terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Ucrânia


UCRÂNIA

A coragem de David
contra o gigante Golias
é o milagre que agride
as loucuras do messias.

Ser pequeno é uma forma
de fingir que não é grande:
quem é são não se conforma
com besta que se desmande
                         01.03.2022
Eugénio Lisboa, in poemas em tempo de guerra suja, Guerra & Paz Editores, Setembro 2022, p 20

Quase um ano decorreu  sobre o incompreensível e cruel início da invasão à Ucrânia pela Rússia de Putin . Um país de grande extensão , diverso e de irrefutável  beleza está a ser violentamente destruído pelas mandíbulas impiedosas das armas russas.  
Para que a memória dos homens não adormeça, é preciso rever  como era a Ucrânia antes deste bárbaro acontecimento. Um país belíssimo, "com Património Mundial da UNESCO, catedrais gloriosas, igrejas ortodoxas, exuberantes colinas arborizadas", de soberba cultura e  de grande riqueza natural. Composta por "cidades vibrantes, castelos antigos, paisagens deslumbrantes" e  uma valiosa diversidade de paisagens, a Ucrânia recebia quem a visitava, com gentileza  e simpatia,  convertendo-a num  destino especial, independentemente dos seus problemas.

Ukraine  Before War - The 10 Most Beautiful Places in Ukraine, ou seja , como eram as mais belas cidades da Ucrânia antes da guerra, num registo dos "Around The World" 
Ukraine Before War - The 10 Most Beautiful Places in Ukraine :
 1. Lviv - The largest city in western Ukraine and one of the most beautiful cities in the country. 
2. Kyiv - The beautiful capital of Ukraine. 
 3. Odesa - A pretty port city on the Black Sea. 
 5. Kharkiv - The city is known for Freedom Square, which is one of Europe's largest squares
 6. Chernivtsi - One of the hidden gems of Western Ukraine. 
7. Poltava - A city steeped in military history due to a legendary battle in the 18th century between Sweden and Russia. 
8. Vorokhta - An urban-type settlement and one of the best places to visit in Ukrain
9. Uzhhorod - Known for its cherry blossom festival. 
10. Zhovkva – One of the most interesting small historical towns in Ukraine.

                                                 A actual Mariupol destruída pela guerra

Mariupol: a cidade antes da guerra. 
   

Mariupol:The City of Mariupol Before War | Mariupol - History And Development by the Around The World.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

CATÃO, O JOVEM

Catão , o Jovem
CATÃO, O JOVEM
 
Ao General Ramalho Eanes, modelo de integridade, 
na  democracia, em Portugal.
 
Catão foi modelo de discrição,
de integridade e de coragem.
A sua vida foi uma viagem
de simplicidade e de reflexão.
 
Desde muito novo, odiou os tiranos
e dispôs-se a esfaquear Sila,
apesar dos seus muito poucos anos:
perante o mal, o herói não vacila.
 
Tinha a grandeza dos que se apagam
e se não chegam à primeira fila.
A Catão, os veludos não afagam
 
e, em face da morte, não oscila,
se, à sua volta, o mundo apodrece
e, da limpa honra, César se esquece!
                                30.01,2023
Eugénio Lisboa

O Amor aos Sessenta

 
Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.
 
Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos
 
contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda 

que se fecha no espaço deste sol às estrelas
e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem. 

Alberto da Costa e Silva, in Poemas Reunidos, Nova Fronteira/Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2000

domingo, 29 de janeiro de 2023

Os grandes textos


Os grandes textos
 
Tous ces textes qui font le silence autour d’eux
Et dont l’odeur des ans et des peuples s’exhale…
              Victor Hugo
 
Os grandes textos, que vêm de longe,
os que realmente nos iluminam,
escritos por libertino ou monge,
são grandes não só pelo que ensinam.
 
Eles visitam nossas emoções,
alteram o nosso modo de ver,
desassossegam as nossas visões,
dão outro sentido ao nosso viver!
 
Exala-se deles o odor dos anos,
dizia o enorme Victor Hugo,
que soube glosar triunfos e danos
 
e de quem se guarda, mesmo , o refugo.
Os grandes textos sabem ofuscar-nos
e exaltar-nos, mas nunca cegar-nos!
                                  29.01.2023
Eugénio Lisboa

Ao Domingo Há Música

 

faríamos do sonho e do amor
não apenas esta renda serena de espera,
mas um sol sobre dunas e limpo mar, imóvel,
alto, completo, eterno,
e não o pranto humano.
Alberto Costa e SilvaPoemas reunidos

As palavras do  poeta e os sons do piano Steinway conjugam-se em perfeito convite ao sonho, neste último  domingo de Janeiro.
Lang Lang, numa magnífica interpretação de Rêverie, de Claude Debussy ,  na Steinway & Sons Black Diamond Limited Edition.
 

sábado, 28 de janeiro de 2023

Os caminhos da pertença


Os caminhos da pertença
 
          
           Dedico este soneto aos meus obstinados comentadores.
                     Atacando-me, fazem-me viver!
 

Os crus ideólogos só conspurcam
os textos que lêem e não percebem:
se os textos, por acaso, bifurcam,
os ideólogos não os recebem!
 
Eles só gostam de fortes certezas,
só coisas muito simplinhas e burras;
coisas complexas e ricas surpresas
não são boas pra gentes casmurras!
 
Um texto ou bem que serve ou não serve:
se serve um grupo ou um partido,
logo o bom do ideólogo ferve!
 
