segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Recordar Nietzsche


Nietzsche- Humano demasiado Humano
"A semente do pensamento disseminado por Nietzsche no século XIX prefigurava o pensamento dominante do século XX sobre os conceitos do existencialismo e da psicanálise. Este programa conta com entrevistas de grandes estudiosos do pensamento do Nietzsche sendo eles: Ronald Hayman e Leslie Chamberlain (biógrafos de Nietzsche), Andrea Bollinger (arquivista), Reg Hollingdale (tradutor), Will Self (escritor) e Keith Ansell Pearson (filosofa) que sonda a vida e os escritos de Nietzsche. Além de mostrar também o papel da irmã de Nietzsche na edição de suas obras para o uso como propaganda nazista. Contando também com partes de prosas aforísticas extraídas de obras como A parábola de um louco e Assim falou Zaratustra, tentando com isto transmitir a essência e o estilo do pensador profético."Fonte BBC

Lisboa revista por um olhar do Brasil



Apresentação: Rodrigo Ruas
Roteiro e Produção: Lucas Lico
Imagens: Igor Lima
Edição e Finalização: Carolina Giocondo

domingo, 30 de agosto de 2015

Ao Domingo Há Música

A cette époque, même un  jeune homme pauvre pouvait former le projet somptuex de tranverser une mer à la rencontre de la lumièreCamus ,in "Prométhée aux Enfers", 1946

África . Um continente de múltiplas surpresas. Quem o descobre  acalentá-lo-á na memória. Memória que se construirá em  muitas emoções: fortes, resplandecentes, gloriosas, chocantes, jubilosas, doloridas, mas sempre grandes à imagem da sua própria dimensão. Emoções imperecíveis que deixarão um rasto de ostensiva profundidade.
Estive, em África, em diversas épocas por tempos diferentes. Tenho armazenadas imagens tão intensas que , por vezes, se tornam  indizíveis, embora algumas já tenham sido registadas, neste espaço. E, como a memória é um veículo que nos transporta quando o desejamos, resolvi voltar a África para  refruir alguns dos sons  que sempre nos surpreendem pela sua beleza natural e  genuina melodia.
Agosto está a findar. Foi um mês tumultuoso: calor, alterações climáticas e muitos dramas de terrível sofrimento. Dramas que chocaram e continuam a chocar, em tragédias reais de milhares de refugiados que tentam sobreviver numa Europa que não se preparou para efectivar aquilo que sempre apregoou: o direito fundamental do ser humano à VIDA. Vida que tentam preservar , fugindo, muitos deles, duma pátria que mata. Imagens dolorosas de uma realidade que , dia após dia, encheram os noticiários deste Agosto, mas sobretudo evidenciaram a falta de solidariedade entre os homens e quão manipulador é o discurso político e do Poder. Mortes e mortes que são negócio de piratas e se apresentam como uma hecatombe que atingiu a Europa. Os novos muros da Hungria, as reuniões  do Conselho Europeu que se traduzem em inconsequentes discursos de ocasião e que nos envergonham, com as manifestações de autêntica xenofobia , em alguns dos países destes doutos conselheiros. Uma Europa sem tecto, mas murada e em vias de se fortificar - qual feudo medieval.
Muitos destes refugiados vêm de África, após uma viagem gorada , frequentemente maldita e mortífera. 

A primeira canção que se apresenta, "Clandestin", interpretada por  Fatoumata Diawara,  natural da Costa do Marfim,  retrata a realidade dos emigrantes clandestinos conforme as  palavras desta cantora e actriz:
 "Un jour ils ont voulu voyager comme tout le monde. Un jour ils ont décidé de traverser l'océan. On leur a dit qu'ils n'avaient pas le droit. Leurs dirigeants ne peuvent-ils rien faire pour les encourager à rester pour construire ensemble une vie meilleure ? 
Cela leur a donné encore plus envie de voyager: plus on te refuse, plus l'envie est grande! On leur dit « Non! » Après 10 ans de refus à leurs demandes de visa ils décident de partir à pied ! Le voyage dure un jour, un an, deux ans, cinq ans, dix ans...beaucoup périssent, meurent sur la route et personne n'en sait plus. Ils sont appelés «Clandestins», mais moi je les appelle guerriers car il n'est pas facile de tout laisser derrière soit et de se confier à l'inconnu. En Bambara, nous les appelons les nomades. Partir est une vraie culture chez nous, c'est pourquoi je les appelle par leurs vrais noms. Cette chanson est dédiée à tous les frères qui sont morts pendant ce voyage et à ceux qui sont déjà en route ! Les parents les pleurent chaque jour !"


Natural do Mali, África Ocidental, Salif Keita  é descendente de Sunjata Keit , o  fundador do Império do Mali, em 1240. Apesar dessa nobre origem, Salif Keita nasceu, na pequena aldeia Djoliba, em 1949. Albino, numa terra de muito sol, onde a superstição envolve profundamente esse distúrbio genético, Salif Keita teve de lutar para se afirmar como cantor . Aos 18 anos, foi para a capital, Bamako , começando a cantar nas ruas e em bares. O sucesso e reconhecimento  chegaram , mas  construidos com muito labor e tenacidade.
Ei-lo na bela canção " Ana Na Ming".

 E  outra canção, Timbuktu Fasso, na voz de Fatoumata Diawara, composta pela cantora e  Amine  Bouhafa  para o filme Timbuktu de Abderrahmane Sissako que tem, como tema, a  cidade de  Timbuktu,  no  Mali, durante o período da  ocupação por  Ansar Dine.

THIS IS MY LAND
This is Timbuktu, my home land,
Where the children are mourning from gloom,
This is my land, Timbuktu «the Maliba»,
The land of love,
The land of warmth,
The land of dignity,
Here is my Nation...
Why are we crying?
Why are the children crying?
Why are the young crying?
Cause of unfairness,
Cause of violence,
Fearing the future...
Here is my home
Stop crying
Cause no matter what, Timbuktu will remain

sábado, 29 de agosto de 2015

Quando morrer

LXXXIX

Quando morrer quero essas mãos nos meus olhos
quero a luz e o trigo das tuas mãos amadas
passando uma vez mais em mim sua frescura:
sentir a suavidade que mudou meu destino.

