sexta-feira, 31 de maio de 2019

A tarefa da Filosofia

Introdução à História da Filosofia Ocidental 
por Bertrand Russell
"As concepções da vida e do mundo a que chamamos  " filosóficas" são produto de dois factores: um, herança de concepções religiosas  e éticas; outro, aquela investigação que pode ter o nome de "científica", usando o termo no sentido mais lato.Individualmente  os filósofos largamente divergiram na proporção destes dois factores nos seus sistemas , mas a presença de ambos em qualquer grau é o que caracteriza a filosofia. 
"Filosofia" é termo com vários sentidos, mais latos ou mais estritos. Usá-lo-ei no sentido lato que vou explicar.
Filosofai , como entenderei a palavra, é algo intermédio entre teologia e ciência. Como a teologia , consiste em especulações sobre matérias inacessíveis até agora ao conhecimento definido, mas como a ciência , apela para a razão de preferência à autoridade, quer da tradição quer da revelação. Todo conhecimento definido - assim o sustento - pertence à ciência; todo dogma , como o que excede o conhecimento definido, pertence à teologia.  Mas entre teologia e ciência  há uma terra-sem-dono, exposta ao ataque de ambos os lados: é a filosofia. As questões de maior interesse para espíritos especulativos raro têm resposta científica,  e as respostas confiantes de teólogos já não parecem tão convincentes como nos séculos anteriores. Estará o mundo divido em espírito e matéria, ou tem energias independentes? tem o Universo unidade ou fim? Evolve para algum objectivo? Há realmente leis da natureza, ou cremos nelas devido ao nosso inato amor da ordem? É o homem o que parece ao astrónomo, um pequeno conjunto de carvão impuro e água, a arrastar-se impotente sobre um pequeno planeta  sem importância? Ou é o que pensava Hamlet? Será as duas coisas ? Há um tipo nobre e um tipo baixo de vida , ou são todos meramente fúteis? Se um deles é nobre , em que consiste  e como realizá-lo? Deve o bem ser eterno para poder ser apreciado, ou merece procurar-se ainda quando o Universo caminhe inexoravelmente para a morte?Existe de facto a sabedoria ou não passa de requinte derradeiro de loucura? Não há resposta  em laboratório para tais questões.  Pretenderam teologias dar resposta , todas demasiado definidas, o que as torna suspeitas de espíritos modernos. Estudar essas questões , se não responder-lhes , é a tarefa da filosofia.
Mas então, dir-se-à, por que perder tempo com problemas insolúveis? Pode responder-se como historiador ou como homem em face do terror da solidão cósmica.
A resposta do historiador , tanto quanto posso dá-la , ver-se-à nesta obra. Desde que os homens  foram capazes de especular livremente, as suas acções em inúmeros aspectos importantes dependeram das suas teorias sobre o mundo  e a vida humana, assim como sobre o bem e o mal. Assim é hoje como foi antes. Para compreender uma idade ou uma nação  temos de compreender-lhe a filosofia, e para isso temos de ser em qualquer grau filósofos. Há aqui uma causalidade recíproca. As circunstâncias  da vida  do homem concorrem muito para determinar a sua filosofia, e reciprocamente , a sua filosofia determina em muito as suas circunstâncias . Esta interacção multissecular é o tópico das páginas seguintes.
Há no entanto uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos  o que sabemos , e é pouco; e se esquecermos quanto ignoramos ficaremos insensíveis a muitos factos da maior importância. Por outro lado, a teologia induz  a crer dogmaticamente que temos conhecimento onde realmente só temos ignorância, e assim produz uma espécie de impertinente arrogância  em relação ao Universo.A incerteza perante esperanças vivas e receios é dolorosa mas tem de suportar-se se quisermos viver sem o conforto de contos de fadas, Nem é bom esquecer  as questões postas pela filosofia , nem persuadirmo-nos  de que lhe achámos resposta indubitável. Ensinar a viver  sem certeza  e sem ser paralisado pela hesitação é talvez o mais importante dom de filosofia do nosso tempo a quem a estuda.
Filosofia, como distinta da teologia , começou  na Grécia , no século VI a. C. Depois foi de novo submergida pela teologia com a vinda do Cristianismo e a queda de Roma. O segundo grande período , do século XI ao XIV, foi dominado pela Igreja Católica, excepto alguns rebeldes , como o imperador Frederico II (1195-1250). Este período terminou pelas confusões que culminaram na Reforma. O terceiro  período,  do século XVII até hoje, é dominado , mais do que qualquer dos anteriores, pela ciência;  as crenças religiosas tradicionais continuam  a ser importantes mas necessitadas  de justificação e modificadas sempre que a ciência  o tornava imperativo. Poucos filósofos  deste período são ortodoxos do ponto de vista católico e o estado secular tem maior importância do que a Igreja nas suas especulações.[...]"
Bertrand Russell, in "História da Filosofia Ocidental, Volume I", Círculo de Leitores, Lisboa, 1979, pp.7-8

quinta-feira, 30 de maio de 2019

As pequenas utopias

As pequenas utopias
por Nélida Piñon
"Desde sempre ansiei por materializar as pequenas utopias do quotidiano que tinham por fim esclarecer as noções de pátria , de língua. Os conceitos que dão existência aos sentimentos , `cartografia da vida, impondo directrizes inaugurais.
O país do nascimento se faz de contradições e sombras. A língua, que o custeia , fala nos estábulos, nas feiras , nos prostíbulos, no território da cama e do berço, na jazida da paixão, locais que difundem esperança, honra, sangue derramado. Uma língua na qual se espelham as faltas humanas, o fardo histórico que nos circunda.
Tais considerações se devem a ser eu filha da imigração. Do projecto imigratório de quando os galegos , estabelecidos no Rio de Janeiro, eram fantasmas do exílio.  De quando os avós, já instalados na Vila Isabel, enquanto os pais , em Botafogo, ofereciam-me semanalmente a mesa farta. 
Ter nascido de uma família imigrante propiciou.me entender  as perspectivas da Europa no tempo do avô e do pai, que levaram a expulsar seus nacionais de casa. Questionei cedo qual teria sido o destino do continente europeu se não tivesse despejado os milhares de famintos nas terras americanas.  O quanto esta refinada Europa se nutriu do imaginário americano, do ouro e da prata, dos tesouros impensáveis , das batatas, dos tomates, do chocolate, dos mitos maia, inca , tupi-guarani, da narrativa e dos códices das civilizações autóctones.
Escondida às vezes nos recantos da casa dos avós , nunca os vi sangrar. Recolhiam  às pressas alguma eventual gota de suor e sangue. Minha mãe, Carmen, saiu a eles . Jamais a ouvi confessar o que era do âmbito da intimidade. Não admitia haver sofrido alguma desilusão que lesara o coração.Recolhia-se no próprio ser , que albergava com severidade. Seu amparo era subsistir próximo dos que amava. Não aceitava confidências, difundir segredos. Suspeito que o corpo para ela era sagrado. Até agora os efeitos destas vidas se irradiam em mim.
Volto à Europa. Pergunto que critério adoptar para responsabilizá-la pelas falhas existentes na América. Se as carências civilizadoras do nosso continente deviam ser creditadas no epicentro europeu.  Aos povos colonialistas que exerceram um domínio moralmente vergonhoso em África e nas Américas, cuja crueldade não merece esquecimento histórico.
Questiono igualmente se com o vencimento dos anos não é o momento  de nossos próprios países responderem pelas mazelas americanas.  E se não exercemos essa autocrítica é porque seguimos  sendo parte dos despojos desta Europa culta e colonialista.
Sou mestiça e gosto. Convivo com as elites brasileiras e as recrimino vivamente. Audazes no jogo da dissimulação, dos equívocos , eu não os perco de vista. Mas surpreendo-me com seus raros actos de grandeza.  São eles que aliançam, em conjunto com as classes populares , que minhas raízes brasileiras prosperaram a partir do bairro Vila Isabel onde nasci."
Nélida Piñon, in Uma Furtiva Lágrima , Círculo de Leitores, Fevereiro de 2019, pp 101-103

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Uma nova arte está para nascer