Mesmo falando do amor mais benzido,
importa é que ele seja do partido
e não seja por outros repartido!
                            28.01.2023
Eugénio Lisboa 

SIT TIBI TERRA LEVIS

SIT TIBI TERRA LEVIS
 
A estupidez coloca-se na primeira fila, para ser vista;
a inteligência coloca-se na rectaguarda, para ver.
                                           Bertrand Russell
 
A estupidez humana é infinita,
dizia-o um grande cientista.
Ela é-o, mesmo se erudita,
narcisista, fascista ou masoquista.
 
Ela não muda de opinião,
porque isso é sempre doloroso:
é bem mais fácil ter sempre razão,
ainda que tê-la seja merdoso.
 
A teimosia é o condimento
que é mais presente na composição
da estupidez: não paga emolumento
 
e levanta-se, se dá tropeção.
O teimoso nunca percebe nada,
mas anda sempre erecto na parada!
                               27.01.2023
 Eugénio Lisboa

Um mundo único


Carta ao Futuro
por Vergílio Ferreira
«O que há a redimir é a adequação deste milagre brutal de nos sabermos uma evidência iluminada, de nos sentirmos este ser que é vivo, se reconhece único no corpo que é ele, na lúcida realidade que o preenche, o identifica nas mãos que prendem, na boca que mastiga, nos pés que firmam, de nos descobrirmos como uma entidade plena, indispensável, porque ela é de si mesma um mundo único, porque tudo existe através dela e é impossível que esse tudo deixe de existir, porque ela irrompe de nós como a pura manifestação de ser, e o «ser» é a única realidade pensável — o que há a redimir é a adequação desta fantástica evidência que nos cega e a certeza de que ela está prometida à morte, de que o seu destino é a impossível e absoluta certeza do não-ser, da pura ausência, da totalidade nula, da pura irrealidade. Colaborar com a vida, aceitar a validade de uma norma, forjar uma regra para a distribuição da nossa acção e interesse - sim. Mas é impossível, antes disso, desviarmos  os nossos olhos da fascinação  da vertigem , e vermos , vermos bem, de que fundas raízes gostaríamos  de entender tudo quando realizássemos. É uma tentativa absurda , meu amigo, toda a gente no-lo diz - toda a gente que desconhece essa força que nos fascina. Mas eu sei que só se é homem , plenamente , quando se sabe . A  escala de tudo quanto povoa a terra estabelece-se-nos aí, no saber. A ilusão da plenitude , a ficção de uma quotidiana  divindade, essa que se define por uma certa instalação na permanência, forja-se apenas de uma inconsciência animal. Somos homens, não somos deuses nem pedras. Se a grandeza  que nos coube  foi essa ao menos de  saber , conquistemo-la até onde , nos limites das evidências primeiras , ela se nos anuncia. E se o "absurdo" é a face desses limites , assumamo-lo como quem não rejeita nada do que é ainda nós próprios.  A cobardia não está em assumir esses limites , mas em recusá-los , como o não está em reconhecer uma doença, mas em não fitá-la de frente. Só se é justo, »corajoso, pela assunção consciente do que nos ameaça e por isso o bruto não é heróico. O "para quê" que  nos antepõem todos os homens sensatos implica um programa utilitário de todo o instinto prático e animal. Mas nós , contra tudo o que povoa a terra, temos o fulminante poder de sabermos quem somos. É aí que cabe a nossa interrogação, fascinante e sem limite."  
Vergílio Ferreira, in Carta ao Futuro, Livraria Bertrand, 1981,pp.66-

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Vide 'o mare quant'è bello

Surriento, Itália
Vide 'o mare quant'è bello 
Spira tantu sentimento 
Comme tu a chi tiene a mente
Ca scetato 'o faie sunnà 

Guarda qua, chistu ciardino 
Siente, sì sti sciure arance 
Nu profumo accussì fino 
Dinto 'o core se ne va 

E tu dici "io parto, addio!"
 T'alluntane da stu core
 Da sta terra de l'ammore
 Tiene 'o core 'e nun turnà
 
Ma nun me lassà 
Nun darme stu turmiento 
Torna a Surriento.
Famme campá!

Não me deixe/ Não me dê este tormento/ Volte a Surriento/ Deixe-me viver! Assim cantam as palavras, em exortação à vida. Não mais tormento. É preciso evitá-lo e regressar a uma ditosa Surriento: Vide 'o mare quant'è bello /Spira tantu sentimento! 

Hauser e Caroline Campbell interpretam Torna A Surriento, famosa composição de Ernesto De Curtis, no "HAUSER & Friends" Gala Concert, no Arena Pula, Croácia, em Agosto de 2018. Acompanha-os a Zagreb Philharmonic Orchestra, sob a direcção do Maestro Ivo Lipanovic. Arranjos de Hauser e Filip Sljivac.

.
E a mesma composição, Torna A Surriento,  interpretada pela voz ímpar de Luciano Pavarotti , que lhe confere uma outra e distinta beleza.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Ode ao rebanho

 
Ode ao rebanho
(REDONDILHAS BEM INTENCIONADAS)
 
Pensar é só excepção
à tendência bem normal
de repelir a razão
que serve pra fazer mal.
 
A turba prefere seguir
a palavra do profeta:
obedecer faz sentir
tudo bom como chupeta.
 
Pensar por si faz doer,
dá trabalho e faz suar:
caminho próprio fender
é perigoso e dá azar.
 
Obedecer ao rebanho
dá conforto e sossego:
é bom como tomar banho
e não cria desapego.
 
Possuir ideias suas
é solene atrevimento:
exige boas charruas
e algum discernimento.
 