Quero que  vivas enquanto eu, dormindo te espero,
quero que os teus ouvidos fiquem ouvindo o vento, 
que cheires o aroma do mar que amamos ambos
e fiques pisando a areia que pisamos.

Quero que tudo o que amo fique vivo,
e a ti amei e cantei sobre todas as coisas,
por isso fica tu florescendo, florida,

para que alcances tudo o que este amor te ordena,
para que esta sombra corra o teu cabelo,
para que assim conheçam a razão do meu canto.

Pablo Neruda , in "Cem Sonetos de Amor - Antologia  Breve", Cadernos de Poesia, publicações Dom Quixote, 1969

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Em memória de...

Celebra-se a vida na ausência dos viventes, através da marca que deixaram em cada um.
Anouska ShanKar, num concerto em memória de George Harrison, no  Royal Albert Hall, no primeiro aniversário do seu desaparecimento.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Apetecia-me sorrir

O próximo livro
Por António Lobo Antunes
“Onde está o meu irmão que morreu? Onde estão os outros que morreram? E, já agora, onde estão os vivos? Daqui a nada saio para almoçar, neste bairro pobre e feio. Não liguem: tudo é feio para mim, hoje. Vagos ruídos de vizinhos, uma ambulância muito ao longe, uma máquina qualquer, não sei onde, a consertar não sei quê. Apetecia-me ser pequeno, apetecia-me sorrir.
Acabei um livro e não tenho a mínima ideia do que vou escrever a seguir. Não tenho a mínima ideia, sequer, se virá outro livro. Sinto-me como um cão à procura de um osso enterrado que não sabe onde está. Cavo aqui com as patas da frente, cavo acolá e nada. Se calhar acabaram-se os ossos, se calhar acabei. É sempre assim e o medo de não ser mais capaz é horrível. Um vazio, uma angústia. Não sei fazer mais nada, desde que me conheço não faço mais nada. Sento-me nesta cadeira, sento-me naquela. Eu só queria sentir qualquer coisa a inchar cá dentro, ainda não bem palavras, uma coisinha qualquer, mesmo mínima, que depois, pouco a pouco, se transforma, cresce, ganha sentido, vai aparecendo. Então costumo marcar uma data e começo. Começo com horas quieto diante do papel até que uma frase surge, a princípio torta, lenta, lá principia a andar, ganha velocidade, vai arranjando forma. Não tenho plano, não sei o que é: é uma voz que dita e eu sigo-a. A mão move-se e a cabeça, longe, a vigiar. O material aperfeiçoa-se página a página, os diversos elementos estruturam-se, os parágrafos adquirem forma, vão nascendo mais vozes, o livro articula--se aos solavancos. Agora falta-me tudo. Levanto a cabeça, vejo o sol na varanda árvores, o prédio em frente, todas as janelas fechadas. Como não alcanço a rua tudo parece deserto, tudo está deserto. Um pássaro às vezes, as folhas quase imóveis. Se ao menos eu. Se ao menos eu o quê? Ponho estas sentenças porque tenho de fazer a crónica. Duas por mês. Ponho as sentenças sem alma nenhuma. A quem podem interessar? Sardinheiras na varanda, imóveis também. Pontitos brancos a flutuarem junto às árvores, não pássaros, sementes ou assim. Onde está o meu irmão que morreu? Onde estão os outros que morreram? E, já agora, onde estão os vivos? Daqui a nada saio para almoçar, neste bairro pobre e feio. Não liguem: tudo é feio para mim, hoje. Vagos ruídos de vizinhos, uma ambulância muito ao longe, uma máquina qualquer, não sei onde, a consertar não sei quê. Apetecia-me ser pequeno, apetecia-me sorrir. A doença de um amigo preocupa-me. Olha, lembrei-me de Angola. Foi assim uma recordação fugidia que desapareceu logo. Mas a cor da terra, mas os cheiros, mas a população com latas, junto ao arame farpado, a pedir comida. Províncias ultramarinas - Portugal uno e indivisível do Minho a Timor. Como era possível uma frase destas? Eu uno e indivisível do Minho a Timor. Catongueses, sul-africanos, o raio que os parta, tudo aos tiros. ?O capitão
- Você é do contra.
Ele não era do contra, os militares fazem o que lhes mandam e eu a ferver de raiva.
- Acha que sim?
A estupidez da violência. Chega de Angola, chega da fronteira com a Zâmbia: passaram tantos anos. Mentira: não passaram. Adiante. E o livro nada. E eu nada igualmente. Fuma um caricoco,  rapaz, fuma um caricoco.
A manhã, na janela, principia a crescer. O sol nos ramos. O ruído da ambulância sumiu-se há que tempos. Que silêncio. No outro dia fui ao hospital. Está tudo bem. Comovi-me por estar tudo bem, julgo que consegui não mostrar. Há alturas em que a gente não se importa de não existir. Importa-se. Temos medo. O silêncio dos médicos, depois de nos observarem, antes de começarem a falar. O que irão dizer? Aquela pausa arrepia um bocadinho, nós fingimos que não, calados, sérios. Pegar numa lata ferrugenta, do outro lado do arame farpado, não a pedir comida, a pedir saúde. Voltar com a saúde para a palhota,  comê-la com os dedos, chupá-los no fim. No restaurante não são latas, são pratos: será assim tão diferente? Batas, batas, batas, macas, macas, macas, gente a dar com um pau.  
- Tome lá mais um bocadinho de vida
ou seja restos de vida no meio da ferrugem.
- Como correu lá no hospital?
- Correu bem
enquanto se mastiga. Correu bem. Enquanto se engole
- Correu bem
ao limpar a boca
- Correu bem.
ao afastar a lata
- Correu bem. Mais uns tempos ainda até que
- Há aí um problema, temos que ver melhor.
Um problema, o que será um problema? E o livro sem vir. Se me propusessem
- Damos-lhe mais cem anos se abdicar dos seus livros
não aceitava. Mesmo doente escrevia. Oxalá continue a escrever, oxalá as palavras comecem a vir, oxalá não demorem muito tempo. É que não tenho mais nada”
António Lobo Antunes, em crónica publicada na revista Visão, em 11 de Junho de 2015