Paul Cézanne,"still life, pitcher and fruit",1894
Não custa nada imaginar que uma nova arte está para nascer
por Ferreira Gullar
11.12. 2016,  02h07
"Se eu tentasse entender o que hoje se chama de arte contemporânea -que, aliás, tem um número indeterminado de definições-, teria que me ater a dois factores fundamentais: a arte e a técnica.
Aliás, esses são os factores inevitavelmente presentes em todas as manifestações artísticas, quaisquer que tenham sido os rumos que elas tenham tomado.
Para me fazer entender melhor, devo me referir a alguns movimentos altamente significantes da arte ocidental que marcaram época e definiram o futuro dessa arte.
Um dos exemplos do que digo foi a fase da arte constituída pela pintura mural, quando a expressão criativa se confundia com o próprio processo de elaboração da superfície pintada, no muro.
Nessa etapa da pintura, tanto a matéria pictórica quanto a cor nasciam no mesmo material que constituía a parede. Como o próprio nome está dizendo, essa arte era própria do muro, ela nascia no muro, da terra, dos detritos, do pó colorido, enfim, de tudo aquilo que constituiria a parede de uma capela, do mural de um convento. Uma coisa dependia da outra. Não havia, consequentemente, a expressão pictórica autónoma, fora da parede.
Surgiu então a tela, o que significou por si só uma revolução da parte pictórica que duraria por séculos. Se levar em conta que, para realizar a pintura mural, era necessário o muro, imagine o que significou a descoberta da pintura a óleo, que, por sua vez, possibilitou pintar sobre superfícies autónomas, pintura que não dependia da parede, dando nascimento ao que se passou a chamar tela.
Como a tela não tem que estar inevitavelmente pendurada na parede, surgiu a possibilidade de o pintor realizar tantas telas quanto quisesse, onde lhe fosse permitido. Isso deu origem aos coleccionadores de arte e aos museus, que passaram a exibir e a manter em seus acervos dezenas e até mesmo centenas de obras pictóricas. Como se não bastasse, esse facto fez nascer o mercado de arte, que deu um impulso extraordinário às realizações pictóricas.
Além do mais, a pintura a óleo possibilitou o aperfeiçoamento técnico da pintura, emprestando-lhe o carácter realista nunca obtido antes. Não posso dizer se foi esse carácter realista que deu origem à fotografia -a verdade, porém, é que a capacidade que a fotografia possibilitava, não de imitar a imagem real, mas de captá-la, determinou uma verdadeira revolução na arte da pintura. De certo modo é daí que nasce a pintura impressionista, que determinaria uma mudança radical na história da pintura.
A partir de então, em vez de pretender copiar fielmente a realidade exterior, a pintura, por assim dizer, passa a inventá-la. De facto, uma paisagem de Monet não tem qualquer propósito de retratar o mundo objectivo tal como ele se apresenta à lente fotográfica, pelo contrário, os recursos pictóricos passam a ser usados para exprimir a experiência subjectiva no mundo real.
Nasce uma nova pintura que quer ser, ela mesma, uma expressão outra do mundo objectivo. Não por acaso Cézanne afirmava que "a maçã que eu pinto não é maçã, é pintura". Mas o impressionismo foi apenas o início de uma transformação que mudou drasticamente a arte do século XX. Aquela frase de Cézanne trazia nela embutida uma mudança radical que começa com o cubismo de Picasso e Braque.
Como tudo o que estivesse no quadro se tornaria pintura -isto é, arte-, introduziram na tela tudo o que se poderia imaginar: envelope de carta, recorte de jornal, areia, arame e o que mais lhes desse na telha. Pouco depois, Marcel Duchamp afirmava: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". E, então, expôs em Nova York um urinol produzido industrialmente assinado com o pseudónimo de R.Mutt. Estava aberto o caminho para o vale-tudo. Por isso mesmo as Bienais internacionais expõem tudo o que se possa imaginar. A conclusão inevitável é que o que até aqui se chamou de arte já não o é.
Mas, assim como no Renascimento, surgiu uma nova linguagem artística que mudou a história da arte. Assim, não custa nada imaginar que, em função das novas tecnologias, uma nova arte esteja para nascer."
Ferreira Gullar, em Crónica publicada no Jornal  “Folha de São Paulo”,  em 11.12.2016
NOTA DA EDIÇÃO ( Folha de São Paulo)
«Ferreira Gullar, morreu aos 86, de pneumonia, no domingo (5), ditou esta última coluna para a neta Celeste, na cama do hospital.
Com pouco fôlego, teve de fazer pausas para descansar. "Quando eu perguntei se preferia terminar outro dia, ele disse que não, porque não sabia o que poderia acontecer", afirmou Celeste.
"Ele me falou uma vez: 'Eu adivinho as coisas'. Acredito que sim. Então ficamos aguardando essa nova arte que nascerá da tecnologia. Qual será?"»

segunda-feira, 27 de maio de 2019

1968: As barricadas que abalaram o mundo

Manoel de Andrade, no Preâmbulo ao seu livro "As palavras no espelho", questiona e afirma: Quem, dentre os de minha geração, não se lembrará do significado e das proporções revolucionárias da rebelião estudantil de Paris, em maio de 1968, tida por historiadores e filósofos como o acontecimento social mais importante do século XX? Seu estopim incendiou o movimento estudantil em todos os continentes e, no Brasil, os fatos foram marcados por movimentações populares em quase todas as capitais, com destaque para a célebre Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, em 26 de junho daquele ano. Um período em que, para muitos brasileiros, os gritos pela liberdade se transformaram em ecos de dor silenciados pelo suplício e pela morte, legalizados pela repressão cruel do Ato Institucional nº 5, o tenebroso AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968. Suas consequências geraram uma transição longa e sombria, regada pelas lágrimas perenes de mães, viúvas e  órfãos. Creio ser imprescindível reeditar o significado da História, sobretudo quando os fatos marcaram com a crueldade, o desaparecimento e a morte o destino dos vencidos e traumatizaram com o infortúnio a trajetória social, política e cultural de um povo.
E porque acreditamos que o esquecimento da barbárie altera  a História , transcrevemos a última parte  de um conjunto de quatro ensaios, do insigne  autor de "Poemas para a Liberdade", para que a memória desse tempo sujo  o não  permita.
Apresentamos  a Manoel de Andrade , com redobrado apreço, os nossos agradecimentos.
1968: Uma revisão (IV)
1968: As barricadas que abalaram o mundo
O palco da história
por Manoel de Andrade
"Ante o cenário imenso da Guerra Fria e a disputa pela corrida espacial, o mundo, em 1968, parecia um grande teatro onde, bem distante das fronteiras de Saigon, se representavam as dramáticas cenas de muitos outros Vietnames. Por trás do enredo de tantas tragédias, os atores mais jovens, empunhando suas bandeiras de sonhos, disputavam seu inefável território de esperanças contra os velhos generais que defendiam as milenares trincheiras do poder, da ganância e do preconceito. Das barricadas de Paris às agitações de Berlim, de Varsóvia, de Beirute, do Cairo, de Caracas, de Jacarta…; do outono carioca à primavera de Praga; da oratória inflamada de Rudi Dutschke ao lirismo armado de Evtuchenko; da Sexta-Feira Sangrenta ao Massacre de Tlatelolco; da filosofia de Marcuse ao teatro de Brecht; da Marcha sobre o Pentágono, em fins de 67, à Passeata dos Cem Mil, em 68; dos mandamentos da Anti-Cultura aos postulados socialistas; da inconsequência política da geração hippie ao pragmatismo das barricadas estudantis; das trincheiras abertas na América Latina às guerras contra o colonialismo português em África; do Apartheid às lutas contra a segregação dos negros, chicanos e porto-riquenhos nos EE.UU., por tudo isso e muito mais, o ano de 68 marcou historicamente todos os quadrantes do mundo. Todos sabem que os protagonistas, que brilharam na ribalta daquele imenso drama chamado 1968, foram os estudantes do mundo inteiro. Não me estenderei sobre os acontecimentos que antecederam aquele ano, mas acho importante comentar que a revolta dos estudantes em Paris era apenas parte de um longo processo. Tudo isso começou em Roma, em 1960, continuou na agitada Berkeley de 62, seguiu-se 63, em Pisa e Florença, com as primeiras ocupações da Universidade. Em 64, os estudantes americanos, liderados por Mário Selvo, fazem uma imensa manifestação ultrapassando os limites da famosa Universidade de Berkeley. Em junho de 67, por ocasião da visita do Xá da Pérsia (Irão) a Berlim Ocidental, a morte do estudante Benno Chnesorge incendiou a revolta no país inteiro e em dezembro, em Munique, o estudante Rudi Dutschke pintou, num memorável discurso – que já anunciava a sua grande liderança na Europa – a Guerra do Vietname com as cores mais sinistras. Contudo, foi somente no ano seguinte que todo este cenário se incendiou pelas barricadas em luta.

