terça-feira, 30 de abril de 2024

O calembur de Artur Corvelo


O CALEMBUR DE ARTUR CORVELO
(A propósito de críticos de vistas curtas)
por Eugénio Lisboa
"Uma das criaturas mais irritantes que habita debaixo da Via Láctea é o chato “recta-pronúncia”, isto é, o indivíduo que, posto na frente do poema mais sublime, do romance mais empolgante ou da construção filosófica mais esplendorosa, em nada repara a não ser num insignificante deslize gramatical ou numa distraída redundância. Em Lourenço Marques, onde vivi, havia uma dessas criaturas, excelente pessoa, de resto, de uma inocência de criança que ainda não conheceu os males do mundo, bondoso, afável, mas chato como a potassa. Diante de um livro qualquer que nos tivesse deslumbrado, lá se punha ele, atormentado, a caçar deslizes, incongruências, maneiras inaceitáveis de dizer: totalmente alheio ao miolo do livro, à sua riqueza estética e de conteúdo, à sua frescura de visão, à magistral manipulação da língua ou à destreza narrativa. Mas um dia, estávamos nós – um grupo que se reunia, com frequência, no Café Nicola, na Praça 7 de Março de Lourenço Marques – em amena conversa, dizendo todo o mal que podíamos do Estado Novo, eis que nos aparece o Camilo Sequeira, o tal purista da língua portuguesa, empunhando um “paperback” inglês, que acontecia ser um romance indiano, muito elogiado, na contracapa, pelo egrégio Graham Greene. Já não era pequena surpresa ver o inocente notário andar a ler um romance de um autor indiano, mas o mais surpreendente era ouvi-lo dizer que o livro era de um interesse enorme. Desfazia-se, literalmente, em encómios ao enorme prazer que lhe trouxera a leitura daquele livro exótico. Ficámos todos perplexos e um de nós não se conteve que não perguntasse: “Mas, ó Camilo Sequeira, o que é que tanto o cativou nesse livro?” A resposta veio inundada de sorrisos embevecidos: “É que, imaginem Vocês, eles, lá na Índia, dão exactamente os mesmos erros que nós, a escreverem!”
Esta obsessão com uma pequena suposta verruga perdida na vasta e compacta massa literária de uma obra, faz-me recordar uma das cenas mais comicamente sinistras do romance de Eça, A CAPITAL. Refiro-me ao jantar destinado a assinalar, num hotel de Lisboa, o aparecimento de um livro de poesia, a estreia poética de Artur Corvelo, que descera, da província, à capital, em busca de glória. Porém, quando esperava ouvir da boca daqueles “intelectuais” palavras alevantadas e sublimes sobre o seu livro, tudo quanto ouviu, repetidamente, foram elogios hilariantes a um calembur que um dos celebrantes descobrira no seu livro. E, durante todo o jantar, não se falou em mais nada a não ser no delicioso calembur de Corvelo.
Ora este é o modelo de crítica que praticam por aí alguns Camilos Sequeiras da Praça Literária lisboeta. Incapazes, por falta de verdadeira cultura, de meterem a mão na massa profunda dos textos, esgatanham-nos, na busca desesperada de um calembur, que os ajude a fingirem que estão a pairar por cima da obra que vandalizam sem pudor. Encontrar calembur ou não encontrar calembur num texto que os ultrapassa, eis a questão. E esta gente tem seguidores! E esta gente pontifica! E esta gente existe e deixa descendência! Esta gente descobriu uma forma preguiçosa, mas rendosa de viver e operar: rebuscar, até encontrar, o calembur que lhes garanta o pão e a fama! O calembur de Corvelo é a boia de salvação de quem, diante de um texto, não sabe o que dizer.
De propósito, não vou aqui dizer o nome do mais representativo destes críticos calembúricos: ele sabe a quem me refiro. Mas este meu texto é também uma safada armadilha: se ele reage, é porque enfiou a carapuça. Se não reage, é porque é cobarde. O diabo que escolha!"
                                                        30.03.2021
Eugénio Lisboa

P. S. – Aproveito para recomendar a quem  não leu o romance de Eça de que acima falo: A CAPITAL. Considero-o o mais admirável exemplo de humor negro, de toda a nossa literatura.
Um verdadeiro exercício de crueldade obstinada de um autor sobre o seu leitor. Completamente fora do alcance do crítico calembúrico.

domingo, 28 de abril de 2024

Ao Domingo Há Música


CONTAR DE  ABRIL

por Baptista-Bastos
" Contarás de Abril o assombro, o desassossego, as súbitas visões de beleza longamente sonhadas, o assanhamento da hora vesperal; o renascer, meu e teu. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas  docemente nossas que rimam connosco, as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas docemente nossas que rimam connosco , as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril os gritos, as imprecações, as cóleras, o idioma ressurecto na fraternidade de frases efusivas, no estertor. Contarás de Abril aquele haver viagem, aquele cheiro antigo de chuva de infância, a peca sombra, o chouto curto, o bêbado de rua que te assustou, temulento, a frugal manhã. Contarás de Abril o lado esquerdo da madrugada; cíclicos, os sismos: o chão em fissuras laceradas; de vagarosa, a capa da terra a recobrir o oco, as galerias naturais do ódio, onde rebramia o mar, sobre o qual haviam colocado o pinho e pedra e reconstruído a cidade, longa história de uma frustração. Contarás de Abril, os passos. Contarás de Abril , os sons , ínsitos na paisagem nocturna, nas betesgas. Contarás de Abril que me viste trajado de briche e holandilha, seteira ao ombro, num baixel de antigamente, soletrando palavras felizes, sem direcção nem sentido, como tudo o que é feliz. Contarás de Abril, aos meus filhos, filhos teus, que os meus olhos míopes, ardidos, urbanos, ficaram cheios de um ofício de dizer coisas singelas, humildes e absurdas: como amor, liberdade. 
(...) Contarás de Abril o renascer da essencial frescura.
Contarás de Abril.
Contarás , meu amor." 
Baptista-Bastos , " Contar de Abril", in " Textos de Escritores Comunistas", Edições Avante

Muito se escreveu, muito se cantou sobre o 25 de Abri de 1974. De tudo isso, se celebrou o seu cinquentenário, neste ano de 2024.
Vestiram-se , com novas roupagens,  muitas das velhas  canções revolucionárias . Recordou-se o dia inaugural. Teceram-se considerações e o povo saiu de novo à rua.
Eis algumas das tantas lembranças que encheram de sons e palavras os dias   de quem viveu esse renascer da  essencial frescura.

