domingo, 30 de abril de 2023

Ao Domingo Há Música


A foice dos teus ceifeiros
Trago no peito gravada
ó minha terra vermelha
Como bandeira sonhada
 Urbano Tavares Rodrigues

Portugal é diverso e rico em cantares regionais. O Alentejo , uma extensa região do sul, tem um vibrar próprio.  Os sons fundem-se nas vozes,   em ritmo partilhado e cadenciado,  para se perderem  na imensidão das searas , "onde o tempo caminha/ sem chegar".

Dulce Pontes & Os Ganhões de Castro Verde, em  É Tão Grande o Alentejo (Tradicional / Arranjos de Dulce Pontes, António Pinheiro da Silva e Albert Boekholt)
  
A voz de  Ricardo Ribeiro, acompanhada ao piano por  João Paulo Esteves da Silva , em Mondadeiras , cante alentejano ( Letra  de Zeca Torrão e  Música de Francisco Torrão)

sábado, 29 de abril de 2023

Eça no Panteão?

Eça de Queirós por Rafael Bordalo Pinheiro

Eça no Panteão?
(Em modo de pilhéria)
 
O Eça no Panteão?
Na companhia de quem?
No Panteão, um gozão?
Ali, que pilhéria tem?
Há risota no Panteão?
Pode xingar-se um ministro?
Ali, come-se faisão?
Que local tão sinistro,
pra escritor tão luminoso!
Quem inventou panteão
era um cara caveiroso,
à procura de prisão.
No Panteão há Paris?
No Panteão diz-se mal
e come-se perdiz?
Existe ali carnaval?
Mandar-se pró Panteão
um Eça pilherioso
é obra de manganão,
de espírito tortuoso!
Ponha-se lá a Agustina
e os livros que escreveu;
junte-se-lhe naftalina
e faça-se um museu!
Mas fique em paz o Eça,
na Tormes que tanto amava,
e com vigor se impeça
que saia de onde estava!
                  29.04.2023
Eugénio Lisboa

A decadência do riso

A decadência do riso
por Eça de Queirós
“Eu penso que o riso acabou – porque a humanidade entristeceu. E entristeceu – por causa da sua imensa civilização. (...) Quanto mais uma sociedade é culta - mais a sua face é triste. (...) Tanto complicámos a nossa existência social , que a Acção, no meio dela, pelo esforço prodigioso que reclama , se tornou uma dor grande: - e tanto complicámos a nossa vida moral , para a fazer mais consciente, que o pensamento, no meio dela, pela confusão em que se debate , se tornou uma dor maior. O homem de acção  e de pensamento , hoje, está implacavelmente votado à melancolia.
Esse pobre homem  de acção, que todas as manhãs , ao acordar , sente dentro em si acordar também o amargo cuidado do pão a adquirir, da situação social a manter, da concorrência a repelir, da "íngreme escada a trepar", poderá porventura afrontar o Sol com singela alegria? Não. Entre ele e o Sol está o negro cuidado, que lhe estende uma sombra na face, lhe mata nela, como a sombra faz às flores, a flor de todo o riso.
(...) O Infeliz está votado ao bocejar infinito. E tem por única consolação que os jornais lhe chamem e que ele se chame a si próprio – O Grande Civilizado.”
                                                      Gazeta de Notícias, 1891
Eça de Queiroz, , in A Decadência do riso - Notas Contemporâneas, Lisboa, Edição Livros do Brasil,  pp.165-167

quinta-feira, 27 de abril de 2023

EÇA NO PANTEÃO NÃO TEM ADESÃO

Casa de Tormes, Santa Cruz do Douro

EÇA NO PANTEÃO NÃO TEM ADESÃO
por Eugénio Lisboa
“Somos um país de modas mais ou menos efémeras. De vez em quando, descobrimos uma moda nova e pomo-la de serviço, sem rei nem roque.
Durante décadas e décadas, nunca ninguém se preocupou com o Panteão, nem sequer se lembrou de que ele existia. Mas quando alguém se lembrou dele, já nem sei a propósito de quê ou de quem, o Panteão passou a ser o prato de arroz doce de todos os banquetes culturais. Estar ou não estar no Panteão, eis a questão. Quando uma personalidade de algum destaque cultural, científico, desportivo, militar ou político morria, aqui d’El-Rei que deve ir para o Panteão. À falta de melhor manjar, a comunicação social pegava neste e os opinantes ganhavam o dia. Tema qualquer serve, como diria a grande Irene Lisboa.
Propunha-se levianamente despachar para aquele sítio feioso e pouco acolhedor os restos mortais de alguém, sem realmente se ter em conta se esse teria de facto sido um desejo do falecido ou dos seus próximos, em representação dele. Ora não é difícil supor que um Pascoais preferiria, de longe, ficar no Marão, um Régio, em Vila do Conde, um Ferreira de Castro, em Ossela ou Sintra, um Camilo, em S. Miguel de Seide ou Porto, um Torga, em São Martinho da Anta  e um Eça, em Tormes. Isto, para dar só alguns exemplos. Se a autorização final deve caber ao Parlamento, a iniciativa da trasladação deve competir aos familiares, em consulta com os conhecedores profundos da obra e das idiossincrasias do falecido.
Pensar que o Panteão é o desejo ardente dos notáveis é ignorar o enorme poder de atracção que outros locais, carregados de magnetismo emocional, possam ter tido para o ilustre falecido. Por exemplo, ser enterrado na terra natal, ou na terra em que se foi feliz ou junto do companheiro ou companheira de toda uma vida. Tais sítios são polos de atracção muito mais poderosos do que um Panteão álgido, hostil e escassamente visitado. Um Panteão, perdoem-me a franqueza rude, é mais um depósito pouco atraente do que um lugar aprazível, para final de percurso.
A grande maioria dos grandes de França não se encontram sepultados no Panteão, estão no Père Lachaise ou noutros cemitérios onde preferiram ficar sepultados.
Esta gritaria recente, para se enviar Eusébio, Amália, Sophia, para o Panteão, faz parte do nosso irredimível provincianismo, que não é capaz de ver para além de falsos cenários.
Em Portugal, quando verificamos TODAS as personalidades de alto relevo, que nunca tiveram lugar no Panteão Nacional, apetece mesmo lá não estar.
A anunciada e próxima futura trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional é uma perfeita aberração e, ao que sei, não obteve a devida aprovação de quem de direito. Foi uma ideia oportunista e provinciana de alguém que é hoje ministro e que provavelmente conhece mal a obra e a personalidade do autor de O CRIME DO PADRE AMARO, mas conhece bem a arte de se tornar visível, à boleia de uma péssima ideia.
No Panteão de Paris, estão apenas os restos mortais de 75 personalidades, e a esmagadora
maioria dos grandes escritores franceses não está lá. Dos escritores do século XX está lá só UM, André Malraux, e não estão lá Anatole France, André Gide, Marcel Proust, Henry de Montherlant, Romain Rolland, Paul Valéry, Paul Claudel, Colette, Georges Duhamel, Roger Martin du Gard, François Mauriac, Julien Green, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Aragon, Jean Giraudoux, Marcel Aymé, Maurice Barrès, Antoine de Saint-Exupéry, Jean Anouilh, Raymond Queneau, Jacques Prévert, Jules Supervielle, Saint-John Perse, Jean Giono, Georges Simenon, etc.
NÃO ESTAR no Panteão está portanto longe de ser uma humilhação ou apenas razão de melancolia. Digamos que a melhor companhia até está cá fora e é cá fora, em Tormes, que Eça deve ficar. E ficará muito bem: estou certo de que assim o diria, se pudesse falar.”
Eugénio Lisboa, 27.04.2023

Smile

  

Madeleine Peyroux, em   Smile.

