Os Poemas para a Liberdade, de Manoel de Andrade: A poesia como arma 1
por Alberto Moby 2
"A editora paulistana Escrituras lançou ( 2009) o livro Poemas para a Liberdade, do poeta catarinense Manoel de Andrade, do qual já havia publicado, em 2007, Cantares.
Poemas para a Liberdade é, na verdade, uma reedição. Publicado inicialmente na Bolívia, no Peru e na Colômbia, em 1970, e no Equador, em 1971, é um conjunto de poemas que falam da luta armada e cantam a saga guerrilheira na América Latina dos anos 1970, então controlada por ditaduras militares. Independentemente do seu valor histórico inestimável, Poemas para a Liberdade é uma obra da qual, apesar de tudo, transbordam delicadeza, amor, esperança e por isso consta de vários catálogos de literatura latino-americana e seus poemas, de várias antologias, como Poesía Latinoamericana – Antología bilíngue, publicada em 1998, pela editora Epsilon, do México, cujas páginas o autor compartilha, entre outros, com poetas consagrados como o uruguaio Mario Benedetti, falecido este ano. Os mais jovens talvez não saibam. Os que sabem nem sempre se lembram. E os que lembram provavelmente não sintam mais aqueles sentimentos angustiantes e ao mesmo tempo cheios de esperança que moviam milhares de jovens na América Latina em busca de uma sociedade justa e fraterna. Falo dos chamados “anos duros” da ditadura militar no Brasil, logo acompanhada por outras ditaduras, e das lutas de resistência, com as armas possíveis e as imaginadas, contra o autoritarismo, a falta de liberdade e a barbárie que entre as décadas de 1960 e 1990 povoaram boa parte da América Latina. Entre esses jovens havia um, chamado Manoel de Andrade, vindo do interior de Santa Catarina, que começou a se destacar entre os colegas (na época ficaria melhor o termo “companheiro”) de Curitiba, onde decidiu viver, pelo carácter engajado de sua poesia. Lembre-se que “engajado”, naquela época, era sinónimo de “subversivo” e, quase sempre, também de “comunista”, “palavrões” que, naqueles tempos de Guerra Fria, podiam também ser traduzidos como o “Mal”, em oposição ao “Bem”, representado pelo “mundo livre”, isto é, os EUA e seus aliados (quase sempre muito mais por medo do que por afinidade ideológica). Em 1965, Manoel de Andrade, com a sua poesia militante, ganhou o 1º prémio do Concurso de Poesia Moderna, do Centro de Letras do Paraná. No mesmo ano, participou da histórica Noite da Poesia Paranaense, ao lado de poetas hoje consagrados como Helena Kolody, João Manuel Simões e o grande poeta e compositor Paulo Leminski, no teatro Guaíra, de Curitiba. Em 1968, aos 28 anos, é apontado pela imprensa paranaense como uma dos seus três grandes destaques literários, junto com Jamil Snege e o contista Dalton Tervisan. No mesmo ano, a Revista Civilização Brasileira publica o seu poema “Canção para os homens sem face”:
Canto a vergonha de ser brasileiro num tempo defecado
canto meu povo
e se ainda não canto meu país,
é porque não sei cantar na presença de homens indecentes;
eu canto sobretudo para aqueles que preservaram seu sonho,
para os que ousaram lutar e morrer por ele,
canto a memória de um guerrilheiro argentino.
E eis que meu verso se endurece
para que eu cante meu melhor combate
e só assim posso cantar para os irmãos e camaradas
recrutando companheiros para a luta…
e quando meu canto é feito para os ouvidos dos justos,
eu canto sem temor […]
[…] Como guerreiros invisíveis
meus versos se infiltrarão no país dos corruptos
pelas fronteiras das entrelinhas
e renascerão nos lábios dos militantes
ora como uma flor, ora como um fuzil.