Sê por isso bem mandado,
bom menino e bem fodido:
pensar por si é pecado
e torna-se aborrecido!
               26.01.2023
Eugénio Lisboa

A mulher da vida de Eugénio de Andrade


  Eugénio de Andrade, por José Viana

(No centenário de Eugénio de Andrade, recorda-se um interessante texto, publicado a 11 de Abril de 2007.)
Ela foi a mulher da vida de Eugénio de Andrade
por Inês Nadais 
"Houve duas figuras femininas no mundo de Eugénio: a mãe e Ana Maria Moura. Esta é a história dela e dos 30 anos que passou com ele. 
Se Eugénio chegasse hoje a casa, encontraria tudo como deixou: as chaves no móvel do corredor, a lata de chá inglês na cozinha, o roupão pendurado num cabide da casa de banho, os comprimidos para dormir na mesinha-de-cabeceira, os óculos em cima da secretária, a última remessa de livros da Assírio & Alvim na mesa do café e a gata, Miki, ao sol, no sofá.Provavelmente voltaria a chamar por Ana Maria Moura - "Anda para cima, fecha o quiosque" - e ela subiria. Também está onde ele a deixou, há quase dois anos.
Ana Maria Moura nunca esteve preparada para perder Eugénio de Andrade - ainda não está. "Vou ao cemitério todos os dias: mudar a água, mudar as flores, falar com ele. Sei que não tenho resposta, mas se não for lá, se não estiver com ele, não me sinto bem", diz, sentada num sofá desfigurado pelas unhas da última gata de Eugénio, que também anda por ali, como ele: "Às vezes ainda ouço a voz dele, quando estou sozinha. Estava constantemente a chamar por mim." Não é a única a contar essa história, a história dos anos maus entre o segundo e o primeiro andar da casa do Passeio Alegre: "(...) Ela percorria/ com todo o terror do desalento diário/ cada corredor por que me guiava,/ firme, com o denodo da amargura./ Ele conheceu-me e não me disse nada./ Pediu (sempre devia pedir à sua protecção)/ com um filtro de viço, 'Ana, a antologia, a do gato, que lhe dediquei' (...)/ Viu quanto eu o via entregue à pessoa do mundo que melhor o merecia/ Aquela mulher. Com o Gil dera-lhe um neto/ e de vária difamante mentira o protegeram/ (a homossexualidade nunca teve democracia em Portugal) (...) Além da mãe, foi a única figura feminina/ por aquele homem trancado consentida (...)", escreveu o poeta Joaquim Manuel Magalhães num texto incluído em A que Cuida - Poemas para Ana Maria Moura em homenagem a Eugénio de Andrade, a antologia que a editora Modo de Ler lança hoje, às 21h30, na Cooperativa Árvore, no Porto, no âmbito do programa de comemorações dos 60 anos de As Mãos e os Frutos.
Nunca se tinha falado tanto dela. Mas ela continua a só querer falar de Eugénio como se não houvesse vida além dele. E por um lado não há: cuidar dele foi a única missão impossível de Ana Maria Moura. "Fiz tudo o que pude para não o perder. Sabia que era impossível, mas fiz tudo", sublinha. Agora faz tudo o que pode para o recuperar: incluindo esta viagem. Foi há mais de 30 anos.
A família de Eugénio
Ana Maria Moura "estava para casar" quando conheceu Eugénio de Andrade. Tinha vindo para o Porto sozinha, com nove anos: "Nasci em Jazente [concelho de Amarante] a terra do Abade de Jazente, que também escrevia poesia. O Eugénio é que falava muito disso. Éramos oito irmãos, uma família muito pobre, e eu vim trabalhar para o Porto: em confecções, em fábricas de calçado. Aos 14 anos fui para as artes gráficas. Só saí de lá quando o Eugénio quis que eu viesse trabalhar para a Fundação [Eugénio de Andrade], para não ficar tanto tempo sozinho. O meu pai tinha morrido muitos anos antes. Mas eu nunca tive muitos laços com ele, era uma pessoa difícil. O meu verdadeiro pai foi o Eugénio." Também tinha sido um pai ou pelo menos um padrinho para Gervásio Moura, o homem com quem Ana Maria casou. "Ele conhecia o Eugénio desde os seis ou sete anos. O [escultor] José Rodrigues tinha um atelier nas Fontainhas e a avó do meu marido morava perto, ele andava sempre por ali a brincar. O Zé às vezes chamava os miúdos para porem água no barro, dava-lhes umas moedas. E o Eugénio, que estava muito pelo atelier, gostava do miúdo e ofereceu-se para ser padrinho dele. Na Páscoa dava-lhe sempre o folar."
Quando Ana Maria Moura teve o Miguel, a quem Eugénio de Andrade dedicou Aquela Nuvem e Outras, passaram a ser uma família. "Quando o viu pela primeira vez, o Miguel tinha cinco dias. O Eugénio ainda vivia em Duque de Palmela e quis que eu pusesse o menino numa manta que ele tinha estendido em cima do sofá. Queria mexer no Miguel, mas tinha tanto medo de lhe segurar. Adorava-o. Ainda tenho a primeira matrícula do meu filho no Colégio dos Órfãos, assinada pelo Eugénio - foi sempre ele o encarregado de educação do Miguel. Quando se reformou, também foi para ajudar a tratar dele. Ia buscá-lo ao colégio, dava-lhe o lanche, ajudava-o a fazer os deveres, levava-o ao centro de saúde quando tinha febre. Tinha uma preocupação de pai, de mãe, que às vezes até era exagerada: quando o Miguel ficava doente, o Eugénio ficava doente também."
Nessa altura, ainda não viviam juntos. Antes do jantar Ana Maria ia buscar o Miguel a Duque de Palmela e estavam os dois deitados no corredor a atirar berlindes à gata. Quando a Câmara Municipal do Porto lhe ofereceu uma casa, na Foz do Douro, para ele e para a fundação, Eugénio já não quis ir sozinho: a fundação ocupou o rés-do-chão, ele ficou no primeiro andar, Ana Maria, Gervásio e Miguel instalaram-se no segundo. "Queria a família perto dele, já tinha muito medo da doença, da velhice." Preparava o pequeno-almoço às 7h00 - "uma chavená de chá inglês, muito bom, que ele tomava de pé, na cozinha" -, sentava-se à secretária a trabalhar e à tarde, depois do almoço, Ana Maria obrigava-o a dar um passeio. Jantavam juntos, no segundo andar. "O Eugénio não comia muito, era uma pessoa regrada. E era com as coisas mais simples que ele se deliciava: os jaquinzinhos fritos, as cerejas, as ervilhas de quebrar cozidas com um pouquinho de pescada, melão, melancia. Mas era um doido por arroz-doce. Se houvesse arroz-doce no frigorífico, ele levantava-se de noite para comer um pratinho."
Lavar, vestir, alimentar
Mas isso era antes. Depois Eugénio adoeceu (tinha uma doença muscular degenerativa) e tudo mudou. "Enquanto ele esteve internado, eu era a última a sair do hospital. Ele estava ligado àquelas máquinas todas, não reagia a nada, mas eu nunca deixei de falar com ele. Quando saía, ficava na paragem à espera do autocarro das 20h45 e olhava para a janela, via os enfermeiros dentro do quarto e sofria terrivelmente por não estar lá. Na minha cabeça, eu podia protegê-lo. Quando veio para casa, ele não parava de chamar por mim. Eu entrava no quarto e ele ficava com os olhos brilhantes, parecia um menino."
Durante anos, ele tinha sido o pai de Ana Maria Moura. Passou a ser o filho: "O sangue dele não corre nas minhas veias mas era como se corresse. Eu pegava no Eugénio ao colo e era como se estivesse a pegar no Miguel." Fez muito mais do que isso: lavar, vestir, alimentar, sentar, deitar, tratar (e seria capaz de falar disso horas seguidas, minuciosamente, porque foram anos a fazer tudo). "Punha-o num cadeirão à janela, a ver o mar. Às vezes pedia-lhe para me dizer um poema e ele lá começava 'Tinha um cravo no meu balcão'... Levava-lhe o jornal todos os dias, insisti sempre com as notícias e com a música. Perguntava-lhe que livros ele queria. A última coisa que lhe li foi Camilo Pessanha. Gostei tanto que já reli três ou quatro vezes: vejo ali o Eugénio."
Os amigos do Eugénio também vêem ali o Eugénio, quando olham para Ana Maria. O Eugénio a comer um iogurte, ao fim da tarde, como no poema de Manuel António Pina. "Às vezes demorava três quartos de hora para lhe dar o iogurte, ele era como um passarinho. Depois deixou de comer. Mas no último aniversário, para festejar, comprei-lhe um pastel de nata e demos-lhe umas colherinhas. Só de creme. No último dia o Eugénio deixou de falar, mas estava consciente. Eu dizia: 'Eugénio, respira devagarinho', e ele ouvia. Já não lhe dei o leite. Às 3h30 [de 13 de Junho de 2005] o médico ucraniano que tínhamos aqui tocou à campainha, e eu percebi que tinha acabado. Ele já não estava vivo. Mas parecia feliz, tinha um sorriso muito bonito."
Agora é ela que não quer viver sozinha. "Preciso de estar perto das coisas do Eugénio. Quando tenho saudades, vou a casa dele, ponho um CD e sento-me lá com a gata ao colo."
Inês Nadais (texto) e Paulo Pimenta (fotos), publicado no  Jornal Público, 22 de Agosto de 2009