A geometria do caos

A geometria do caos
por Arturo Pérez-Reverte
“Ivo Markovic continuava a olhar o mar. Creio que tem razão, senhor Faulques, disse. Tem-na nisso das regras e das riscas do tigre e das simetrias ocultas que de repente se manifestam, e uma pessoa descobre que talvez tenham estado sempre ali, dispostas a surpreender-nos. É verdade que qualquer pormenor pode mudar a vida: um caminho que não se toma, por exemplo, ou que se demora a tomar por causa de uma conversa, de um cigarro, de uma recordação.
- Na guerra, claro, tudo isso importa. Uma mina que não se pisa por centímetros... Ou que se pisa...
(...)
- É possível que o acaso seja equívoco, efectivamente (...). O que o fez escolher-me a mim e não a outro? (...)
- Escolher, disse [Faulques].
- Sim.
- Dir-lhe-ei o que é escolher.
Então Faulques falou durante um bocado - à sua maneira, entre pausas prolongadas e silêncios - de escolhas e de acasos. Fê-lo referindo-se ao franco atirador junto de quem passara quatro horas deitado no chão do terraço de um edifício de seis andares de onde se dominava uma ampla vista de Sarajevo. O franco atirador era um sérvio-bósnio de uns quarenta anos, magro e de olhos tranquilos, que cobrara a Faulques duzentos marcos para o deixar ficar a seu lado enquanto disparava sobre as pessoas que corriam a pé ou passavam a toda a velocidade de automóvel pela avenida Radomira Putnika, na condição de o fotografar a ele e não à rua, para evitar que localizassem a sua posição através do enquadramento. Conversaram em alemão durante a vigília, enquanto Faulques brincava com as máquinas para que o outro se habituasse a elas, e o seu interlocutor fumava um cigarro atrás do outro, inclinando-se de vez em quando para dar uma vista de olhos atenta ao longo do cano de uma espingarda SVD Dragunov, encaixada entre dois sacos de terra, onde estava apoiada uma potente mira telescópica que apontava para a rua, através de uma fresta estreita aberta na parede. Sem complexos, o sérvio tinha admitido que disparava igualmente contra homens, mulheres ou crianças e Faulques não lhe fez perguntas de índole moral, entre outras coisas porque não estava ali para isso e também porque conhecia sobejamente - não era o seu primeiro franco-atirador - os motivos simples pelos quais um homem com as doses correctas de fanatismo, rancor ou desejo de lucro mercenário podia matar indiscriminadamente. Fez perguntas técnicas, de profissional para profissional, acerca de distâncias, campo de visão, influência do vento e da temperatura na trajectória das balas. Explosivas, especificara o outro num tom de voz objectivo. Capazes de fazer explodir uma cabeça como se fosse um melão sob um martelo, ou de rebentar as entranhas com total eficácia. E como escolhes, perguntou Faulques. Refiro-me a se disparas ao acaso ou seleccionas os alvos. Então o sérvio expôs uma coisa interessante. Nisto não há acaso, explicou. Ou havia muito pouco: o necessário para que alguém decidisse passar por ali no momento certo. O resto era coisa sua. A alguns matava-os, a outros não. Tão fácil como isso. Dependia da forma de andar, de correr, de parar. Da cor do cabelo, dos gestos, da atitude. Das coisas a que os associava ao vê-los. No dia anterior tinha estado a apontar para uma rapariguinha ao longo de quinze ou vinte metros e, de repente, um gesto casual desta fê-lo pensar na sobrinha pequena - nesse ponto o franco-atirador abriu a carteira e mostrou a Faulques uma fotografia familiar. - De modo que não atirou sobre ela, escolhendo em troca uma mulher que estava perto, debruçada a uma janela, quem sabe talvez à espera de ver como matavam a rapariga que caminhava distraída e a descoberto. Por essa razão dizia que isso do acaso era relativo. Havia sempre alguma coisa que o fazia decidir-se por este ou por aquele, dificuldades operacionais à parte, claro. Passava-se o mesmo com os condutores de automóveis em andamento: às vezes deslocavam-se depressa de mais. De repente, a meio da explicação, o franco-atirador ficara tenso, as suas feições pareceram definhar e as pupilas contraíram-se enquanto se inclinava sobre a espingarda, ajustava a culatra ao ombro, colava o olho direito ao visor e colocava suavemente o dedo no gatilho. 'Jagerei', sussurara no seu mau alemão, entre dentes, como se lá em baixo o pudessem ouvir. Caça à vista. Decorreram alguns segundos enquanto a espingarda descrevia um lento movimento circular para a esquerda. Depois, com um único estampido, a culatra bateu-lhe no ombro e Faulques pôde fotografar o primeiro plano daquela cara magra e tensa, com um olho semicerrado e o outro aberto, a pele por barbear, os lábios apertados como uma linha implacável: um homem qualquer, com os seus critérios selectivos, as suas recordações, antipatias e inclinações, fotografado no momento exacto de matar. Bateu ainda uma segunda chapa quando o franco-atirador afastou a cara da culatra da espingarda, olhou para a objectiva da Leica com olhos gelados e, depois de beijar ao mesmo tempo os três dedos da mão com que tinha disparado, polegar, indicador e médio, fez com eles a saudação sérvia da vitória. Queres que te diga em quem acertei?, perguntou. Porque escolhi este alvo e não outro? Faulques, que verificava a luz com o fotómetro, não quis saber .A minha máquina não fotografou isso, disse, logo não existe. Então o outro olhou para ele em silêncio durante algum tempo, sorriu apenas, depois ficou sério e perguntou-lhe se há dois dias tinha passado junto da ponte Masarikov ao volante de um Volkswagen branco com um vidro partido e as palavras 'Press-Novinar' feitas com fita adesiva vermelha sobre o capô. Faulques ficou imóvel por instantes, acabou de guardar o fotómetro no seu saco de lona e respondeu com outra pergunta cuja resposta adivinhava. Então o sérvio deu uma palmada leve na 'Zeiss' telescópica da sua espingarda. Porque te tive, respondeu, nesta mira, durante quinze segundos. Restavam-me apenas duas balas e, depois de pensar, disse para comigo: hoje não vou matar este 'glupan'. Este tonto."
Arturo Pérez-Reverte, in O Pintor de Batalhas, Edições ASA, p.144-149
Sobre o llivro:
"A história mais intensa e perturbadora da já longa carreira de Arturo Pérez-Reverte. Do Vietname ao Líbano, do Cambodja à Eritreia, de El Salvador à Nicarágua, de Angola e Moçambique aos Balcãs e ao Iraque… Depois de trinta anos a tirar fotografias em busca da imagem definitiva, do momento a um só tempo fugaz e eterno que explica tudo, o fotógrafo de guerra André Faulques substituiu a câmara pelos pincéis. Não conseguindo tirar a foto capaz de transmitir o caos do Universo, agora, enquanto tenta compreendê-lo, começa a pintar um grande fresco circular no muro de uma torre de vigia no Mediterrâneo, onde vive sozinho, perturbado pela memória de uma mulher que nunca conseguiu esquecer e pela visita inesperada de um homem que o quer matar. O homem é uma sombra do seu passado, uma das inúmeras faces da guerra com que ele ganhou a vida. Mas o poder da imagem vai muito além da sua existência física e, à medida que o romance avança, a história do artista e do soldado emerge, entrelaçada com uma história de amor condenada e o progresso de uma pintura impregnada de História. Deslumbrante do início ao fim, O Pintor de Batalhas arrasta o leitor e subjuga-o, através da complexa geometria do caos do século XX: a arte, a ciência, a guerra, o amor, a lucidez e a solidariedade combinam-se no vasto mural de um mundo que agoniza."

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Terras de Portugal - Alto Minho

  

Alto Minho | Paisagem
 00:00 Introdução
 00:24 Miradouro de Tibo - Serra da Peneda
 00:44 Litoral Norte - Castelo do Neiva - Porto de pesca artesanal 
00:51 Ponte da Cava da Velha - Serra da Peneda 
01:00 Montedor - Carreço - Praia de Fornelos 
01:07 Paço de Calheiros 01:15 Porta de Lamas de Moura - Serra da Peneda 
01:23 Passadiços do Vez - Rio Vez 
01:30 Melgaço - Porta da Vila e Castelo 01:38 Litoral Norte - Dunas da praia de Chafé 
01:53 Monção 
01:59 Litoral Norte Foz do Rio Neiva 
02:07 Santuário da Senhora da Peneda - escadório e rotunda 
02:33 Rio Adrão - Soajo 02:38 Valença do Minho 
02:49 Torre de Lapela - Monção 
03:00 Serra de Arga - Santuário de Santa Justa 
03:12 Praia de Paçô - Afife 03:23 Ponte de Lima 
03:33 Corno de Bico - Paredes de Coura 
03:51 Pincães - Aldeia e Cascata 
05:00 Vale do Cabril 05:20 Miradouro da Pedra Bela - Vilar da Veiga
06:19 Albufeira da Caniçada 06:40 Passadiços do Vez - Ecovia 
07:15 Ponte de Vilela - Rio Vez - Ecovia 
07:24 Poço das Caldeiras . Rio Vez - Ecovia 
07:50 Cascata do Tahiti - Ermida 
09:39 Ponte de Misarela - Rio Rabagão 
13:15 Branda do Alhal - Sistelo 
14:00 Branda de Santo Antonio 
14:38 Vale do Rio Minho - Vila Nova de Cerveira 
15:05 Seixas - Rio Minho 
15:25 Caminha 
15:43 Miradouro de Santo Antão 
15:55 Ecovia dos Açudes - Vale do Lima 
17:06 Quinta do Ameal - Vale do Lima 
17:18 Ponte da Barca 
17:31 Mosteiro de Refoios do Lima 
17:39 Quinta da Torre - Refoios do Lima 
17:50 Ponte de Arcos de Valdevez 
18:17 Espigueiros do Soajo 
18:39 Aldeia de Boimo - Serra da Peneda - Mezio 
18:51 Mezio 
19:07 Aldeia de Rouças - Serra da Peneda 
19:25 Porta do Mezio 
19:36 Aldeia de Rouças - Serra da Peneda 
19:42 Aldeia de Tibo - Serra da Peneda 
19:50 Aldeia de Gavieira - Serra da Peneda 
19:57 Aldeia de Varziela - Serra da Peneda 
20:07 Vale do Rio Laboreiro - Serra da Peneda 
20:15 Aldeia de Padrão - Socalcos do Sistelo 
20:25 Aldeia de Pontes - Serra da Peneda 
20:30 Praia da Gelfa - Vila Praia de Âncora 
20:45 Vila Praia de Âncora - Ecovia do Litoral Norte 
22:12 Vila Praia de Âncora - Anta da Barrosa
22:25 Vila Praia de Âncora - Capela românica de S.Pedro de Varais

terça-feira, 25 de abril de 2023

Venha Abril

Abril desgosta ainda tanta gente!
A liberdade faz tanto mau sangue!
Por que será que um viver deprimente,
que deixa o espírito exangue,
 
atrai ainda tanto militante
de causas brutais e assassinas?
O passado não serviu de purgante?
Para que servem as vossa oficinas,
 
ó poetas que acham que a linguagem
não passa de estéril masturbação
e é só subserviente pajem
 
dos que preferem castrar a canção?
Venha Abril para nos incomodar
e fazer, mais uma vez, acordar!
                          25.04.2023
Eugénio Lisboa

Recordar o passado

A palavra por dentro da guitarra
a guitarra por dentro da palavra.
Ou talvez esta mão que se desgarra
(com garra com garra)
esta mão que nos busca e nos agarra
e nos rasga e nos lavra
com seu fio de mágoa e cimitarra.

Asa e navalha. E campo de Batalha.
E nau charrua e praça e rua.
(E também lua e também lua).
Pode ser fogo pode ser vento
(ou só lamento ou só lamento).

Esta mão de meseta
voltada para o mar
esta garra por dentro da tristeza.
Ei-la a voar, ei-la a subir
ei-la a voltar de Alcácer Quibir.

Ó mão cigarra
mão cigana
guitarra guitarra
lusitana.