Talvez, mesmo que esses versos façam algum sentido para você e mesmo que possam ser identificadas, lá no distante 1968, vergonhas muito parecidas com as de hoje, e que possamos também reconhecer este nosso tempo, de democracia e liberdade, como um “tempo defecado”, de “homens indecentes” ou um “país dos corruptos”, talvez seja quase impossível imaginar o que significava isso naqueles “anos de chumbo”. Outras palavras do poema expressam melhor que clima era aquele: eram os tempos dos “que ousaram lutar e morrer”, que evocava “a memória de um guerrilheiro argentino” – Ernesto Che Guevara, morto no dia 8 de Outubro do ano anterior, em nome de uma luta que se pretendia internacional contra a injustiça do capitalismo e, particularmente na América Latina, contra a opressão dos ditadores. Por isso o poema de Manoel de Andrade era feito de versos para “cantar para os irmãos e camaradas”, “recrutando companheiros para a luta”, “ora como uma flor, ora como um fuzil”. Não podia ter dado outra coisa. Em Março de 1969, perseguido pelo regime militar, principalmente pelo facto de ter feito panfletagem de seu poema “Saudação a Che Guevara”, Manoel de Andrade foge do Brasil. Nessa época a sua poesia já começava a ser conhecida por todo o país por meio de jornais e revistas literárias. Nos perigosos versos que lhe valeram a fuga do país, ele dizia:
na voz da rebelião,
na passeata de protesto
em cada homem sem pão,
em cada cidadão livre
que é metralhado na rua,
no seio de cada greve
no salário de quem sua,
no estômago que late
na opressão e na fome
nesse mal que nos consome
como farol claro e forte
surge tua imagem, teu nome
teu braço de guerrilheiro
teu sonho e tua verdade
nos apontando o roteiro
em busca da liberdade.
A força e a contundência desses versos, hoje, podem parecer ingenuidade, coisa de uma juventude demasiadamente crédula, especialmente empolgada com o sucesso da Revolução Cubana, em Janeiro de 1959, e com seu herói mais charmoso, Che Guevara, filho de uma família de classe média argentina que, depois de percorrer toda a América Latina, conhece, no México, os irmãos Fidel e Raúl Castro e, com um pequeno grupo, resolve se meter numa “aventura” que por acaso deu certo. Mas, insisto, não é possível ter uma visão minimamente clara daqueles jovens (que, aliás, se transformaram em alguns de nós actualmente ou já nos pais de muitos outros que agora lêem esse meu post) e, consequentemente, da poesia de Manoel de Andrade sem nos fixarmos na época em que tudo isso aconteceu. Ou, então, como explicar que um simples poema pudesse ser o principal responsável pela saída de alguém do próprio país, deixando para trás família, amigos, projectos, o curso de uma vida? Mas a vida de cavaleiro andante de Manoel de Andrade estava só começando. Ao deixar o Brasil foi para a Bolívia, onde continuou escrevendo e divulgando os seus poemas engajados. Em 1970 é lançado, pelo Comitê Central Revolucionário da Universidad Mayor San Andrés, em La Paz, seu primeiro livro, Poemas para la libertad, publicado também pelas federações universitárias de Cuzco e de Arequipa, no Peru, que foram consumidas e reeditadas em todo o meio estudantil do Peru, cujos exemplares se espalharam por toda a América do Sul, levados por mochileiros e estudantes latino-americanos. Mas a ampla aceitação de seus poemas pela juventude universitária não deram a Manoel de Andrade nenhuma tranquilidade. Muito pelo contrário, essa aceitação representava ainda mais perigo, perseguições, fugas. Expulso da Bolívia em 1969, antes da publicação de seu livro, foi para o Peru, de onde também foi expulso, no ano seguinte, e para a Colômbia, onde, no mesmo ano, sofre o mesmo destino. O alcance da sua militância política pode ser avaliado pelo destaque que na época os mais importantes jornais da América Latina e as maiores agências internacionais de informações, como a AP e a UPI, lhe deram. Numa época em que não havia telefones celulares nem internet, pode-se imaginar o perigo que seus poemas revolucionários podem ter representado. Conhecido por promover debates, ministrar palestras e declamar seus versos em universidades, teatros, galerias de arte, festivais de cultura, congressos de poetas, sindicatos, reuniões públicas, privadas e clandestinas e até no interior das minas de estanho da Bolívia, Manoel de Andrade e seus versos não podiam ser vistos como nada menos do que muito perigosos. Por isso o governo peruano o expulsa do país “por realizar actividades que constituem um manifesto perigo para a tranquilidade pública e segurança do Estado”. Mas a aventura de Manoel de Andrade não pararia aí. Em 1971, estava no México, onde, entre outras coisas, se apresentou no Instituto Mexicano-Cubano; participou das comemorações do 37º aniversário de morte do herói revolucionário nicaraguense Augusto César Sandino; viajou para a Califórnia, nos EUA, onde ministrou várias palestras e recitais em organizações chicanas e nas universidades de Los Angeles e Berkeley. É o próprio autor quem nos conta, generosamente, parte dessa trajectória:
Eu chegara ao México, depois de cruzar, ao longo de três anos, todos os países da América Latina (excepto Venezuela) e trazia, desfraldada na alma, a bandeira das lutas de liberação nacional que incendiavam o continente e por isso, depois do meu recital no Instituto Mexicano-Cubano, na Cidade do México, fui “convocado” para levar aos chicanos (norte-americanos de origem mexicana) a notícia do que se passava na América, como um estímulo à sua luta no contexto de segregação em que viviam dentro das próprias entranhas do “monstro” imperialista. É uma fase belíssima da minha vida que não posso contar aqui. Meu livro Poemas para a Liberdad, teve sua 3ª edição em San Diego. Ao cabo de três meses tive que voltar ao México para novo visto no passaporte, mas quando tentei voltar para terminar minha “missão”, os yanques já não me permitiram a entrada. Do México fui para Equador, onde dei um ciclo de palestras na Universidade Central do Equador, sobre problemas centro-americanos […] e mexicanos. No Equador publicaram a 4ª edição do meu Poemas para a Liberdade. Depois de dois meses tive que sair correndo de Quito (onde cheguei a primeira vez, expulso do Peru e a segunda, expulso da Colômbia) porque fui acusado pelos estudantes de agente da CIA. (Eles não entendiam como é que eu corria a América Latina, pra cima e pra baixo, e estava sempre ‘infiltrado” entre a classe estudantil e o pessoal de esquerda). Fui alertado por um amigo estudante de arquitectura e saí por Quayaquil, num transatlântico italiano (Rossini) e entrei, sem problemas, no Peru, pelo porto de Callao. Resolvidos alguns problemas no Peru, fui para o Chile de Allende, onde comecei a escrever minhas memórias de viagem e artigos para jornais e revistas sobre o problema dos chicanos e sobre o colonialismo português em África. Minha mulher foi para Santiago e, pela minha filha, voltei com ela ao Brasil em meados de 72, e em Curitiba, depois de descobrir que o DOPS já sabia da minha volta e me procurava, transferi minha OAB para Santa Catarina, para tentar advogar. Mas também lá o clima de repressão e espionagem era terrível. Era a época em que estava começando a Guerrilha do Araguaia. Voltei pra Curitiba e passei a viver no anonimato social e literário. Por indicação de um amigo, e para sobreviver, fui vender a Enciclopedia Delta Larousse. Ninguém sabia onde eu estava. Somente aparecia no fim do mês para entregar os meus contratos de venda e receber minha comissão. Em seguida sumia pelo interior do Paraná ou Santa Catarina e somente minha família sabia de mim. Foi uma bela estratégia porque eu pude trabalhar e me esconder ao mesmo tempo. […] Voltei a escrever em Setembro de 2002 […], durante os 30 anos que não escrevi nada, tive uma vida muito intensa e acabei esquecendo que eu era poeta […], mas também tive uma vida intelectual muito rica.
Tive o privilégio de conhecer Manoel de Andrade graças à coincidência de termos uma amiga em comum, a antropóloga e historiadora Philomena Gebran, a quem ele não via há mais de 30 anos e que, através de mim, graças às maravilhas da internet, pôde reencontrar em Curitiba, onde ambos moram actualmente. Somos, portanto, apenas amigos virtuais. Mas é como se fôssemos amigos há muitos anos, compartilhando a maior parte dos sonhos, das grandes frustrações e, principalmente, as esperanças que os muitos sustos da vida não conseguiram levar. Naqueles tempos difíceis parecia para muitos que a força das armas − e, no caso de Manoel Andrade, a sua eram os versos – era o caminho. Hoje, não sei qual o caminho (e acredito que ele também não), mas continuo acreditando, como ele, numa sociedade justa, humana, fraterna. Por isso recomendo com veemência a leitura dos seus Poemas para a Liberdade. Pelo menos para que os que não saibam fiquem sabendo, os que sabem se lembrem e os que lembram voltem a pensar sobre a esperança."
Alberto Moby, em "As palavras no espelho - ( Fortuna crítica) " de Manoel de Andrade, Editora Escrituras , São Paulo, Brasil, 2018, pp. 279-286
1 - A presente resenha foi publicada originalmente em Julho de 2009, no blog
Minhas Histórias de Alberto Moby .
E foi republicada em 12 de Julho no blog Palavrastodaspalavras.
2 - Alberto Moby Ribeiro da Silva nasceu no Rio de Janeiro em 1957. É historiador,
jornalista e professor de História, com mestrado e doutorado em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autor do livro Sinal Fechado – a música popular brasileira sob censura, lançado em 1994 e da obra,
em espanhol, La Noche de las Kygua Vera – La mujer y la reconstrucción de la
identidad nacional en la posguerra de La Triple Alianza (1867-1904) publicada em 2010 pela Editora Intercontinental em Assunção, no Paraguai. É autor
de diversos ensaios, artigos e capítulos de livros nos quais o tema é a História Cultural.