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

As minorias estúpidas

As minorias estúpidas
por Eugénio Lisboa
“Um representante estúpido de uma minoria respeitável não merece mais carinho do que um representante estúpido de uma maioria igualmente respeitável. Ser uma minoria não é uma virtude, do mesmo modo que o não é ser uma maioria. São factos da vida, não são méritos nem deméritos.
Vem tudo isto a propósito desta nova versão da “apropriação cultural” que é o facto de um papel de personagem trans, numa peça de teatro, só poder ser desempenhado por um actor, se este for trans. Que se impeça um actor trans de desempenhar um papel qualquer – trans ou não trans – é uma coisa diferente e reprovável, por ser uma injustificada discriminação. Mas que se considere que o papel de um personagem trans só pode ser desempenhado por um actor trans é do domínio da pura idiotice, porque é ignorar tudo sobre o que é teatro e o que é ser actor. Extrapolando as consequências desta ideia peregrina, um médico só poderia ser desempenhado por um médico, um padre por um padre, um criminoso por outro criminoso, um Hamlet só por um Príncipe da Dinamarca, um Othelo por um mouro (lá se ia pelo dreno abaixo a magnífica interpretação de Laurence Olivier), e os rinocerontes da peça de Ionesco por verdadeiros rinocerontes. Que estas ideias estúpidas surjam é do domínio da diversidade humana, mas que haja quem lhes dê alguma atenção carinhosa é do domínio do paternalismo mais suspeito. Uma idiotice é uma idiotice é uma idiotice, como teria dito Gertrude Stein, se alguém lhe aparecesse com estas tontices da apropriação cultural.
Em geral, estas ideias “luminosas” originam-se nos Estados Unidos da América e espalham-se rapidamente pela Europa, como fogo por palha seca. Nós somos sempre os últimos a absorver estas idiotices e fazemo-lo com o orgulho contente dos provincianos. Aqui há uns anos atrás, tivemos o orgulho de ser negro e, depois, o orgulho de ser homossexual e o “dever” de sair do armário (Eugénio de Andrade foi estupidamente vituperado por a sua poesia não ser ostensivamente homossexual…). Ora ser negro ou ser homossexual não são motivo nem de orgulho nem de vergonha, porque nem um nem o outro fizeram nada para Sê-lo: são-no, ponto final. Como o direito a preservar a sua vida íntima – caso de Eugénio de Andrade – é um direito a respeitar e vale tanto para o homossexual como para o heterossexual. Não há literatura homossexual nem literatura heterossexual, há só literatura, boa ou má. Não vejo que nenhum deles tenha vantagem em remeter-se para um gueto. Estas causas do “politicamente correcto” pertencem à categoria milenar e altamente reprovável da REPRESSÃO. São perigosas para a saúde mental e para a saúde tout court. E são, sobretudo, graves atentados à inteligência. Como falar com clareza e candura destas coisas faz mau sangue a muita gente que odeia pensar, preparo-me para o que aí vem. É fartar, vilanagem, como disse o outro em Alfarrobeira.”
Eugénio Lisboa, em 25 de Janeiro de 2023.