Manuel Alegre 

 
 Madredeus & Carlos Paredes, em " Mudar de Vida "
 
Carlos Paredes , em "Guitarra Portuguesa"
 00:00 Variações em ré maior
 02:41 Porto Santo
 04:59 Fantasia 
07:41 Melodia nº 2 
09:33 Dança
12:00 Canção verdes anos 
15:04 Divertimento 
18:07 Romance nº 1 
21:43 Romance nº 2 
25:12 Pantomima 
28:20 Melodia nº1

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Viver com um só livro

Viver com um só livro
por Eugénio Lisboa
“Já algures contei que a escritora inglesa Nancy Mitford dizia ter lido em toda a sua vida um único livro: WHITE FANG, de Jack London (na tradução portuguesa, CANINOS BRANCOS). Achou o livro de tal modo bom, que não sentiu necessidade de ler mais nenhum. Quando sentia desejo de ler, ia buscar esse famoso romance, porque tinha a certeza de ir gostar, ao passo que não poderia ter tal certeza, se fosse buscar outro livro qualquer. Isto é, o livro de London “secava” , para ela, todo o território literário em volta. Obra que lhe não trouxesse aquele mundo e lhe não desse a mesma espécie de prazer não lhe interessava.
Isto, assim dito, pode parecer bizarro e é-o, dado o extremismo que implica. Mas, de certo modo, penso que todos vivemos algo análogo, embora não durando, para nós, tal exclusividade num livro só, a vida inteira. Porque eu próprio experimentei já algo de parecido com isto, embora por um período relativamente curto. Vou dar alguns exemplos.
Quando, por altura dos meus catorze ou quinze anos, me caiu nas mãos um exemplar esfrangalhado do admirável romance de Stendhal, LE ROUGE ET LE NOIR, numa bela tradução de José Marinho, o livro de tal modo se apossou de mim, que, durante algum tempo, livro que não tivesse as virtudes apaixonadas e acutilantes deste não me dizia nada e só me aborrecia. A candura da Senhora de Rênal ou o orgulho da Mathilde de La Mole, dados naquela prosa lavada, acutilante e voltaireana, tomaram completa conta de mim. Ou se era Stendhal ou se não era nada. A sedução foi de tal ordem, que, chamando-se o protagonista do romance Julien Sorel, pus-me logo a escrever um romance intitulado HISTÓRIA DE JULIÃO, para ombrear com aquele admirado rival. Victor Hugo, na adolescência, desvelava assim a sua ambição: “Quero ser Chateaubriand ou nada.” Eu dizia com os meus botões: “Quero ser Stendhal ou nada!”
Quem não foi megalómano, na adolescência, é porque nunca foi realmente adolescente. Até porque os adolescentes megalómanos se convertem, anos depois, em adultos com os pés bem na terra. Assim aconteceu comigo que, em devido tempo, com a alma a sangrar, mandei para o cesto dos papéis a minha HISTÓRIA DE JULIÃO. Ninguém tem de ter acesso às nossas tropelias.
Tempos depois, encontrei, no CANDIDE de Voltaire, na sua prosa ágil e na sua ironia atrevida de “gamin”, a mesma sedução envolvente, que encontrara em Stendhal. Era um dizer um enorme número de coisas, em poucas palavras e em velocidade de cruzeiro.
Uma verdadeira sedução!
Mas o grande terramoto de deslumbramento foi a descoberta do teatro de Oscar Wilde, de quem li tudo, peça por peça, numa agonia de nunca poder ser tão brilhante como ele. Como é que se podia escrever, sem se ser capaz daquela cintilação sem igual? WIlde, para mim, como Jack London, para Nancy Mitford, secava todo o território da literatura à minha volta. Era como os eucaliptos que secam a terra em seu redor. O brilho demasiado intenso ofusca e agoniza: como se pode não tê-lo? E punha-me, desastradamente, a inventar fórmulas infalíveis para produzir paradoxos… Pela vida fora e num número muito variado de países, mas sobretudo em Londres, nunca perdi uma encenação de uma peça de Wilde. A sedução foi para ficar. Nem na trágica queda final da sua vida, na sórdida exposição nos tribunais, acusado de pedofilia, Wilde resistiu a fazer faiscar o seu génio cintilante, mesmo ao preço de agravar o seu caso. Foi como ele previra, anos antes: “Na minha obra, pus só talento, génio pu-lo na minha vida.” Génio de brilho negro, mas ofuscante.
Outro livro que me marcou profundamente, por volta dos meus 16 anos, foi o volumoso romance americano, da autoria de um escritor hoje esquecido, Henry Bellamann, intitulado KING’S ROW, publicado em 1940. Situado numa pequena cidade ficticiamente conhecida como King’s Row, desenvolve uma história complexa, em volta das vidas de cinco crianças e da evolução das suas vidas. O romance abriu, para mim, muitas portas sobre temas “quentes” como a loucura, o sadismo, o sexo, o incesto, o homossexualismo e o suicídio, tudo urdido com inegável mestria. Também, por algum tempo, só queria encontrar outro livro como este, mas, infelizmente, Bellamann tentou escrever uma sequela para KING’S ROW, o mais famoso dos seus romances, tendo porém falecido,  de um ataque cardíaco, em 1945. KING’S ROW teve um enorme êxito, embora rodeado de acesa controvérsia, por ter revelado a hipocrisia de uma pequena cidade, desvelando, com grande mestria, temas tabus, naquela época. Eu li este livro, poucos anos depois de ter visto uma inesquecível adaptação cinematográfica dele, dirigida pelo notável Sam Wood, com interpretações de Ann Sheridan (Randy), de Robert Cummings (Parris Mitchel), Ronald Reagan (Drake), Claude Rains, o inesquecível polícia de CASABLANCA (Dr. Alexander Tower), Betty Field (Cassandra Tower), Charles Coburn (Dr. Gordon) e Nancy Coleman (Louise Gordon). O filme omite um ou outro tabu e emagrece bastante a história, mas deixa, ainda assim, uma forte impressão. Foi este romance que esteve na origem de posteriores romances de grande êxito comercial, como o PEYTON PLACE, de Grace Metalious e outros que se seguiram, inspirados por aquele guião dos anos quarenta.
Por fim, Hemingway, com o seu ADEUS ÀS ARMAS e uma colectânea de contos magistrais, que li, avidamente, no meu sexto ano do liceu. O seu estilo descascado, directo, declarativo, seco e assassino, fascinou-me. E custou-me caro: no exame de Português-Latim, na prova de Português, dei-me ao luxo de me pôr a imitar, com grande gozo, a prosa do autor americano. O que me salvou a nota de Português- Latim foi o dezoito que tive a Latim, porque o professor que me classificou a prova de Português, não informado da egrégia qualidade do futuro autor do OLD MAN AND THE SEA, puniu-me com um miserável catorze, não se apercebendo de que eu estava apenas a querer dar um novo ímpeto ao português narrativo… à boleia do grande inovador do conto moderno! Injustiças!
Eis alguns exemplos de livros e autores que, por um tempo, secaram tudo à minha volta. Quem não passou por isto?”
Eugénio Lisboa, 24.04.2023

Terras de Portugal

  

Beira Interior | Mix | Belezas de Portugal 
00:00 Introdução
00:49 Portas de Rodão 
00:56 Castelo Branco
01:13 Monsanto 
01:44 Penha Garcia 
02:02 Idanha-a-Velha 
02:21 Penamacor 
02:37 Serra da Malcata 
02:46 Sabugal
02:57 Vilar Maior 
03:11 Alfaiates
03:22 Sortelha 
03:56 Belmonte
04:16 Serra da Estrela : Manteigas 
04:21 Serra da Estrela : Vale do Zêzere
04:27 Serra da Estrela : Cântaro Magro
04:38 Serra da Estrela : Lagoa Comprida
04:41 Gouveia : Folgosinho
04:52 Celorico da Beira : Linhares da Beira 
05:15 Celorico da Beira : Vila e Castelo
05:31 Guarda 05:54 Castelo Mendo
06:27 Castelo Bom 
06:51 Almeida : Vila e Fortaleza 
07:20 Almeida : Malpartida 
07:32 Figueira de Castelo Rodrigo : Vermiosa 
07:44 Figueira de Castelo Rodrigo : Escarigo
 08:13 Figueira de Castelo Rodrigo : Torre de Almofala 
08:30 Figueira de Castelo Rodrigo : Mosteiro de Santa Maria de Aguiar
09:05 Figueira de Castelo Rodrigo : Castelo Rodrigo
09:35 Figueira de Castelo Rodrigo 
10:04 Pinhel 10:40 Trancoso 
11:13 Trancoso : Moreira de Rei 
11:38 Mêda : Marialva
12:05 Mêda : Longroiva

domingo, 23 de abril de 2023

Ao Domingo Há Música

Cartaz de comemoração do dia mundial do livro,
concebido por Lupa Design

… É o leitor que confere a um objecto , lugar ou acontecimento
uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o
leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e
depois decifrá-lo. Todos lemos a nós e ao mundo e à nossa volta
para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender.
(…) Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.
Manguel, A., in “ Uma história da leitura”

É neste aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o facto de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis. 
Italo Calvino

(...) Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.
Manoel de Barros , in “ Poesia Completa , Editora Leya

Hoje celebra-se o Dia Mundial do Livro. A  Direcção Geral do Livro  informa do seguinte:  " O Dia Mundial do Livro é  comemorado, desde 1996 e  por  decisão da UNESCO, a 23 de Abril.  Esta  data  foi  escolhida com  base  na lenda  de  S. Jorge  e  o  Dragão, que na  Catalunha  assinalam para  honrar  a velha  tradição segundo a qual, neste dia, os cavaleiros oferecem às suas damas uma rosa vermelha de S. Jorge (Sant Jordi) e recebem em troca um livro, testemunho das aventuras do cavaleiro.
Em simultâneo, é prestada homenagem à obra de grandes escritores, como Shakespeare, Cervantes ou Garcilaso de La Vega, falecidos ou nascidos em abril.
Também a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, em 2023, presta homenagem a alguns autores portugueses, cujos centenários de nascimento se assinalam: Eduardo Lourenço (1923-2020); Eugénio de Andrade (1923-2005); Mário Cesariny (1923-2006); Mário-Henrique Leiria (1923-1980); Natália Correia (1923-1993); Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013).
O cartaz, com concepção da Lupa Design, poderá ser descarregado no site da DGLAB e impresso.
Convidam-se as Bibliotecas Municipais e as livrarias a darem igualmente destaque aos autores, cuja obra é de particular importância para a literatura portuguesa.
Este cartaz vem no seguimento daquele que foi criado em 2016 para assinalar igualmente centenários de escritores."