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Amália Rodrigues canta David Mourão-Ferreira

"Na década de 50, e após a conclusão da licenciatura em Filologia Românica com a apresentação da tese “Três Coordenadas na Poesia de Sá de Miranda”, o poeta David Mourão-Ferreira casa-se com Maria Eulália Barbosa de Carvalho e, por intermédio do seu grande amigo e cunhado Rui Valentim de Carvalho, conhece Amália Rodrigues. Este encontro viria a alterar de modo profundo a sua relação com o fado, facto esse também decisivo na sua escrita: “Mas que surdo e raivoso burburinho, nas hostes literatas e policastas, quando comecei a escrever versos para Amália cantar!” (cfr. David Mourão-Ferreira, “Um livro de e sobre Amália”, in “Ócios do Ofício”, 1989, p. 35). Neste contexto, surgem as primeiras letras de fados para a interpretação de Amália; “Primavera” (1953), “Libertação” (1955) e as versões portuguesas “Sempre e Sempre Amor” (1953), “Neblina” (1954) e “Quando a Noite Vem” (1954). (cfr. Joana Morais Varela, “David à Guitarra e à Viola” in “Primavera”, 2007, p. 71)
Será determinante o contributo do compositor Alain Oulman para que a poesia erudita e contemporânea figure no repertório de Amália Rodrigues. A poesia de David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello, Luís de Macedo, José Régio, Alexandre O´Neill, Manuel Alegre e até de Luís de Camões, musicada por Alain Oulman, figurará em álbuns da fadista como “Busto” (1962), “Fado Português” (1965), e “Com que Voz” (1970), alterando em absoluto o rumo traçado pela tradição fadista."Museu do Fado


O FADO 'PRIMAVERA' (1953), na voz de Amália Rodrigues , com poema de  David Mourão-Ferreira. A Música é de Pedro Rodrigues

PRIMAVERA
Todo o amor que nos prendera,
Como se fora de cera,
Se quebrava e desfazia.
Ai funesta Primavera,
Quem me dera, quem nos dera,
Ter morrido nesse dia.

E condenaram-me a tanto,
Viver comigo meu pranto,
Viver, viver e sem ti.
Vivendo sem no entanto,
Eu me esquecer desse encanto,
Que nesse dia perdi.

Pão duro da solidão,
É somente o que nos dão,
O que nos dão a comer.
Que importa que o coração,
Diga que sim ou que não,
Se continua a viver.

Todo o amor que nos prendera,
Se quebrara e desfizera,
Em pavor se convertia.
Ninguém fale em Primavera,
Quem me dera, quem nos dera,
Ter morrido nesse dia.
  David Mourão-Ferreira (1953)

 O Fado "Libertação"(1955),  na voz de Amália Rodrigues , com poema de  David Mourão-Ferreira. A Música é de Santos Moreira.

Libertação
Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.

Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.

Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.

Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.

Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daqui, onde queiras,
a vida será maior.

Nem as esp'ranças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter.
         David Mourão-Ferreira (1955)
Amália Rodrigues, no Álbum  Com Que Voz (1970) totalmente musicado por Alain Oulman .
Título     e    autor do poema:
Naufrágio (Cecília Meireles)
Maria Lisboa (David Mourão-Ferreira)
Trova Do Vento Que Passa (Manuel Alegre)
Com Que Voz (Luís de Camões)
Cravos De Papel (António de Sousa)
As Mãos Que Trago (Cecília Meireles)
Gaivota (Alexandre O'Neill)
Havemos De Ir A Viana (Pedro Homem de Mello)
Cuidei Que Tinha Morrido (Pedro Homem de Mello)
Formiga Bossa Nova (Alexandre O'Neill)
Meu Limão De Amargura (José Carlos Ary dos Santos)
Madrugada De Alfama (David Mourão-Ferreira)

terça-feira, 25 de agosto de 2015

LIVRES SUR LES QUAIS

Alexis Jenni,  (Prix Goncourt 2011)

La nuit de Walenhammes

Collection Blanche, Gallimard

A execução de Trotsky

Trotsky ao lado de Harry De Boer e James H. Bartlett e suas esposas, no México 
75 ANOS DO ASSASSINATO DE TROTSKY
“A 20 de Agosto  fez 75 anos que Lev Bronstein, mais conhecido como Leon Trotsky, foi assassinado na Cidade do México na sua casa da Avenida Viena pelo agente da NKVD Ramon Mercader, executando ordens de Stalin transmitidas pelo seu controlador Pavel Sudoplatov.
Trotsky perdeu o poder em Outubro de 1927,  com Zinoviev e Kamenev, todos revolucionários que perderam a luta pelo poder dentro do Politburo. Trotsky foi expulso do Partido em Novembro de 1927 e exilado em Fevereiro de 1929, primeiro para a Turquia, depois França, Noruega e finalmente México. Os exílios duravam pouco em cada país por causa da pressão de Stalin. Foi para o México a convite do Presidente Lázaro Cárdenas, seu admirador.
No México, sofreu um primeiro ataque a mando de Stalin, sem sucesso. Depois introduziu-se no seu vasto círculo de admiradores e companheiros, o jovem Ramon Mercader, filho da lutadora comunista da Guerra Civil Espanhola, Caridad Hernandez. Ramon Mercader era catalão e passou a ser um amigo íntimo de Trotsky, a quem visitava diariamente até que em 20 de Agosto de 1940 o matou com uma picareta de quebrar gelo.
Mercader foi preso, cumpriu 20 anos de cadeia, morou depois em Cuba e na União Soviética, onde tinha recebido in absentia a Ordem de Lenine e o título de Herói da União Soviética.
A execução de Trotsky terminou a liquidação dos velhos bolcheviques por Stalin. Zinoviev e Kamenev já tinham sido executados nos expurgos de 1938. Trotsky todavia foi o único não reabilitado no discurso revisionista de Kruschev, quando demoliu o mito de Stalin, no congresso do PCUS em 1956, mas Trotsky manteve intacto o prestígio intelectual entre a esquerda mundial muito tempo depois de sua morte. De todos os bolcheviques era o mais culto e sofisticado intelectualmente e elaborou um conjunto de interpretações próprias do marxismo que constituíram o TROTSKYSMO.” André Araújo, in CGN, 21/08/2015