Os primeiros atos
Já em janeiro, essa imensa bronca começou na Polónia, quando interditaram a apresentação da peça Dziady, do grande poeta romântico polonês Adam Mickiewicz. Na última representação, sob o reiterado grito de “liberdade artística”, muitos estudantes foram presos e posteriormente expulsos da Universidade de Varsóvia. Em consequência, na primeira semana de março, os escritores e trabalhadores se reúnem aos cinco mil estudantes no pátio da Universidade para exigir “liberdade de expressão” e entram em choque com a polícia. Nos dias seguintes, a revolta se estende à Gdansk, Cracóvia e outras cidades, onde grandes manifestações marcharam sustentando a bandeira da Polónia e ao som da Internacional Socialista. Em fevereiro, em frente à Ópera de Berlim Ocidental, cerca de dois mil estudantes protestam com veemência contra a Guerra do Vietname e dois deles sobem ao alto de um guindaste onde agitam a bandeira vietnamita. Ainda em fevereiro, uma pesquisa na Universidade de Harvard constatava que 69% dos estudantes procuravam por todas as formas escapar do alistamento para o Vietname. Como se sabe, os estudantes de Harvard, que fecharam o campus da Universidade em 69 pelo comprometimento da instituição com a guerra, estiveram na vanguarda das grandes “marchas da paz” e das marchas contra a segregação racial nos Estados Unidos. Em março, além das manifestações em Varsóvia, ocorrem também revoltas estudantis em Roma, Londres, Milão e Nanterre. Na Espanha, antigas reivindicações ecoaram entre os estudantes quando a Ditadura de Francisco Franco impôs o policiamento interno nas universidades. A Universidade de Madrid é fechada, mas a panfletagem anti-franquista e as grandes barricadas marcam o enfrentamento brutal entre estudantes e policiais nas cidades de Valência, São Tiago de Compostela, Sevilha e outras. No Brasil, em fins de março, a morte do estudante Edson Luiz e a sua missa de 7º dia, no Rio, acenderiam um rastilho de revoltas que explodiram em grandes batalhas campais de estudantes contra policiais em São Paulo, Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte, Fortaleza, quando destruíram o Centro Cultural Brasil-Estados Unidos (Os fatos mais relevantes dessas manifestações no Rio de Janeiro foram descritos nos dois primeiros artigos dessa série: a Sexta-Feira Sangrenta e a Passeata dos Cem Mil).
Em abril, o grande fato político que abalou todo o movimento estudantil europeu foi o atentado, no dia 11 daquele mês, contra o jovem orador Rudi Dutschke, líder da União Socialista dos Universitários da Alemanha (SDS). Planejado pela polícia secreta da Alemanha Ocidental e pelo magnata da imprensa Axel Caser Springer, o atentado provocou violentas manifestações estudantis em todo o país, impedindo a circulação dos jornais do “grupo Springer”. O fato motivou manifestações em Roma, Paris, Londres, Florença e Rudi morreu onze anos depois, em consequência dos ferimentos recebidos. Naquele mês de abril estavam também em pé de guerra os estudantes de Caracas, Bagdá e Beirute.
Os grandes atores
Em maio os atos mais dramáticos da revolta estudantil ocorreram no mais belo palco da cultura do planeta e quem sabe por isso, e também pelo charme parisiense, teve um destaque tão grande. Em poucos dias as manifestações paralisaram a França. Os operários se uniram ao movimento  estudantil entrando em greve e ocupando as fábricas. Os estudantes de Nanterre se tornaram os donos do Quartier Latin. Interrogado sobre os destinos das manifestações pelo filósofo Jean-Paul Sartre, o líder da revolta, Daniel Cohn-Bendit responde:
 O movimento tomou uma extensão que nós não podíamos prever no início. O objetivo é, agora, a derrubada do regime. Se conseguimos isso ou não, independe de nós. Se fosse também esse o objetivo do Partido Comunista, da CGT e de outras centrais sindicais, não haveria problema: o regime cairia em quinze dias, porque ele não tem nada para enfrentar uma prova de força contra todas as forças trabalhadoras.
  Cohn-Bendit, aos 23 anos, celebrizado como líder do Movimento 22 de Março, cursava o 2º ano de Sociologia na Faculdade de Letras em Nanterre. Entre outros líderes como Jacques Sauvageot, com 25 anos e dirigente da União Nacional dos Estudantes Franceses e Jean-Pierre Duteuil, com 22 anos e um dos mais importantes líderes do movimento, Cohn-Bendit era o mais radical. Acreditava que a luta estudantil era apenas o primeiro passo para a contestação de toda a sociedade burguesa. Os estudantes seriam apenas o estopim deflagrador da revolução operária. A revolta estudantil na França teve um curioso desenvolvimento. Suas reivindicações iniciais eram apenas o questionamento das relações opressivas dos professores para com os alunos e as questões relativas à estrutura, gestão e autonomia das Universidades. Mas em face do apoio popular, dos próprios professores e a violência da repressão policial, em duas semanas a situação mudou rapidamente e o que se pôs em cheque foi a política do General De Gaulle e o próprio sistema capitalista promotor da dependência, da alienação e da exploração da classe operária. Em junho, o grande destaque da luta estudantil no mundo foi a célebre Passeata dos Cem Mil nas ruas centrais do Rio de Janeiro. Foi, por certo, o maior movimento de massa que a cidade já teve em sua história. Celebrizou-se pela adesão dos mais variados segmentos da sociedade carioca integrando intelectuais, artistas, professores, jornalistas, religiosos, profissionais liberais e o povo representado pelas mais variadas organizações de classe que de braços dados com os estudantes desfilaram em sucessivos cordões pelas grandes avenidas. O grande destaque foi o papel que teve Vladimir Palmeira,  presidente da UME, por seus vários e inflamados discursos ao longo de todo o percurso e pela sua condição de maior líder estudantil da época.
Em fins de agosto, a Universidade de Brasília foi invadida e com o pretexto de prender estudantes procurados por subversão. Houve espancamento de alunos, professores e até de parlamentares que tentaram intervir. Em setembro, o exército ocupou o campus da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM), a maior da América Latina. Os estudantes foram espancados e presos, e o reitor, como protesto, renunciou. No dia 2 de outubro, os estudantes de esquerda da Universidade de São Paulo entram em conflito com os estudantes de direita da Universidade Mackenzie. Nos violentos confrontos, que se seguiram no dia seguinte, além dos feridos, o estudante Jose Guimarães, de 20 anos, da USP, caiu morto por um tiro na Rua Maria Antônia, no centro de São Paulo. Ainda em outubro, no dia 12, realizou-se em Ibiúna, SP, o trigésimo Congresso da UNE. A polícia faz o cerco da região e prende 920 estudantes. Levados para a prisão, muitos deles, mesmo feridos, são torturados e as mulheres violentadas sexualmente. Os parentes dos estudantes presos são ameaçados e fichados pelo SNI ao entrar com habeas corpus. Foram demitidos do serviço públicos muitos pais de estudantes presos e repórteres que presenciaram cenas de violência tiveram seus equipamentos apreendidos e a proibição de publicar suas matérias.
 