O livro é esse objecto,  que se transforma em casa , quando nele entramos.  E, transformado,  ora é palácio vetusto ora uma cabana esplendorosa, ora é uma pequena cidade ora um libertário país,  ora   é  um grande  mundo ora  um  infinito universo.  O livro é tudo aquilo que passamos a ser e a ter,  enquanto o desvendamos. Somos muito daquilo que lemos.
E para que se entrelace, num apertado  abraço, o fascínio do livro  com  a sedução da música , junta-se  uma belíssima peça de um grande compositor. 
Lang Lang, em Piano Concerto No 5 Emperor, in E-Flat Major, Op. 73:Adagio un poco mosso,  de Ludwig van Beethoven.

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Vale a pena fazer um soneto?


Vale a pena construir um soneto,
sílaba a sílaba, bem contadas,
sem que a medida tenha cianeto
que assassine as palavras aladas?
 
Um soneto é como uma casa,
se mal calculada, ela desmorona.
Tal como na casa, nada transvasa,
o que a faria algo trapalhona.
 
Um rigor que acolhe a emoção
e, com elegância, abraça a ideia,
sem se tornar maçadora lição,
 
não merecerá que o leitor o leia,
com amorosa e séria atenção?
Visto que o rigor é inspiração?
                      22.04.2023
Eugénio Lisboa

sábado, 22 de abril de 2023


De que poesia se gosta?
Que poesia se admira?
por Eugénio Lisboa
“Haverá aferidores seguros para avaliar a qualidade da boa poesia? O que é um bom poema? Como se pode estar certo de que o nosso gostar é um bom indicativo de que o poema é bom?
Fiz, um dia, parte de um júri de poesia e eu e outro membro do júri inclinávamo-nos claramente para um determinado livro. O terceiro membro pôs-se ao alto, de forma muito categórica, muito assertiva, de alguém que nunca tinha dúvidas e nunca se enganava e declarou alto e bom som: “Esse, de maneira nenhuma!” Confesso que, tendo alguma formação científica, tanta certeza me chocou.
Um grande físico teórico do século XX (que alguns equiparam, em grandeza, a Einstein), costumava prevenir alunos e colegas que tudo quanto ele dizia, devia sempre ser tomado como pergunta e não como afirmação. Ora, sendo o território da ciência constituído por areias muito menos movediças do que o território da literatura, e tendo os cientistas tantas incertezas, que pensar dos literatos que têm tantas certezas? As certezas bem marteladas, acerca da solidez de edifícios assentes em pilares de duvidosa resistência, inculcam sempre um défice de inteligência, nos portadores de tais certezas.
Os poetas têm dito, ao longo dos séculos, as coisas mais diversas sobre o que faz a boa poesia, sobre o que é um bom poema, qual, para eles, é o poema favorito. Depois de uma viagem, sempre interessante, por esse território de definições e escolhas, fica-se no final, mais inseguro do que antes do começo da viagem. O belo poeta brasileiro, Mário Quintana (que traduziu, para o Brasil, o grande romance de Proust), disse esta coisa intensa, sugestiva, mas que deixa de fora muita boa poesia que admiramos: que um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que é ele que nos está a ler e não nós a ele.
Paul Celan diz uma coisa igualmente bela e sugestiva, mas que não cobre, nem de longe, muito boa poesia: “Um poema é uma espécie de regresso a casa.”
Cada vez mais, penso que ainda o mais adequado, nestas matérias, é a humildade. A alguém a quem perguntaram qual o seu poema favorito, respondeu: “Quando vier a primavera”, de Pessoa. Perguntaram-lhe porquê. Respondeu: “Não sei porquê.” A mim, muitas vezes, quando me perguntam o que é um bom poema, sou tentado a dizer: “É um poema que me deixa versos no ouvido” Pode ser um critério duvidoso, mas convivo bem com esta dúvida.”
Eugénio Lisboa, 22.04.2023

No Dia Mundial da Terra

Dolomites Sunrise-Cinematic vídeo 4k
No Dia Mundial da Terra, o homem não deve esquecer que todas as acções que provocam alterações climáticas podem impedir a contemplação  da  beleza de um nascer do sol como este que se apresenta.

"Cumprir Acordo de Paris sobre alterações climáticas poderia salvar milhões de vidas
É a conclusão de um estudo da revista científica britânica Lancet.
Milhões de pessoas poderiam ser salvas em cada ano se os países aumentassem as medidas para cumprir os objetivos do Acordo de Paris e impedir o aquecimento global, indica um estudo divulgado , que tem 2040 como horizonte.
Os países considerados para o estudo - Brasil, China, Alemanha, Índia, Indonésia, Nigéria, África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos - representam metade da população mundial e 70% das emissões de gases com efeito de estufa (GEE).
Segundo o Acordo de Paris, sobre redução de emissões, todos os países devem apresentar as suas contribuições nacionais (NDC, Nationally Determined Contributions) para a redução de GEE e limitar o aquecimento do planeta.(...)
"Existe uma oportunidade de colocar a saúde na vanguarda das políticas relativas às alterações climáticas para salvar ainda mais vidas"
Ian Hamilton, diretor executivo da "The Lancet Countdown on Health and Climate Change", diz, citado no estudo, que os benefícios para a saúde de políticas climáticas ambiciosas têm um impacto positivo imediato, e acrescenta que "existe uma oportunidade de colocar a saúde na vanguarda das políticas relativas às alterações climáticas para salvar ainda mais vidas".
Os autores do estudo fizeram estimativas tendo em conta as emissões de GEE geradas pelos setores da energia, agricultura e transportes, as mortes anuais devidas à poluição atmosférica e fatores de risco relacionadas com a dieta e inatividade física. E usaram três cenários diferentes, um com as atuais políticas decorrentes das NDC em vigor, outro cumprindo o Acordo de Paris e outro que analisa os benefícios adicionais de incorporar no segundo cenário objetivos de saúde explícitos.
"Os benefícios para a saúde do reforço dos compromissos das NDC são gerados tanto através da mitigação direta das alterações climáticas como através do apoio a ações para reduzir a exposição a poluentes nocivos, melhorar as dietas e permitir uma atividade física segura", diz-se no documento.
E apesar de dizerem que alguns países reforçaram as suas ambições em termos de redução de emissões de GEE, alertam que mesmo assim, com base nesses anúncios de compromissos, "o mundo ainda não está no bom caminho para cumprir os objetivos do Acordo de Paris e enfrentaria 2,5 graus celsius de aquecimento até final do século".
O "Lancet Coutdown on Health and Climate Change" é uma colaboração internacional para uma visão global da relação entre a saúde pública e as alterações climáticas e junta mais de 120 especialistas em diversas áreas, publicando todos os anos um relatório.
Saiba mais:

sexta-feira, 21 de abril de 2023

A arte de sonhar

 
No tempo em que líamos Salgari,
éramos todos grandes heróis:
andávamos de calções de caqui,
mas éramos invencíveis cowboys!
 
O mar prometia-nos grandes coitas,
viagens de fazer corar Ulisses.
Iríamos correr matos e moitas,
à procura de seduzir Eunices!
 
Ser pequeno quer dizer sonhar grande
e sonhar é, sabe-se lá, ganhar.
O mundo que, dentro de nós, se expande
 
ir-se-á, lá fora, acrescentar.
Os dias de Salgari eram dias
de folias mas também de porfias.
                           21.04.2023
Eugénio Lisboa

O céu e o inferno europeus

O CÉU EUROPEU É ONDE:
Todos os polícias são ingleses
Todos os vinhos são franceses
Todos os carros são alemães
Todos os amantes são italianos
Todos os climas são gregos
Tudo é organizado pelos suíços
 
O INFERNO EUROPEU É ONDE:
Todos os polícias são franceses
Todos os vinhos são alemães
Todos os carros são gregos
Todos os amantes são suíços
Todos os climas são ingleses
Tudo é organizado pelos italianos
                             20.04.2023
Eugénio Lisboa

quarta-feira, 19 de abril de 2023

A inesquecida companheira

Maria Antonieta Lisboa
A inesquecida companheira
  
À memória da Maria Antonieta
 
Foi há muito, em tarde de domingo,
num restaurante grego, afastado,
que te vi, qual elegante flamingo,
para mim, discretamente pousado.
 
Eras bonita, atenta, discreta,
falavas pouco, mas com muito acerto,
tinhas uma dignidade quieta,
deixaste, ali, meu coração desperto!
 
Eras morena, certa, sossegada,
amiga de ler, sem ostentação.
Pensei que, se me fosses tu doada,
 
não mais esqueceria a doação.
Foste minha invulgar companheira,
hás de sê-lo até eu ser poeira!
                         19.04.2023
Eugénio Lisboa

Na Farmácia do Evaristo


Na Farmácia do Evaristo

por Fernando Pessoa

"Era uma tarde de domingo. Acabara, na manhã desse dia, o movimento militar de 18 de Abril. Estava restaurada a ordem visível. Em todas as caras se via o aborrecimento e o mal-estar que a imprensa do dia seguinte havia de chamar "a alegria que se lia em todos os rostos", o que é possível num país onde tão pouca gente sabe ler.

A farmácia do Evaristo, que estivera sempre aberta, começou a receber os seus estacionários do costume. A conversa misturou-se, simultânea e prolixa. A voz alta do Mendes, republicano democrático, erguia-se congratulatória. Nisto assomaram à porta os dois habituais que ainda faltavam. Um saudação geral os acolheu.