Chico Buarque, em Tanto Mar.
 
O 25 de Abril  através de 100 fotografias, legendadas pelas vozes de Paulo de Carvalho , Zeca Afonso e outros, nas melodias mais emblemáticas da Revolução dos Cravos de 1974.

O 25 de Abril de 1974, em cartoon.

Cartoon de Cid ,publicado  no Jornal  República,em 27-4-1974
Cartoon de Abel  Manta, 1º de Maio de 1974
Cartoon de Martins, publicado no Jornal  A Bola, em 4-5-1974
Cartoon de Ferraz , publicado em  Os Ridículos,18-5-1974
Cartoon de Martins, publicado no jornal  A Bola, em 8-6-1974
Cartoon de Abel Manta, publicado no Jornal,  em  11.7.1975
Cartoon de Baltazar , publicado em O Século Ilustrado, 20-7-1974
Cartoon   de Abel Manta,   Metamorfose, publicado no DN,
em 20 de Agosto de 1974 
Cartoon de José Vilhena, publicado em Os Ridículos, 1-10-1974
Cartoon de Martins , publicado no Jornal A Bola, em 7-12-1974
Cartoon de José Vilhena, publicado na Gaiola Aberta, em 15-12-1974

sábado, 27 de abril de 2024

Intimations of mortality

 
Intimations of mortality
 
Tudo vai chegando a um fim que não
entendo. O nada é só o fim de tudo?
Os dias que passam são o que são,
Mas deixarem de ser deixa-me mudo.
 
Tento aceitar o que cessa de ser,
procuro ver o não ser que não vejo:
viver e morrer é não perceber,
e não sei sentir que nada desejo.
 
Se eu entendesse o que é tudo acabar,
se fosse o não ser o mesmo que ser,
se deixar de ser fizesse sentido
 
se fosse não ser um só descansar
(forma feliz de o ser ir não ser),
tudo apenas cansaço interrompido…
                          Roma, 28/29.03.1996
Eugénio Lisboa

sexta-feira, 26 de abril de 2024

EUGÉNIO LISBOA (1930-2024)

Eugénio Lisboa
 

EUGÉNIO LISBOA (1930-2024)
por Guilherme d'Oliveira Martins

"Conheci Eugénio Lisboa em Londres, sempre com o mesmo rigor e afabilidade, com a amável presença de Maria Antonieta, sua mulher. Conferencista exemplar, era claríssimo até no modo como pronunciava as palavras, assinalando com naturalidade cada sílaba, cada frase, com a preocupação de deixar nítidas as ideias que exprimia. Tinha um sentido de humor único, não perdendo oportunidade para recordar um episódio burlesco. Engenheiro eletrotécnico de formação, no IST, entregou-se, ao longo da vida à literatura com uma dedicação digna de nota. Muitas vezes disse que no pelouro crítico só há uma regra, que considerava de ouro: ler, ler e ler. “Ler com atenção despreconcebida. Ler, aguardando sem a malícia de um programa prévio. Sem querer enfiar pelo texto abaixo a incompetência do método pré-fabricado. É o texto, a sua natureza, a sua força específica, a sua originalidade própria, a sua frescura intrépida – que nos hão de sugerir o método (se algum) mais adequado” (As Vinte Cinco Notas do Texto, INCM, 1987). Afinal, a clareza é a boa fé dos filósofos. E costumava lembrar António Sérgio, quando este pedia que não se fizessem confusões. “Um eclipse do Sol é uma escuridão, mas a teoria dos eclipses é uma doutrina clara”.
Eugénio Lisboa era um leitor permanente e insaciável – vário, intrépido e fecundo. Estou a ver a sua caligrafia cuidada, em cadernos de linhas, e a ordenação de citações oportunas, escolhidas com elevado critério. Não é possível compreendermos o que se chamou segundo modernismo, da revista “Presença”, sem recorrer a quem melhor conheceu e melhor estudou esse singular encontro cultural. Leu e estudou o seu amigo José Régio melhor do que ninguém, e como exímio intérprete entendeu bem os contributos de Adolfo Casais Monteiro, Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões. Percebeu cedo a originalidade do grupo e concordaria com a exceção à ideia de que o Português não é nada inclinado ao conhecimento de si próprio: “gosta muito de falar de si, mas daí a conhecer-se vão mundos”. Contudo, se se seguisse tal simplificação teríamos de concluir que “Antero, Pessoa e Pascoaes, por exemplo, não existiram, ou não foram portugueses, porque o mais significativo da poesia e da personalidade deles – aquilo que mais centralmente os devorou – é muito pouco característico do Português, tal como em média o conhecemos”.
Autor é aquele que acrescenta e foi esse o critério fundamental de Eugénio Lisboa na busca da literatura relevante. Lembremos o conselho que deu a António Osório, em boa hora, para que publicasse a sua inconfundível e sublime poesia. Por outro lado, a admiração que reservou a Jorge de Sena permite-nos aquilatarmos da originalidade e da força de um autor que sempre se considerou menos reconhecido do que deveria, mas que com a passagem do tempo e a limpeza dos caminhos assumiu o lugar essencial, como o crítico sempre considerou. Eugénio citou a propósito de outro intelectual marcante, o Padre Manuel Antunes, Charles Lamb, que disse: “Gosto de me perder no espírito dos outros homens”. Foi assim que aconteceu com ele próprio, numa obra plena de referências e de análises argutas e inteligentes assentes na busca incessante da eterna sabedoria do pensamento e da escrita. Montherlant, Reinaldo Ferreira ou Rui Knopfli também o ocuparam especialmente. Era um cosmopolita, com uma costela anglo-saxónica, criada na experiência moçambicana e na presença em Londres. Ao folhearmos números antigos da revista “Colóquio – Letras”, encontramos sempre o leitor atual, exigente e insaciável, a descobrir aquele pormenor essencial que passaria despercebido ao leitor ocasional. Não esqueço ainda a ação que desenvolveu na Comissão Nacional da UNESCO, sempre atento aos vários domínios da organização: a educação, a cultura, a ciência, o património e a comunicação. E as suas memórias em Acta est Fabula são imperdíveis, um autêntico néctar para a leitura do mundo."
Guilherme d'Oliveira Martins, em Raiz e Utopia, blog do Centro Nacional de Cultura, em 24.04.2024

