
pressa. E pensar que ainda vai haver regresso.
No
TLS debate, pela décima milionésima
vez, sobre se foi Shakespeare quem
escreveu as peças e os sonetos. Um dos autores recenseados afirma ter gasto
trinta anos de investigação meticulosa e
rigorosa para demonstrar que o autor de “ Macbeth” foi Francis Bacon. Trinta
anos para chegar a um erro obviamente clamoroso. A aventura humana é também
feita disto.
24.08.2005,
Há
dois dias em Lima.
(…)
No aeroporto, estava a Geninha ( a
filha mais velha de Eugénio Lisboa) à
nossa espera, de táxi em riste. Com todo o gás do costume, levou-nos para a
nova casa, no mesmo condomínio que já conhecíamos e, em tudo, semelhante à
anterior. As “ macnetas” estavam à nossa espera, acordadas e bonitas.(…)
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Pachacamaca |
1.09.2005
Lima
Hoje,
passámos a manhã em Pachacamaca, a ver as ruínas do que foi um pequeno reino
dos Incas. A pirâmide , de que pouco resta,
o templo do sol, o templo da lua (com a espécie de convento, onde as
crianças eram sacrificadas e algumas “preparadas” para o sacrifício aos
deuses).
Os
sacrifícios… a quantidade de gente morta
(assassinada), a bem de um gesto feito aos deuses, sem a mais pequena possibilidade de verificação de que
tal gesto fora “ desejado” por um deus
que só supostamente existia e que só supostamente o tornaria eficaz. A
monstruosidade de “ todas” as religiões, que têm , ao longo dos séculos ,
promovido mortes, perseguições, torturas, martírios, sacrifícios, guerras
massacres – em nome de um algo cuja
existência não se consegue provar e que tudo indica não passar da
criação tosca de espíritos amedrontados e um tanto mais fanáticos e
cruéis quanto mais inseguros.
Pachacamaca
e a memória de crianças assassinadas por decisão de chefes ignorantes e, à sua
maneira, bem-intencionados. Não muito diferentes, nisto, da monumental
estupidez dos suicidas muçulmanos que se esforçam, hoje com outras armas, por
fazer regressar o mundo à idade das trevas.
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Viena, Albertinaplatz ( Museu Albertina e Café Mozart) |
No Diário de Viagem a
Viena, Budapeste e Praga, Eugénio Lisboa viaja com a mulher numa romaria
particular que, apesar do encanto que lhe despertam esses lugares, não deixa de
realçar, com insistente agudeza, os efeitos maliciosos da globalização.
11.06.2006
Viena
Chegámos
aqui, ontem, às duas da tarde.
E, do aeroporto, dirigimo-nos ao centro
da cidade. Almoço no “ Café Mozart”, de greeneana memória, e passeio pelo
“calçadão”.
Entrada
numa livraria e visita rápida à Igreja de S. Stephan. À noite, jantar “típico”,
isto é, um “schnitzel” intragável e uma sobremesa medíocre. Salvou-se o vinho –
pago à parte.
O
que vimos de Viena, charmoso que baste, mas, como tudo, conspurcado pela
globalização, que arrasta as mesmas cadeias do mercado para todo o lado. O “Café
Mozart” e a “Albertina” não têm de conviver, lado a lado, com o “ H&M"
nem com a “Zara”.
Hoje
vamos sair e ver, entre outras coisas, o “Prater”, que eu só conheço das
novelas de Arthur Schnitzler.(…)
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Praga |
15.06.
