quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Breve meditação sobre cultura

Breve meditação sobre cultura
por Eugénio Lisboa
 
Verificaremos sempre que o ódio é mais forte e mais violento, 
onde o grau de cultura é mais baixo.
Goethe
 
No que à cultura diz respeito ,encontramo-nos na situação
de Robinson. Naufragámos. Isto é grave, mas não é uma
catástrofe, desde que não percamos o moral, não entremos
em pânico, sejamos capazes de aprender e tenhamos  de-
terminação e persistência suficiente para nos reorganizarmos.
Dietrich Schwanitz 
 
"Depois de quarenta anos de democracia e de governos de várias cores e formatos, vejo-me obrigado a concluir, com alguma tristeza, que os nossos políticos, na sua esmagadora maioria, não acreditam na cultura nem na utilidade dela. Se calhar porque a não têm e nunca a fruíram a sério. A cultura, para eles, mesmo quando afirmam o contrário, é vista como um mero acessório “chic”, uma espécie de flor na lapela, que dá jeito mas não tem propósito de maior. E tanto faz que sejam socialistas, como sociais-democratas, democratas cristãos ou neoliberais. A prova do bolo está no comê-lo, ou seja, no dinheiro que estão dispostos a investir nela, e o dinheiro até agora investido neste pelouro foi sempre uma autêntica miséria. A Alemanha, por exemplo, soube sempre qual é o valor da cultura e investiu nela sumptuariamente. A França também. A Argentina, igualmente. Tivemos um bom ministro da cultura, Manuel Maria Carrilho, que quase toda a gente odeia, não pelas razões que hipocritamente aduzem, mas por ser mais culto, inteligente e capaz do que a média lusíada e ter forçado o seu governo, no primeiro mandato, a investir naquilo em que dizia acreditar. E tivemos um Presidente da República, Mário Soares, para quem a cultura realmente conta. Tudo isto não conseguiu, quase nunca, elevar o orçamento para a cultura ao pífio 1%  do PIB, encontrando-se actualmente em nível evanescente e nas mãos de um Secretário de Estado dela, que mais se parece, quando fala, com um faniqueiro Secretário de Estado do Orçamento, descendente convicto do Scrooge que Dickens imortalizou.
Quem trabalha nos pelouros onde da cultura se cuida, quer preservando-a, quer acrescentando-a, quer promovendo-a aos olhos dos indígenas e dos de fora, sabe perfeitamente que tudo isto é verdade. Quando vem o tempo das vacas magras – e ele vem muitas vezes – o nosso czar ou czarina das Finanças, com a subserviente e sorridente obediência do primeiro ministro, que olha aterrado para aqueles mapas pejados de artilharia pitagórica, não hesita em meter uma faca mal intencionada no orçamento da cultura, mesmo quando esta já anda de farpela no fio e de alpercatas cheias de buracos. Porque os nossos governantes do pelouro da cultura – e os outros é pior! – têm da cultura uma noção que não deve andar muito longe da definição célebre do infame Lord Raglan: “Cultura é tudo o que nós fazemos e os macacos não fazem.” Foi este mesmo Lord Raglan que descobriu não passar Shakespeare de um sindicato de meia dúzia de escritores, dos quais Shakespeare-ele-mesmo escrevia apenas as partes cómicas das peças que hoje circulam com o seu nome. O nosso actual Secretário de Estado da Cultura, de nome Barreto, fez uma descoberta não menos inovadora: gastar dinheiro com o pelouro que governa não é uma prioridade. Ao lado disto, Vítor Gaspar ou Maria Luísa Albuquerque são quase uma ternura.
Fui, relutantemente, nomeado conselheiro cultural em Londres, como já atrás contei. Nem vontade nem vocação nem competência me faltavam para desempenhar o lugar a contento. Também não sofri, do lado dos meus superiores, do pelouro diplomático, qualquer obstrução ao meu zelo. Do lado das Secretarias de Estado ou dos Ministérios da Cultura, também não, de um modo geral, em termos de apoios institucionais e, quando possível, financeiros. O problema nunca esteve aí. O que não houve, nunca, foi orçamentação  minimamente decente, na área da cultura. O regime mudou, de autoritário ou ditatorial, como se prefira, para democrático, em 1974, mas, nas finanças, os Salazares perpetuaram-se: cultura, sim, mas pouca e devagar. E foi quase sempre assim, durante quarenta anos, e vai continuar a ser assim, por muitos e bons. Os nossos políticos, de uma maneira geral, não têm cultura (nem sequer cultura política), não gostam de cultura, detestam as pessoas cultas e mostram-se, em decisões e tics do dia a dia, irremediavelmente provincianos.
O que mais me tem intrigado não é, até, a fanheirice dos czares das finanças: se calhar, até lhes está nos genes. O que mais me custa a engolir é a aceitação do lugar de Secretário de Estado ou Ministro da Cultura, por parte de figuras que até respeito, mesmo com o pelouro pindericamente orçamentado. Tenho, para dar um exemplo – poderia dar outros – o maior respeito cultural por uma figura como Coimbra Martins, mas não posso deixar de me perguntar: o que terá levado um homem com o seu prestígio a aceitar o lugar de Ministro da Cultura, com o orçamento do pelouro selvaticamente mutilado? Para fazer o quê? Será assim tão importante ser ministro? Alguém ficará na História por ter sido ministro? Não valerão bem mais os Ensaios Queirosianos do que qualquer ministério, ainda por cima pifiamente orçamentado? Valerá a pena vender a alma por um prato de lentilhas? Ter um carro, um motorista, uma verbazinha de representação e uns convites para umas recepções, em geral, chatíssimas – dá para compensar a neura de se não poder fazer nada, por “falta de verba”? Se dois ou três nomes de real prestígio tivessem tido a saúde de só aceitar aquele ministério, mediante condições minimamente decentes de orçamentação do pelouro, os poderes que podem seriam forçados, ao fim de algum tempo, a repensar toda a falta de vergonha que tem presidido à gestão da cultura em Portugal. Gasta-se afrontosamente dinheiro mal gasto em tropelias e “combines” que deviam constituir-se em autênticos casos de polícia. Enchem-se os gabinetes ministeriais de uma fauna partidária e parasitária, mais ou menos iletrada e totalmente desnecessária, mas voraz e opiparamente paga, a pretexto de uma “especialidade” qualquer, que obviamente não possuem (naquelas idades, ninguém é especialista de coisa nenhuma…); enche-se o país de autarquias em número grotesco, de tão desnecessário; apaparica-se um número injustificado de deputados que a si próprios oferecem incrementos salariais, prebendas, confortos e isenções, enquanto, com aparatoso desplante, legislam sacrifícios, congelamentos e austeridades, que esmagam o povo – para tudo isso vai havendo “verba” e até para pagarem os prejuízos que ocorrem em parcerias velhacas entre o Estado e os “privados”, sendo só o Estado a assumir todos os riscos e a pagar todos os prejuízos (ainda aqui, um caso de polícia); vai também havendo verba para se pagar sumptuariamente a “escritórios de advogados” (termo com dignidade suficiente para figurar no famigerado Dicionário Infernal, de Collin de Plancy), cujos oficiantes fazem quadriga romana com um pé no parlamento e outro no gabinete onde se congemina legislação duvidosa ou claramente perniciosa; há dinheiro para tapar buracos negros, em bancos, criados por uma coorte de aventureiros sem escrúpulos, que nunca chegam a ver o sol por entre as grades que, de direito, lhes deviam estar reservadas. Há sempre uma justificação, um pormenor, uma minúcia, uma prescrição que permite a um banqueiro trapaceiro e bilionário não pagar uma multa, que lhe foi, com justiça, aplicada. Para tudo isto, há dinheiro. E até há dinheiro para que os administradores das nossas empresas, mesmo públicas, quanto mais privadas, aufiram salários confortavelmente muito acima do que aufere o Presidente dos Estados Unidos (enquanto se nos diz que devemos aceitar que somos e seremos, de aqui para o futuro, um país pobre…). Há dinheiro para todo este regabofe, Mas nunca há dinheiro para o pífio 1% do PIB que se anda, há tanto tempo a prometer à cultura. Somos, de facto, governados por um bando de gente inculta e que odeia a cultura: toda a cultura, repito, incluindo aquela que devia possuir – a cultura política. Gente que nem sequer percebe o significado subliminar e profundo de uma boa imagem cultural – o que ela pode fazer pela promoção de outras vertentes mais materiais ligadas à economia da nação. Gente que se não questionou, não leu, não se informou, não investigou, não perguntou. E que fica surda, mesmo aos “avisos” dos que acham por bem não temer dá-los, no momento próprio. Um desses “avisos” foi por mim dado, numa conferência que fiz, em Novembro de 1986, na Universidade do Minho, a convite do Professor Vítor Manuel de Aguiar e Silva, a propósito da entrada de Portugal na CEE. Dela, enviei, na altura, uma cópia à Dra. Teresa Patrício de Gouveia, que tenho por amiga e que nunca deslustrou a cultura, nos altos cargos que desempenhou. Mais tarde (1999) publiquei-a no meu livro O Objecto Celebrado, publicado na prestigiosa colecção “Acta Universitatis Conimbrigensis", pelo meu saudoso amigo Aníbal Pinto de Castro. Como uma edição desta natureza não tem, necessariamente, muita circulação, e dado que o ali dito continua, infelizmente, a ser actual, permito-me transcrever aqui algumas passagens daquela conferência, que levava, não inocentemente, o título camoniano “Cantar a gente surda e endurecida”:
“Harold Nicholson (…) atribuía o fracasso inglês [na promoção, no estrangeiro, da cultura inglesa] no século XIX «a uma arrogante reticência [relativa a essa divulgação] baseada no hábito adquirido de se olhar todas as formas de autopromoção como odiosas: ‘Se os estrangeiros não conseguem apreciar ou sequer notar os nossos dons de invenção ou o nosso esplêndido poder de adaptação, então não há nada que possamos fazer para mitigar a sua obtusidade. O génio da Inglaterra, ao contrário do génio de outros países menores, fala por si próprio.’» Dotados de uma língua universalmente conhecida e, até há pouco tempo, de um poder económico imponente, os britânicos quase se puderam dar ao luxo desta arrogância ou desta espécie de amuo, como se lhe queira chamar.
“Outro factor que esteve na origem desse recuo dos britânicos, relativamente à diplomacia cultural, terá sido, segundo alguns autores, a conotação algo sinistra que se colou à palavra propaganda, a seguir à 1ª guerra mundial. Uma das efectivas armas de guerra criadas pelos britânicos durante esse destrutivo conflito foi o Ministério da Informação, presidido por Lord Beaverbrook e encarregado de disseminar propaganda pelos países aliados e neutrais. Tratava-se, é claro, de «levantar o moral», de um lado, e fazê-lo baixar, do outro.  O objectivo visado não tinha necessariamente que coincidir sistematicamente com a verdade. O senador americano Hiram Johnson observou um dia, com ironia e tristeza, que, «quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade.» Os processos de Beaverbrook, no sentido de levar a bom termo a sua missão, foram, salvo melhor opinião, particularmente implacáveis e pouco escrupulosos, havendo quem diga ter Hitler ficado por tal forma impressionado com tais processos, que viria mais tarde a copiá-los, requintando-os. Tudo isto daria à palavra propaganda um cheiro que não era propriamente de santidade e que esteve na origem do reflexo de recuo que viria a reflectir-se, de futuro, no comportamento dos britânicos, em tudo quanto se tratasse de autopromoção. Durante arrastados anos, ficaram-se a ver os franceses avançar, galhardamente, com a sua diplomacia cultural, bem financiada e triunfante, enquanto eles se retiravam, pundonorosos, altivos e…frustrados.  Só nos anos trinta, tendo finalmente percebido que o recuo da sua imagem cultural lhes afectava o êxito no sector do comércio externo, se resolveram a conjurar o fantasma associado à palavra propaganda, tomando as diversas medidas que levaram finalmente à criação do British Council, periodicamente contestado, ocasionalmente ferido nos seus meios de acção, mas hoje prodigiosamente existente, necessário, procurado, afluente e produtor de uma imagem que o Reino Unido ganha em ver assim promovida. Na origem desta mudança, esteve, segundo pensa a historiadora do British Council, Frances Donaldson, o relatório de D’Abernon, que chefiou, em 1929, uma missão comercial à América do Sul. D’Abernon verificou que, apesar dos milhões de libras investidos em antigos negócios, os britânicos não estavam a fazer quaisquer progressos em sectores novos como a aviação, a construção de estradas ou o transporte a motor, nos quais, outros países mais aventurosos e de imagem menos anquilosada lhes estavam a levar a dianteira. Mas a parte que nos interessa aqui desse relatório sensacional é o capítulo intitulado «A importância comercial da influência cultural». Nesse ponto, os autores do relatório sublinham, com vigor, que se não pode inteiramente afirmar que os britânicos «tenham suficientemente entendido a relação directa [que existe] entre cultura e comércio», dedicando, a seguir, bastante espaço do referido texto a descrever e analisar a influência cultural da França, da América, da Alemanha e da Itália. Não vou aqui gastar a vossa paciência com minúcias do influente texto de D’Abernon, mas não resisto a transcrever, pelo seu teor, a conclusão-advertência desta sua incursão nas relações entre cultura e comércio: «Àqueles que dizem não ter esta extensão da nossa influência [i. e., a cultural] qualquer relação com o comércio, respondemos que estão totalmente errados; a reacção do comércio à mais deliberada inculcação da cultura britânica, que nós advogamos, é definitivamente certa e deverá ter lugar com a maior rapidez.» Deixo aqui para meditação e digestão, esta jóia de reflexão, oriunda de gente reputada por ter os pés bem chegados ao chão e conhecida, na sabedoria corrente, por ter uma espécie de horror sagrado a termos assustadores, como é, por exemplo, o de «cultura». Note-se que as passagens citadas se encontram num relatório de uma missão comercial e não cultural. Foram os promotores do comércio a fazer apelo à cultura e não esta a propagandear os seus próprios méritos…”
 