O José Gomes, mais conhecido por o Gomes Pipa, entrou lentamente na farmácia. Das duas razões da sua alcunha, uma estava à vista no bojo formidável da sua corpulência. A outra, se alguém a quisesse saber, sabê-la-ia logo nas palavras que vinha dizendo, Acompanhava-o o Justino dos coiros. O Gomes vinha limpando a boca.

— Já tenho bebido melhor...

— Pois sim, mas não é mau...

— Não, mau, mau não é... — Aqui este tipo defronte — pena é estar fechado — é que tem um vinho branco...! Então já está tudo sossegado?

—Tudo, disse o Mendes.

— E o amigo Mendes contente com o restabelecimento da ordem, ham?

— Pois é claro...

— E com a conduta das tropas fiéis — isto é, fiéis àquilo a que foram fiéis?...

— Àquilo a que foram fiéis? Ao governo, que é a quem tinham obrigações de ser fiéis. Ao governo, a ordem, à disciplina, às instituições! Portaram-se bem. mas não fizeram senão a sua obrigação.

— Folgo muito, Sr. Mendes, disse o Gomes sentando-se num banco e puxando pela bolsa do tabaco; folgo muito, como amigo da ordem, em vê-lo apreciar devidamente a fidelidade ao dever jurado e à obrigação militar.

— Não vejo razão para folgar tanto! Como não pode haver dúvida que eles fizeram bem cumprindo o seu dever de militares, e até de cidadãos, não é de estranhar que se ache bem que eles o cumprissem...

- Sim, senhor, respondeu o Gomes Pipa. Mas não é só por isso que eu folgo com o seu aplauso a eles e com o seu justo apreço da fé jurada e do dever militar. Folgo sobretudo, como monárquico, com a condenação, que com isso o sr. fez, da revolução e dos revolucionários do 5 de Outubro.

— Hem? O quê? Do 5 de Outubro?

O Gomes enrolou lentamente o seu cigarro vulgar.

— Sim, do 5 de Outubro. Os militares e marinheiros, que no 5 de Outubro se revoltaram, tinham jurado, como estes, manter a ordem e defender as instituições, que eram então as monárquicas. E como estes fizeram bem mantendo-se firmes ao seu juramento e ao seu dever militar, aqueles fizeram mal faltando ao deles. É com esta sua opinião que eu folgo. Estimo-a pela imparcialidade, vindocomo vem, de um republicano.

— Perdão... Não é nada disso... O 5 de Outubro é um caso diferente..

— Diferente? Diferente em quê? — E o Gomes suspendeu calmamente o acendimento do seu cigarro.

— No de Outubro a revolução nasceu de um impulso nacional, correspondeu, por assim dizer, a um mandato imperativo da nação inteira, ou, pelo menos, da sua enorme maioria. Tanto assim que o movimento venceu com facilidade, e com torças aparentemente insuficientes...

— O ter vencido com forças aparentemente insuficientes não é argumento, meu amigo. Num país que não está numa situação brilhante de disciplina e de ordem, corno então acontecia, e com um governo fraco ainda por cima, um movimento revolucionário, desde que passe de um simples motim, facilmente vencerá, pela repugnância que há em combater compatriotas, e pela falta de hábito em fazê-lo, para que se vença essa repugnância. Deixemos isso da vitória fácil... Ou o sr. pretende basear na facilidade dessa vitória o único argumento a favor do carácter nacional do 5 de Outubro? Se vamos a isso, com muito mais facilidade venceu o chamado "movimento das espadas", com que foi ao poder o Pimenta de Castro, sendo portanto consideravelmente mais nacional.

— O movimento das espadas foi um movimento exclusivamente militar, tomou toda a gente de surpresa...

— Exactamente. É isso que eu digo... Basta tomar de surpresa, apanhar os outros sem preparação condigna para vencer, sem que a vitória representa mais que os outros não estarem prontos...

— Espera lá: não é só isso... O movimento das espadas, repito, foi exclusivamente militar; no 5 de Outubro entraram muitos civis...

— Isso quer dizer simplesmente que havia civis que estavam na conspiração, e, se estavam, é natural que viessem para a revolução também. E quanto a outros quaisquer, logo que os armassem, porque não entrariam?... Mas eu não nego que o partido republicano tivesse em 1910 partidários bastantes para poderem entrar bastantes civis na revolução... O que nego é aquilo em que o sr. pretende basear a sua justificação da traição e da aleivosia dos militares e marinheiros (para não falar nos civis) que entraram na revolução de 5 de Outubro. O sr. diz que essa traição se justifica pelo facto de o 5 de Outubro ser um movimento nacional, uma espécie de mandato imperativo da nação. E o sr. não me citou argumento nenhum que provasse esse carácter nacional do movimento, nenhum argumento pelo qual esse movimento se distinga de qualquer outro movimento em que entrem militares, faltando à sua obrigação e ao seu juramento, e civis, porque estavam combinados para entrar ou foram armados para que entrassem. O próprio facto, que o sr. citou, de o movimento ter tido poucas forças — de aí, diz o sr. o ser de pasmar que ele vencesse, mas eu já lhe expliquei isso —, o próprio facto, repito, de o sr. dizer que o movimento se fez com pouca gente não é com certeza a melhor maneira de provar que ele representasse um mandato imperativo da nação, ou uma aspiração nacional a realizar-se.

— Talvez, Sr. Gomes, eu me exprimisse mal... Exprimi-me mal, com certeza... É atmosfera, o ambiente  do movimento que provaram bem o seu carácter nacional...

- Oh, amigo Mendes, isso não serve... Reduza lá isso das atmosferas e dos ambientes a qualquer coisa mais visível. Há-de haver por força sinais evidentes, distintivos, de se um movimento é nacional ou não. Essa atmosfera, esse ambiente, hão-de reflectir-se em qualquer coisa de concreto, de palpável... Refere-se o sr. por acaso à circunstância, que na verdade se deu, de o movimento ter sido acolhido, em geral, com uma certa simpatia?

— Sim, isso, por exemplo... O que é que isso prova senão que...

— Prova que toda a gente tinha um medo medonho da revolução republicana, julgando, pela falta de prática de revoluções, que caíam este mundo e o outro quando uma revolução viesse... Em comparação com o que as imaginações aterrorizadas se figuravam do que fosse uma revolução, o 5 de Outubro, que realmente foi brando e limpo, foi um alívio, como o é sempre a realidade, ainda que má, quando a imaginação a figurava muito pior.. Essa própria sensação de alívio deve ter despertado em muita gente uma certa hesitação esperançosa... Mas isso tudo, amigo Mendes, são fenómenos posteriores à revolução, ambiente sobrevindo mas não preexistente... Os mandatos, salvo erro, precedem o acto a que compelem... Um ambiente que se segue não é um ambiente que precede... Continuo, pois, a não achar aceitáveis as razões que alega para considerar o 5 de Outubro um movimento nacional...

— É difícil de explicar, realmente, mas...

— Vamos lá a ver se com o meu auxílio o sr. consegue desencaixotar a sua lógica... Vamos a um facto concreto, que realmente pode alegar-se como justificação de se chamar nacional à revolução de 5 de Outubro... Esse facto é o de ter ficado e durado a República...

— Ora exactamente, é isso mesmo.

— Não é, amigo Mendes, não é... A República tem durado, sim; mas tem durado de uma maneira irregular, cortada constantemente por movimentos vários, monárquicos e outros, e em perpétua atitude de sobressalto, de defesa e de confusão. E como esses vários movimentos não têm sido motins vulgares, de rua, mas revoluções em forma, algumas vitoriosas, em que entram regiões inteiras do país (como na restauração monárquica no Norte) e grandes forças do exército e numerosos civis, tem havido, ao que parece, ambiente e atmosfera para os dois lados. De modo que nada autoriza a que afirmemos que o 5 de Outubro teve mais "carácter nacional" que qualquer outra revolução ou revolta. O impulso nacional seria indubitável se, proclamada a República, caíssemos em paz, sem mais agitações nem revoluções, ou, quando muito, com meros pequenos motins, episódicos e incaracterísticos... Mas agora reparo que nos afastámos do nosso caso original... Mesmo que o 5 de Outubro fosse um movimento classificável de "nacional", isso nada tinha com a questão da traição e da deslealdade dos militares e dos marinheiros que o fizeram... É esse, creio eu, o ponto que estávamos discutindo

— Perdão, alguma coisa tem...

— Que coisa?

— A fidelidade ao juramento é realmente uma coisa importante. Mas há casos em que não é a mais importante de todas. Os interesses supremos da Pátria, que são o mais importante de tudo, podem prevalecer, se for preciso, sobre todos os juramentos e sobre todos os compromissos de fidelidade!

— Ah, sim... É verdade: o Sr. foi germanófilo?

— Eu?!... Eu germanófilo?!... Mas a que propósito?...

— É que esse é o argumento de que se serviu von Bethmann Hollweg naquela célebre declaração em que chamou aos tratados "farrapos de papel". Os interesses supremos da Alemanha, sua pátria, estavam, disse ele, acima da fé dos tratados, isto é, do compromisso, ou juramento, escrito que um tratado representa...

— Pois sim, pois sim... Mas um tratado é uma coisa diferente...

— É apenas compromisso, ou juramento, escrito. O sr. naturalmente não vai sustentar a teoria de que é legítimo, por exemplo, a gente negar as dívidas de que se não possa apresentar documento?... Mas, enfim, isto não tem nada para o caso. O seu argumento pode ser germânico e válido: a Alemanha não está proibida, depois da guerra, de ter razão... Vamos ao argumento... Se é legitimo faltar ao juramento e é obrigação em favor e defesa dos interesses supremos da Pátria — e por interesses supremos da Pátria entende o sr. sem dúvida aquilo que os revolucionários pensavam ser os interesses supremos da Pátria porque não é legítimo nos actuais revoltosos, e em todos os outros que se têm revoltado durante a República, invocar o mesmo argumento? O sr. vê neste movimento, por exemplo, homens sérios e que se mantiveram sempre fiéis à defesa da ordem e do cumprimento da disciplina. Sirva de exemplo o tenente coronel Raúl Esteves. Para ele ter entrado neste movimento, tendo-se recusado sempre a entrar em qualquer outro dos vários para que constantemente o convidavam, o que sem dúvida pensou que a isso o compeliam os superiores interesses da Pátria. Não há, pelo menos, o direito de pensar o contrário, porque então se pode pensar o mesmo contrário dos revolucionários do 5 de Outubro. Não dou o argumento como legítimo para mim — para mim nada pode prevalecer sobre o juramento prestado —, mas dou-o como legítimo para si, visto que o emprega para defender os revolucionários do 5 de Outubro, pessoas de muito menos categoria e prestígio, aliás, que os chefes desta última revolta.