quinta-feira, 25 de abril de 2024

O brilho intenso da Liberdade

No dia da cor  azul


Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum estatuto. Não é um dote. É um dom. 
Miguel Torga

A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida.  
Miguel de Cervantes, (29 de Setembro de 1547- 22 de Abril de 1616), "Dom Quixote"

 

"O afinador de palavras apresentou-se ao fim do dia. A luz, obumbrada pelo ocaso, escondia as cores que sempre exibia. Era um aparecimento estudado. Sorria com alguma astuta ingenuidade, não fossem descobrir que tudo fora  planeado.  A quoi bon, o jogo das palavras pertencia-lhe.

Nesse dia, vestira o azul. Fora um labor infindável. Vieram tantas que ficara exausto. Tinha sido uma revelação. Não era que havia um ror de palavras   a acreditar no impossível. 

O azul era a cor da utopia. Todas aquelas palavras que  tinham lançado acordes, que poetavam, que esgrimiam o som libertário para uma nova humanidade, que carregavam o sonho de um mundo justo se enfileiraram para que as afinasse. Outras ainda, mal alinhadas nas letras que as faziam nascer, vinham trôpegas à espera de um elixir  que as fortalecesse. Só ele conhecia os poderes do azul. Só ele sabia quem  o podia vestir. A autenticidade revelava-se a um pequeno lançar de olhos. Ficou atónito com tanta palavra genuína. Que fazer se o dia tinha cronómetro? E ele que se exigia demais. Como dizimar tanta  maleita inesperada?

Frágeis e desamparadas rogavam, com assertiva doçura, uma recuperação. O azul era melodicamente gentil, intrinsecamente harmonioso. Fugia ao aparatoso, ao ruído dissonante da exigência. Elas, as palavras, queriam  não um remendo, não um penso que se acomodasse  às circunstâncias desse tempo crísico, dessa época infame. Não . Ouvira, límpido e nítido, sem  qualquer vacilação, um rotundo e ardente não. Que burilasse. Que se servisse de um cinzel  e as esculpisse sem demora, mas para todo o sempre.

Qual folha caduca? Que pensamento abstruso.  O Outono  acontecia apenas na natureza. Palavras são palavras. Têm vida própria. Forma definida e lugar no  repositório  das nações. E sabia-se. Era um dado categórico. E o azul identificava as palavras que acreditavam no impossível.

Trabalhou. Recuperou.  Cinzelou. Remendou. O dia prolongou-se até que a cor se tornou invisível. Muitas palavras ficaram prostradas no chão, quando se obscureceu. Nada mais podia fazer. Sem os raios do sol, o azul tornava-se volátil. Desaparecera na magia do insondável poder da luz.

Amanhã seria outro dia. Vestiria também uma outra cor. Afinaria outras palavras. O azul teria de esperar pela roda do tempo.

Agora, escurecia. A noite protegia. Guardara uma única palavra. Trazia-a no bolso. Vinha redonda . A sorrir para quem a esperava, a espargir um odor magnificente. Que azul luminoso a vestia. Era única e imperdível. Fora difícil restabelecê-la. Com ela estavam associadas muitas outras palavras . Não eram visíveis. Mas compunham-na .

Uma sinfonia  soltava-se,  audível apenas para ele: a sinfonia da criação. Desconhecida, majestosa e sedutora. Nem ao fluir, a lembrança dos sons do  Oratorio de Haydn  se apunha. Surgiam diferentes, apesar de produzidos pela estética do belo e sustentados por um denominador comum. Separava-os a  sonoridade dos instrumentos. Era uma sinfonia de  acordes únicos, heróicos  e gloriosos.  Uma sinfonia que se erguera do caos, do nada informe que debruava o vazio. Explodia, alargando-se, em eufónicos e imparáveis movimentos, para lhe encher  o corpo e a mente de novas forças, de diferentes vontades que teria de partilhar.

Vinha com uma palavra forte. Sabia-o. Vira-a por dentro. Tinha as letras bem desenhadas. Nove letras em sincronia perfeita. Ficaria para sempre, como a saudade das coisas felizes. Deixaria de lhe pertencer, logo que fosse  apresentada. Seria de todos e para todos.

Com leveza e disciplinada ternura, começou a retirá-la  devagarinho. À medida que saía,  a noite transformava-se. Tomava-a  um  novo e estranho esplendor. E quando a desnudou e a mostrou inteira , o brilho intenso da Liberdade  iluminou os rostos e encheu de promessas o coração  de cada  um. 