O texto do qual transcrevi as palavras acima é mais longo e, no seu conjunto, talvez mais eloquente. Mas o que aqui deixo registado parece-me suficiente para quem o queira ver com olhos de ver."
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula - Memórias - Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo. Londres. (1976-1995), Opera Omnia  Editora, Outubro de 2014.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Esperança


Esperança

Onde pus a esperança, as rosas
Murcharam logo.
Na casa, onde fui habitar,
O jardim, que eu amei por ser
Ali o melhor lugar,
E por quem essa casa amei —
Decerto o achei,
E, quando o tive, sem razão para o ter

Onde pus a afeição, secou
A fonte logo.
Da floresta, que fui buscar
Por essa fonte ali tecer
Seu canto de rezar —
Quando na sombra penetrei,
Só o lugar achei
Da fonte seca, inútil de se ter.

Para quê, pois, afeição, esperança,
Se perco, logo
Que as uso, a causa para as usar,
Se tê-las sabe a não as ter?
Crer ou amar —
Até à raiz, do peito onde alberguei
Tais sonhos e os gozei,
O vento arranque e leve onde quiser
E eu os não possa achar!
               16-2-1920
Fernando Pessoa. Poesias. Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor. Lisboa: Ática, 1942, (15ª ed. 1995).

Esperança

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente,
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.

Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança
único que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança.
Almada Negreiros, in Poemas, Assírio &Alvim Editores.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

O sonho de Charlotte Beradt


Charlotte Beradt. O sonho que se cumpre entoando a morte
por João Vasco Rodrigues 
"Após a chegada de Hitler ao poder, em 1933, Beradt era então uma jovem de vinte e poucos anos quando decidiu iniciar uma invulgar recolha de testemunhos, mapeando mais de trezentos sonhos que lhe foram ditados por cidadãos alemães, expondo os efeitos subterrâneos da difusão da ideologia e do terror nazis.