— Perdão, sr. Gomes... Eu não nego, nem preciso negar, que pudesse ser boa a intenção dos chefes desta revolta. O que afirmo é que, se a sua intenção era boa, era ao mesmo tempo errada. E tanto era errada, tanto o movimento não correspondia a uma aspiração nacional, que se deu com ele, apesar de bem planeado, uma coisa que eu ia ainda agora objectar-lhe, mas que guardei para depois para o não interromper... É que este movimento foi sufocado; falhou... E a verdadeira prova da falta de ambiente é essa: falhar...

— Tem graça: outro argumento germânico!

— Outro argumento germânico?

— Sim. Foi o filósofo alemão Hegel que inventou o argumento de que a própria vitória é a justificação da vitória, e que quem vence é que tinha direito a vencer, por isso mesmo que vence. É um argumento que andou muito em uso nos escritores militares e militaristas da Alemanha, e que tem um certo parentesco moral com aquilo de "a força supera o direito" que o (...) disse, atacando Bismarck, que podia ser a divisa dele. Mas enfim, aqui estamos no mesmo caso de ainda há pouco. Um argumento pode ser de Hegel e ser válido. O caso principal é outro. A vitória é que prova a legitimidade, o "ambiente" de um movimento? Está bem... Ora o Sidónio venceu...

— E quanto tempo durou a situação do Sidónio, Sr. Gomes?

— Durou até ao fim, como todas as coisas. Durou enquanto durou. Não durou tão pouco que isso pese como argumento, nem acabou senão porque, estando concentrada num só homem, uma simples bala, isto é, um só homem pode terminá-la. Mas, afinal, em que é que ficamos? O Sr. tinha-me dito que a vitória de uma revolta é que provava o seu ambiente. Eu já respondi em parte a isso quando respondi à sua alusão à facilidade com que o 5 de Outubro vencera; agora respondo de novo com a vitória do Sidónio. Mas o sr. fala-me agora, já não em simples vitória, mas em duração da situação criada pela vitória, o que é uma coisa diferente... Quanto tempo é que uma situação tem que durar para o sr. a considerar legítima?

— Não é o durar, meu caro senhor, é a  maneira de durar...

— Também já respondi a isso... Já lhe disse que se a vida da República tivesse sido de inteira paz, se a vinda da República tivesse eliminado as dissenções importantes, se poderia com efeito considerar de carácter nacional o movimento que a implantou. Mas, como não sucede isso, mas exactamente o contrário. não vejo a que "maneira de durar" o sr. alude...

O Canha das barbas, que, do lado, sentado contra o balcão, tinha estado a ouvir atentamente o decurso da conversa, interveio de repente, depois de tossir.

— Dá-me licença, ó Gomes, o caso não é esse... Não se trata de maneira de durar nesse sentido. Se aqui o Mendes me dá licença que fale por ele, vou ver se ponho o caso mais a claro... Desde que se implantou a República tem havido, com efeito, vários movimentos revolucionários, de parte a parte, e, dos opostos à chamada "normalidade constitucional", alguns temporariamente vitoriosos. Mas, mais tarde ou mais cedo, tem-se sempre vindo a cair na linha original, isto é, na sucessão legítima dos governos republicanos, saídos de parlamentos que são eleitos, bem ou mal, segundo normas constitucionais assentes, comuns a todos os estados civilizados. Mais tarde ou mais cedo tem-se sempre vindo cair nesta "normalidade" constitucional; por isso se pode afirmar que os movimentos contra essa normalidade constitucional, falhados ou temporariamente vitoriosos, têm sido simples interrupções, sem carácter nacional. E tanto têm sido interrupções, que as situações criadas por eles, mesmo quando plenamente vitoriosos, acabam sempre por se extinguir com uma rapidez espantosa, como a situação dezembrista se sumiu pelo chão abaixo depois da morte do Sidónio. É isto, se me não engano, que o Mendes queria dizer quando se referia à "maneira de durar" dos governos republicanos constitucionalmente legítimos, e à pouca duração do regímen sidonista como prova da sua falta de carácter nacional, em comparação com esses outros governos. É isto ou não é, ó Mendes?

— Exactamente, Sr. Canha, anuiu o Mendes; é isso sem tirar nem pôr. Ainda bem que falou por mim, porque eu não punha as coisas tão certas...

— Está bem, disse o Gomes Pipa. Aquilo a que se chama normalidade governativa, seja ou não constitucional, assenta forçosamente em uma de três coisas ou na continuidade com a governação anterior ou na justificação eleitoral, ou na aceitação espontânea pelo país, haja ou não continuidade e justificação eleitoral. Pode assentar em mais que uma destas três coisas, mas pelo menos em uma tem forçosamente que assentar. E não há quarta coisa em que possa assentar.

Ora agora, meus amigos, vamos lá considerar essas coisas uma a uma. Comecemos pela mais simples, visto que não importa por qual se comece, desde que se considerem todas. A mais simples, para o nosso caso, é a de investigar se há ou não aceitação espontânea, da parte do país, da situação republicana, ou seja dos resultados da revolução do 5 de Outubro. A isso já eu respondi. Se, vinda a República, o país tivesse caído em normalidade constitucional autêntica, isto é, em ausência de revoluções, de contra-revoluções e de pronunciamentos, tão importantes que alguns têm sido vitoriosos, haveria direito a supor a aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana. Mas, como se não dá essa circunstância, a aceitação espontânea não só se não pode presumir, mas claramente se vê que não existe. Pode, ainda, alegar-se que esses movimentos vários são golpes de audácia, sem mais sentido que serem golpes de audácia. Para que isso se pudesse alegar com razão era, porém, preciso — primeiro, que essas revoluções e revoltas não fossem constantes, sendo portanto constante o estado de anormalidade, que é o contrário de normalidade, constitucional ou outra; segundo, que essas revoluções não fossem importantes, e muito menos vitoriosas de quando em quando, o que indica que têm consigo a massa ou força suficiente para, pelo menos naquele momento, terem mais massa e força que o governo; terceiro, se se quiser alegar que esses movimentos são simples de audácia felizes, que se não pudesse alegar precisamente a mesma coisa do 5 de Outubro, feito com muito menos forças que a maioria desses outros movimentos. Não há, portanto, aceitação espontânea, pelo país, da situação republicana, nem nada que de longe se pareça com essa aceitação espontânea. Vamos ver, agora, se haverá justificação ou pela continuidade com a situação governativa anterior, ou pela ratificação eleitoral.

Comecemos pela consideração se há ou não justificação eleitoral. Ora as eleições em Portugal ou são uma burla, ou não são uma burla ou são às vezes uma burla e outras vezes não. Se são sempre uma burla, como crê a maioria da gente, desde que não esteja a mentir por obrigação partidária, então não há justificação eleitoral, e o argumento cai pela base. Se não são nunca uma burla, então são tão válidas as eleições do tempo do Sidónio como as dos períodos democráticos, sendo-o especialmente a formidável votação que elegeu o Sidónio, por sufrágio directo, presidente da República, e que foi a maior manifestação eleitoral que tem havido dentro da República. E, neste caso, o povo português é de uma volubilidade extrema e doentia, devendo ter a governá-lo, ou regímen nenhum, para haver correspondência governativa com essa volubilidade, ou um regímen monárquico ou ditatorial absoluto, para a refrear eficazmente. Se as eleições são às vezes uma burla e outras vezes não, como distinguiremos uma coisa da outra? Considerando, não só por observação directa que qualquer de nós pode fazer e tem feito inevitavelmente, mas também pelo número de revoluções de diversos tipos que tem havido, e que têm tido força bastante para se formar e às vezes para vencer, que o país se encontra dividido entre várias correntes políticas, entre as quais algumas bastante fortes, as eleições que foram menos burla serão aquelas em que a representação parlamentar se encontra mais dividida, em que os adversários da situação política se encontrem mais largamente representados, sobretudo se forem adversários do próprio regímen. Ora o único parlamento republicano onde houve uma larga representação monárquica foi o parlamento do Sidónio. Foi portanto esse o parlamento que, sem ser necessariamente eleito com absoluta seriedade, foi o que mais se aproximou dela.

O Canha das barbas interrompeu sacudidamente.

— Ora adeus, ó Gomes! Os monárquicos foram eleitos nessa proporção porque o Sidónio quis...

— Se o Sidónio quis, isso quer dizer que não usou de burlas eleitorais contra eles, e é isso mesmo que eu pretendo provar — que foram essas eleições, sem serem boas, em todo o caso as melhores que tem havido durante a República.

O Mendes interveio, encolhendo os ombros.

— O Sidónio quis, mas não foi por espírito de justiça... Quis porque os monárquicos o apoiavam, e portanto não lhe importava nada que houvesse muitos no parlamento.

— Óptimo, replicou o Gomes. Se os monárquicos não hostilizavam o próprio Sidónio, temos o ideal de um parlamento de "normalidade constitucional", em que ambas as correntes que o formam, embora entre si adversas, dão ambas apoio ao chefe do Estado. É um parlamento como o inglês, em que todas as grandes correntes, que o constituem estão de acordo na obediência e aceitação do Chefe do Estado, que ali é o Rei.

— V. esquece (disse o Canha) que os velhos partidos republicanos se abstiveram de ir às urnas nessa eleição...