Assim se cumpria, naquele dia, o sonho que veste o azul."

Maria José Vieira de Sousa, in O Afinador de palavras, 2016

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Há dias


Há dias que não sabemos como serão. O Sol nasce porque a Lua desapareceu. A noite acaba porque a alvorada  o impõe. A luz brilha porque as trevas se extinguiram.
E, então, as horas sucedem-se e o dia cresce. O Mar, os rios mergulham em movimento e a terra organiza-se em tempo e espaço. E é nesse entretanto que saímos na perplexidade do  acontecer.

terça-feira, 23 de abril de 2024

No dia Mundial do Livro

Eugénio Lisboa , em entrevista a Luís Caetano, na sua casa de S. Pedro de Estoril


Eugénio Lisboa teceu, ao longo da vida, uma magnífica obra, que se distribui por uma variedade de temas e formas. Um homem extraordinariamente culto que sabia combinar, com argúcia, o saber, a erudição com um invulgar sentido de humor, traduzido em sedutora escrita. 
Relembramo-lo com um poema do seu último livro publicado e com uma entrada (ainda inédita) do seu Diário ( Aperto Libro) .

UM LIVRO
 
Um livro é assim como um filho,
que lançamos, indefeso, às feras.
Tentámos, com amor, dar-lhe brilho
e, às vezes, elegância de pantera.
 
Tivemos insónias e também dores,
faltámos a deveres e encontros,
sempre em favor daqueles fervores,
que se alimentam de desencontros.
 
Um livro constrói-se com emoção,
mas também com cálculo e razão.
Junte-se a isso, enorme esforço,
 
de que a alegria é um reforço.
É filho com que nos preocupamos
e de quem, por vezes, nos orgulhamos.
                               26.08.2022
Eugénio Lisboa, in soneto, modo de usar, Editora Guerra & Paz, Abril de 2024,p.46

.
S. Pedro, 18.09.2014
"(…) Os poetas: uma noite, em casa do poeta americano Robert Frost, depois do jantar, o escritor e uma jovem vieram postar-se à porta de casa. A jovem exclamou: “Ó Sr. Frost, não está um lindo pôr-de-sol?” Frost respondeu: “Nunca falo de negócios, depois do jantar.”
Quando me cumprimentam, por ainda estar tão alerta, apesar dos meus mais de oitenta anos, lembro-me de Robert Frost que, numa viagem de comboio, ouviu este cumprimento, de alguém que ia na mesma viagem: “Felicitações pela sua longevidade!”  O poeta respondeu secamente: “Vá para o inferno com a minha longevidade. Leia mas é os meus livros!”.  
Convido os meus ainda não leitores a fazer o mesmo: os meus livros são muito mais interessantes do que a minha longevidade."
Eugénio LIsboa

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Novidades Literárias em Abril


Editora Guerra & Paz
Novidades editoriais

"Várias estreias literárias e romances premiados são editados neste mês de Abril , em que se  publica o novo livro de poesia de Eugénio Lisboa, "soneto-modo de usar",  pela editora Guerra & Paz,  as memórias de Manuel Alegre e novos livros de Jeferson Tenório, Alia Trabucco Zerán, Liu Cixin e Deborah Levy
Jamaica Kincaid, autora de língua inglesa, natural de Antígua e Barbuda, é uma das estreias literárias em mercado editorial português, com o romance "Annie John", que conta "uma história sublime e universal sobre desenraizamento, identidade e laços de família", segundo a Alfaguara, que publica a obra.
Amplamente elogiada pela crítica e pelos seus pares, a autora é descrita como "irresistível e avassaladora", por Susan Sontag, "elegante e intransigente", por Ali Smith, e autora de livros "crus, excessivos e, sobretudo, belíssimos", que descobrem "beleza entre as ruínas", nas palavras de Alejandro Zambra.
Da mesma editora chega também um novo romance da canadiana Miriam Towes, autora de "A voz das mulheres", ambientado no universo feminino, através da intimidade de uma "família desarranjada".
"Noite de luta" relata as aventuras inteligentes e impetuosas de uma pequena rapariga de 9 anos, que se alimenta do universo da sua mãe e da sua avó.

Uma outra publicação inédita em Portugal é o romance "Eu canto e a montanha dança", de Irene Solà, um dos maiores sucesso da literatura catalã e europeia, segundo a Cavalo de Ferro.
Trata-se de uma espécie de fábula contemporânea, situada nos Pirenéus catalães, que congrega dramas e tempestades, tragédias e folclore, que venceu do Prémio Anagrama de Romance 2019, o Prémio de Literatura da União Europeia 2020, e foi finalista do National Book Critics Circle`s Award.

Elsinore publica o primeiro romance da tradutora e autora de livros infantis e de não-ficção Rita Canas Mendes, "Teoria das Catástrofes Elementares", o retrato das vivências de uma família portuguesa disfuncional, entre Lisboa e Cascais, nas últimas décadas do século XX, vista pelos olhos de uma protagonista durante a sua infância e adolescência.
Na mesma editora, será publicado aquele que foi o romance de estreia da escritora chilena Alia Trabucco Zerán, "A Subtração", e que chegou a finalista do Prémio Booker Internacional.
Nesta obra da autora de "Limpa", três jovens adultos a contas com a traumática herança de um país, embarcam numa `roadtrip`, em que as sombras de morte da ditadura de Pinochet se interligam com o percurso e os sonhos individuais de cada um.

Ainda ao nível das novidades, a Suma de Letras lança "A Corrente", um policial de Filipa Amorim, que é o seu livro de estreia, e "Dezanove Degraus", primeiro romance da atriz Millie Bobby Brown (protagonista de "Stranger Things"), inspirado na história da sua avó.