Durante o período nazi, os homens não deixaram de sonhar. Ao longo dessas noites secretas de uma intimidade ameaçada, gritavam impiedosamente o terror dos maiores pesadelos. Sabemos hoje que esses sonhos nunca pouparam os seus homens, que eles ainda pesam, tolhidos como chumbo, do outro lado da cama. Não nos livrámos do passado, não eram apenas as histórias terríveis das vítimas de um outro tempo. Estendemos a mão até lhes roçarmos o corpo, sentimos como ainda estão mornos os vestígios: as vozes trepidam roucas aos nossos ouvidos, os rostos, apagados pela história, servem agora qualquer tempo, invadem o sono dos últimos quartos acesos, libertando a vertigem de que talvez um dia nos antecipem a vez de sermos os próximos.
‹‹Acordei banhada em suor, os dentes apertados. Uma vez mais, como em inúmeras noites anteriores, fugira desesperadamente, fora alvejada, torturada, escalpelada. Porém, naquela noite, ocorreu-me que, entre tantos milhares e milhares, possivelmente não era eu a única condenada pela ditadura a ter tais sonhos. O que acontecia nos meus sonhos acontecia nos deles também: fugas ofegantes pelos campos, refugiar-se em torres de altura vertiginosa, acoitar-se em valas, sempre com a SA no encalço.››
Foi a vez de Charlotte Beradt (1907-1986), jornalista e ensaísta alemã de origem judaica, ficar para trás. Aos vinte e poucos anos, escondia uma coleção invulgar de mais de trezentos sonhos ditados pela ditadura nazi, perpetuando a denúncia mais profunda e evidente desse regime totalitário. ‹‹Deixei de parte todos os sonhos de violência física, medo visceral, mesmo os mais extremos, (…) a novidade destes sonhos residia sobretudo na sua quantidade››. Se Pirandello nos sugere que ‹‹a história foi feita para ser contada e não para provar››, Beradt confirma-nos que essa mesma prova reside com maior precisão, não nas descrições nuas da tortura exercida pelo fascismo, mas na maneira como esta dominava massivamente os estímulos psicológicos, imaginários, involuntários e inconscientes de cada indivíduo, de cada murmúrio clandestino arriscadamente confidenciado. Os sonhos surgiam, assim, emprestados pelo medo à aparição de um fundo de mundo concreto, isto é, comprovando a apropriação nazista dos meios de identificação de cada vítima, transformando cada imaginário particular em propriedade da autoridade fascista, adivinhando, por vezes, um futuro não menos medonho do que as experiências conhecidas. Lemo-los, atravessando a dor esquizofrénica de quem se viu obrigado a engolir os papéis onde registava esse sofrimento geral, contornando à pressa a hora da revista.
‹‹Alguns amigos que conheciam o meu plano ajudaram-me, fazendo entrevistas e tomando apontamentos; o meu colaborador mais importante foi um médico com acesso a um amplo círculo de pacientes que podia ir interrogando de maneira discreta. (…) Nos processos de anotação ou transcrição, tentei mascarar os sonhos que me eram transmitidos – de forma oral ou escrita – da melhor maneira possível. Por exemplo, chamando família ao Partido; tio Hans, Gustav, Gerhard a Hitler, Göring, Goebbels; gripe à prisão. No início, mantive estas peculiares histórias familiares escondidas numa biblioteca bastante grande, na lombada de alguns livros – sem alguma esperança de que esta ridícula camuflagem me valesse de algo em caso de emergência, mas também o que é que me valeria em caso de emergência? Mais tarde, enviei-as por correio para diferentes moradas em diferentes países, onde esperaram por mim até que eu própria tivesse de sair para o estrangeiro››. A resistência em permanecer do lado de dentro, suportando uma ‹‹vida sem paredes››, provocou o desenvolvimento de uma notação encriptada, em que a criação de códigos alternativos de linguagem, catalogação, mapeamento e distribuição possibilitava que estes fragmentos se garantissem e que pudessem ser compilados, primeiramente, numa peça radiofónica, sob o título “Sonhos de Terror”, e, mais tarde, publicados num volume intitulado “O Terceiro Reich do Sonho” (1966), que agora nos chega com a tradução de Mário Gomes e edição de Vasco Santos
Em 1940, pouco após estas recolhas e um ano depois de Charlotte Beradt se ter exilado com o marido nos Estados Unidos, onde passou a gerir um salão no seu apartamento para cuidar e pintar o cabelo das outras mulheres exiladas, Anna Akhmatova expressava nos seus versos a mesma intuição face ao terror da ditadura estalinista: ‹‹Eu porém aviso-os / Que vivo pela última vez. / (…) / Virei perturbar as pessoas / E os sonhos alheios visitar / Com um gemido insaciado››. Trata-se do mesmo grito, do mesmo aperto, do mesmo sonho, o que comprova, mais uma vez, que não falamos de um episódio datado, isolado e ultrapassado, mas sim de um aviso aos próximos, lançando uma escrita urgente que renega qualquer motivação privada. Assomamos aos versos de Akhmatova, o risco de propor uma sentença, que encaramos como um comentário lateral após os sublinharmos:
Não sei por quantas horas nos veremos, por isso escrevo:
entre o poder de entoar a morte
e a dúvida sobre quem toca por último o morto.
Os relatos inauguram-se com uma espécie de sonho-modelo do proprietário de uma fábrica, no terceiro dia após a tomada de poder de Hitler. Perante a aparição de Goebbles e a ordem para os operários saudarem o líder do partido nazista, este demora meia hora a erguer o braço. Os membros revelam uma fricção morosa, o atrito entre a defesa íntegra da  resistência – a recusa em compactuar com o gesto imposto que o atraiçoa – e a prossecução inevitável da saudação, resultando num movimento tenso, involuntário, que contraria o domínio físico e consciente do corpo. Mais tarde, quando Goebbles lhe diz que a saudação não é bem vinda, o proprietário permanece paralisado, de braço levantado, e vê-se incapaz de reverter o seu sentido, mergulhando na desonra pública e privada em frente dos restantes funcionários, o que, por fim, o dilacera ao ponto de o acordar. Esta primeira testemunha, tal como todas as outras, teria aparentemente a hipótese de, pelo menos durante o sonho, manifestar alguma revolta ou indignação insurgente de modo a controlar a sequência da ação de um modo mais proveitoso. Mas Beradt diz-nos que dadas as atrocidades e os horrores sofridos à época, a ausência de atos vingativos é praticamente absoluta, à exceção de um caso que efetivamente sonha que afoga Hitler no mar entre a Inglaterra e a Alemanha. As restantes centenas de sonhos não deixaram dúvidas quanto ao facto de se ter instaurado um assombro geral, um processo contínuo e deliberado de alienação que converteu as vítimas do regime a um estado exterior e irracional absoluto, segundo o qual, lentamente, penosamente, os indivíduos se iam alinhando. ‹‹Tinha-se de viver sob esta condição, vivia-se por hábito transformado em instinto, na suposição de que cada som que se emitia era observado, cada movimento controlado››, escreve George Orwell numa das epígrafes do quarto capítulo. Em caso algum surge o cálculo ou a conspiração a favor da oportunidade enviesada de uma ficção que permitisse uma qualquer represália. Pelo contrário, elevam-se inúmeros casos em que os indivíduos sonham recorrentemente com a possibilidade da escuta, da manipulação, da vigilância, e ‹‹na incerteza de não se saber até onde iriam as possibilidades dessa vigilância››, desistem, sopesando a pulsão de uma enorme suspeição de si mesmos.
‹‹Um vendedor de legumes sonha (…) com uma almofada que, por precaução, coloca sobre o telefone sempre que a família se junta para conversar no serão. O aconchego torna-se em horror: a almofada bordada em ponto-cruz pela mãe dele – uma recordação sentimental que repousa no cadeirão, o seu trono doméstico – começa a falar e a testemunhar contra ele››. Ao mesmo tempo, uma bibliógrafa sonha que quer visitar uma conhecida, mas quando se dirige a um telefone público para procurar a morada, automaticamente se desvia sobre um outro nome, procurando esconder a identidade real da conhecida, gesto esse, impetuoso e involuntário, que comprova a obsessão e o pressentimento de que alguém a observa. Um outro jovem apercebe-se que desistiu de sonhar – ou os sonhos desistiram de si enquanto prolongamento da tortura nazista – no momento em que estes se reduzem a ‹‹rectângulos, triângulos, octógonos (…) porque afinal de contas é proibido sonhar››. Uma modista sonha numa língua confusa que aparenta ser o russo, embora a desconheça inteiramente, ‹‹para que [ela] própria não [se] entenda caso venha a dizer algo sobre o Estado››. Temos, assim, o sonho fixado num tempo violento que o precede, ‹‹um futuro anterior em que a morte é aposta›› (Roland Barthes) com a pretensão de conservar a vida, mesmo ferindo por todos os cantos. Percebemos que qualquer movimento levanta um ruído, arrasta um esquema pesado, ‹‹o venenoso caldo da perseguição e da diferença›› (George Steiner) concebido estrategicamente pelo inimigo. Observamos, com horror, os comportamentos desumanos e castradores por parte das vítimas que comprovam que o Terceiro Reich ‹‹soube tirar partido do medo instalado nas pessoas que começaram a aterrorizar-se, por assim dizer, a elas próprias, tornando-se em colaboradoras voluntárias do terrorismo sistemático atrás das próprias costas, ao tomá-lo por mais sistemático do que era››, ao ponto de revirarem a língua há muito retida na boca, renovando-lhe a pele e substituindo os seus contornos por uma outra desconhecida.