— Exactamente como os monárquicos se abstiveram de ir às urnas nas eleições para as Constituintes republicanas, o que, por esse critério, tira todo o valor a essas Constituintes, que são o início "legal" da tal normalidade constitucional.

Do canto da casa, onde sempre se anichava, o coronel Bastos, reformado e matreiro, meteu a voz suave e um pouco rouca no intervalo rápido da conversa.

— Não sei porque é que o Sr. Gomes gasta tanto tempo com esse argumento, a pôr hipóteses e mais hipóteses...

— Com qual argumento, coronel?

— Com o da justificação eleitoral. Ninguém, que esteja falando inteiramente a sério e com lealdade pode apresentar esse argumento como legítimo. Está sabido e ressabido que as eleições em Portugal são sempre uma burla, e uma burla descaradíssima. Se aqui o Sr. Mendes ou o Sr. Canha viessem objectar esse argumento, equivalia a dizer que não tinham argumento nenhum. Compreendo que se queira justificar a existência da República por qualquer dos outros dois argumentos, que o sr. pôs como hipóteses, e uma das quais já refutou, mas pelo da ratificação eleitoral... francamente!...

O Gomes sorriu e voltou-se para o coronel interruptor.

- Bem vê, coronel, o dever do argumentador é expor e considerar todas as hipóteses, sejam ou não plausíveis. Se não são plausíveis, o argumento o demonstrará. É claro que estou de acordo consigo e que ninguém admite como legítimas as eleições que se fazem em Portugal. A minha obrigação de argumentador era, porém, supor que alguém as pudesse admitir a sério como legítimas e refutar esse hipotético alguém. De resto, deixe-me dizer-lhe, o argumento da justificação eleitoral e refutável de outras maneiras...

— Por exemplo?... perguntou o Evaristo.

— Por exemplo, este... Uma eleição é, ou pretende ser, uma expressão de opinião. Para que uma eleição seja, portanto, válida como expressão de opinião, é preciso que a opinião a reconheça como expressão de opinião. Ora ninguém em Portugal acredita nas eleições políticas como expressão de opinião, ou nos resultados delas como manifestando de alguma maneira a opinião, excepto no caso de alguns deputados das oposições, que têm realmente que ter consigo alguma opinião e apoio legítimo para poderem romper as malhas da rede eleitoral do governo. Ora se as eleições são tidas pela opinião de todos como não representando a opinião de todos, as eleições não são eleições e não há justificação eleitoral porque não há realmente facto eleitoral. E o constante apelo para as revoluções e para os pronunciamentos confirma isto decisivamente. Que querem dizer essas revoluções e esses pronunciamentos, no fundo, senão a falta de confiança na legitimidade dos resultados eleitorais, o reconhecimento, por toda a gente, que esses resultados eleitorais não são realmente válidos? E quando não queiram dizer isso, mas signifiquem simplesmente a vontade de saltar por cima dos resultados eleitorais, que quer isso dizer senão que não há respeito orgânico pelos resultados eleitorais; e que portanto um regímen ou situação política, para se justificar perante todos e ser tido geralmente por válido, tem que buscar outro apoio que não seja o das eleições?

— Não há dúvida, disse o Evaristo.

— Tudo isto, porém, continuou o Gomes, todos estes argumentos são dispensáveis. O verdadeiro argumento contra a justificação eleitoral por eleições das que caracterizam os regimens liberais é que essas eleições, mesmo quando feitas com seriedade moral, são organicamente uma burla política.

— Ora essa! — exclamou o Mendes. — E porquê?

— Em toda a parte, em todos os países civilizados, como disse ali o sr. Canha, as eleições, que custam muito dinheiro, que necessitam de uma propaganda insistente e hábil, de uma organização especializada, só podem ser efectuadas por organismos partidários para isso preparados, para isso habilitados, e dispondo dos fundos para isso. Assim é em Inglaterra, por exemplo, onde as eleições são, ao que dizem, moralmente limpas, e onde há uma antiga tradição representativa.. E se assim é em Inglaterra, onde as eleições são tão moralmente limpas quanto podem ser, em todos os outros países são de aí para pior. O facto é, porém, que, à parte um outro deputado independente, que, em geral, por uma questão de influência local — que pode, aliás, ser puro caciquismo, como se costuma dizer —, só os partidos organizados é que fazem as eleições e elegem os candidatos, dispondo assim, por fim, não da maioria, mas da enorme maioria ou quase totalidade da assembleia representativa resultante. O eleitor não escolhe o candidato; escolhe entre candidatos que lhe apresentam os partidos e, se embirra com todos, não vota, e os partidos ganham da mesma maneira. Ora os partidos são dirigidos e orientados por directórios, ou como quer que se lhes chame, nos quais prepondera a opinião de três ou quatro indivíduos, o máximo, e por vezes de um indivíduo só. No fundo, pois, o resultado de uma eleição política no regímen liberal — mesmo sendo essa eleição séria e moralmente limpa — é a imposição hipócrita da vontade de meia dúzia de indivíduos a uma nação inteira, que por vezes, em casos extremos de auto-sugestão, como na Inglaterra, chega a acreditar que tem vontade própria. E a assembleia "representativa", uma vez eleita, passa a funcionar sem fiscalização directa da própria "opinião" que a "elegeu", e a fazer, muitas vezes, exactamente o contrário do que prometeu nos comícios, e, outras vezescoisas que, se não são esse contrário, são coisas que, pelo menos, o eleitorado não sancionaria, se as levassem perante ele. É em virtude disso que os conservadores ingleses — os conservadores, reparem! — chegaram a propor, para o caso de certas medidas graves, surgindo inesperadas, e que não haviam sido objecto das declarações nos comícios, o estabelecimento do princípio, aparentemente tão pouco conservador, do referendum.

O Gomes parou um pouco, e aproveitou a própria paragem para puxar de novo pela bolsa do tabaco.

— Os indivíduos — a tal meia dúzia ou dúzia de indivíduos, se não forem menos — que preponderam nos organismos partidários, e que portanto verdadeiramente governam o país, têm a sua responsabilidade nas situações políticas coberta e dispersa pela massa do partido a que pertencem, do eleitorado que compeliram a votar neles através do partido, e da assembleia "representativa" "eleita" por esse eleitorado. Exercendo realmente uma ditadura, exercem-na hipócrita e cobardemente, cobertos por uma massa partidária que, como é anónima, vem a ser praticamente ninguém; contraem portanto, com a índole despótica do ditador, a obliquidade moral que vem do sentimento da impunidade e alguns, se não todos os vícios que provêm do exercício constante do disfarce e da hipocrisia. E quando a isto se acrescenta que, para subirem nesses partidos até à situação de preponderância que neles têm, esses homens tiveram que servir os ditadores hipócritas que os precederam na direcção real desses mesmos partidos, vê-se que a índole hipócrita e a obliquidade moral, que seria natural que contraíssem no mero exercício da sua ditadura velada, já as haviam realmente adquirido antes, no serviço dessa mesma ditadura, pelo qual conseguiram chegar, por sua vez, a ser ditadores.

Estes factos indubitáveis (continuou o Gomes, com uma certa animação) sofrem um certo paliativo nas nações mais instruídas e educadas, porque a própria hipocrisia do ditador velado lhe impõe limites nas doutrinas e processos que empregue; a relativa lucidez e atenção do espírito público espontaneamente se revoltariam se os ditadores velados quisessem pôr em prática medidas de profunda corrupção — sobretudo de corrupção visível — ou normas de onde derivasse um manifesto perigo para a nação ou para os seus componentes. O hipócrita tem que contemporizar. E de aqui resulta que aquelas vantagens que se costumam atribuir aos regimens liberais — citando a sua acção em países como a Inglaterra — não provêm realmente dos regimens liberais, mas da educação e instrução do povo, do seu activo orgulho nacional, da sua moral social relativamente elevada. A mesma educação, a mesma instrução, o mesmo orgulho e senso moral operariam do mesmo modo qualquer Que fosse o regímen, e não poderia pensar em ir contra ele um rei mais do que um ditador velado, considerando sobretudo que num caso a responsabilidade é directa e visível, no outro dispersa e ocultada.

— Mas essa educação e esse orgulho nacionais, interveio o Canha, não serão, pelo menos em parte, produzidas por esse regímen liberal?

— Não, respondeu o Gomes. Quanto à instrução, ela nasce e desenvolve-se com o desenvolvimento da civilização, que por sua vez promove; qualquer regímen, que reja uma nação civilizada, tem forçosamente que estimular e desenvolver a educação; porque o espírito público assim o exige e espera. Quanto à moral social, nenhum regímen a cria, porque não é essa a esfera de acção dos regimens políticos; a moral social, criam-na a família os indivíduos no seu simples trato social, as influências morais e religiosas. E quanto ao orgulho nacional, cria-o, em parte, o ser uma nação grande; o sentimento da independência, cria-o o ser uma nação ou ameaçada ou constantemente agredida, e assim por aí adiante... Mas, enfim, isto são notas à margem. Voltemos ao seu argumento primitivo. Creio ter demonstrado que, se não há justificação da nossa República pelo assentimento espontâneo do país, também a não há pela ratificação eleitoral.

— Está bem, provou, concedeu o Canha. Mas ainda havia uma outra hipótese, se me não engano...

— Havia... A terceira hipótese, que é a que falta considerar, é de que a República possa ter uma justificação da sua existência na continuidade com o sistema governativo anterior...

O coronel Bastos desatou o riso.

— Aí não é preciso argumento, disse. Se o que estava antes era a Monarquia, basta a República não ser Monarquia para não haver essa continuidade.