Companhia das Letras traz uma nova história de Jeferson Tenório, autor de "O avesso da pele", sobre a luta de uma adolescente que sonha ser filósofa e encontrar o lugar certo no mundo, intitulada "Estela sem Deus", bem como um novo livro de Susana Moreira Marques, "Terceiro andar sem elevador: Notas sobre Lisboa", uma reflexão sobre a vida moderna e um tributo a esta cidade.

As "Memórias Minhas", de Manuel Alegre, compostas por pequenas histórias que traçam também um retrato do Portugal dos anos 1950 até ao país livre após o 25 de Abril, chega às livrarias pela Dom Quixote, que edita também um novo romance do escritor e músico cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, intitulado "O livro que me escreveu".
Dom Quixote publica também "A Filha Única", romance da escritora mexicana Guadalupe Nettel, finalista do Prémio Booker Internacional 2023, romance sobre três mulheres e os laços que as unem, nas suas histórias particulares em torno da maternidade, da sua negação ou aceitação, das dúvidas, incertezas, sentimentos de culpa, alegrias e angústias.
"Manual Para a Obediência", de Sarah Bernstein, é outra aposta da editora, um romance sobre cumplicidade e poder, desenraizamento e legado, que foi finalista dos prémios Booker e Giller 2023.

"Voltar do Bosque", romance de Maddalena Vaglio Tanet nomeado para o prémio Strega em 2023, é outra novidade da Dom Quixote, enquanto a Casa das Letras publica "Tortura Branca", de Narges Mohammadi, Prémio Nobel da Paz em 2023, que relata experiências de catorze mulheres, incluindo ela própria, nas prisões da República Islâmica do Irão.

A Relógio d`Água vai lançar o novo romance da escritora britânica Deborah Levy e o mais recente livro de contos da norte-americana Lydia Davis, "Os Nossos Desconhecidos", bem como o terceiro volume da trilogia "Lembrança da Terra do Passado", de Liu Cixin, "A Morte Eterna".

A Contraponto lança "Turno da noite", de Robin Cook, e vai reeditar a obra "O quinto filho", de Doris Lessing, fora do circuito editorial português há mais de 30 anos.

Outra novidade literária chega pela Quetzal, o romance de estreia de Mário Rufino, professor, crítico literário e organizador de festivais literários, intitulado "Cadente".
"Piero Solidão", de Leonor Baldaque e "A Sociedade Muito Secreta dos Caminhantes Solitários", de Rémy Oudghiri, são outros livros a saírem nesta chancela.

"O Ladrão de Arte", de Michael Finkel, é uma das apostas para abril da Porto Editora, enquanto a chancela Livros do Brasil publica mais um livro de Annie Ernaux, neste caso o seu romance de estreia, "Os Armários Vazios", bem como "Pedra e Sombra", de Burhan Sönmez, vencedor do Prémio do Romance Orhan Kemal na Turquia e finalista do Strega Europeu em Itália.

A Assírio & Alvim publica "Alexandre O`Neill. Uma Biografia Literária", de Maria Antónia Oliveira, numa edição revista e aumentada, e publica "Entre Sílabas e Lavas", de Nuno Guimarães.

Na área da ficção, as novidades literárias do grupo Almedina, editados pela Minotauro, são "Messalina - Uma história de poder, difamação e adultério" de Honor Gargill-Martin, e "Os Frágeis Fios do Poder" de V. E. Schwab.

"Tarrafal", o novo livro do fotógrafo documental João Pina, "Livros Reunidos", antologia poética de Carlos Bessa, e "Catarina e a Beleza de Matar Fascistas", texto do espetáculo de Tiago Rodrigues, agora em livro, são algumas das novidades de abril da Tinta-da-China."

Da Guerra & Paz:

Après la tentative d'assassinat, l'écrivain livre une réflexion puissante et intime

Si vous n'arrivez pas à lire ce message, suivez ce lien.

présente le nouveau livre de Salman Rushdie




« Il était nécessaire que j'écrive ce livre : une manière d'accueillir ce qui est arrivé, et de répondre à la violence par l'art. » S. R.
Pour la première fois, Salman Rushdie s’exprime sans concession sur l’attaque au couteau dont il a été victime le 12 août 2022 aux États-Unis, plus de 30 ans après la fatwa prononcée contre lui.
Dans ce livre très personnel, paru simultanément dans de nombreux pays cette semaine, et qui signe par la même occasion son entrée dans le catalogue Gallimard, l'écrivain lève le voile sur la longue et douloureuse traversée pour se reconstruire après un acte d’une telle violence; jusqu’au miracle d’une seconde chance.

Questions à Salman Rushdie

Le Couteau sera votre premier livre publié chez Gallimard. Pourquoi ce titre ?

Salman Rushdie : Ça m'a semblé être la façon la plus directe de m'exprimer. Parce que la seule raison à l'existence de ce livre, c'est ce couteau. Franchement, je n'avais pas l'intention d'écrire un nouvel essai autobiographique. Vous savez, ça n'a jamais été mon intention de pratiquer l'écriture autobiographique. Mais là, après cette... attaque, il me semblait difficile de parler d'autre chose. Alors je me suis dit : "Je dois écrire ce livre, pour pouvoir écrire autre chose par la suite."

Le 12 août 2022, vous avez été attaqué, et presque tué. 27 secondes qui ont changé votre vie. Pour ouvrir le livre, vous avez choisi une citation d'un célèbre écrivain irlandais, quelle est-elle ?