Uma mulher, ‹‹na noite de Ano Novo de 1933 para 1934, depois do ritual de verter figuras de chumbo derretido em água, sonhou com impressões puras em vez de situações, com palavras sem imagens, que anotou ainda na mesma noite: “Esconder-me-ei no chumbo. A língua já é chumbo, cerrada em chumbo. O medo passará quando toda eu for de chumbo. Jazerei imóvel, fuzilada a chumbo. Direi, quando eles vierem: Os que são de chumbo não se podem levantar. Ai-ai, querem atirar-me à água por estar tão cheia de chumbo…”››. Vemos a poesia de um idioma proibido à boca como um guardanapo entalado na traqueia, o que nos leva a resgatar as palavras de Benjamin Fondane, poeta morto na câmara de gás de Auschwitz, um outro autor do catálogo de Vasco Santos e um de tantos que não passaram pelas entrevistas de Charlotte Beradt: ‹‹Nós não falamos nenhuma língua, / não somos de nenhum país, / a nossa terra é o que arfa / o nosso refúgio é o balanço››
Não deixam de ser curiosas as numerosas referências à agua enquanto elemento capaz de propor um termo à vida: ‹‹querem atirar-me à água por estar tão cheia de chumbo…››, ecoa ainda aos nossos ouvidos. Também em Ulisses, publicado nesse mesmo ano de 1933, Fondane serve-se da abundância da água enquanto espelho do seu rosto para reconhecer a inevitabilidade do delírio. Vê-se a si próprio e é esse contacto ininterrupto com a água, onde ‹‹o olhar dormitava por não esbarrar em nada››, que o motiva à escrita do mesmo. Lembra-nos as palavras de Maria Filomena Molder, numa entrevista de 2014: ‹‹Por exemplo, estamos a ver-nos num riacho transparente. Estamos a olhar, inclinamo-nos e vemos. Se fazemos assim [recua], acaba essa relação com a água, ainda mais do que com o espelho, porque a água está a fluir, está a correr. No espelho isto fica petrificado. Mas também há um aspeto abissal no espelho, que na água do riacho não existe. (…) A água é mais antiga que o espelho, claro, são talvez os melhores para dar conta da dificuldade de conceptualizar uma imagem. Porque a imagem é um ser que vive de uma relação. E quando essa relação se petrifica, temos uma imagem redutora, ou uma imagem que aprisiona. Quando essa imagem é fluida, dá origem a outras imagens, alarga o nosso campo de visão. Essa imagem pode ser criativa ou, pelo menos, suscitadora de criação››.
Ao contrário do livro de Fondane, Beradt navega sobre uma escrita coletiva, uma antologia improvisada, em que não sobra tempo para podar um tema, para a construção de um pensamento ao serviço de um livro, para uma imagem ficcionada ou sequer um estilo. Apenas a urgência e a verdade se mostram capazes de certificar a presença de uma nova ordem de provas e, como tal, a jornalista não se supõe, mantendo-se clara e discreta em segundo plano. Cabe apenas no pálido horror destas páginas diarísticas, o gesto em ordená-las. Em cada um dos onze capítulos, encontramos um título, uma frase retirada do próprio capítulo, que de algum modo aponta para uma proposta de leitura ou síntese dos sonhos, e uma série de epígrafes que vão desde o livro de Job e o evangelho de Lucas, a T. S. Eliot, Hannah Arendt, Franz Kafka, Bertold Brecht, Eugen Kogon, George Orwell, Heinrich Heine e Goethe, aos nazistas Heinrich Himmler, Robert Ley e Hans Frank. Com uma ‹‹vista aguçada›› e de punho manchado, Beradt vai cobrindo os seus pesadelos com os resíduos dos outros, os fragmentos pesados de centenas de sonhos alheios que analisa minuciosamente, e ‹‹fá-lo com intenção, moldando, esclarecendo e turvando aquilo que descreve››, esboçando um horizonte onde, grande parte das vezes, se torna possível encontrar o gatilho original que deflagra as imagens manipuladas durante o sono.
Continuam os sonhos. Um oftalmologista de 45 anos de idade, sonhou em 1934: ‹‹A SA começa a instalar arame farpado nas janelas dos hospitais. Jurei para comigo que nunca admitiria virem colocar o arame farpado deles no meu serviço, mas acabo por deixar que as coisas aconteçam, torno-me uma caricatura do médico, quando eles retiram os vidros e transformam o quarto de hospital num campo de concentração com arame farpado – e ainda assim despedem-me. Mas logo me chamam de volta para tratar o Hitler, porque sou o único no mundo capaz de o fazer: é tal a minha vergonha pelo orgulho que sinto, que começo a chorar››. Por fim, um estudante sonhou: ‹‹Desço as escadas às escondidas e apanho fragmentos do que alguém diz: “Há uma sobrecarga elétrica na casa e isso resultou num incêndio nas escadas que conduzem aos andares de cima.” Lanço um grito no meio da confusão: “Temos de salvar os suspeitos!” As pessoas encolhem os ombros: “Porque é que os suspeitos não hão de arder?››.
Mais uma vez, os sonhos atuam como rótulas, instrumentos que sopram o interior da máquina fascista. No primeiro, encontramos um médico que sonha ser o único capaz de salvar Hitler e, mesmo ante a possibilidade de um contra-golpe tiranicida, não deixa de sentir compaixão, piedade e até alguma comoção ao ponderar a hipótese livre de o salvar. Entre o cérebro por trás do holocausto, o centro desse labirinto interminável do genocídio em massa de milhões de seres humanos, seus semelhantes, e o fundo ainda humanista daqueles que vão morrendo, murchando e emigrando para outros prados sem pavio onde o roçagar do lume não lhes chegue, os que insistem em renegar a diferença reconhecendo Hitler como um dos seus, garantindo-lhe o direito à vida, cabe o abismo. Poderíamos defini-lo com uma série de adjetivos e metáforas, mas poupamo-nos ante a imagem mais justa. Este sonho lança-nos apenas a intuição de uma qualquer ordem superior que se cumpre salvando, um milagre complexo que suspende a loucura para nos adiantar que nem tudo se perdeu. É uma mensagem engarrafada, um aviso deixado à deriva, preparando-nos a vez. Por outro lado, no segundo e último sonho, vem acesa a hipótese das vítimas que anunciam a própria ruína, obedecendo às regras impostas desse tempo, desistindo e caindo dentro da fogueira do termo nazi – Luftmensch -, isto é, ‹‹criaturas do ar, sem raízes (pelo que deveriam ser transformadas em cinzas)›› (George Steiner). A imagem viva e excessivamente luminosa de uma coisa morta. O fogo, a cinza e a morte como extensão da vontade genocida, desorientando o coro noturno dos homens. A dúvida sonhada: a acumulação de sinais e vestígios deixados, viciosos e difusos, que dominam a esfera mais privada e intemporal do ser humano, questionando continuamente em qual das celas dorme a justiça, levando o jovem a hesitar se efetivamente existiria uma resposta assim tão evidente que justificasse a razão pela qual os judeus não haveriam de arder.
Hoje os judeus, amanhã o risco de sermos nós.
Desta coleção de sonhos clandestinos, Charlotte Beradt tornou-se no último comboio disponível para compreendermos as atrocidades devastadoras de uma ditadura fascista. Mas não se trata apenas de um testemunho antigo da ditadura, tanto a quantidade de sonhos como a ‹‹combinação audaciosa de vozes›› e epígrafes apontam para o vislumbre de uma qualquer salvação ante um tribunal que aguarda os seus leitores. A partir do momento em que Hitler chegou ao poder, Beradt tornou-se militante do Partido Comunista alemão. Traduziu e editou textos, entre os quais os de Hannah Arendt e Rosa Luxemburgo. Servem-nos hoje de aviso, pois ‹‹sem colaboradores, um regime totalitário não sobrevive››, vinca Barbara Hahn no posfácio. E ‹‹o fedor permanece›› despercebido mas não assim tão distante das nossas ruas. Bastar-nos-ia o tempo de uma fogueira, o livro de sonhos, o silêncio coletivo para os ouvirmos. No fundo, ‹‹aprender a viver como hóspedes na vida uns dos outros›› (George Steiner). Pois antes de os sabermos por dentro, eram apenas uma ‹‹folha morta semelhante a qualquer folha morta›› (Benjamin Fondane), mas agora que, desfeitos, nos esgotámos à luz da sua força original, e uma vez que quem a acendeu perdeu definitivamente o fôlego, façamos com que esta possa recomeçar a cada nova saliva, ‹‹espumando, / e sustentando ao alto um fruto›› (Paul Celan), convertendo-a na sede selvagem dos eucaliptos, essa praga capaz de secar tudo á sua volta, crescendo, povoando as florestas e embriagando as raízes.”
João Vasco Rodrigues, em artigo de opinião do Jornal i, 09/07/2024
Charlotte Beradt