O escritor é um profissional


A literatura não é uma realização

"Não quero dizer que eu me realize na literatura. Fui para a literatura devido a uma dificuldade da fala. Eu era discriminado no colégio. Os directores chamavam meu pai e diziam: “Tire esse menino daqui, ele está sofrendo muito, é discriminado porque fala tudo errado”. E, realmente, eu falava tudo errado. Mas, quando comecei a escrever, vi que ninguém zombava de mim. Hoje, zombam, mas naquele tempo não (risos). Eu pedia para minha mãe fazer um bife à milanesa, para fazer isso e aquilo. Eu deixava recados. E vi então que a letra, a literatura era o meu destino. Mas isso foi uma circunstância minha. Tem gente que vai para a literatura acreditando que ela é uma suprema realização. Eu sou contra isso. Não acredito na torre de marfim. O escritor é um profissional, é um homem. Pode ser um artista, mas é um sujeito .

• A sociedade é corrupta
A sociedade tem que mudar, não os políticos. Porque nenhum deles, pelo menos daqueles que têm cargos executivos, está lá por conta própria. Todos têm aquilo a que se chama legitimidade. É evidente que sempre haverá o caso isolado de um camarada que comprou ou roubou votos, mas o grosso foi eleito, tem legitimidade. Eles representam uma sociedade e essa sociedade não quer se ver no espelho deles. A sociedade se julga uma vestal, uma matrona de Éfeso, uma rainha de Sabá, cheia de glória. A sociedade não peca, a sociedade não erra, a sociedade está sempre com a razão. E cobra dos seus representantes uma atitude que ela não tem. Porque a sociedade é basicamente hipócrita. Ela teve a capacidade de atravessar todas as eras sendo o algoz do indivíduo. Por mais que grandes homens ao longo da história — Cícero, Platão, Cristo, Maomé, Montesquieu — tenham tentado modificá-la, eles não conseguiram. É mais ou menos a tese de Rousseau: o homem talvez seja bom, mas a sociedade é corrupta e corrompe o ser humano. De maneira que não acho que seja o caso de os políticos melhorarem a sociedade. A sociedade é que tem que melhorar os políticos.

• Aos escritores
O escritor é como o poeta. Ele se faz. Ele pode, é evidente, aprender o mecanismo, a técnica de escrever correctamente. Pode tomar um modelo —Vieira, Rui Barbosa, Machado de Assis. Pode procurar imitá-lo inicialmente e, depois, adquirir autonomia. Tudo isso ele pode fazer. Mas se ele não tiver dentro dele aquele grau de observação, aquele poder de transubstancialização; se não souber pegar um detalhe ínfimo, pequeno, provisório, datado e transformá-lo em obra de arte, em coisa permanente; se não tiver nada disso dentro dele, ele terá que fazer outra coisa. Ele poderá ser um bom engenheiro, poderá ser um bom veterinário, poderá ser tudo, mas nunca um escritor."
Carlos Heitor Cony, na edição do  Paiol Literário de Agosto de  2009.