Salman Rushdie : C'est une phrase de Samuel Beckett. Qui dit [...] "Nous sommes différents, nous ne sommes plus ce que nous étions avant la calamité d'hier."
Ce que j'entends, c'est que pour lui, chaque jour est une calamité. Et, à chaque fois, une calamité différente. Il me semblait que ça correspondait parfaitement à ce dont je voulais parler, à savoir cette irruption radicale dans le cours d'une vie, de la mienne en l'occurrence... Je pense que je suis, jusqu'à un certain point, en train de prendre mes distances avec cette affirmation parce que, dans le fond, je retrouve ma vie d'avant. Je n'ai donc pas l'impression que ma vie a été radicalement détruite, si l'on excepte un certain nombre de problèmes de santé.


1
LE COUTEAU

"À dix heures quarante-cinq le 12 août 2022, par un vendredi matin ensoleillé dans le nord de l’État de New York, j’ai été attaqué et j’ai failli être assassiné par un jeune homme armé d’un couteau juste après être monté sur scène dans l’amphithéâtre de Chautauqua pour y parler de l’importance de préserver la sécurité des écrivains.
J’étais accompagné de Henry Reese, cofondateur avec son épouse Diane Samuels du projet de Pittsburgh Ville Refuge, qui donne asile à un certain nombre d’écrivains en danger dans leur propre pays. Henry et moi étions venus à Chautauqua parler de la création en Amérique de lieux sûrs destinés à des écrivains venus d’ailleurs et de mon engagement dès les prémices de ce projet. Cela faisait partie d’un programme d’une semaine de manifestations organisées par l’Institution de Chautauqua intitulé « Plus qu’un refuge. Redéfinir l’accueil américain ».
Nous n’avons jamais eu cette conversation. Et je n’allais pas tarder à découvrir que, ce jour-là, l’amphithéâtre n’était pas pour moi un lieu sûr.
Je revois encore l’instant au ralenti. Mes yeux suivent la course de l’homme qui jaillit du public et vient vers moi. Je distingue chaque pas de sa course effrénée. Je me vois me lever et me tourner vers lui. (Je continue à lui faire face. Je ne lui ai jamais tourné le dos. Je n’ai aucune blessure dans le dos.) Je lève la main gauche dans un geste d’autodéfense. Il y plonge le couteau.
Ensuite je reçois de nombreux coups, au cou, à la poitrine, à l’œil, partout. Je sens que mes jambes me lâchent et je m’écroule.
*
Le jeudi 11 août avait été ma dernière soirée insouciante. Henry, Diane et moi nous étions promenés en toute légèreté dans le parc de l’Institution et nous étions retrouvés pour un dîner agréable au restaurant 2 Ames au coin de la partie verdoyante du parc nommée Bestor Plaza. Nous avions évoqué le discours que j’avais prononcé dix-huit ans auparavant à Pittsburgh sur mon rôle dans la création du Réseau international des villes refuges. Henry et Diane y avaient assisté et s’en étaient inspirés pour faire aussi de Pittsburgh une ville refuge. Ils avaient commencé en finançant une petite maison et en soutenant financièrement un poète chinois, Huang Xiang, qui eut cette initiative frappante de recouvrir les murs extérieurs de sa nouvelle demeure d’un poème en grands idéogrammes chinois à la peinture blanche. Henry et Diane développèrent progressivement le projet jusqu’à disposer de toute une rue de maisons refuges, Sampsonia Way, dans les quartiers nord de la ville. J’étais heureux d’être à Chautauqua pour fêter leur réussite."


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domingo, 21 de abril de 2024

Ao Domingo Há Música


África minha

A África tem isto: é enorme
ali, nunca se fica apertado.
Mesmo quando parece que ela dorme, 
há nela um grande fogo agastado!
           Eugénio Lisboa, Soneto, modo de usar

O fascínio de África é intenso e infindável. Quem lá vai , fica preso na sedução que dela emana. Quem lá nasceu, não esquece as raízes. Enorme, tem o fogo que sempre se ateia.
Rhodália Silvestre é uma cantora eclética moçambicana, caracterizada por ritmos contemporâneos urbanos que se misturam com jazz, neo soul, reggae e pop, mantendo uma forte identidade e influência africana, informa o Museu Virtual da Lusofonia. 
É com ela, detentora de uma grandiosa voz, que se enche este espaço , neste domingo de Abril.  
Rhodalia Silvestre, em  África, num espectáculo em Portugal, Cascais.

sábado, 20 de abril de 2024

Considerações ao correr da pena

Considerações ao correr da pena
 por Eugénio Lisboa
“Pior do que um poema mau é um poema demasiado longo, com pouca poesia dentro. Um bom exemplo disso é o infernal PARAÍSO PERDIDO, de Joihn Milton.
Pior do que um ensaio crítico mau é um ensaio crítico enviesado. O ensaio mau é só falta de pontaria; o enviesado é falta de pontaria propositada. O primeiro é só inevitável defeito; o segundo é pura malícia.
Um exemplo de ensaio crítico enviesado é o ensaio crítico ideologicamente inflectido. É ler, por exemplo, no admirável CORAÇÃO DAS TREVAS, de Joseph Conrad, os malefícios do colonialismo e não reparar naquela profunda sondagem ao coração das trevas da condição humana. O enviesado tem coisas que não quer ver, a favor de outras que quer ver, com enviesada exclusividade.
O obcecado com livros policiais vê apenas, no REI ÉDIPO, de Sófocles, uma intriga de “suspense”; o obcecado com psicanálise vê, nessa obra-prima, aquilo que serviu a Freud para baptizar um dos seus complexos; o obcecado com o pecado original vê, na imortal peça grega, um exemplo de como o pecado é sempre punido. Cada um tem as suas razões, mas não tem a razão toda que deveria ter.
Estreitar o foco da nossa atenção, para visar apenas uma pequena área de uma grande obra, é a maior ofensa que se pode fazer a um grande autor. Dizer que a CHARTREUSE DE PARME é a história de uma tia apaixonada pelo sobrinho é tão redutor como dizer que Shakespeare era um homem que ganhava a vida a fazer peças de teatro e a representá-las. Mas é isto mesmo que faz a crítica ideológica, seja qual for a ideologia. As ideologias podem ser diferentes, mas todas fazem o mesmo: reduzir o que é complexo.
Não se pode julgar o todo pela parte e não se pode vender a parte pelo todo.
Reduzir a complexidade de uma obra rica a uma pastilha ideológica é próprio de quem prefere chupar um caramelo, em vez de comer uma suculenta refeição. Cada um contenta-se, como pode, com o que tem.
O leitor que só olha numa direcção lê, na obra que lê, não o muito que lá está, mas o pouco que ele quer que lá esteja. E, em vez de escrever, ele mesmo, a obra com que sonha, pendura-se desastradamente na obra de outros, transformando-a no figo seco de sua autoria. O crítico enviesado é um vampiro e, como todos os vampiros, teme a luz do dia.”
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada na rubrica Ipsissima Verba da Revista LER, 2023