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

2015: Centenário de Saul Bellow

Saul Bellow por Ramon Muniz
A realidade de Bellow
Junho marca o centenário de Saul Bellow, criador de personagens mais reais do que nós mesmos  
Por  Cristiano Ramos*
"Um homem aproximou-se do vendedor, entregou-lhe dois livros e também algumas cédulas. Sem que o livreiro perguntasse, ele respondeu: “Vivo recomprando, porque, sempre que escritores iniciantes me pedem dicas, eu empresto esses romances. Nada que eu possa ensinar vale mais do que umas duas horas diárias dedicadas a ler Saul Bellow”.
Aquele senhor falou alto, queria que eu ouvisse. Decerto, não desperdiçava chance de predicar. Eu jamais soube quem era, onde leccionava ou se possuía obra publicada, mas foi por causa dele que li e estudei Bellow. Neste centenário do autor de Herzog e O legado de Humboldt, eis que tenho oportunidade de repassar a crença: nos romances de Saul Bellow, o  que aprende  vale por dezenas de oficinas e manuais!
As suas criações também nos levam à necessária e negligenciada indagação: “os ficcionistas contemporâneos têm feito da literatura pelo menos metade do que ela é capaz?”. E não se trata de pergunta retórica, que sugere resposta negativa, mas sim de manter saudável questionamento. O próprio trabalho de Bellow reflecte um espírito inquieto, que jamais se rendeu à tentação das fórmulas exitosas, de deitar nas soluções que ele conquistou a cada título publicado.
Não que sua produção seja tão diversa que impossibilite identificar linhas de força. Apesar de pouco estudado no Brasil, em outros países ele possui respeitável fortuna crítica, com dezenas de livros e centenas de resenhas, ensaios e pesquisas académicas. Os seus comentadores costumam frequentar os mesmos tópicos: as fissuras do humanismo e das teorias do século 20, a condição do pós-guerra, a questão dos imigrantes, religião, alteridade, tragicomicidade, ambiguidades, contradições, etc. A afinação e a vibração dessas cordas, no entanto, variam enormemente — algo que se coloca à mostra de modo decisivo na construção das personagens.
É provável que  já se tenha  encontrado algumas vezes com o ensaio Relendo Saul Bellow, do também renomado escritor Philip Roth. Entre outros tantos meios, esse texto já foi veiculado na Folha de S. Paulo, no livro Entre nós: um escritor e seus colegas falam de trabalho, e como introdução à recente edição brasileira de Herzog. A popularidade da exegese se repete em outros idiomas, o que se justifica pelo acerto do método: costurar as análises a partir das tão aparentadas e tão diversas personagens de Bellow.
Desde logo, Roth cita a grandiosidade de As aventuras de Augie March, com a representação de um mundo ainda capaz de animar, deslumbrar, fascinar; com o protagonista disposto a viver esse mundo para além das limitações que lhe suspeitam, anunciam ou entregam como herança ancestral. Augie se declara americano nascido em Chicago, e não reconhece qualquer autoridade que constranja a sua demanda por cidadania e realização — nem mesmo a da própria vida, quando esta transcorre aquém das pretensões.
A ousadia do personagem filho de imigrantes não é outra coisa senão a expressão do próprio sonho americano. Como ressalta o prefácio de Christopher Hitchens: “As duas palavras-chave que resumem as ambições do romance de Bellow são democrático e cosmopolita. Não inteiramente por coincidência, essas são também as duas grandes esperanças da América”.
Dois trechos do romance expressam a condição social de seu autor, marcado pelo pertença a uma família de imigrantes na América da primeira metade do século 20, e movido também pela superação de tais grilhões! Em algum momento do livro, o narrador constata que “Todas as influências estavam enfileiradas, esperando por mim. Eu nasci e lá estavam elas para me formar, e é por isso que eu falo mais delas do que de mim”. Na abertura da obra, contudo, Augie anunciara sua postura altiva: “faço as coisas do jeito que aprendi sozinho a fazer, estilo livre”.
Como quase todos os seus demais livros, As aventuras de Augie March tem muito de autobiográfico — o que, no caso de Bellow, não assoma como fragilidade, pois talvez a sua maior personagem não seja senão o próprio Saul Bellow.
Saul Bellow, autor de Herzog
                           Saul Bellow, autor de Herzog

A invenção de um cidadão escritor

Filho de judeus russos que emigraram de São Petersburgo dois anos antes, Saul Bellow nasceu em 10 de Junho de 1915, na cidade canadense de Lechine (hoje, bairro periférico de Montreal). Aos oito anos, uma infecção respiratória forçou a reclusão que o aproximaria dos livros. No ano seguinte, a família mudou-se para os Estados Unidos, mais especificamente para o bairro de Humboldt Park, em Chicago — cenário de muitos dos seus principais escritos.