Carlos Heitor Cony

Sobre Carlos Heitor Cony

"Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro, em 1926 e faleceu em 05 de Janeiro de 2018, na mesma cidade. É filho do jornalista Ernesto Cony Filho
Em 1952, é redactor da Rádio Jornal do Brasil. De 1958 a 1960 é um dos jovens escritores que colaboram no SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil), com contos, ensaios, traduções. Em 1961, começa a trabalhar no Correio da Manhã, do qual foi redactor, cronista, editorialista e editor.  Com a revolução de 1964, é preso várias vezes e passa um período na Europa e em Cuba. Numa das prisões (em 1965), teve como companheiros, entre outros, Flávio Rangel, Glauber Rocha, Antonio Callado, Mário Carneiro, Jayme Azevedo Rodrigues, Márcio Moreira Alves, Thiago de Mello e Joaquim Pedro de Andrade.
Colabora por mais de 30 anos na revista Manchete e dirigiu Fatos & FotosDesfileEle Ela. De 1985 a 1990, foi director de Teledramaturgia da Rede Manchete, produzindo e escrevendo sinopses das novelas A Marquesa de SantosD. BejaKananga do Japão. Em 1993, substitui  Otto Lara Resende na crónica diária do jornal Folha de S. Paulo, do qual foi membro do Conselho Editorial. Comentarista diário da CBN, participava do Grande Jornal com o programa “Liberdade de Expressão”.  Como ficcionista, é autor de livros como O ventre, Tijolo de segurança, Informação ao crucificado, Antes, o verão, Pilatos, Quase memória, A casa do poeta trágico, Romance sem palavras e O adiantado da hora, entre outros. Escreveu romances, ensaios biográficos, contos, crónicas e adaptações de clássicos. É vencedor de prémios como   Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras  e  Nacional Nestlé de Literatura de 1997Ganha duas vezes o Prémio Manuel Antônio de Almeida, com os romances A Verdade de Cada Dia, em 1957, e Tijolo de Segurança, em 1958, bem como recebe por três vezes  o Prémio  Jabuti , em 1996, 1997, 2000. Os romances Quase Memória e A Casa do Poeta Trágico ganharam o Prémio “Livro do Ano”, em 1996 e 1997, conferido pela Câmara Brasileira do Livro. Em 1997 é Prémio Nacional Nestlé de Literatura  pelo romance O Piano e a OrquestraEm 1998, o governo francês condecorou-o com  L’Ordre des Arts et des Lettres. 
Foi o Quinto ocupante da Cadeira nº 3 da Academia de Letras do Brasil, eleito em 23 de Março de 2000, na sucessão de Herberto Sales e recebido em 31 de Maio de 2000 pelo académico Arnaldo Niskier."

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

De volta da guerra

De volta da guerra, o mundo mudou:
mudou o mundo e também o guerreiro,
a luz é outra, o sonho tombou
e o futuro vestiu-se de coveiro.
 
O fim da guerra não é recomeço:
a guerra acaba, mas não acaba
dentro de nós: ficamos do avesso
e, à volta de nós, tudo desaba!
 
A guerra faz mais mal do que o que faz,
destrói mais do que aquilo que destrói:
depois dela, há tudo menos paz
 
e fica sinistra a palavra herói.
Nenhuma guerra tem nunca um fim
se se copiou o crime de Caim!
                          24.01.2023
Eugénio Lisboa

Que de nós dois

Que de nós dois
O mais velho sou eu,
- É uma forma delicada
De dizeres que sou mais velho.
Ora é verdade
Ser eu quem tem mais idade.
Mas daí a ter juízo
Vai um abismo tão grande
Que é preciso,
com certeza,
Que o digas com ironia
E nenhuma simpatia
Pelo engano em que vivo.
O engano de ter rugas
E nunca fitar um espelho...
Vê lá tu que eu não sabia
Que sou dos dois  o mais velho.
Reinaldo Ferreira, in Poemas, Imprensa Nacional de Moçambique, Lourenço Marques, 1960, p.42

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

A lua vista pelos mortos

 
A lua vista pelos mortos
por António Lobo Antunes
" Na minha janela tantas gaivotas entre esta casa e o rio, às voltas, às voltas. Gaivotas e pombos. Às vezes parece que me espiam, querem falar comigo, dizer-me qualquer coisa importante que não sei. Se calhar que vivo mal e têm razão: vivo mal. O que fiz de mim? Em que gastei a minha vida. Às vezes tenho a impressão que até os retratos me censuram com olhos que pesam, medem. Agora, de repente, pareceu-me ouvir os pinheiros da Beira Alta, distinguir a minha avó numa casa qualquer lá em baixo, acenando-me. Os seus imensos olhos azuis nunca me ralharam. Esperam apenas. O quê? Hei-de voltar, senhora, palavra de honra que hei-de voltar uma tarde em que os sinos de São Miguel chamem mais baixinho. O que é feito do Colégio Grão Vasco? O que é feito de mim? Em pequeno tive um amigo Lafaiéte, um amigo Joiés, enquanto eu um nome sem importância alguma, António. Falcões da serra, quase pregados às nuvens. Noites cheias de vozes que segredam: são os castanheiros da casa, as tábuas da varanda para os campos. António é tão pequeno, tão pouco. Lá vai o Dom João Primeiro Borges, o louco da vila, a atravessar a nossa vinha, de barba horizontal ao vento. O Dom João Primeiro Borges nunca falou comigo, nem me olhava. Trazia sempre um pau grande para se proteger dos cães. Dormia onde calhava, numa vala, num pedaço de muro. O meu pai chamava-lhe
– Coitado
e eu invejava a sua intensa liberdade. De tempos a tempos gritava
– Sou imperador de todos os reinos do mundo
sem abrandar a sua marcha a caminho de nada, mas não desaparecia nunca, a rodar, a rodar. Velhas transportando lenha à cabeça, os mil murmúrios do pinhal. E, muito ao longe, o Caramulo. A minha mãe
– Não quero que se afastem daqui
não fôssemos cair num poço igual àqueles de onde, de vez em quando, se pescava um infeliz a pingar. Lembro-me de um só com um sapato
(o outro pé descalço)
e a cara escondida no forro do casaco, com a boca aberta lá dentro, enorme, a que faltavam dentes. O Pedro
– Tenho medo
e claro que tínhamos todos medo que o afogado nos comesse, com a mulher a gritar. Na estrada para Viseu gente de bicicleta penando numa subida enquanto o mundo inteiro chiava à volta deles. Não se usavam sapatos, usavam-se botas, menos o Joiés e o Lafaiéte, sempre descalços. E o vento senhores, o vento nos pinheiros tão magros do inverno, flores mortas, quase nenhum pássaro. O meu avô na varanda, diante das trovoadas na serra, a minha avó a rezar a Santa Bárbara Virgem, cheia de medo. Levantei a cabeça da mesa onde escrevo isto e lá continuam as gaivotas e os pombos. Dizem que um falcão também mas nunca dei por ele: tem todo o direito de não gostar da minha cara. Os olhos amarelos deles, as sobrancelhas severas como as da dona Irene, uma amiga idosa da família, quando tocava harpa. O próprio nome Irene parecia-me um acorde. A dona Irene cerrava as pálpebras ao beliscar acordes, de mãos a vibrarem como as asas dos pardais nas macieiras. A única frase que lhe ouvi foi
– Ai sim?
de cabelo pintado de loiro cujas raízes brancas cresciam. Parece que vivia com dificuldades de dinheiro e a tinta era cara. Explicaram-me que nunca casou mas que um agrónomo já velhote também, de uma terra perto, história logo interrompida por um
– Não tens mais nada para fazer do que ouvir as pessoas crescidas?
e de facto não tinha mais nada para fazer senão ouvir as pessoas crescidas, cheias de palavras incompreensíveis. Quando as palavras incompreensíveis se tornaram claras não lhes achei graça nenhuma. Graça tinha uma menina chamada Doroteia que não me ligava nem isto. Nem sequer me respondia. O que eu mais admirava nela era a capacidade de apanhar moscas com a mão. Isto em pleno vôo, não quando estavam poisadas, eu nunca fui capaz. É um facto: não servia mesmo para o que quer que fosse. Também não sirvo agora: olho as gaivotas entre a casa e o rio e é um pau. Então torno a meter o nariz no papel e acabo esta crónica”
António Lobo Antunes , em Crónica publicada na revista  VISÃO nº 1350, de 17 de Janeiro de 2019.