sexta-feira, 19 de abril de 2024

In memoriam

Eugénio Lisboa nos 25 anos de Estudos Regianos.
Sessão celebrativa dos 25 anos de Estudos Regianos que decorreu na Casa Museu José Régio, em Vila do Conde no sábado, 26 de Novembro de 2022. A sessão contou com a presença do Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Vila do Conde, Paulo Vasques e da Chefe da Divisão Cultural da Câmara, Marta Miranda. A Presidente do Centro de Estudos Regianos, Isabel Cadete, abriu a sessão com uma palestra sobre José Régio, e seguiu-se a apresentação do número temático da revista Estudos Regianos “A Figura Feminina na Obra Regiana”, por Isabel Pires de Lima, antiga Ministra da Cultura. A sessão foi encerrada por Eugénio Lisboa, o maior e mais dedicado estudioso da obra de José Régio,  com uma magnífica intervenção em que chamou a atenção para o frequente  esquecimento que   cai sobre os grandes escritores  já desaparecidos  apesar do contributo dado pelos respectivos legados para o  engrandecimento da Literatura e do mundo.  

Sessão celebrativa dos 25 anos de Estudos Regianos.
 Eugénio Lisboa está sentado, ao cento,  na mesa.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Fazer um soneto


O soneto de fazer um soneto
 
Fazer um soneto é saber contar,
mas seria bom que fosse só isso:
o saber contar permite o voar
e o submisso promove o insubmisso.
 
Todas as regras que o soneto tem
são todo o contrário de uma prisão:
a fúria solta que a regra detém
multiplica o poder da emoção.
 
O ar que resiste permite o voar:
a regra que amarra o soneto
é que lhe permite um novo explorar.
 
O preso que obedece a um decreto
sabe usá-lo pra melhor contornar
a cela onde o querem confinar.
                    26.07.2022
Eugénio Lisboa, in soneto , modo de usar, Editora Guerra & Paz, Abril de 2024, p.36
Vale a pena fazer um soneto?

Vale a pena construir um soneto,
sílaba a sílaba, bem contadas,
sem que a medida tenha cianeto
que assassine as palavras aladas?

Um soneto é como uma casa,
se mal calculada, ela desmorona.
Tal como na casa, nada transvasa,
o que a faria algo trapalhona.

Um rigor que acolhe a emoção
e, com elegância, abraça a ideia,
sem se tornar maçadora lição,

não merecerá que o leitor o leia,
com amorosa e séria atenção?
Visto que o rigor é inspiração?
                    22.04.2023
Eugénio Lisboa

quarta-feira, 17 de abril de 2024

A Casa das Tias

A Casa das Tias, desenho a tinta-da-china, de Dana Michaelles

A Casa das Tias

Olho, feita pela Dana
a casa do Alto-Mahé: 
dela , por certo, dimana
memória do que era e é.

Ponho-me a olhar a casa 
que chamávamos " das tias"
e dá-me um golpe d'asa
que me leva aos velhos dias! 

Recordar é adiar a morte
quando olho esta casa,
o passado volta forte
e o frio faz brasa!
                Londres, Dezembro,1994
Eugénio Lisboa

"No Alto-Mahé, no extremo (pouco chic) da Avenida Pinheiro Chagas, ficava a “casa das tias”, as irmãs do meu pai, tuteladas, com mão pesada, pelo tio Tropa, marceneiro habilidoso, dotado de fortes bigodes à Staline e de espessas convicções comunizantes, embora eu nunca tenha averiguado se ele sabia bem o que era o comunismo...
Trabalhava muito e com arte e fazia, com isso, pouquíssimo dinheiro, talvez por escrúpulo em avaliar no seu devido valor a qualidade da sua arte.
A casa do Alto-Mahé, com rés-do-chão e primeiro andar, imortalizada, para nós, num desenho a tinta-da-china, da Dana Michaelles (pintora florentina encalhada em Lourenço Marques), era, a meus olhos de periférico, um palácio mítico, construído, de ponta a ponta, pelo tio Tropa, com contribuição financeira de meu pai e, creio, do meu tio Fernando, irmão de meu pai. Tinha uma imponente – e pesadíssima – porta de entrada, de madeira trabalhada, uma elaboradíssima escada interior, também de madeira, que unia o rés-do-chão ao primeiro andar e, neste, uma varanda com grades de ferro arrebicadamente lavrado. Ainda hoje lá está, maltratada, massacrada, vandalizada, canibalizada, conspurcada... – da última vez que por ali passei, numa das minhas visitas a Lourenço Marques, olhei-a de fugida, com o coração transido, como quem acaba de assistir a uma profanação. A casa das tias era o lugar de peregrinação, que eu e os meus irmãos visitávamos em certas ocasiões, como quem pisa solo sagrado – vivendo nós em residências modestas, do Largo João Albasini ou da Estrada do Zixaxa ou mesmo, mais tarde, da Rua Mendonça Barreto, todas elas sem frigorífico, sem electricidade (excepto a última), sem telefone e sem telefonia (para nós, em Moçambique, “rádio”), a casa das tias parecia ter tudo, incluindo uma telefonia quase do tamanho de um camião. Majestosa, sim, mas, ainda assim, insuficiente para se ouvir, nas ondas curtas, a BBC, em tempo de guerra... "
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias - I - Lourenço Marques ( 1930-1947), Editora Opera Omnia, Novembro de 2012. pp.19-20