Nos anos 1930, dois factos marcaram a sua biografia: o falecimento da mãe e o ingresso no curso de Literatura na Universidade de Chicago, onde sentiu de maneira mais intensa os ares de antissemitismo — o que o levou a se transferir para a Northwestern University, na qual estudou Sociologia e Antropologia. Depois de casado (primeiro de cinco matrimónios), chegou a leccionar, antes de se dedicar à carreira literária. O primeiro livro (The Dangling Man, de 1944) foi escrito durante as horas vagas da Marinha Mercante, porque, com o advento da Segunda Grande Guerra, fez questão de se alistar.
Após publicar aquele livro de estreia e também o segundo trabalho (A vítima, de 1947) — que, embora raros exegetas afirmem serem desprezíveis, não se pode equiparar às obras seguintes –, Bellow recebeu bolsa da Fundação Guggenheim, o que possibilitou sua residência por dois anos na Europa, período em que escreveu As aventuras de Augie March (1953), seu primeiro grande sucesso de público e crítica, vencedor do National Book Award (o qual, de forma inédita, ele obteria em outras duas oportunidades).
O próprio Bellow declarou que, com este romance, a sua intenção foi “uma rebelião contra a arte de público restrito e as inibições que ela impunha”. Com este desejo de ampla aceitação, chegou ao “novo modo de fluir”, uma escrita onde trabalhou a influência da cultura judaica ancestral, do inglês padrão e do coloquialismo das ruas. Hoje, tal construção formal pode parecer óbvia e até vereda bastante percorrida pelos ficcionistas americanos; mas, nos anos 1950, ela foi recebida — nem sempre de forma entusiasta — como uma revolução na linguagem romanesca.
Sua demanda por rebelião, entretanto, não se esgotou na busca de maiores público e liberdade formal. As aventuras de Augie March é marco também de sua afirmação como verdadeiro escritor americano, ao invés de alimento para o lugar-comum e redutor de filho de judeus que pouco pode expressar além do problemático existir em nação estrangeira. Nas palavras de Hitchens, “essa foi a primeira vez na literatura americana que um imigrante agiu e pensou como um legítimo descobridor ou pioneiro”. Ao se reinventar como romancista, Bellow ajudou a reinventar a cultura de cidadania dos descendentes de imigrantes nos EUA; mais do que isso, tornou-se parte fundamental na reinvenção da própria literatura do país do qual fez questão de se tornar efectivo cidadão.

A multidão de grandes personagens

No trabalho imediatamente posterior (Agarre a vida, de 1956), Saul Bellow não só rejeitou a manutenção da fórmula, ele se decidiu por um protagonista que navega em maré contrária. Como explicou Roth, “Enquanto o ego de Augie é sustentado em triunfo e carregado pelas correntezas fortes da vida, o de Tommy é esmagado sob o fardo que carrega — sua sina é ‘arcar com um ónus que era seu próprio eu, seu eu característico’”.

Embora não estejam entre os títulos em catálogo no Brasil (pela Companhia das Letras), dois livros são essenciais para os interessados em conhecer e reflectir sobre o legado de Bellow: Agarre a vida, que testemunha a característica aversão do autor à monotonia das fórmulas, e Ravelstein (de 2000), por ser um breve e vigoroso adensamento das diversas (e muitas vezes contraditórias entre si) jornadas empreendidas pelo romancista. No caso deste, um relançamento poderia oferecer alternativa à desastrosa tradução que a Rocco lançou em 2001.
Mas estão nas prateleiras das lojas os seus demais livros considerados obrigatórios. Em Henderson, o rei da chuva (1959), como destaca Philip Roth, o autor de As aventuras de Augie March demonstrou a capacidade de unir o sério e o não sério, numa realização “que pede uma leitura académica e ao mesmo tempo ridiculariza e parodia tal leitura”. O romance traz o que muitos exegetas apresentam como versão tragicómica de O coração das trevas, de Conrad: o rico, temperamental e beberrão Eugene Henderson resolve se aventurar pela África, onde personifica o clássico tema do choque de culturas. Apesar desse enredo, o livro possui muito de autobiográfico: Henderson é divorciado, vive conflitos familiares e foi combatente na Segunda Guerra (algo que Bellow tentou, apesar de ter servido na Marinha Mercante).
Os outros títulos em catálogo também são profundamente inspirados na biografia do autor: há dois anos, a Companhia das Letras publicou O legado de Humboldt (de 1975), cujo personagem título foi criado a partir do poeta e crítico Delmore Schwartz — que, embora desconhecido no Brasil, foi espécie de mentor de sua geração. Com expressivas nuances ficcionais, o romance traz a paixão do protagonista Charles Citrine (Bellow) pela obra de Von Humboldt Fleischer (Schwartz). E, como em outros momentos, o romancista desenvolveu projecto que, hoje, figura como algo até banal (e muito desse juízo da banalidade se deve às realizações exitosas do próprio Bellow): narrar a jornada pessoal de seus personagens de maneira a cerzir simultaneamente um grande painel da cultura de seu país.
Antes, a editora havia recolocado à disposição dos leitores o Herzog (de 1964), que é considerado por muitos como clássico maior de Saul Bellow. O pensador e professor universitário Moses Herzog é um homem de meia-idade, em crise na profissão e nos laços familiares, cujo sentimento de instabilidade e até de enlouquecimento se transformam em força criativa. “Se estou fora do meu juízo, tudo bem para mim”, anuncia a famosa primeira linha do romance.
Herzog se nos apresenta como muito de outros personagens do autor, e bastante do próprio Bellow, e também de cada um de nós — mergulhados que somos em profundas contradições, saberes e ignorância. Deste Herzog “palpitando de sentimentos e no entanto de uma simplicidade desconcertante”, Philip Roth ressalta a mente “tão vigorosa, tão tenaz, muito bem equipada com o que de melhor já foi pensado e dito, uma mente que emite com elegância as generalizações mais bem informadas a respeito de boa parte do mundo e de sua história”, e que “questiona a sua faculdade mais fundamental, a própria capacidade de compreender”.
Saul Bellow por Ramon Muniz
                              Saul Bellow por Ramon Muniz
A melhor e única família de literaturas grandiosas
Tendo formulado desde muito cedo a esquisita e arriscada hipótese de me tornar crítico literário, ouvir aquele senhor na loja de livros usados, o homem que recomendava a vasta obra de Saul Bellow, foi momento fundamental para minha posterior visão das possibilidades — nem sempre valorizadas — do romance contemporâneo.