Sobre o Autor
Charlotte Beradt nasceu em Forst, na Alemanha, em 1907, e faleceu em Nova Iorque em 1986. Foi jornalista, autora e editora de publicações com textos de Rosa Luxemburgo e Paul Levi.
Quando Hitler chegou ao poder, em 1933, Beradt iniciou em segredo uma audaciosa pesquisa: entrevistou cidadãos alemães para coligir os seus sonhos relacionados com as mudanças políticas no país e a difusão da ideologia e do terror nazis. Esse trabalho, que durou até 1939, só veio à luz em 1966, neste livro, em que os sonhos ajudam a «interpretar a estrutura de uma realidade em vias de se transformar em pesadelo».

Sobre o Livro
Título: O Terceiro Reich do Sonho
Autor: Charlotte Beradt
Ano de edição: 06-2024
Editor: VS. Editor
Idioma: Português
Dimensões:134 x 210 x 11 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 166
Preço: 16,20 €

domingo, 27 de outubro de 2024

Ao Domingo Há Música






"Uma pena que ainda hoje lhe dói é que quando o comboio chegou ao Porto tinha adormecido tão profundamente que de nada deu conta ; da estação para casa , quase  uma hora de caminho, revezaram-se  o tio e o primo mais velho a levá-la ao colo.  Mas de manhã,  ao abrir a janela e esperando uma só rua , por certo mais larga do que aquela em que nascera , que assombrosa surpresa quando o panorama de cidade, a ponta , o rio, os lugares , os cargueiros, que lhe explodiram em formas e movimento defronte dos olhos. 
Para ela , e o mesmo aconteceria depois comigo, essa paisagem fixou-se-lhe na retina , é a única de que tem saudade, continua a ser o seu ponto de referência quando quer medir uma alegria ou uma excitação."
J. Rentes de Carvalho, in Ernestina, Quetzal Editores, Outubro de 2009, p 56

 
A cidade do Porto era a capital da minha infância. Continua a fascinar-me  e a encher-me de nostalgia sempre que a ela regresso. Há , por toda a parte, a sensação de uns braços que me apertam em longos  abraços  como se a saudade me recebesse. E toda essa magia do retorno a sinto, neste momento, em que me vejo quase a chegar ao Porto, num grande automóvel cheio de crianças curiosas que anseiam por revisitar a cidade que lhes é pertença.
Era sempre uma aventura desejada qualquer passeio por esta cidade. Foi lá que fui pela primeira vez ao circo, no Coliseu. Que me estreei numa sala de teatro, no velho Sá da Bandeira e me enchi de fantasia ao ver  os primeiros filmes no  Rivoli, no Trindade, no Batalha ou  no Carlos Alberto. E que me enamorei, irremediavelmente, dos acordes de um piano, de um violino  e de uma grande orquestra  na versátil sala do Coliseu.
Devo à cidade do Porto o meu baptismo cultural . Tudo aconteceu nela pela primeira vez. Talvez, por isso, a sinta como minha, passados tantos anos que foram.
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que já escrevi - Memórias, Maio de 2018, p85
Porto – Porto
mergulhadas ao contrário
aguarela na corrente
pelo Douro as cores das casas
a cidade e o seu cenário
as janelas querem gente
como os sonhos querem asas
no reflexo da Ribeira
vão as nuvens pelo chão
nada o Duque no seu seio
os rabelos vão nas vistas
amarrados aos turistas
as gaivotas de permeio
sendo outras são as mesmas
as gaivotas e o seu grito
pelo Douro desce o tempo
nossos olhos ao relento
vão mudando na mudança
no granito do teu peito
bate um rio-coração
doces vagas, tempestade
deste Porto fiz meu porto
a caminho do teu corpo
pelo norte da vontade
no meu sonho livres rotas
(há quem diga que exagero)
troco ouro por gaivotas
por tão pouco há logo quem
diga que é porque te quero
noutro vento a mesma dança
como asas de ninguém
João Gigante-Ferreira