domingo, 22 de janeiro de 2023

Ao Domingo Há Música

Cagliari, Sardenha

Santa Margherita Ligure, Itália
" A conexão que Deus mantém  com o sublime  da paisagem é formulada  em termos perfeitamente  explícitos por um dos livros  da Bíblia. Num quadro de circunstâncias peculiares, um homem justo, mas desesperado reclama de Deus uma explicação para o facto de a sua vida se ter transformado numa incessante  acumulação de sofrimento. E Deus responde-lhe, propondo-lhe a consideração dos desertos e das montanhas , dos rios e glaciares, dos mares e dos céus. Raramente se exigiu dos lugares sublimes que assumissem o pesado fardo de enfrentar uma interrogação tão premente a tais dimensões."
Alain de Botton, in A  Arte de Viajar, Publicações Dom Quixote, 2004, p.169

A Música deste domingo aparece como suporte, como  suave fundo de um lugar sublime. Um lugar de muitos esplendorosos lugares que fascina e, por mais que se visite, tem sempre o encanto do primeiro olhar.
Acodem-nos as palavras de John Ruskin, (escritor, pintor, crítico de arte, professor e pensador inglês), 1819-1900 :  Creio  que a visão é mais importante que o desenho; e prefiro ensinar os meus alunos a desenhar de tal modo que aprendam a amar a natureza  a ensiná-los a ver a natureza de tal modo que aprendam a desenhar.
(…) A natureza pinta para nós, dia após dia, quadros de infinita beleza se tivermos olhos para ver."
 
Italy 4K , dos Scenic Relaxation Films , sobre um inspirador fundo musical .
"Aproveite este filme  relaxante em 4K, com os lugares mais bonitos da Itália. Das águas azuis cristalinas da Sardenha à história de Florença, a Itália o deixará admirado com os seus inúmeros tesouros. Qual é o seu lugar favorito de Itália? " 
 
0:00 - Intro 
12:17 - Tuscany
15:49 - Italian Riviera
17:29 - Sardinia 
20:41 - Amalfi Coast 
25:57 - Dolomites 
33:05 - Sicily 
38:21 - Calabria 
40:42 - Puglia & Matera 
45:09 - Ponza 
47:58 - Lake Como, Maggiore, & Garda 
51:56 - Vieste, Rome, & Venice 
55:21 - Umbria & Piedmont 
57:14 - Across Italy

sábado, 21 de janeiro de 2023

Um Poeta no Alentejo

Casa-Museu José Régio, Portalegre
 
Caro poeta do Alto Alentejo,
nesta pátria que à força escolheste,
teu magnífico e forçado ensejo,
de descobertas em que te escondeste,
 
neste fértil desespero, viveste
uma vida de solidão fecunda:
em magna aventura, tu cresceste,
dando-nos obra vasta e profunda.
 
Neste Alentejo, teu nobre brasão,
esculpiste grande parte dessa obra,
que preservar é nossa obrigação.
 
Dessa solidão criativa, sobra
um património cheio de memórias
de aflições que se volveram vitórias!
                                04.01.2023
Eugénio Lisboa

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Prelude


Há na nossa existência lugares do tempo,
Que preservam em clara permanência 
Uma virtude que renova...
Que nos penetra e faz subir mais alto
Quando é alto que estamos, e caídos nos levanta.
                Wordsworth, 1790

 

Vangelis , em Prelude & Losing Sleep (Still My Heart), do Álbum Voices (1995).
- Prelude (0:00)
- Losing Sleep (Still My Heart ) (4:27)

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Celebrar Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade por Júlio Resende