Em As aventuras de Augie March, encontrei a disposição para contar histórias com altivez, algo que foge à tendência teórica e literária de se debruçar em ruínas, em fragmentos, dúvidas e pessimismo. Mesmo com a influência que exerceu sobre alguns importantes romancistas da segunda metade do século 20, grosso da produção contemporânea, não faz coro àquele livro de linguagem e protagonista exuberantes.
Num Brasil onde a busca de identidade nacional é traço tão definidor e corriqueiro, Augie March (e o próprio Bellow) era testemunho também de que é possível ir além da tentativa de decifração. Ele se desenrolava para mim como a própria identidade em processo de se reinventar e afirmar — literatura não como chave de interpretação da nação, mas como verdadeiro ressignificar/agir que se inscreve e até transforma as dinâmicas com que as identidades culturais são conformadas.
Não demorou, todavia, para eu descobrir que Bellow trilhou caminhos bem díspares, o que me deixou fortemente impressionado pela inquietação do romancista — dramaticamente destoante da monotonia de boa parte dos livros nos quais eu me aventurava. Descobrir os universos de Saul Bellow funcionava como alerta contra os perigos do ânimo sossegado e das fórmulas que transformam uma actividade eminentemente criativa em mais uma fonte mercantil de produtos pasteurizados, que vestem um ofício de tanto potencial provocador em mais uma lida preguiçosa e empobrecedora.
Outra convicção que Bellow me reafirmou foi a da excepcionalidade que sustenta os grandes escritores. Nenhuma técnica ou rotina de trabalho pode oferecer a sensibilidade e a bagagem necessárias para erguer monumentos como Herzog. Em tempos de “pós-modernidade”, a tentativa de problematização das personagens, por exemplo, frequentemente sucumbe diante da superficialidade com que as contradições são apresentadas. São incontáveis as teorizações e debates sobre o sujeito cindido, sobre questões de identidade, de estar ou mover-se em um mundo fragmentado e mercantilizado; mas, paradoxalmente, as personagens parecem saídas de uma máquina, como se resultados de algoritmos. Porque, na ausência daquelas sensibilidade e bagagem, muitos autores recorrem a maçantes combinações de clichês, atalhos e falta do que dizer — calcanhares disfarçados de simplicidade, despretensão e desejo de expressar o sentimento de vazio da contemporaneidade.
Sem fugir às contradições, ambivalências e desejo de processos reflexivos mais densos, Saul Bellow criou personagens que trazem — sem apelar para embustes teóricos e técnicos — o cerne da angústia de nosso tempo: a demanda por um humanismo que, ainda fundado na dignidade do homem, também dê conta das inquietações que resistem, das ansiedades que as conquistas de maiores liberdade e autonomia não foram capazes de vencer (muito pelo contrário, elevou-as ao limite de nossas forças). E essas criaturas de Bellow são como a maioria de nós, imersos em sentimento (não raro desesperador) de que algo nos falta, mas nem por isso se rendendo e entregando as pontas. Quando especialistas resolveram decretar a morte do heroísmo na literatura, o autor de As aventuras de Augie March ofereceu novos, diferentes e tão contemporâneos heróis — protagonistas que insistem na caminhada, apesar das neuroses e assustadores impasses de nosso tempo.
Saul Bellow morreu em 5 de Abril de 2005. Agora, que vivemos um século de seu nascimento e uma década de sua despedida, fica ainda mais nítida a impressão de que as suas personagens são mais reais do que nós mesmos, e que não cessam de nos inquietar e indagar se temos feito da literatura o que ela já provou ser possível. Mais: elas perguntam se buscamos fazer de nossa humanidade tudo aquilo que tanto sonhamos e teorizamos. Bellow nos deixou exemplares da melhor e única família de literaturas grandiosas: aquela que nos faz despertar (altivos ou angustiados), ao invés de adormecer sobre os falsos ossos que, quotidianamente e pelo preço mais alto, estamos sempre comprando." Cristiano Ramos em Rascunho, Jornal de Literatura do Brasil
*Cristiano Ramos é jornalista, crítico e professor, doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp.

domingo, 23 de agosto de 2015

Ao Domingo Há Música

"A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a actividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história, em seu seio resolvem-se todos os conflitos objectivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Idéia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, actividade ascética. Confissão.Experiência inata.Visão,música, símbolo. "Octavio Paz, in " O Arco e a Lira", Ed. Cosac Naify 

O escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) referiu-se a este ensaio  do grande escritor e poeta mexicano   Octavio Paz (1914-1998) como  “o melhor ensaio sobre poética já escrito na América”. A Música também é poesia , afirma Paz. Assim, se extrapolarmos estas palavras iniciais deste admirável texto para a Música, teremos uma mesma verdade. E a Música poderá ser  oração, litania, pifania, presença, pão dos eleitos...Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva.Obediência às regras; criação de outras...
E, partindo dessa verdade,  descobrimos uma peça musical vestida  de  diferentes interpretações, em que a obediência às regras está presente, mas a criação de outras sonoridades  transforma-a num acto de verdadeira libertação.

- "You'll Never Walk Alone"(1945), do musical "Carousel" de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein, pela soprano Susan Bullok,  nos BBC Proms de 2011.

- Na voz de Louis Armstrong, a mesma canção adquire um novo fulgor. Surge diferente, enroupada de outra graciosidade. Louis Armstrong , o mágico, criador de outros paraísos e fazedor de  dias maravilhosos. What a wonderful singer!


- E, apenas no piano, a belíssima interpretação de Nina Simone.

sábado, 22 de agosto de 2015

Recordar David Mourão-Ferreira

INSCRIÇÃO SOBRE AS ONDAS

Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.

Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.
                     David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem",Ed. Oficina do Livro
David Mourão-Ferreira ( 1927- 1996)  é um nome superior, um mestre da Literatura Portuguesa. Poeta , novelista, crítico literário, ensaísta, professor universitário, dramaturgo, cronista, jornalista foi um intelectual brilhante. 
David Mourão-Ferreira morreu há dezanove anos, a 16 de Junho de 1996.  Recordar esse grande vulto é quase um dever e um  dos maiores prazeres literários. 
Muitos poemas e variados excertos da sua imensa  obra têm sido publicados , neste espaço. Em 24.02.2012, dia do seu aniversário, a rubrica " Sobre a Poesia " foi-lhe dedicada. Do pequeno texto introdutório, reescrevem-se as palavras que pretendiam ilustrar, de forma lapidar, a singular personalidade de David Mourão-Ferreira, enquanto professor da  Universidade de Lisboa:  
Nasceu há 85 anos. E quem teve, como eu, a possibilidade de o ter como Professor na disciplina de Teoria da Literatura, na Faculdade de Letras de Lisboa, pertence, sem qualquer hesitação, ao círculo dos privilegiados. Foi um tempo de encantamento literário, de descoberta e de aprendizagem. A elegância verbal , a destreza vocabular e o conhecimento profundo das matérias abordadas marcavam eloquentemente cada aula. Era o poeta, o democrata, o professor gentil e exigente que transformava uma simples sala de Faculdade numa luminosa sala de aula, naqueles tempos escuros da Ditadura.
Retorna-se a este grande intelectual, para  apresentar um excerto de um belíssimo ensaio tecido por  Eugénio Lisboa  e um excelente Documentário produzido pela RTP 2.