2006
Praga
A
grande cidade imperial, a de todas as pompas, mas , também, a de todas as
frustrações, infortúnios e depressões. A de Kafka, que andou por aqui sem andar
por aqui. Que aqui viveu, sem nunca ter vivido ou tendo vivido de um modo
“estranho” a tudo o que se chama viver. (…)
Manhã
inteira passeando a pé. Visita à catedral de São Vito, castelo, Praça Velha, o
relógio monumental…Acabámos na Praça Venceslau, onde almoçámos, no “Restaurante Pelikan”, voltando para o hotel, estafados. São Vito é um
espectáculo impressionante. Pobre Kafka, que acolhimento podia toda esta
grandiosidade dar às tuas humilhações, ao teu não-ser, às tuas perplexidades e
hesitações, ao teu sentido do absurdo? Capital pomposa
de um império pomposo, vaidoso e cruel – como podias tu simpatizar com a
vulnerabilidade estupefacta do autor de “ O Processo”? Que haveria de comum,
quanto mais de cúmplice, entre a força bruta de toda esta beleza maciça e um
frágil judeu, perdido de perplexidade perante uma existência que, para ele, não
fazia grande sentido?
As viagens sucedem-se .
Evocações, observações e preclaras impressões soltam-se com elegante insistência , fazendo-nos sentir que acompanhar Eugénio Lisboa é um imperdível privilégio. Em Paris, leva-nos ao Grand Palais para ver
a exposição dedicada a Courbet e registar o seguinte: Poucos
quadros vira dele, ao natural,e as suas
assombrosas “paisagens” não reproduzem bem, em livro. Que admirável – e
forte, poderoso – paisagista! Os seus rochedos, o sombrio dos seus recantos
arborizados não têm melhor em toda a pintura. E o retratista é também de monta.
Uma revelação.
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Paris |
E despede-se de Paris,
embora , sem o prever, ali retorne em
2012.
24.11.2007
Partimos
esta tarde. Adeus Paris: foi bom ter-te conhecido, em 1953, ter-te visitado,
depois, uma dúzia e meia de vezes e ter estado contigo, agora, mais uma – que
será, provavelmente, a última. Que milagre ter nascido e que milagre maior ter
nascido entre aquele número muito reduzido de pessoas a quem foi dado conhecer
cidades e tesouros como tu, Paris: com a tua cultura, a amplidão dos teus
boulevards, a tua saborosa comida, o teu Sena, os teus “bouquinistes” e até a tão francesa desenvoltura,” mal elevée”,
de tantos dos teus habitantes.
Todo este livro é um
guia de inexcedível riqueza. As anotações
surgem ora em perscrutador olhar sobre
a realidade que se lhe apresenta, ora em rica observação, enformada por um conhecimento
profundo dos referentes culturais do país. Todas se somam e se
agregam num singular e precioso
contributo para um diferente e mais completo entendimento de um país a
visitar. Eugénio Lisboa desperta-nos o desejo adormecido que há séculos viaja
no coração do homem: a descoberta do mundo.
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Rabat |
Termina este magnífico
Diário com a viagem a Marrocos, ( Junho
de 2013), da qual o autor pouco registou, conforme explica nas últimas páginas:(…)
Rabat e Marraquexe. Foi uma verdadeira
descoberta. Infelizmente , não guardei desta visita, grandes apontamentos de
diário: o calor sufocante e desgastante, próprio daquela época e daquele clima
norte-africano mas , talvez também, o deslumbramento que tudo me causou –
deixaram-me , quase sempre, à noite, sem
grande energia para registos diarísticos.
O que aí fica – e é pouquíssimo – nem sequer dá conta , o que é cruelmente
injusto, do motivo central da minha visita : proferir , em francês, uma conferência
sobre Fernando Pessoa, no centro cultural da embaixada. Conferência que proferi
perante uma sala cheia e interessada, ao
abrigo de uma organização impecável, a que não faltou uma evocação escultórica,
muito imaginativa, do universo doméstico-criativo de Pessoa.
Um desassombrado livro
de viagens a ler, um magnifico diário a descobrir, uma obra de extraordinária relevância para todos aqueles
que gostam de saber como se construíram os dias de um culto e arguto viajante,
em diferentes viagens pelo mundo.
“Diário
de Viagens Fora da Minha Terra”
Autor:
Eugénio Lisboa
Editora
: Opera Omnia
Publicação:
Fevereiro de 2017