As cenas da tragédia
Contudo, foi ainda naquele mês de outubro, enquanto estudantes da esquerda e da direita se enfrentavam na Rua Maria Antônia que aconteceu o mais trágico e sinistro acontecimento na história dos estudantes em todo o mundo. Em consequência da ocupação da UNAM e da longa repressão policial no governo de Díaz Ordaz, 15 mil estudantes de várias universidades mexicanas saíram numa marcha de protesto no dia 2 de outubro, cruzaram o centro da Cidade do México e no fim da tarde, cerca de 5.000 estudantes e trabalhadores chegaram à Praça das Três Culturas no Bairro Tlatelolco. Os estudantes traziam cravos vermelhos e entoavam canções de liberdade. Ao anoitecer, forças militares e policiais cercaram a praça com carros blindados e tanques, posicionaram-se e começaram a abrir fogo contra a multidão, onde se encontravam não só estudantes mas também mulheres, crianças e transeuntes que atravessavam o local. Apesar de vários corpos caídos ao longo da praça, o som de fuzis e metralhadoras continuou ante a população tentando fugir, mas encontrando todas as saídas da praça bloqueadas. Os policiais invadiam apartamentos do grande bloco de edifícios populares que rodeava a praça em busca de estudantes.
Testemunhas oculares dos fatos relataram que os cadáveres eram tantos que foram recolhidos em caminhões de lixo. Nunca se chegou a um número exato de mortos. Algumas fontes chegaram a calcular em 1.000 mortos, mas há um consenso entre 200 e 300 vítimas. Muitos estudantes foram presos e jamais apareceram (vivos ou mortos). O massacre ocorreu sob o governo do presidente Gustavo Díaz Ordaz Bolaños. O escritor Octavio Paz deixa, naquele ano, o serviço diplomático em protesto contra o massacre. O autor destas linhas passou o primeiro semestre de 1971 no México, morou na praça do massacre e teve contato com pessoas que presenciaram os fatos mas infelizmente o espaço limitado deste artigo não permite que se relate considerações particularizadas sobre aquela tragédia. Em 1971, o presidente do país era Luis Echeverría Alvarez, que fora Ministro do Interior de Díaz Ordaz, e que transmitiu a ordem para reprimir a  manifestação. Durante seu governo se lançou uma forte cortina de silêncio sobre o assunto. Somente em outubro de 1997, foi criada uma comissão parlamentar para investigar o ocorrido. 
Echeverría reconheceu que os estudantes não portavam armas e deu a entender que tudo havia sido militarmente planejado para destruir o movimento estudantil, o qual ameaçava fazer protestos durante os Jogos Olímpicos do México que se realizaram naquele ano de 12 a 27 de outubro. Em junho de 2006, Echeverría foi acusado de genocídio e colocado, sob judice, em prisão familiar. No mês seguinte foi inocentado da acusação com base numa legislação mexicana de exceção. Sobre o massacre muito se tem escrito. A escritora mexicana Elena Poniatowska publicou em 75 La noche de Tlatelolco, e o premiado cineasta mexicano Jorge Fons Pérez, em seu filme Rojo Amanecer, conta, através de uma família mexicana, moradora num apartamento da praça, todo o enredo dos fatos, com base nos depoimentos de vítimas e testemunhas. Sobre o ano de 1968 há muitas outras barricadas além daquelas levantadas pelos estudantes em todo o mundo, mas o espaço que disponho não permite outra linha de  comentários. Quero apenas registar que em fins de janeiro, a guerra do Vietname foi marcada pela grande ofensiva norte-vietnamita contra os americanos e contra 36 cidades do Vietname do Sul. Naquele início de ano, a Checoslováquia tem a sua bela primavera socialista de reformas e liberdade mas em agosto começa a sua estação de horror com tanques e paraquedistas invadindo Praga na calada da noite e, posteriormente, a cidade ocupada por 600.000 soldados, 7.500 tanques e 11.000 canhões. Em abril, assassinam Luther King e infelizmente a sua bandeira de luta ainda tem muitas barricadas pela frente.
A crítica do espetáculo
1968-2008: São quarenta anos de um processo histórico cada vez mais crítico e acelerado e a mobilidade conjuntural desse processo nos pede uma revisão periódica de valores. Nesse sentido é indispensável dizer que nem todas as sementes lançadas nas décadas de 50 e 60 geraram bons frutos. Muitos daqueles atalhos trilhados em viagens para o “paraíso” levaram quimicamente ao “inferno”. “As portas da percepção” – abertas com o aval da melhor literatura – se fecharam, posteriormente, no embotamento e na morte. Por outro lado, a formosa bandeira da emancipação da mulher – desfraldada com inadiável coragem ante uma cultura machista e de dependência – foi, em algumas de suas trincheiras, hasteada somente em nome da mera sensualidade. O que equivale dizer que por trás das intenções inconfessáveis do erotismo, se lutava para dar cidadania a liberalidades que debocharam das razões do coração e jogaram no lixo o significado ontogénico da vida. Desfilando de mãos dadas, na ampla alameda dessas últimas décadas, a anti-cultura e a pós-modernidade exibiram – e ainda exibem – as aberrações conceituais da arte e uma sofisticada linguagem nas letras. Estes falaciosos paradigmas foram paridos pelo puro intelectualismo, pela irreverência e por uma obsessiva concepção de vanguarda. Chegaram afrontando os valores imperecíveis da estesia plástica e do discurso literário, descartando a expressão figurativa da própria arte e, sobretudo, maculando o encanto e o lirismo da poesia…, levando-a ao descrédito no qual se encontra. No campo ideológico nem todas as sementes caíram em terra fértil e muitos daqueles que, há quarenta anos, hipotecaram a própria vida por um estandarte de luta, não resistiram às seduções insinuantes do poder. Poucos foram os que não negociaram suas convicções e se preservaram inteiramente da lama. E eis porque a época que herdamos traz as pegadas de heróis e de vilões. Um tempo em que os que mantiveram seus sonhos são governados pelos “sábios” de coração vazio. E num mundo comandado pela esperteza e pelo hedonismo, é indispensável folhear os anais do pretérito para que as valores humanos, seus militantes e suas trincheiras não sejam esquecidos. O ano de 1968 sobreviveu na memória de uma geração como um legítimo calendário de lutas. Aqueles que alistaram seus gestos e emoções, palavras e pensamentos não limitaram a dimensão de sua entrega. Prisão, tortura, desaparecimento, desterro e morte foi o preço incondicional de um sonho. O movimento estudantil, como um todo, causou um profundo impacto no mundo inteiro e notadamente na política francesa e norte-americana. O que caracteriza o ano de 68 é a sintonia. O misterioso fenómeno de uma revolta partilhada simultaneamente pelos estudantes de todos os quadrantes da Terra. No leste europeu contra o regime soviético e em todo o ocidente contra o capitalismo e seus prepostos militarizados, e contra um inimigo comum identificado pela unanimidade no repúdio a Guerra do Vietname. Quarenta anos depois nos perguntamos: o que ficou de toda aquela paixão pela justiça e pela liberdade? Ficou a mágica paisagem de um inconquistável território, de uma bandeira de luta que contagiou o mundo, mas restou, também, um desnorteado individualismo, um espírito de competição fechando os caminhos da solidariedade humana.