— Sem dúvida, coronel... Mas um argumentador hábil complicaria um pouco mais a questão; e o meu dever é pôr as objecções, quando as ponho eu a mim mesmo, como se elas fossem postas por quem soubesse pô-las. A essência do regímen liberal — de qualquer regímen liberal — é a limitação do poder do Chefe do Estado, ou, antes, a sobreposição ao poder do Chefe do Estado, por uma assembleia emanada directamente (por aquele lindo processo que já expus) de um certo número de indivíduos inscritos em cadernos eleitorais, a que, não sei porquê, se chama "a nação". Dizendo melhor, a essência do regímen liberal é a transferência do poder para a tal "a nação", quer ela aceite o Chefe do Estado (que é quando, sendo rei, não é eleito por ela), quer ela eleja directamente o Chefe do Estado como no regímen republicano presidencialista, e assim nele delegue esse tal poder que em ela reside, quer eleja uma assembleia qualquer em quem delegue esse seu poder, e que depois, por sua vez, eleja o Chefe do Estado. Ora a República Portuguesa — a tal da normalidade constitucional — pode alegar em seu favor, isto é, em favor do seu carácter nacional, que realmente está em linha de continuidade com a essência do regímen liberal, salvo num pormenor — a chefia do Estado desse regímen. Mas, infelizmente para a República, este argumento também não serve.

O Gomes Pipa parou um pouco, e enrolou o cigarro de cujo pensamento a lógica o afastara.

— O regímen liberal, continuou sem acender o cigarro, é já uma quebra de continuidade governativa. Até 1820, e quaisquer que fossem as vicissitudes da nossa política interna, uma coisa permaneceu firme e contínua — o facto de que o poder todo residia essencialmente no Rei. O regímen liberal manteve o Rei, mas transferiu o poder para a tal "nação". Propriamente falando isto não é manter o rei, nem manter continuidade nenhuma, pois o Rei não é separável do seu poder, e, não o sendo, não há continuidade desde que se faça a separação. Mas, enfim, isso agora não importa, e é um outro assunto... O regímen liberal, repito, manteve o Rei, e assim, na linha de argumento que nós estamos considerando, poderia alegar como manutenção de continuidade a manutenção da Monarquia. A revolta republicana o que fez? Manteve continuidade com o regímen liberal naquilo que nele, perante este argumento de continuidade (que é o que estamos considerando, e não outro), representa ruptura de continuidade. Como a continuidade tem que ser contínua, para que possa ser invocada como continuidade e chamada continuidade, vem isto a dar em que a República continuou o liberalismo naquele ponto em que ele não continuou nada, Isto é, em que, perante o argumento da continuidade, era ilegítimo. Em outras palavras, a República, perante este argumento da continuidade, não é senão o regímen liberal elevado à injustificação absoluta.

— Bravo! — exclamou o coronel Bastos, quase caindo do seu banco. Isso é que é argumentar!

O Gomes acendeu finalmente o seu cigarro adiado.

Depois voltou-se para o Mendes, e um momento lhe passou nos olhos uma luz subtil de manha irónica.

— Quer dizer, amigo Mendes, disse ele sorrindo, ainda há uma espécie de continuidade que os senhores poderiam invocar, e que não é nem a continuidade do regímen aparente, nem a continuidade do regímen real. Os senhores poderiam invocar a continuidade de maneira de governar.. — Será essa que os senhores quererão invocar?...

— "Maneira de governar" como? interrogou o Mendes.

— Da seguinte forma... Os governos monárquicos eram incompetentes e corruptos, o sistema eleitoral monárquico incompetente e corrupto, o governo do país, sob a Monarquia, era uma oligarquia de partidos governando à parte da nação e contra a nação.

(Estou-me servindo de asserções dos senhores, sem as discutir, porque estou argumentando pelos senhores.) Ora os senhores podem alegar que não representam uma quebra de continuidade porque continuam a governar com incompetência e corrupção, que continuam a fazer eleições com competência e corrupção, e que continuam a ser uma oligarquia de partidos (ou de um só, mas não faço caso dessa pequena falha no seu argumento) que governam à parte da nação e contra ela. Não sei se querem que eu considere também este argumento...

O Mendes, num gesto brusco, pôs em meio-risco um vaso tapado com seringas de diversas espécies.

— Isso é uma brincadeira! exclamou irritado.

— Bem: o caso é consigo... Então abdica do argumento?

— O argumento não é meu; não tenho que abdicar dele...

— Não é seu mas é dum argumentador hábil que falasse por si... Em todo o caso, há para ele uma resposta a sério... Vou refutá-lo.

— Homem, para quê? interpôs o Canha.

— Diga, diga, ó Gomes! pediu o coronel puxando por um charuto e por mais contentamento.

— Vou refutá-lo, amigo Canha, por duro dever de raciocinador. Tenho por obrigação pôr todas as hipóteses possíveis, e refutar as que considere falsas, que neste caso das justificações possíveis da República, são todas. Mas isto vai depressa... O caso é este...

— Ora adeus! — exclamou o Mendes, num gesto parado de quem vai a sair.

— É claro, prosseguiu o Gomes Pipa, que uma legitimação pela imoralidade é impossível, e por isso, realmente, o argumento é improcedente e absurdo. Mas, admitindo mesmo que o não seja, é improcedente até na espécie em que se estabelece. Para continuar a imoralidade convém alterar o menos possível as condições de imoralidade; ora fazer uma revolução é, pelo menos, introduzir uma perturbação no estado, perturbação necessariamente seguida, como foi, de diversas outras perturbações. Ora para comer tranquilamente à mesa do orçamento o essencial é essa mesa não estar em riscos de ser arrancada aos comensais. A perturbação é, portanto, incompatível mesmo com o propósito de imoralidade. Dir-se-á que os republicanos não poderiam facilmente apoderar-se do poder, e comer eles só, sem afastar primeiro os outros que lá estavam. Nesse caso, mandava a boa imoralidade que se juntassem a um partido dos outros, que, dada a força que levariam consigo, de bom grado lhes pagaria a adesão. Ou então formassem um partido à parte, dentro da Monarquia, e, valendo-se, para fins de simples ameaça, da força que puseram em prática na revolução, conquistassem efectivamente o poder para eles só e para o jantar em família. E, se se alegar que não tinham força para essa conquista, sem ser pelo processo revolucionário, resulta que a sua força era fictícia, podendo vencer só com o golpe de audácia e de surpresa, de modo que até aqui, e no meio deste triste argumento, se vê bem que o movimento não tinha carácter nacional, nem mesmo imoral, e que nem a continuidade da corrupção e da

incompetência pode ser invocada, apesar de todas as aparências, pelos republicanos.

— Está bem, homem, está bem, disse, irritado, o Mendes. Para que está V. a perder tempo com essa brincadeira?

— Para disfarçar um sofisma, interveio o Canha. O nosso Gomes, não sei se os senhores repararam? sofismou todo este argumento da continuidade, e por isso convém-lhe acabá-lo numa espécie de desvio de brincadeira...

— Sofismei o argumento?

— Sim senhor, sofismou.

— E em que é que o sofismei?

— No seguinte... A continuidade, que se pode exigir à República que invoque para alegar a sua legitimidade, ou a sua normalidade constitucional ou governativa, não é, amigo Gomes, a continuidade com a monarquia, e muito menos com a monarquia absoluta, etc., etc. A continuidade republicana tem que contar-se desde que se estabeleceu a República; é a continuidade do regímen consigo mesmo e adentro de si mesmo, e não com outros regimens, e fora de si... Lá nos outros argumentos, o da aceitação nacional, e o da justificação eleitoral, foi V. muito bem, mas aqui teve que sofismar, que tirar o problema do seu verdadeiro campo, para simular o triunfo...

O Mendes, o Evaristo e até o Justino, em geral atado ao seu silêncio, sorriram ou riram desta objecção oportuna. Mas o Gomes Pipa, ao contrário do que seria de esperar, sorriu também, uni sorriso vasto e contente. O coronel Bastos, que o fitava atento, carregou a expressão de atenção.

— Contra essa objecção, disse o Gomes, esfregando as mãos, há nada menos de cinco respostas. Em primeiro lugar, não se trata de simples continuidade, mas de continuidade como sinal de legitimidade; ora a continuidade de uma coisa consigo mesma não pode determinar, de si, a legitimidade, porque assim tudo neste mundo era legítimo, visto que tudo, enquanto dura, dura, e é pois contínuo consigo mesmo. — Em segundo lugar, não se trata de continuidade como simples duração, mas, como Os senhores mesmos disseram, de maneira de durar. Se se tratasse de continuidade como simples duração, então é essencial que essa continuidade não fosse nunca interrompida, que não tivesse havido nunca movimento revolucionário algum, com carácter vitorioso, a cortar a vida da "república original", em outras palavras, que não houvesse descontinuidade. — Em terceiro lugar, reparem que estávamos considerando a justificação irracional da República; a continuidade de que se trate, pois, para esta justificação, é uma continuidade nacional, e não uma continuidade de regímen ou de partido. Ora, como a nacionalidade não começou em 5 de Outubro de 1910, a continuidade nacional também não começa aí. E se há uma continuidade partidária e não nacional, há uma continuidade partidária e anti-nacional, e esse partido está contra a nação. — Em quarto lugar, trata-se de continuidade governativa, e como a essência do governo é dominar, e uma das condições de dominar é reprimir revoltas e movimentos adversos, desde que haja ou movimentos adversos constantes, ou um só vitorioso, não há continuidade de domínio, não há portanto continuidade de governo. — Em quinto lugar, a continuidade constitucional, que é a de que se trata, é uma continuidade de ordem e a "República Constitucional" nem tem mantido a ordem, nem, quando tem retomado o seu curso, o tem sempre retomado por processos de ordem. E aqui tem, amigo Canha, cinco dedos da mão do argumentador a estrangular a sua objecção...

— Magnífico, magnífico! exclamou o coronel, trincando a ponta do charuto como se ele soubesse a raciocínio. — Quanto mais o apertam, mais V. se desembaraça.

O Gomes apontou o seu corpo prolixo. — Quando me enlaçam, caio em cima deles... disse modestamente.

Fez-se uma pausa ligeira na conversa. Entrara um freguês que se devolveu à rua com uma garrafa de água de Vidago. O coronel Bastos acendeu, sorrindo, o seu charuto. Depois, indo o freguês a sair, voltou-se para o Gomes com uma voz interessada: (...)"

Fernando Pessoa, in Da República (1910 - 1935) .  (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.