Tudo acontecia quase no fim do Verão. A vindima como que encerrava a época estival. Era um tempo que nos ligava fortemente à terra , num processo telúrico de muitas sensações. Após a recolha da uva, que nos permitira enterrar os pés na terra e sentir nas mãos o peso dos frutos, era a vez do olfacto que se alargava na mistura dos vapores que se soltava no pisar da uva até ao mosto. E o festim das cores, que se harmonizava em gradações várias, concomitante com as diferentes etapas , enchia os meus olhos de criança. Um esplendor que exercitava o meu olhar para a descoberta do belo.
Homens de calças arregaçadas e pés descalços saltavam para o lagar e, num ritmo que fora improvisado num passado longevo, pisavam a uva que se liquidificava conforme o tempo se ia diluindo. Ora em rodas circundantes, que se encaixavam umas nas outras , ora em filas paralelas, acertavam-se de braços entrelaçados como que a repartir um movimento que se exercia dinâmico, cadenciado e assertivo em toda a área do lagar.
Chegava , então, o tempo maior do cântico. O cantar à desgarrada impunha-se como o exercício nobre que os homens cumpriam com um saber que lhes era natural.
Para mim , todo este cerimonial era um espectáculo fascinante.
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que já escrevi - Memórias, Maio de 2018,p 36

sábado, 26 de outubro de 2024

Mais Literatura com Gatos

 
Mais Literatura com Gatos:
My Darling Secotine
por Eugénio Lisboa
 
 
“Não há gatos vulgares”  
Colette
 
“Se formos dignos do seu afecto,
um gato será nosso amigo, mas 
nunca nosso escravo” 
Théophile Gautier
 
 
"A minha crónica publicada no JL de 15 de Dezembro passado, consagrada à “literatura com gatos”, ia dedicada, entre outros, à minha gatinha e companheira, Secotine, ali dada como “felizmente viva e incrivelmente activa”. Quando escrevi a crónica, a bichinha estava, de facto, viva e saudável; quando foi publicada, ela estava já doente, mas em vias de recuperação, embora em tratamento ambulatório, pós-internamento; já depois do dia 1 de Janeiro, teve uma recaída súbita e, apesar de todos os esforços que fizemos para salvá-la, deixou de viver, no dia 9, às 20.00 Hrs, numa clínica veterinária em S. Pedro do Estoril. Foi, para nós, que a amávamos, um verdadeiro terramoto emocional. E foi este que veio alterar, por completo, o tom e o conteúdo desta segunda crónica consagrada aos elegantes felinos, e por mim anunciada no final da anterior.
Pensara falar-vos, longamente, em escritores que amenizavam a solidão do seu ofício, chamando para junto de si, enquanto arranhavam o papel com a caneta ou martelavam o teclado, a companhia do gracioso e peludo amigo. Kingsley Amis, por exemplo, sobretudo conhecido pelo celebérrimo romance Lucky Jim, não só escrevia sempre na presença do seu “Hertfordshire White”, a que dera o nome de Sarah Snow, como “tinha as maiores reservas acerca de pessoas que não tivessem animais domésticos.” Costumava até dizer, com algum acinte: ”Sou suficientemente amante de gatos para que se me torne suspeita uma casa onde não haja gatos. Associo uma pessoa que tenha um gato com alguém mais afável do que as outras pessoas.” Como todo o verdadeiro “cat lover”, não se envergonhava de confessar que conversava assiduamente com o seu bichano. E estava perfeitamente convencido de que a Sarah Snow andava a tentar seriamente aprender inglês. Eu sei que isso é possível, porque a minha Secotine falava fluentemente macedónio, português e inglês, e arranhava umas coisas de espanhol e francês. E posso prová-lo, mas não me darei sequer a esse trabalho, porque considero ultrajante que alguém duvide da minha palavra. Bastaria dizer-vos, a título ilustrativo e não demonstrativo (porque, repito, não desço a fazer demonstrações), que, num dia em que vociferava por todo o lado à procura dos meus óculos, a Secotine veio ter comigo e, numa repetida e ansiosa linguagem de corpo, insistiu comigo para que fosse atrás dela. Impaciente, disse-lhe que não estava com tempo para lhe apaparicar os caprichos, visto que precisava dos óculos. Não desistiu e insistiu no convite para que a seguisse. Desesperado, acabei por fazê-lo, visto que acabava sempre por ceder aos seus pedidos. Fui atrás dela, que se voltava, de vez em quando, para trás, a confirmar que eu a seguia, e acabou por me conduzir a um vaso, no terraço, onde tinha deixado os óculos! Se isto, caro leitor, não quer, para si, dizer nada, desculpe, mas o meu amigo é completamente obtuso!
Tinha também planeado falar de Théophile Gautier e do seu obsessivo amor por este supremo produto da criação, que é o gato. Desmond Morris definiu este escritor como “um fanático amante de gatos”, que “partilhou a sua vida com uma sucessão de gatos invulgares.” Gautier, o contemporâneo de Hugo e de Flaubert, autor de livros célebres, como Fortunio, Mademoiselle Maupin e Le Capitaine Fracasse, dedicou todo um livro – La Ménagerie Intime – ao sedutor felino. Nele nos diz que um dos seus gatos (aliás, gata) era de cores vermelha e branca, se chamava Madame Théophile e tinha o hábito expedito de lhe roubar bocados de comida “no trajecto entre o prato e a boca”.
Teria muitas outras histórias para contar, sem esquecer nunca a muito bizarra e sinistra narrativa da morte do grande romancista Thomas Hardy e do que sucedeu ao seu coração e ao seu gato, que tanto amara nos últimos dias da sua longa vida. Podia fazer tudo isto e falar de outros grandes escritores e de gatos hoje lembrados por lhes terem pertencido. Mas não vou fazê-lo, hoje, por uma razão: desta vez, o escritor sou eu e a gata será a que foi minha e há pouco faleceu – a inesquecível Secotine. Como sou um escritor modesto, não pretendo que ela seja lembrada por me ter pertencido, mas, pelo contrário, aspiro a ser conhecido por lhe ter pertencido a ela.
Este pequeno milagre de vida, de afecto e de graça entrou na nossa vida, aqui no Estoril, no dia 8 de Julho de 2009. Tendo cessado de existir em 9 de Janeiro deste ano de 2011, esteve connosco, exactamente um ano e seis meses. Vinha da Macedónia, recolhida pela minha filha mais velha, que ali esteve alguns anos e no-la deixou, a caminho de Cuba. Era para ficar seis meses, mas ficou para sempre – um “para sempre” estupidamente curto. Quando os deuses nos dão muito, depressa no-lo tiram.
Chegada do aeroporto, investigada a casa, os quartos, as salas, a cozinha, as casas de banho, o terraço e arredores (para ulteriores minúcias e excursões), a Secotine instalou-se e assumiu o comando. Maltratada nas origens, por quadrúpedes, e sempre acarinhada por bípedes, ela tinha uma confiança ilimitada em tudo que se movesse com duas pernas. Da confiança, passava rapidamente a uma amizade aquecida a alta temperatura, que se manifestava por uma desenvoltura que logo nos conquistava. Surgia abruptamente do nada, saltava-nos para o colo e disparava uma saraivada de marradinhas insistentes, na cara, nos braços, no sovaco, aninhando-se depois ao colo, com grande ênfase de proprietária. Tudo na casa lhe servia de poiso – e passava a sê-lo, caso lhe conviesse. Movia-se com uma elegância fácil, quase mozartiana, pelo meio de tudo quanto há de mais frágil e quebrável, sem lhe tocar e sem nada estragar. Era de um belíssimo e sedoso cinzento prateado e movia-se sempre a grande velocidade. Era como se pressentisse que a vida lhe ia ser curta e tivesse que fazer depressa o que tinha a fazer. Ela era a elegância, a beleza, a surpresa, a confiança, a velocidade personificadas. Chamava-lhe a minha neta peluda e sei agora como é duro perder uma neta.
A Secotine detestava, particularmente, ver-me “perder tempo”, concentrado na escrita ou na leitura: quando isso acontecia, vinha, caminhando sorrateiramente, com uma eleganciazinha coquette, e saltava-me para o colo, se lia, ou para cima dos papéis, se escrevia. Dava-me, então, marradinhas sedutoras e perguntava, aliciando-me: “Não achas a minha conversa mais interessante do que isso?” Eu dava-lhe quase sempre razão, porque uma das características da Secotine (ela própria o dizia) era ter sempre razão.
Gostava de se aninhar à janela que dava para a rua, ficando a “ver a banda passar”. Quando a banda era pouca, a Secotine enfadava-se e vinha-se embora. O mundo às vezes era pequeno e chato. Era “petite”, airosa, de uma beleza esquisita e muito viva. Estava sempre a ter ideias, que gostava de partilhar, mas eu, às vezes, não tinha pedalada para tanta criatividade.
Agora fiquei sem ela e gostava de ser realmente um grande escritor, para me tornar no cronista que a Secotine merecia. Como é que se há-de saber da grandeza dela, se o narrador não for, no mínimo, Fernão Lopes? Seja como for, faço o que posso e dedico-lhe, com amor e saudade, as medalhitas de sete sílabas que a seguir se imprimem.
Estivemos com ela até ao fim. Sofria muito e dirigia-nos apelos insistentes, tão insistentes como os com que, na cozinha, costumava pedir-nos “um petisquinho”. Fazíamos-lhe festas para ela perceber que não éramos nós que lhe causávamos as dores. Agradecia com os olhos, mas suplicava que acabássemos com aquilo. Com a morte na alma, fizemos-lhe a vontade: foi o último petisquinho que lhe demos.
 