O resgate da história
O individualismo contaminou nossa consciência da realidade. A noção de tempo está adoecendo. O mundo está presentificado, agorificado pela cultura da aparência e por um sofisticado e decadente consumismo. É contra esses vírus que temos de nos vacinar. Essa patologia está se tornando endémica e ela é vital para a sobrevivência dos interesses manipuladores e perigosamente alienantes da globalização. Nossos problemas de hoje não podem ser resolvidos somente no hoje, somente pelas suas implicações imediatas, sem pensar nas suas causas e efeitos. Não somos saudosistas e nem somos descartáveis. Somos antes, durante e depois e por isso não podemos perder nosso sentido de historicidade e de transcendência. Nossa noção de tempo não deve ter um significado meramente cronológico – de um tempo que passa e se esvai – mas uma consciência de duração. O tempo atemporal. O tempo que permanece. O tempo bergsoniano. Os nossos jovens de hoje já não têm mais sonhos, nem caminhos para o amanhã e eis porque se cansam e se irritam tão facilmente com tudo. Estão aprisionados pelo presente, pelas algemas da transitoriedade e pela agenda do entretenimento. E eis porque a vida de muitos se transforma numa aventura sem destino, numa estrada para o desencanto, na busca da liberdade por caminhos equivocados e impossíveis. Esse é, para eles, um momento difícil. Não só para eles, para todos os homens. Todos estamos  vencidos. Vencidos pela insegurança. Vencidos pela corrupção. Vencidos pela impunidade. Essa é a hora da transição e do impasse e é urgente recolocar nas mãos da juventude, uma bandeira. Em alguma parte da pátria, em alguma parte do mundo, alguém deve estar abrindo novos sulcos e, por certo, já existem sementes germinando, mas os media não nos traz essas notícias. Cabe a cada um arar sua própria alma. A psicanálise do nosso tempo deve ser feita sobre o divã da filosofia das ciências humanas e, particularmente, pela História que, como já dizia Cícero, “é a mãe de todas as ciências”. Em todo o continente abrem-se as Caixas de Pandora e temos hoje muitos documentos e bons historiadores que lêem, denunciam e nos ensinam a compreender criticamente o passado, não permitindo que ele seja amordaçado mas sim interpretado dialeticamente como uma nova tese. Nesta ótica dos fatos deve-se salientar que apesar de todos os avanços que ultimamente se tem feito na integração geopolítica latino-americana, apesar da confortável presença de governos populistas na América do Sul e apesar dos governos do Uruguai, Argentina e Chile já terem abertos os escabrosos dossiês de suas ditaduras, é lamentável dizer que o Brasil é o único país da região que, inexplicavelmente, ainda não abriu os arquivos do regime militar. São chegados os tempos de reler a história, de rever nossas ações e omissões e dos pecadores buscarem o confessionário. Quanto aos sobreviventes, devem assumir com humildade essa trégua ou, se preferirem, essa retirada estratégica. As velhas ideologias agonizam em todo o mundo. Estamos no limiar da orfandade e, nessa transição, sequer esperamos por um Messias político. Alguém que nos acene com a redenção social, intelectual e moral da humanidade. Numa época em que nossos arquétipos antropogénicos parecem falar mais alto, é imprescindível redigir um novo código de ética que mostre, implicitamente, a todos nós o próprio significado darwiniano da evolução humana e nos ensine a praticar as imperecíveis verdades do Sermão da Montanha, como queria Gandhi. Somos os sobreviventes da geração de 68, os herdeiros da saudade e da esperança e não sabemos como encontrar a porta de saída desse imenso shopping de ilusões em que se transformou o mundo. Sobrevivemos num tempo de perplexidades, pressentimentos e indagações. Diante desse angustiante impasse, perguntamos: como será o amanhã se já não temos hoje uma utopia? E eis porque é necessário participar com consciência desse torvelinho inquietante que é o tempo em que nos toca viver. É necessário lembrar aos nossos filhos as barricadas levantadas no passado. É também importante dizer a todos que é necessário perseverarem ainda…, porque num mundo sem utopia é imprescindível não esquecer os que sonharam."
Manoel de Andrade, in “ As Palavras no espelho”, Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda, São Paulo, Brasil, 2018, pp. 41-53

domingo, 26 de maio de 2019

Ao Domingo Há Música

                                    
                                     como janela aberta

                                     de mim tudo esvoaça
                                     eu sou como uma árvore         
                                     um grito  uma tromba marítima

                                     conservo  o teu amor
                                     e já sou
                                     um pássaro sem asas
                                     a cair na distância.
                                        Lourenço de Carvalho, minha ave africana

O amor cruza mundos. Não tem pátria, nacionalidade  ou residência. Salta obstáculos, derruba muros, plana em oceanos , espalha-se  pelos mais recônditos cantos do planeta. Não há precipícios que  barrem o amor.  Qual pássaro sem asas, eleva-se num  voo sem tempo e sem medida. 
Cantam-no  toda e qualquer voz que tenha dele experimentado. Cada uma o apropria em ritmo e sonoridade próprias. 
É assim o amor . 
Reconhecemo-lo   na voz maior  de  Andrea Bocelli , em Pero Te Extrano , composição de Armando Manzanero
(Licenciado ao YouTube por UMG; LatinAutor - UMPG, BMI - Broadcast Music Inc., LatinAutor, Abramus Digital, UMPI, UBEM, UMPG Publishing, SODRAC e 6 sociedades de direitos musicais.)
E nas vozes do galardoado com o Prémio Camões 2019 , o brasileiro  Chico Buarque  e   da fadista  portuguesa   Carminho,  em Falando de Amor,  composição de Tom Jobim.

(Licenciado para YouTube  pela The Orchard Music, [Merlin] PIAS, WMG (em nome de Music Development Company); LatinAutor, UBEM, UMPI e 5 sociedades de direitos musicais.)

sábado, 25 de maio de 2019

Celebrar o 89º aniversário de Eugénio Lisboa


Os livros não mudam o mundo , quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas.
                                      Mário Quintana
Répétons inlassablement qu’un grand écrivain n’est jamais grand  par sa forme seulement, mais par ce qu’il y met, c’est-à-dire par ce qu’il est.
                                                       Henry de Montherlant

“Quando as férias grandes começavam, tínhamos, à nossa frente, uma vasta planície de tempo a preencher, mesmo que fosse a não fazer nada.[…] Mas onde eu gastava o tempo todo era, sobretudo, especado frente à montra da " Minerva Central " ( propriedade de outro Carvalhinho), a namorar os livros que não fazia ideia de como haveriam de ser meus, um dia...Eram títulos tentadores, da " Portugália",  da " Inquérito", da " Gleba", da " Minerva". Poça, não ter eu um décimo da massa que tinham os Granchas, os Carvalhinhos, o raio que os partisse a todos! E, a esses, se calhar, nem sequer lhes apetecia ler aqueles calhamaços:  O Moinho à Beira do Rio, Guerra e Paz, O Retrato de Dorian Gray, Trovoada à Esquerda, Villette e tantos outros, que me desafiavam... Palavra que não era inveja - era só um bocado de ferro, por a distribuição das riquezas estar tão mal amanhada: dava Deus nozes a quem não tinha dentes e aos que os tinham - e bem afiados - fazia-lhes um grande manguito! Como dizia, poça! “
Acabámos de extrair do volume I, de “Acta Est Fabula”, de Eugénio Lisboa, este vivo e pequeno texto para saudar o seu 89º aniversário, que se celebra hoje. Não poderemos afirmar, com total certeza, que, do conjunto dos sete volumes que compõe as suas Memórias, é este o que mais apreciou escrever. Estamos, porém,  seguros do seguinte: este é o que mais nos tocou . Será, pois, com este primeiro  volume memorialístico de Eugénio Lisboa,  que celebraremos o seu aniversário, no rasto  da criança  que ele foi. E quando o afirmamos  , damos eco à emoção que nos tomou, quando nos confrontámos  com uma criança, cujo sonho era ter uma casa grande, com paredes forradas a madeira, pejadas de livros.  Um sonho singular no coração de uma criança.
Li muito, mas também me fartei de sofrer por causa do que não li, nessa altura : ficavam-me os olhos nas montras da “ Minerva” e da “Progresso”, onde chamavam por mim […] ,livros que só mais tarde viria a ler.
[…] Quantas vezes não desci, do Alto –Mahé até à baixa, para ir namorar as montras das livrarias , praticando aquilo que os ingleses  chamam " window shopping” ( “ comer com os olhos”, dizemos nós…) . Não tinha  dinheiro,  até ao fim do 7º ano do liceu, nunca tive dinheiro de bolso.  Nunca conheci aquilo, que outros mais abastados , recebiam : uma “semanada”. Os livros  da George Eliot, do Dickens , nas monumentais  edições da “Portugália” e da “Inquérito”, ficavam completamente fora do meu alcance, por mais que os namorasse. Lembro-me , como se fosse hoje  - agora! – de uma tarde de domingo, em que saí  do “Scala”, depois de ter visto, emocionado, uma versão cinematográfica do romance de Dickens “ A Tale of Two Cities”, com o Ronald Colman, no papel de Sydney Carton. A caminho da Praça MacMahon, onde ia apanhar o machimbombo para regressar a casa, passei pela Livraria Progresso  e vi, na montra , acenando-me,  uma edição  do romance “Grandes Esperanças”, de Dickens , com uma cinta, que gritava  despudoradamente “ Dickens, o grande Dickens, o maior romancista  inglês de todos os tempos.” Fiquei siderado: acabara de ver um romance  daquele autor, transportado para o écran do “Scala”, e agora , ali, aquele “chamamento”. Era incrível.  Nunca me doeu tanto não ter dinheiro para ir, no dia seguinte, àquela livraria, para poder corresponder a um apelo tão lancinante.