" Como alguns talvez saibam, sou um homem que nasceu e passou a infância em campos rasos onde cresce o trigo  - tenho a nostalgia do sul: a cal e as cigarras misturam-se na minha cabeça com o cheiro da resina das estevas. Quer-me até parecer que é naquelas oliveiras, naquelas figueiras, naqueles limoeiros, que os pássaros cantam com mais apuro, porque alguns dos seus cantos não têm mais sentido que celebrar a luz.  A memória  desses anos é a de uma relação perfeita do real de um corpo com a tangível verdade doutro corpo, como se a mão fosse o fiel  de uma balança  que nos seus pratos  equilibrasse a necessidade  do homem como a respiração do mundo. A mão que escreve o poema é idêntica à que cortou o feno e acariciou o focinho húmido das reses húmidas. "
Eugénio de Andrade, in A Sombra da Memória ,1993, Assírio &Alvim , p. 38
Há cem anos , a 19 de Janeiro de 1923 , na Beira Baixa, nasceu Eugénio de Andrade.   "Póvoa da Atalaia é a minha terra , fazia falta dizê-lo com o coração. Fica dito." (in A Sombra da Memória p.125)
Em 1932, muda-se para Lisboa com a mãe «figura crucial na sua vida e na sua poética. Naquela cidade, onde passará toda a adolescência, descobre a sua vocação literária e convive com alguns escritores e poetas. Publica, em 1940, Narciso, o seu primeiro volume de poemas, a que se seguem Pureza (1942) e Adolescente (1945). Destes três livros, depois de expurgados pelo autor, foram publicadas diversas composições numa antologia intitulada Primeiros Poemas, cuja primeira edição data de 1977.
Entre 1943 e 1946 Eugénio de Andrade encontra-se em Coimbra, onde estabelece relações de amizade com alguns dos maiores vultos da literatura e do pensamento portugueses da época, como Miguel Torga, Carlos de Oliveira e Eduardo Lourenço. Em 1947 torna-se funcionário público, exercendo durante os trinta e cinco anos que se seguiram as funções de inspector administrativo do Ministério da Saúde. Por razões de serviço, passa em 1950 a residir no Porto, cidade que adoptou desde então para viver e da qual é cidadão honorário."1
O Porto passa a ser a sua cidade.  É no Passeio Alegre, na Foz do Douro, que faleceu em 13 de Junho de 2005.
O rio Douro  e a foz são temas  de contemplação que desenvolve,  admiravelmente,  nesta já citada obra :
“Chega ao fim, o rio. Vem de longe só para morrer às mãos das vagas. Chega extenuado, o caminho é longo, nem sempre fácil, embora se demore muita vez a contemplar as margens, ora escarpadas, ora em socalcos verdes, entre oiro e carmim. Na foz esperam-no as gaivotas, mas sobre os seus flancos, onde o céu é mais fértil, as garças cinzentas seguem-no de perto – não sei dizer qual destas aves prefere para companhia. O que ele mais ama, sobre isso não tenho dúvidas, são aqueles álamos frios das terras de Sória, onde as suas águas são delgadas e jovens. Os álamos e a música que neles há, quando os anjos lhes acariciam as folhas, que tremem à sua aproximação. É com eles na alma, que se verga por fim o rio às águas salgadas da sua última morada.”
Eugénio de Andrade, in A Sombra da Memória ,1993, Assírio &Alvim - Porto Editora, p.149
Mas Eugénio é, por excelência, um poeta. Um poeta "com vocação e paciência: fixa, imóvel, atenta ao rumor da luz, do coração batendo ou simplesmente  das palavras , quando se juntam para acasalar. "
I
Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, e dos choupos,
carregados de sombra e rasos de água.
 
Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
– Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.
Eugénio de Andrade, in As Mãos e os Frutos (1948), Assírio &Alvim - Porto Editora, p 43
 
VIII
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.
 
Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.  
Eugénio de Andrade, in As Mãos e os Frutos (1948), Assírio &Alvim - Porto Editora,  p 50

XXIX
Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.
 
Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.
 
Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem
fundo, como quem bebe a madrugada.
Eugénio de Andrade, in As Mãos e os Frutos (1948), Assírio &Alvim - Porto Editora,  p 71
 
Elegia e Destruição
 
Desse tempo em que se permanece criança
durante milhares de anos,
trouxe comigo um cheiro a resina;
trouxe também os juncos vermelhos
que ladeiam a orla do silêncio,
neste quarto, agora habitado pelo vento;
trouxe ainda um olhar húmido
onde os pássaros perpetuam o céu.
 
 
Dificilmente esqueço a rua onde encontrei
os teus olhos imensos, fascinados
pelo fulgor secreto das espadas,
a casa onde te contei, de mãos trémulas,
a parábola do pão e do vinho,
dando a cada palavra um rosto novo.
 
 
A cidade onde te amei foi decepada
e não posso abolir as sentinelas do medo.
Mas também não posso deixar de te querer
com beijos e relâmpagos,
com sonhos que tropeçam nas paredes
e se alimentam de terror e de alegria,
enquanto o tempo persiste em soluçar.
 
 
Que me quereis verdes sombras da lua
na minha cama onde adormece o frio?
Aqui estou, mais alto do que o trigo,
sangrando nas pétalas do dia
e sem receio de que aos nossos gritos
ainda chamem brisa.
Eugénio de Andrade,  in As Palavras Interditas (1951) ,  Assírio &Alvim - Porto Editora, p 31


Metamorfoses da Palavra
A palavra nasceu:
nos lábios cintila.
 
Carícia ou aroma,
mal pousa nos dedos .
 
De ramo em ramo voa,
na luz se derrama.
 
A morte não existe:
tudo é canto ou chama.
Eugénio de Andrade , in Até amanhã, 1956 , Assírio &Alvim - Porto Editora, p 49
 
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