                                SECOTINE
 
                                   Tu eras a graça, a vida,
                                    o golpe brusco de afecto,
                                    elegância desmedida,
                                    o súbito e dilecto
                                     gesto de felino airoso.
                                     Eras a velocidade
                                     encarnada, o gostoso
                                     ir à nossa intimidade,
                                     sem pedir, sequer, licença:
                                     como se tudo que há no mundo
                                     fosse teu – tua presença
                                     vinha em nós até ao fundo.
                                     Tu eras a graça, a vida,
                                      elegância desmedida. 
Eugénio Lisboa, em artigo publicado na rubrica "Pro memoria", do JL, 2011.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

O novo livro de Eugénio Lisboa


Da Editora Guerra & Paz recebemos o anúncio da publicação do último livro de poemas de Eugénio Lisboa , que nos deixou a 9 de Abril passado. Um livro dedicado aos gatos. Um manual que Eugénio Lisboa conhecia bem e construiu com ternura e amor por essa raça felina de que é testemunha a gatinha Ísis, sua última companheira .



Eugénio Lisboa, ilustrado com fotografias

A Guerra e Paz editores tem a honra de lhe apresentar o último livro de Eugénio Lisboa

Será que existe mesmo uma comunidade secreta que tem no altar um deus, o gato? Uma sociedade secreta que tem por lema «Começar a gostar de gatos é como entrar para a máfia: uma vez dentro, não há como sair»?

Manual Prático de Gatos para Uso Diário e Intenso é o livro que «denuncia» essa comunidade e as suas práticas, tão felinas como poéticas. Sim, Manual Prático de Gatos para Uso Diário e Intenso é um livro de poemas de Eugénio Lisboa, o poeta e ensaísta que nos deixou recentemente. Mas este Manual Prático é sobretudo um acto de pura hagiografia, ou seja, de louvor e veneração à superior sabedoria e personalidade dos gatos.

Eugénio Lisboa, em 31 poemas, canta os gatos tal como o fizeram Leonardo Da Vinci, Charles Dickens ou Jean Cocteau. Mas o poeta não está sozinho e há uma comunidade, nas sombras, a trocar cartas, mensagens, emails, a trocar fotos e mais fotos com Eugénio Lisboa. Com o consentimento do poeta, essas fotografias, agora reproduzidas, fazem deste livro um pequenino museu doméstico, que todos os amantes de gatos vão querer guardar como um tesouro.

Aos poemas de Eugénio Lisboa, escritos pouco antes da sua morte, e às fotografias recolhidas, explicadas e legendadas por Otília Pires Martins, que é hoje a guardiã da Ísis, a gata de Eugénio Lisboa cuja imagem dá capa ao livro e que estes poemas imortalizam, junta-se um magnífico texto do escritor Onésimo Teotónio de Almeida: nele se faz também a pequena história dessa comunidade de humaníssimos amantes de gatos, dos seus emails e das suas fotografias.

Manual Prático de Gatos para Uso Diário e Intenso é, diga-se, a mais terna despedida que um poeta nos podia deixar.

Durante esta pré-venda exclusiva oferecemos outra obra do autor,  «Vamos Ler! Um Cânone para o Leitor Relutante», um vibrante e encantatório convite à leitura.

Veja aqui algumas das páginas do livro.


Navegar é preciso

 

O barco, noite no céu tão bonito
Sorriso solto perdido
Horizonte, madrugada
O riso, o arco, da madrugada 
O porto, nada

Navegar é preciso 
Viver não é preciso 
Navegar é preciso
Viver não é preciso
  
CARMINHO & CAETANO VELOSO , em Os Argonautas, Letra e Música de Caetano Veloso (OFFICIALVIDEO)

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

No centenário de António Ramos Rosa

António Ramos Rosa

António Ramos Rosa - Biografia 
[Faro,17.10.1924 - Lisboa, 23.09. 2013]