Apelo feito de outros apelos a desafiar a fértil e ávida  curiosidade do adolescente Eugénio Lisboa. E era pelos livros que viajava e conhecia mundo , naquele recôndito bairro (Alto-Mahé) da cidade de Lourenço Marques  , em Moçambique. Foi europeu, americano, russo em  África. Os livros abriam-se-lhe e traziam-lhe a descoberta da vida. Amou pela primeira vez com Stendhal, em "Le rouge et le noir": Madame de Rênal entrou no seu coração para sempre. Um encantamento que nunca deixou de sentir e celebrar.
E quando, aos dezassete anos, tem  de abandonar a cidade capital da sua memória ,  para prosseguir estudos no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, a emoção da despedida  eclode: Fora ali que tudo aprendera , fora ali que fizera  as “grandes leituras”, fora ali que descobrira Florença, Paris , a América de Hemingway, de Saroyan, de O’Neill, fora ali  que  explorara o mundo  dos antigos, pela mão de Plutarco e de Sienkiewicz! Fora ali que, sem aviso prévio , eu encontrara  e amara a Senhora de Rênal, saída do romance de Stendhal, para entrar na minha vida – e nela ficar para sempre!  Aquele mundo estava cheio de vozes e de segredos. Como poderia eu escolher deixá-lo? Fora ali que eu me banhara , com o “Nero”, nas águas grandes e temerosas do Índico. É verdade que, como referi , entre o tesouro das emoções “locais” e o desejo e quase “dever” de ir à aventura , eu optara por esta. Mas, agora, chegado o momento decisivo, a avalanche  emotiva ameaçava tudo submergir.

Decisão que fez do jovem Eugénio Lisboa , um  homem do mundo. O espanto, a curiosidade de uma criança, que se iniciou nos livros, marcaram-lhe  o futuro. Eugénio Lisboa é, na actualidade, o mais erudito e apurado cultor de uma escrita singular . 
Autor de uma vasta e  multifacetada obra, capturou-nos ,ao longo dos anos. E, de chamamento em chamamento, seduziu-nos  nas múltiplas  livrarias.  Cada livro é sempre um apelo irrecusável.  
Acaba de publicar dois livros : Uma conversa Singular , sumptuoso conjunto  de ensaios, e o primeiro volume de um grande registo diarístico: Aperto Libro. Um outro tomo, deste novo magnum opus, está no prelo.
Eugénio Lisboa deu forma ao sonho de criança. Com criteriosa  selecção, encheu de livros, a sua casa. Possui uma biblioteca com mais de 30.000 livros , que doou  à Biblioteca da Universidade de Aveiro, onde foi Professor.
“Sou todos os livros que li , todas as pessoas que conheci, todos os lugares que visitei, todas as pessoas que amei.”, confidenciava Jorge Luis Borges. Lendo a ímpar obra de Eugénio Lisboa, acabamos por concluir que o autor de “Ficções” tem razão. Se o próprio Eugénio Lisboa nos diz que “ Somos muito do que lemos” , não poderemos deixar de lhe prestar homenagem e apresentar o nosso mais profundo agradecimento .
A Eugénio Lisboa, as nossas celebradas felicitações por este 89º aniversário.
Bem-haja!

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Leonardo da Vinci morreu há 600 anos


Evocar Leonardo da Vinci é chamar um dos mais ilustres e completos artistas de todo os tempos. Morreu há seiscentos anos e a sua obra respira contemporaneidade. Foi exímio em todas as áreas. Extremamente curioso,  explorou e produziu uma grandiosa e multifacetada obra. 
"Leonardo di ser Piero da Vinci nasceu em Anchiano , Itália, a 15 de Abril de 1452. Foi pintor , arquitecto, engenheiro, cientista e escultor do Renascimento italiano. Devido aos seus múltiplos talentos e à sua enorme criatividade, é considerado por muitos como o maior génio da história da Humanidade. 
As suas fábulas e lendas relacionam-se com as de Esopo, Fedro e La Fontaine, com raras excepções , eram quase todas por ele inventadas e continham uma finalidade moral.
Da Vinci viria a morrer a 2 de Maio de 1519 em Cloux , França, sendo sepultado na Capela de S. Hubert no castelo de Amboise."
A legendar o que se acaba de afirmar, transcrevemos uma das suas magníficas fábulas: 
 


A CHAMA
"Há mais de um mês  que as chamas faiscavam  no forno da vidraria onde se faziam as garrafas e os copos. 
Um dia , as chamas viram uma vela que encimava um belo e brilhante  candelabro. Com  grande ansiedade tentaram aproximar-se dela até que uma das chamas , escapulindo-se do tição  de que se alimentava , virou costas ao forno e, passando por uma pequena fenda , lançou-se sobre a vela.
Mas, ao fazê-lo, a voraz chama consumiu rapidamente, até ao fim, a pobre vela. Não querendo morrer com ela a chama tentou regressar ao forno donde fugira.
Mas não conseguiu libertar-se da cera mole em que estava envolvida e, em vão pediu ajuda às outras chamas.
Chorando e gritando transformou-se num inoportuno fumo, deixando as suas irmãs no esplendor de uma vida duradoura e bela."
Leonardo da Vinci, in Fábulas, Prefácio Edição de Livros, p 39

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Prémio Camões para Chico Buarque



Construção
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
Chico Buarque, (1971)
O músico e escritor Chico Buarque é o vencedor do Prémio Camões 2019,  anunciado esta terça-feira, na Biblioteca Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro.
"Fiquei muito feliz e honrado de seguir os passos de Raduan Nassar (vencedor do Prémio Camões em 2016)", reagiu Chico, numa curta declaração divulgada .
Chico Buarque juntou a dramaturgia e o romance à extensa e notável obra poética e musical, formando um percurso marcadamente literário.
"É evidente que este prémio é um reconhecimento pela poesia nas letras de música, que também são literárias, não só pelos livros. São poemas. Grandes poemas. A música "Construção", por exemplo, é um poema e até raro de se fazer", diz o escritor Antonio Cicero, poeta, ensaísta e um dos membros do júri.
O mesmo se poderia de dizer de muitos outros poemas escritos para música por Chico Buarque, reflexões densas sobre o prosaico, sobre vidas que se vivem nas ruas, trágicas e mágicas, tão perto do céu e do chão, tão junto do corpo e do coração. Como "Samba e Amor", em que Chico tão bem se define. "No colo da bem-vinda companheira / No corpo do bendito violão / Eu faço samba e amor a noite inteira / Não tenho a quem prestar satisfação"
Chico Buarque  fora já distinguido com o prémio Jabuti, o mais importante prémio literário no Brasil, pelos romances “Estorvo”, “Leite Derramado”, obra com que também venceu o antigo Prémio Portugal Telecom de Literatura (actual Prémio Oceanos), e por “Budapeste”.
Foi escolhido pelos jurados Clara Rowland e Manuel Frias Martins, professores universitários indicados pelo Ministério português da Cultura, pelo ensaísta António Cícero Correia Lima e pelo professor António Carlos Hohlfeldt, indicados pelo Governo brasileiro, pela professora angolana Ana Paula Tavares e pelo professor moçambicano Nataniel Ngomane.
Escritor, compositor e cantor, Francisco Buarque de Holanda nasceu em 19 de Junho de 1944, no Rio de Janeiro.
Estreou-se no romance com “Estorvo”, em 1991, a que se seguiram “Benjamim”, “Budapeste”, “Leite Derramado” e “O Irmão Alemão”, publicado em 2014.
Em 2017, venceu em França o prémio Roger Caillois pelo conjunto da obra literária.
O Prémio Camões de literatura em língua portuguesa foi instituído por Portugal e pelo Brasil em 1988, com o objectivo de distinguir um autor “cuja obra contribua para a projecção e reconhecimento do património literário e cultural da língua comum”. Foi atribuído pela primeira vez, em 1989, ao escritor Miguel Torga. Em 2018  distinguiu o escritor cabo-verdiano Germano Almeida, autor de “A ilha fantástica”, “Os dois irmãos” e “O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”, entre outras obras.
O Presidente português felicitou esta quarta-feira o músico e escritor brasileiro Chico Buarque, vencedor do Prémio Camões 2019, defendendo que “só pode ser unânime” esta distinção da sua obra como romancista, dramaturgo, mas também como escritor de canções.
Numa nota publicada no portal da Presidência da República na Internet, Marcelo Rebelo de Sousa considera que, ao premiar Chico Buarque, o júri do Prémio Camões reconheceu “naturalmente também o extraordinário escritor de canções, um dos maiores da língua portuguesa”.