DAVID  MOURÃO-FERREIRA: MEMÓRIAS DE UMA AMIZADE
Por Eugénio Lisboa
"Conheci David Mourão-Ferreira, nos primeiros meses de 1955, quando lhe fui apresentado por José Régio, que viera, por poucos dias, a Lisboa. Eu acabara o serviço militar em Portalegre, em fim de Fevereiro desse ano, a mesma Portalegre em que o próprio David fora oficial aspirante miliciano poucos anos antes.
David era um príncipe solar, aberto, sorridente e infinitamente propiciador. Régio olhava-o, por então, de soslaio, obviamente seduzido, mas desconfiado. Não gostara de um ou outro gesto do David mas não apreciava, sobretudo, a desenvoltura com que o seu jovem amigo se movimentava na selva literária de Lisboa, que o autor de A Velha Casa tinha por corruptora, no mais alto grau.
Literariamente, eu simplesmente não existia a não ser pelo facto de o Régio me ter por essa altura convidado para fazer uma antologia da sua poesia – coisa a haver -, sem qualquer meu currículo anterior que sustentasse o convite. Principescamente, o David passou por cima disso, ignorando o facto óbvio de poder – e dever – ter sido ele o convidado: jovem autor que por então era, com um punhado de textos críticos e ensaísticos que o chumbavam, desde logo, à nossa história literária, e dois livros de poesia publicados que, de imediato, indiciavam nele um lírico de nome a reter. Mas, como disse, o David, criador genuíno, tinha a generosidade dos que têm para dar e vender. Acompanhou-me, deu-me informações às carradas, falou-me de autores que me poderiam interessar e emprestou-me um punhado de livros em que figuravam algumas admirações comuns: Thomas Mann, por exemplo, de que saíra, em francês, por essa altura, Le Mirage, livro que viria a ser traduzido para português, por Domingos Monteiro, com o título de O Cisne Negro.
Eu ia partir, dentro de muito pouco tempo, para Moçambique: tinha três estágios de engenharia a completar, com os respectivos relatórios a submeter e tinha, sobretudo, que organizar e prefaciar a antologia regiana, com todos os anexos da praxe. Ainda por cima, para uma colecção dirigida pelo João Gaspar Simões, que era um homem susceptível e a quem o Régio impusera o meu nome, isto é, o de um desconhecido. Tudo, em vésperas de partida para um futuro profissionalmente desconhecido e depois de, desenvoltamente, ter recusado uma boa oferta de emprego para uma grande indústria em Alverca. Há atrevimentos que só a leviandade da juventude ajuda a explicar. A manhã em que meti no correio,  para  Portalegre, o manuscrito da antologia, seguiu-se a várias noites sem dormir, a toque de muita anfetamina. Parti dias depois.
Durante os vinte e um anos que passei em Moçambique, os contactos com o David não foram nunca epistolares: o David, como é de todos sabido, não era dado a amizades epistolares: amizade, sim, epistolografia, não. Homem de muita e diversificada escrita, ele não sentia a atracção da epístola. Ainda assim, como eu vinha com alguma periodicidade a Lisboa, quando isso acontecia, lá estava o David a receber-nos galhardamente, a mim e a minha mulher, em sua casa (ou em suas casas), ou a sós, ou com alguns amigos, como o saudoso José Palla e Carmo – grande crítico e ensaísta que a banca e a doença cedo devoraram -, enchendo-me de novidades, de ideias, de seduções, de pistas, de ofertas, de contactos, de luz e de calor. Saía destas visitas revigorado e estimulado, com energias renovadas para ir cumprir o meu fado humilde mas iluminado, nas paragens longínquas de uma Lourenço Marques bonita, animada e intelectualmente longe de ser desprezível. O David ficava-me, em Lisboa, como referência que eu guardava dentro de mim até nova visita. Foi ele, é só um exemplo, que me chamou a atenção para um daqueles livros que muito me impressionaram e que comprei em Londres, logo a seguir a tê-lo visto recomendado pelo David, numa visita que fiz à sua casa na Rua dos Ferreiros: o volume de ensaios, editado pela Penguin, The Triple Thinkers, do grande ensaísta americano, de extracção marxista, Edmund Wilson.
Quando, em 1957, vivia eu então na Beira, a minha antologia regiana veio finalmente a lume, a recensão crítica feita pelo David foi das poucas que dedicaram ao livrinho simpatia e perspicácia: fazendo, com delicadeza, um ou outro justo reparo, o autor de Hospital das Letras “lera” sem dúvida o meu livro e compreendera o esforço de sondagem, em profundidade, que eu ali tentara – com achegas que eram novas e às quais o próprio Régio fora sensível. Já agora – e porque vem a talhe de foice – outro dos que “repararam” no livro foi o neo-realista António Ramos de Almeida, que não me conhecia, e dedicou ao meu labor crítico palavras de calorosa simpatia e generosa compreensão.
Fiquei a dever ao autor de Um Amor Feliz imensas dádivas dos mais diversos teores.(...)
Enquanto conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Londres, tive ocasião, por mais de uma vez, de convidar David a ir proferir conferências em Londres, Oxford, Cardiff e Leeds. Foram ocasiões memoráveis: o nome do autor de Gaivotas em Terra era sempre um chamariz infalível: as salas enchiam-se e, falando de Pessoa, de Teixeira Gomes ou de Cesário, o grande ensaísta cativava, com o seu verbo bem colocado e musicalmente impecável, uma audiência que se deixava enfeitiçar pela claridade da exposição e pela arquitectura inatacável da construção. David era, a um tempo, audaciosamente inovador e clássico, iluminando e desassossegando, emitindo luz mas deixando que se suspeitasse da existência de sombras...
Nunca soube como pagar tanta dádiva, tanta generosidade, tanta luz e tanto calor. Em vida do David, escrevi sobre ele, dois únicos  textos: um, publicado no nº 61 da Colóquio/Letras, de Maio de 1981 e intitulado “Uma Claridade de Sombras e de Luzes: a «Obra Poética» de David Mourão-Ferreira”; o outro, sobre o ensaísta David Mourão-Ferreira, publicado no Jornal de Letras, como protesto sibilino contra uma inqualificável atitude do Secretário de Estado da Cultura, Santana Lopes.  Escrevi outros, depois do seu falecimento. Mas creio, tentando ser objectivo, que foi aquele texto, publicado há 25 anos, na Colóquio, a melhor homenagem que, dentro do que me limita, eu poderia ter dedicado à complexa riqueza do autor de Matura Idade. Porque faço nele uma sondagem que se não quis nem superficial, nem conformista com uma certa imagem-cliché que se tem vindo a construir em torno da sedutora figura de David Mourão-Ferreira: um príncipe solar, um predador dos alimentos terrestres, um cantor interminável do Eros e suas adjacências, um emissor de luz que nenhuma sombra desassossegou...Foi isto David? O seu canto é isto? Resume-se a isto? Rejeita ele o que não é isto? Acho que não, até porque os textos contam outra história, dizem outra coisa, como o dizia de resto a conversa e o comportamento quotidiano do amigo com quem muitos de nós privaram. Havia nele um óbvio rio subterrâneo de sombra e de funda angústia existencial que nenhuma solaridade demitia e muito menos apagava. Chego a pensar – e aqui coloco-me à beira do ultraje – que David foi, em muitos casos, bastante apreciado na proporção de não ter sido devidamente compreendido. Dizia Chamfort, um pensador aforista que David por certo admirou, que “muitos homens e mulheres gozam de estima popular, não porque são  conhecidos, mas sim porque são desconhecidos.”  A solaridade de David, o contentismo erótico de David têm sido pano para muita manga que lhe não assenta tão bem como se tem querido supor. Há no discurso criador do autor de In Memoriam Memoriae um indiscutível débito solar, mas trata-se de um sol, por isso mesmo que é sol, que exibe um perturbante teor de manchas ...solares. Toda a luz pressupõe treva e , como diz Eliot, na sua tragédia, Murder in the Cathedral, “a treva declara a glória da luz”. Muita da luz que o texto davidiano exibe é uma luz que a treva pressupõe e ostensivamente declara, quando é preciso. Assim como muita da treva que o seu texto faz explodir no nosso rosto é uma treva que a luz pressupõe e inequivocamente declara.
Neste mundo em que nada se perde ou ganha e tudo se transforma, até o inverno do nosso descontentamento, como dizia sibilinamente o Ricardo III de Shakespeare, se transforma em verão glorioso pela acção do sol de Iorque. Do mesmo modo que toda esta luz se despenhará no turvo e negro massacre que leva, primeiro, ao triunfo e ao poder, e depois, à derrota e à morte. Julieta, na peça do mesmo Shakespeare, é, como se sabe, o sol. E contudo...
Quando, no poema “Do tempo ao Coração”, nos diz:

“De milhões e milhões que rebentam com fome
Ao dom do caviar para abrir o apetite
Do canto gregoriano à música electrónica
Dos berros da oração ao silêncio de um grito

“De tanto a muito mais. De tudo a quase nada
Só não sei que tecido oscila entre os extremos
Se apenas o amor Se o vulto da amada
Se trevas Se uma luz Se o tempo em que vivemos,

David está a insinuar um desassossego entre luz e treva que, por muito outro lado, a sua obra revisita: “A lira é com certeza a mão esquerda de Orfeu / Mas é a mão direita que revolve o lodo”, diz um outro poema, intitulado, significativamente, “Ars Poetica”.  “Segredar num soneto a área do remorso” é o antepenúltimo verso do soneto “Interior” e peço licença para não ver aqui indícios ofuscantes da tal solaridade que tão frequentemente nos é sugerida. No centro do sol davidiano, explodem, de quando em quando, trevas como esta:

As noivas dos abetos vestiram-se de luto
As aias dos abutres caminhavam de rojo
Das trinta e nove amantes que me roubaram tudo
Trezentas e noventa desfizeram-se em lodo

Ou como esta:

Habita-me na sombra a luz de uma gaivota
Fulgura-te na luz a sombra de um espadarte

Textos que pedem a consagração de uma medalha, que podemos ir buscar ao melhor dos patronos, o Milton de Samson Agonistes:

“O dark, dark, dark, amid the blaze of noon”
(“Ó treva, treva, treva, no meio do fulgor do meio-dia”

É para esta treva que habita com força no fulgor do meio-dia do discurso poético e ficcional de David Mourão-Ferreira que eu hoje gostaria de chamar aqui – e de novo – a vossa atenção e a vossa devoção. “O próprio sol não passa de um simulacro e a luz é apenas a sombra de Deus”, dizia Sir Thomas Brown, oferecendo-nos esta óbvia epígrafe para a riqueza perturbada e perturbante que vivifica – com tónicos e venenos – o tecido sedutor, mas também intrigante, de todo o opus davidiano."  Eugénio Lisboa, in Indícios de Oiro, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 2009

"Duvidávida" é um documentário sobre a vida e obra de David Mourão-Ferreira, emitido na RTP2.
"David Mourão-Ferreira foi poeta, ficcionista, ensaísta, professor, divulgador, tradutor e dramaturgo. Este documentário dá a conhecer passagens da sua vida, episódios caricatos, outros dramáticos, testemunhos de quem o conheceu de muito perto e testemunhos de quem, com a distância necessária, consegue avaliar a dimensão da sua obra... múltiplos retratos de um homem que, acima de tudo, amava a vida. Como ele próprio escreveu "Que dúvida Que dívida Que dádiva/ Que duvidávida afinal a vida".
Com testemunhos de Vasco Graça Moura, João Lobo Antunes, Urbano Tavares Rodrigues, Eugénio Lisboa, Maria Barroso, entre outros."