"António Ramos Rosa frequentou em Faro os estudos secundários, que não concluiu por motivos de saúde. Trabalhou como empregado de escritório, desenvolvendo simultaneamente o gosto pela leitura dos principais escritores portugueses e estrangeiros, com especial preferência pelos poetas. Em 1945 vai para Lisboa e dois anos depois volta a Faro, tendo integrado as fileiras do M.U.D. Juvenil, onde militou activamente. Regressado a Lisboa, foi professor de Português, Francês e Inglês, ao mesmo tempo que estava empregado numa firma comercial, e começou a fazer traduções para a Europa-América, trabalho que nunca mais abandonaria e no qual veio a atingir notável qualidade.
O continuado interesse pela actividade literária levou-o a relacionar-se com um grupo de escritores que o incentivaram na publicação dos seus poemas e artigos de crítica, tendo colaborado em numerosos jornais e revistas. Com alguns desses escritores, fundou em 1951 a revista Árvore, que veio a ser uma das mais marcantes da década, procurando divulgar os textos dos poetas e prosadores portugueses mais significativos no tempo, bem como os grandes nomes da literatura estrangeira. Co-dirigiu também as revistas Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia.
A crescente importância que a actividade literária foi tomando na sua vida levou-o a certa altura a abandonar o emprego no escritório em que trabalhava, para a ela se dedicar exclusivamente, com todas as consequências que tal decisão acarretava.
A atitude crítica que permanentemente exercitou sobre a sua própria palavra como sobre a palavra alheia faz de A.R.R. um dos mais esclarecidos críticos portugueses contemporâneos, o que se manifesta em inúmeros artigos e recensões sobre poetas portugueses e estrangeiros, bem como na publicação de vários ensaios centrados na temática da poesia. A.R.R. tem, no entanto, o cuidado de separar de uma forma muito nítida a sua actividade de crítico, em que não pode deixar de utilizar critérios e referências racionais, da sua actividade criadora: enquanto poeta faz da ignorância e da radical suspensão de todos os saberes e hábitos adquiridos o único método para a eclosão da sua palavra poética. Na verdade, a procura da palavra justa para dizer as «coisas nuas» e a reflexão sobre a realidade e a possibilidade dessa palavra é, talvez, o único tema desta poesia, na qual é, no entanto, possível assinalar diferentes fases: recortando-se duma problemática neo-realista de solidariedade para com o destino dos homens e do mundo, O Grito Claro (1958) e Viagem Através de Uma Nebulosa (1960) utilizam uma linguagem e uma vivência ainda devedoras dessa estética, combinadas com uma imagética herdada do surrealismo. Mas encontramos já de uma forma incipiente nessas primeiras recolhas algumas das constantes da obra do poeta: um enraizamento pelo corpo na Terra, não numa Terra utópica e futura, mas na materialidade mais originariamente primitiva da natureza; uma libertação, pela palavra mais solitária, de todas as prisões e constrangimentos que a poderiam cercear; uma permanente atenção à materialidade da própria linguagem poética, que a desliga tanto da sua função representativa como da sua função expressiva (pois não se trata já de exprimir um real subjectivo, tão caro aos poetas líricos). Esta particular concepção da Poesia irá ser retomada mais tarde quer pelo grupo «Poesia 61», quer pelos poetas experimentalistas.
Após um decisivo encontro com a poesia de Éluard, A.R.R. abandona definitivamente a retórica e a imagística neo-realista e surrealista, para se concentrar numa palavra solar, pura e rigorosa, podemos dizer mesmo elementar, à medida que a exigência de um retorno à origem se tornará numa das suas obsessões. Exigência que lhe pedirá até para substituir à sua própria voz uma verdadeira voz inicial (título de uma recolha de 1960), memória da criação mais remota, que se ergue de um território onde se indistinguem sujeito e objecto. Como nota Eduardo Lourenço, a poesia de A.R.R. nunca mais abandonará esse porto «anterior a todos os portos». Esta poética do puro início expande-se a todo o espaço e a toda a matéria, através dum erotismo mediado pelo corpo próprio, pelo corpo da mulher, pelo corpo da terra, pelo corpo da palavra. Da apropriação destes espaços através da palavra poética, nunca dada a priori mas conquistada através de um desejo, de um esforço, de uma viagem, nasce uma felicidade exultante e viva que frequentemente nos é transmitida por metáforas de claridade.
O contraponto desta plenitude meridional é a dificuldade com que o poeta se debate ao tomar consciência da sombra que nasce da raíz de toda a realidade e da realidade de toda a palavra. A luta entre a luz e as trevas, que é central em Sobre o Rosto da Terra, vai invadindo gradualmente de negatividade a poesia subsequente, até lhe ameaçar toda a arquitectura em A Pedra Nua (1972), onde a plenitude solar dos primeiros livros é substituída pela inquietante suspeição sobre o poder dessa mesma palavra, num território cada vez mais calcinado, até ao limite dum dizer que perde o fio e se transforma num quase ininteligível balbuciar (Declives, 1980).
A partir de Volante Verde (1986) assistimos no entanto a uma espécie de «reconciliação com as palavras» através duma certa forma de integração da ausência, já não combatida mas incluída como forma estruturante da própria poesia. O poeta encontra então um novo fôlego, através da «enigmática profusão da terra», numa exaltação da natureza que adquire uma feição animista. O universo poético de A.R.R., jogando com um número relativamente restrito de vocábulos e de temas, dá predominância às palavras substantivas e elementares tais como: pedra, água, árvore, cal, mão, muro, e mesmo às formas mais ínfimas e humildes: unha, insecto, pó, cabelo, sopro, espuma, baba do caracol. Estes elementos são retomados e combinados caleidoscopicamente, em ciclos que continuamente se reiniciam. A exploração ontológica e poética vai-se processando em movimentos cada vez mais lentos e subtis, num itinerário em que a densidade do espaço e a substância dos objectos se vai tornando progressivamente mais permeável e transparente. A desmaterialização das coisas e da língua que as diz liga-se intimamente ao modo como o poeta apreende o ser do universo – misto de presença e de ausência, de verdade e não-verdade, de sim e de não (O Não e o Sim é aliás título de uma recolha de 1990). Criando um campo semântico sobre a finíssima linha de demarcação entre a afirmação e a negação, o poeta foge da dicotomia, da disjunção, da determinação, num espaço cada vez mais aberto e ilimitado, que se adequa cada vez melhor à manifestação «do que não tem nome». O poeta, que procura entrar em consonância com esse horizonte do real, torna-se também ele corpo místico e mítico do universo, onde se conciliam por fim todos os contrários.
Poesia de coordenadas eminentemente espaciais, ela tem evoluído ultimamente no sentido de uma mais acentuada articulação discursiva, a par de uma aguda consciência da passagem do Tempo, com as questões que essa consciencialização coloca: «será ainda possível construir sobre a cinza do tempo / a casa da maturidade com as suas constelações brancas?»
A. R. R. recebeu vários prémios de poesia, o primeiro dos quais pela obra Viagem Através de Uma Nebulosa, partilhado ex-aequo com Henrique Segurado. Em 1980, o Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários, pelo livro O Incêndio dos Aspectos; em 1988, o Prémio Pessoa; em 1989, o Prémio APE/CTT, pela recolha Acordes, e, em 1990, o Grande Prémio Internacional de Poesia, no âmbito dos Encontros Internacionais de Poesia de Liège.”
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. V, Lisboa, 1998
Não posso adiar o amor para outro século

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração
António Ramos Rosa, in "Viagem através duma Nebulosa", Lisboa: Edições Ática, 1960; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 42

 
Um caminho de palavras

Sem dizer o fogo — vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso — duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que eu sei já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho.

Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedra, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.
                  
                   Caminho um caminho de palavras
                   (porque me deram o sol)
                   e por esse caminho me ligo ao sol
                   e pelo sol me ligo a mim
                   
                   E porque a noite não tem limites
                   alargo o dia e faço-me dia
                   e faço-me sol porque o sol existe
                  
                   Mas a noite existe
                   e a palavra sabe-o.
António Ramos Rosa ,in "Sobre o Rosto da Terra", Covilhã: Livraria Nacional, col. Pedras Brancas, 1961; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – p. 67
Um Mundo

É um sonho ou talvez só uma pausa
na penumbra. Esta massa obscura
que ela revolve nas águas são estrelas.
Entre aromas e cores, um barco de calcário
prossegue uma viagem imóvel num jardim.
Vejo a brancura entre os astros e os ramos.
Dir-se-ia que o ser respira e se deslumbra
e que tudo ascende sob um sopro silencioso.
Nenhum sentido mas os signos amam-se
e o brilho e o rumor formam um mundo
António Ramos Rosa, in "Acordes", Lisboa: Qu
etzal Editores, 1989 – p. 67

Passagem

É onde escuto agora a própria casa.
Sou eu que escrevo este poema.
Já onde estou agora nada espero.
Ouço o som que vem de estar aqui lembrando
isto que sou agora mesmo esperando.

É onde eu pouso a mão na terra calma
ouvindo quantos anos já vivi,
mas não aqui nem além, agora só
num tempo em que não sou mais que este estar
passando sem passar neste deserto.

É onde agora ninguém me vem chamar
e uma outra luta prossegue imponderável.
O tempo vai chegar mas eu aqui passei
ou algo em mim passou quando o final chegar
deste sem fim que escuto e sou no seu passar.

António Ramos Rosa, in "Voz Inicial", Lisboa: Livraria Moraes, col. Círculo de Poesia, 1960; "Não Posso Adiar o Coração", vol. I da Obra Poética, Lisboa: Plátano Editora, col. Sagitário, 1974