terça-feira, 21 de maio de 2019

1968: Partidão versus Foquismo


1968: Uma revisão (III)
1968: Partidão versus Foquismo 
por Manoel de Andrade
   "O ano de 1968 tinha ainda pela frente um longo percurso assinalado pela importância dos fatos políticos que marcavam sua excepcionalidade na recente história do Brasil e do mundo. Entre nós, brasileiros, o que estava por trás desses dos fatos foi, em grande parte, a decisão das esquerdas de se armarem e saírem para o confronto direto com a Ditadura. Cada vez mais afastadas do Partido Comunista (PC) e ideologicamente divididas entre Moscou e Pequim, elas perceberam que todos os caminhos das lutas de liberação nacional começavam e terminavam no próprio território latino-americano. As trincheiras dessa luta foram escavadas pelo continente inteiro. Começaram no extremo sul, em 63, com os Tupamaros uruguaios, e com o peruano Hugo Blanco, que em maio daquele ano caiu no vale do Cuzco. Em 65, Héctor Béjar rompe com o PC e retoma a guerrilha peruana. Essa imensa trincheira abre, ainda em 65, novos sulcos pelas mãos dadas dos socialistas e comunistas chilenos em torno do MIR. Na mesma época o venezuelano Douglas Bravo, expulso do Partido Comunista, definia o conceito de Revolução Bolivariana dentro da estratégia guerrilheira com o apoio de Fidel Castro. Em 15 de fevereiro de 65 o padre Camilo Torres morre em combate à  frente do Exército de Libertação Nacional na Colômbia. Em 66 o Comandante Turcios Lima comandava a luta feroz contra o Exército e os grandes latifúndios na Guatemala. Em 67, a Frente Sandinista de Libertação Nacional decide declarar a guerra revolucionária contra a somozismo, na Nicarágua e naquele ano a bandeira cravada em Ñancahuazú por Che Guevara e a simbologia gloriosa de sua morte em combate são os traços indeléveis de uma paisagem revolucionária que, iluminada pelas luzes ofuscantes do Caribe, iriam agora abrir suas trincheiras na esquerda urbana do Brasil.  