O clarão de uma estrela-cadente

Leiria, 14 de Fevereiro de 1941
«Nunca hão de dar por estas palavras, como não deram por mim quando os segui  durante algum tempo ,  a ser junto deles em corpo  o que já era em espírito – um irmão. Deixá-lo. A própria solidão do que eu escrever trará à minha emoção o calor e a melancolia que seria difícil  exprimir, e que há-de ser a terra da sua duração.
Eram quatro vultos. Um homem e três mulheres. Um à frente e três atrás. Vinham pela rua fora, em marcha, como sonâmbulos, a tocar uma música que sugeria não sei que vida livre e maravilhosa, com remendos, fome, sol e olhos sempre virgens a olhar o mundo. Uma música lírica e trágica ao mesmo tempo, que inundava a tarde fria de calor e da palpitação de um poema.
À medida que se aproximavam, o cornetim desenhava-se mais nítido nas mãos dele, que caminhava  à frente, e a caixa, os pratos e o bombo tomavam relevo nas mãos delas, que o seguiam.
Ninguém poderá saber jamais se eram todas suas esposas, filhas ou mães. Sílfides intemporais, rufavam, batiam, martelavam e criavam à voltado solista  e do  hino ao triunfo puro que lançava no espaço, uma atmosfera de irrealidade.
Passavam. O próprio chão tremia. Passaram. As próprias pedras pareceram ficar com  saudades.
E quando lá longe,  nos subúrbios, junto do trapézio alado, o silêncio se fez, como que se extinguiu  no céu morto da cidade o clarão de uma estrela-cadente»
Miguel Torga, in "Diário I,  Obras completa de Miguel Torga, Diários (Volumes I a IV", Círculo de Leitores , Março de 2001, p.108

terça-feira, 16 de abril de 2024

Em África , tudo se dilata com o calor...

Em África
por Eugénio Lisboa
" Em África , tudo se dilata com o calor, inclusivamente a dimensão do tempo e do espaço, isto é, há muito espaço e muito tempo. A África é enorme, nunca mais acaba, e os dias vão durando por ali fora e dão tempo para tudo e ainda sobra tempo. Trabalha-se devagar, mexemo-nos devagar, amamos devagar ( nem sempre). A vida, ali, dura mais, mesmo quando dura pouco.
Quando as férias grandes começavam, tínhamos, à nossa frente, uma vasta planície de tempo a preencher, mesmo que fosse a não fazer nada. A partir do 5º ano do liceu, eu possuía já uma pequena biblioteca e ia  comprando um outro livro que namorava longamente, antes de o poder comprar. Mas, até ao terceiro e mesmo ao 4º ano, a leitura não era muito variada. Lera alguma coisa, mas não encontrara ainda nenhum dos meus grandes amores literários. O Garrett  o Herculano e o Júlio Dinis tinham-me cativado muito, mas não lhes chamaria "grandes amores literários". 
(…)
Julgo que foi , por esta altura, que meu pai me trouxe, completamente amarfanhado pela água que apanhara no porão do navio, entre Lisboa e Lourenço Marques, na edição da " Inquérito", em belíssima tradução de José Marinho, o romance de Stendhal ,  Vermelho e Negro ( Le Rouge  et le Noir , no original).  Foi, em mim, um autêntico terramoto! Apaixonei-me perdidamente pela Senhora de Rênal e foi um amor que nunca me abandonou : a Senhora de Rênal ficou sempre a pertencer ao meu mundo mais privado. Cá fora, na arena, eu andava com fumaças de dominar e meter na ordem as Matildes de la Mole que inundavam o mercado...Mas as Matildes eram só para o toureio; a Senhora de Rênal era para o amor de facto. Nada de confusões! Li, reli, tresli o livro de Stendhal, com uma paixão nunca saciada. Nenhum outro livro me pareceu viável , imediatamente depois daquele.. Eu bem pegava neles, bem tentava lê-los: tinham todos o horrível defeito de não serem o Vermelho e Negro. Como se podia ser outra coisa? Algo de semelhante se passaria, pouco depois, quando li, pela primeira vez, em tradução portuguesa, todo o teatro de Oscar Wilde. Foi um fascínio deparar, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, com a arte da conversação. Como se poderia não falar assim? Como era possível continuar a viver, sem se possuir,  pelo menos, o brilho dos lordes conversadores do teatro de Wilde? Valia a pena viver, se não se podia ter tal brilho, na conversa de todos os dias ? Ser menos do que Oscar Wilde era programa de vida que se visse? O brilho, àquele nível, seduz mas também angustia. É um valor que se não absorve pacificamente ou que eu, pelo menos, não absorvia pacificamente. Nas conversas com colegas e familiares, apetecia-me ensaiar o paradoxo faiscante. Demolir tudo, desassossegar aquela sociedade amolengada e conformista, sob o calor subtropical..." 
Eugénio Lisboa, in  Acta Est Fabula, Memórias - I - Lourenço Marques ( 1930-1947),  Editora Opera Omnia, Novembro de 2012,  pp.95, 123, 124,