A luta armada
  No começo de 68 se discutia muito por aqui o livro Revolução na Revolução de Régis Debray. Publicado em inícios de 67, em Cuba, numa edição de duzentas mil cópias, a obra se espalhou pela América Latina e os primeiros exemplares que chegaram ao Brasil foram enviados pelos nossos exilados de 64, do Chile. Debray, que em meados da década de 60 estivera observando a guerrilha venezuelana comandada por Douglas Bravo, – onde conheceu sua mulher, a então guerrilheira e hoje antropóloga Elisabeth Burgos, tristemente célebre pela falsa biografia que escreveu sobre a gualtemateca Rigoberta Manchú, Nobel da paz de 1998 – foi colher os subsídios para  o seu livro, na experiência cubana em Sierra Maestra. O disputado livro Revolução na Revolução, escrito pelo intelectual francês aos 26 anos, propunha a Teoria do “foco guerrilheiro”, baseado num “foco militar rural” como a melhor estratégia para se iniciar a vanguarda da luta revolucionária e a tomada posterior do poder pelas massas. 
  Neste sentido, e pela sua importância nessa cronologia, é sintomático dizer que em janeiro daquele ano, – apesar da malograda aventura armada de Jefferson Cardin, no noroeste do Rio Grande do Sul, em 65 e do fiasco da guerrilha brizolista de Caparaó, abortada em abril de 67 –, o Partido Comunista do Brasil (PC do B), começava a montar sua base guerrilheira na margem esquerda do Rio Araguaia, e por aquelas matas já transitava meia dúzia de seus quadros disfarçados. Entre eles, o “Osvaldão”, o Maurício Grabois e o grande João Amazonas. Por outro
lado a Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella, – que após participar da reunião da OLAS em meados de 67 , em Cuba, rompera com o Partidão – buscou seus próprios caminhos e tomou a dianteira, “na ação e na vanguarda” fazendo sua primeira “expropriação” a um carro pagador em novembro de 67 e em março de 68 explodindo uma bomba no consulado americano em São Paulo. Em junho a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), formada de uma dissidência radical da Política Operária (POLOP) e dos remanescentes brizolistas do MNR, explode uma bomba no Quartel General do II Exército. Em julho, o Comando de Libertação Nacional (COLINA), também uma dissidência da POLOP, faz uma equivocada execução política no Rio de Janeiro confundindo o major alemão Edward von Westernhagen, com o major boliviano Gary Prado, tido como o matador de Che Guevara. Em agosto a ALN faz uma nova “expropriação” ao vagão pagador do trem Santos-Jundiaí. Entre muitas outras ações realizadas em 68 por comandos revolucionários, destaca-se o julgamento e a execução pela VPR do capitão americano Charles Chandler, no mês de outubro em São Paulo, tido, pela organização, como agente da CIA e torturador de vietcongues, no Vietnã. Assim as organizações de esquerda tomaram a ofensiva na luta revolucionária tanto nas ações com objetivos logísticos para a compra de arma e de apoio aos seus quadros clandestinos, como nessas discutíveis execuções, ações de caráter político retaliatórias que não tiveram os efeitos publicitários que buscavam. Os sequestros, porém, que tiveram início em setembro de 69 com o embaixador Elbrick, eram ações políticas inteligentes e justificáveis para libertar prisioneiros barbaramente torturados. Neste sentido a conotação que o Regime dava para o termo terrorismo ao referir-se às ações políticas de sobrevivência da esquerda revolucionária era um eufemismo, se comparada com os planos diabólicos da Ditadura. O caso Para-Sar, em 68, já prenunciava o que seria a dimensão da tortura e das execuções, com requintes de crueldade, perpetradas pelos órgãos de segurança em todo o país.
Osasco, 1º de Maio da Sé. Liderado por um jovem dirigente,
 do Sindicato dos Metalúrgicos, José Ibrahim, com apenas 19 anos, 
Outras bandeiras de luta
   No amplo contexto deste enfrentamento com a Ditadura muitas outras bandeiras foram levantadas. No plano sindical a mobilização popular começa a mostrar a sua cara em abril de 68 com a greve de Contagem, em Minas Gerais e em maio em São Bernardo do Campo. O grande destaque, contudo, foi dado pela greve de 1º de maio em Osasco, que mobilizou operários, camponeses, estudantes e intelectuais. Os metalúrgicos tomaram a fábrica que depois foi invadida pelo exército e os trabalhadores foram presos.
  No plano cultural, a partir de julho o alvo da Ditadura passa a ser a atividade teatral, ainda traumatizada com o desmantelamento, em 64, do Centro Popular de Cultura (CPC). O questionamento político, através da dramaturgia, recuperava-se gradativamente. Lembro-me que, em meados de 65, assisti, aqui em Curitiba , à peça Liberdade, Liberdade. Escrita por Millôr Fernandes e montada pelo grupo Opinião, sob a direção de Flávio Rangel, o espetáculo era protagonizado por Paulo Autran e Tereza Raquel. Com ela se inaugura o teatro de resistência, dramatizando um apanhado de textos retirados da Literatura universal sobre o tema Liberdade onde os atores representavam uma postura explícita de enfrentamento à Ditadura.
   Assim, nessa linha de questionamentos o cinema empunha também sua bandeira ideológica e o filme Terra em transe de Glauber Rocha, propõe, hipoteticamente, as duas saídas para a tomada do poder: ou pela lenta organização política das massas, proposta pelo Partidão ou através da luta armada, segundo a Teoria do Foco. Já o propósito do teatro era despertar, a qualquer preço, a consciência política da plateia, como fizera, com irreverente dramaticidade, na apresentação de Roda Viva, em São Paulo. No ritmo dessa saudável disputa, a música popular deixou um rastro de luminosa beleza nas composições de Chico Buarque e sobretudo de Geraldo Vandré, com quem a nação inteira cantou “Caminhando” e “Pra não dizer que não falei de flores”. A nota dissonante nesse engajamento foi dada pelos efeitos anarquistas, e da nascente anti-cultura que os versos de Allen Ginsberg e a prosa rebelde de Jack Kerouac –, os pais intelectuais da Beat Generation – por certo deixaram em parte daquela geração musical, levando a consciência política da juventude de 68, a proibir, com suas vaias, no festival da canção, a música “É proibido proibir”, de Caetano Veloso.
  A reação do regime a todo este desafiante fenómeno cultural começa em julho com a participação do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) depredando o teatro e espancando os atores da peça Roda-Viva em São Paulo. Posteriormente houve o atentado à peça O burguês fidalgo e a explosão do Teatro Opinião, no Rio. Em outubro, um comando de oficiais do Centro de Informações do Exército lançam uma bomba na Editora Civilização Brasileira, dirigida por Ênio Silveira, que naquele ano publicava um livro por dia, com ênfase para grandes escritores de esquerda como Nelson Werneck Sodré, Hélio Jaguaribe, Isaac Deutscher, George Lukács, Antônio Gramsci, e outros, cujas obras – para ficarmos apenas nas editadas pela Civilização – estiveram na formação da cultura política de toda uma geração.
O Ato Institucional nº 5
  Naquele 2 de setembro, logo após a pancadaria, invasão e prisão de estudantes na Universidade de Brasília pela PM e pelo DOPS, o deputado carioca Marcio Moreira Alves, fazendo coro com outros parlamentares, denunciou com veemência, no Congresso, a verdadeira operação de guerra usada contra os universitários. Convocou, com seu discurso, os brasileiros a não participar dos festejos de 7 de setembro como um “boicote ao militarismo” e, num rasgo extravagante de eloquência perguntou: Até quando o Exército será o valhacouto de torturadores? A frase que passou quase despercebida pelos seus pares e não teve nenhum destaque da imprensa nacional, provocou, posteriormente, profundos ressentimentos entre os militares. A partir daí começou a fermentar aquele prato cheio que os radicais do Regime estavam esperando como pretexto para oficializar a repressão. Enfim, a despeito da sua boa intenção, o seu discurso gerou o mais grave fato político de 68 e a maior crise institucional na história da Ditadura. Mas quem era afinal o pivô da crise que levou ao AI-5? Marcio Moreira Alves, descendente dos Mello Franco, fizera brilhante carreira como jornalista do Correio da Manhã, trincheira ideológica de onde se esgrimiam contra o Regime Militar os afiados artigos de Paulo Francis, Otto Maria Carpeaux, Antônio Callado, Carlos Heitor Cony, Hermano Alves e dele próprio. Em 66 publicou o livro Torturas e Torturados, denunciando, com farta documentação, as torturas e as inomináveis injustiças que se cometeram nos primeiros meses após o golpe de 64. Com base na ofensa que o discurso de Marcio causara nas Formas Armadas, forças estranhas e inconfessáveis passaram a atuar para precipitar a radicalização do Regime. À medida que o ano terminava se fechava o cerco sobre o próprio Congresso, e por trás desse impasse estava o Ministro da Justiça, Gama e Silva – que, embora não atuasse à sombra do poder, pelos seus insidiosos conselhos ao Presidente Costa e Silva, era a eminência parda do Regime, na época. E assim, em fins de novembro, o pedido para condenar Marcio, já passara pelo Supremo, mas encontrava a resistência dos próprios parlamentares governistas na Comissão de Constituição e Justiça. No dia 10 de dezembro o insuspeitável deputado governista Djalma Marinho, presidente daquela Comissão e amigo leal de Costa e Silva, vai à tribuna, renuncia à presidência e, em seu discurso, citando Calderón de la Barca, diz com todas as letras: “Ao rei, tudo; menos a honra”. Este foi um dos raros gestos de honra política na nossa história parlamentar – numa época ainda sem fisiologismo, pró-labore mensal e varejo do voto – e o aval que muitos deputados da Arena precisavam para derrotar o próprio governo. Na tarde de 12 de dezembro o pedido foi negado por ampla maioria e, no dia seguinte, uma sexta-feira 13 de um ano bissexto, foi promulgado o Ato Institucional nº 5, o AI-5.
A Repressão
  O AI-5 levou à prisão centenas de pessoas no país inteiro. Políticos como JK e Carlos Lacerda; juristas como Heleno Fragoso e Sobral Pinto, preso em Goiânia, aos 75 anos de idade; intelectuais como Antônio Callado, Ênio Silveira, Paulo Francis, Carlos Heitor Cony, Glauber Rocha, Millôr Fernandes, e muitos outros.
  Aqui no Paraná, e particularmente em Curitiba, não foi diferente. O Coronel Bianco pôs todo o seu pessoal na rua em busca dos subversivos. O golpe, no golpe, quatro dias depois, atingiu em cheio uma reunião regional da UNE, realizada na chamada Chácara do Alemão, no bairro Boqueirão, em 17 de dezembro. Foram presos 42 estudantes e entre eles o cearense João de Paula, um sobrevivente da UNE que não foi a Ibiúna. Caíram também Berto Luiz Curvo, presidente da União Paranaense de Estudantes (UPE), Vitório Sorotiuk, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE), João Bonifácio Cabral Junior, do Diretório de Direito da PUC, e outros dirigentes. Todos foram condenados pela Auditoria da 5ª Região Militar, a 2 e 4 anos de prisão.       Entre os militantes, um dos primeiros a cair foi Aluizio Palmar, do MR-8, que em 2005 publicou o livro Onde foi que vocês enterraram nossos mortos, relatando o trágico destino que teve o grupo guerrilheiro de Onofre Pinto, traído e executado ao entrar em Foz do Iguaçu, em 1974. Oriundo do primeiro MR-8, de Niterói, Aluizio desmobilizava as bases da organização no Oeste do Paraná, quando foi preso em abril de 69. Depois dele caíram mais quatro na região, e os demais em Curitiba e no Rio. Enfim, por aqui foi um corre-corre geral. O autor destas linhas deixou o país em março de 69. Seu poema “Saudação a Che Guevara”, pregando a luta armada e panfletado antes do AI-5, foi parar no DOPS, nas mãos do Coronel Bianco. Ninguém mais sabia de ninguém. Os que não foram presos se esconderam ou fugiram. Daquela turma de Curitiba muitos nos reencontraríamos anos depois e longe daqui. Só fui rever o Vitório Sorotiuk e o Luiz Felipe Ribeiro, companheiros de Direito da Federal, no Chile socialista de Salvador Allende, em abril de 72, naquela bela Santiago, florida de revolucionários. 
  O AI-5 sufocou os últimos suspiros da democracia. Fechou o Congresso, rasgou a Constituição, amordaçou a imprensa, suspendeu o hábeas corpus, cassou políticos, demitiu funcionários, transferiu e reformou militares, foi enchendo as prisões e abrindo os caminhos do anonimato, os becos da clandestinidade e a via crucis da perseguição, da incomunicabilidade, da tortura, do desaparecimento e da morte. Fora desse contexto, a vida do povo corria normalmente. Sem uma visão crítica do processo histórico, tudo fluía sem maiores questionamentos. “A massa não pensa”, como dizia Gustave Le Bon. Estávamos às vésperas do carnaval de 69, a Copa de 70 estava a caminho e a televisão se instalando no país. Cada cidadão tinha o seu dia a dia: alienado ou engajado. Era, por outro lado, também tudo aquilo que Jamil Snege retratou no seu grande livro Tempo sujo, publicado naquele ano. Quarenta anos depois, muitos de nós que testemunhamos tantos fatos, podemos afirmar que 1968 foi o ano que tatuou nossas almas com as tintas luminosas da paixão revolucionária e com as cicatrizes indeléveis da perplexidade, do pânico e do sofrimento. Hoje aqui viemos, alegres por podermos partilhar nossas lembranças, por ainda preservarmos nossos sonhos e estender, com estas palavras, nossas mãos solidárias aos sobreviventes de tantas trincheiras. Mas estamos aqui, também e, sobretudo, para rogar a um poder maior que leve para além das  fronteiras do encanto o nosso imperecível reconhecimento àqueles que nunca hesitaram em comprometer seus passos, àqueles que nos ensinaram a dizer sim-sim e não-não. Aqueles que rumaram para as estrelas para semear o amanhã. Aqueles cuja bandeira tremula nos punhos da pátria agradecida e a quem o próprio Che nos ensinou a dizer: hasta siempre."
(continua)
 Manoel de Andrade, in “ As Palavras no espelho”, Escrituras Editora e Distribuidora de Livros Ltda, São Paulo, Brasil, 2018, pp 32-41