Amazónia
Antes da pátria, eras úmida promessa...
semente primordial
árvore mãe
planta continental
arvoredo, floresta, selva palpitante.
Hoje canto tua estatura
vertical
o mogno gigantesco, seu
colossal diâmetro
canto essa caudalosa
geografia
essa multidão de vidas que
sustentas
canto o itinerário sazonal
da seiva
e essa infinita linfa...
parto de infinitas
criaturas.
Canto teu verde planetário
e no teu imenso respirar,
canto o nosso pão de
oxigênio...
Canto a ti... Amazônia
bosque inquietante da
esperança...
e eis porque denuncio esse machado cruel
sobre teu peito...
essa fruta milenar, dia a
dia devorada.
Antes da grande nação...já eras tu...
a nação primogênita
filha dos filhos da mata.
A infância da pátria foste tu,
sílaba aborígine, idioma tupi
cerâmica, canoa e tacape
ritual, dança e canção.
Foste tu a raiz, sangue
ameríndio
o parto da
nacionalidade.
Hoje canto os povos da floresta
e o desencanto dessa memória esquecida.
Falo de sobreviventes
de tribos desgarradas
de aldeias tristes
de sonhos desmatados
de segredos e tradições pirateadas
das águas lavadas na bateia do mercúrio.
Amazônia....Amazônia...
quem deterá o teu martírio
uma vida tão diversa
num adverso viver...
Falo dos teus hectares de
sangue
da lâmina cruel, da pira
ardente
dessa cartilha de serras,
rifles e archotes
dessa morte plural
na diversidade de aves e
primatas
roedores, felinos e
serpentes.
Falo de uma terra de cepos
de raízes degoladas
de caules retalhados
de castanheiras
preservadas... a morrer de solidão.
Falo da linha negra do fogo
e desse cemitério de troncos
defumados.
Falo da floresta sitiada
por uma legião de máquinas
assassinas
falo de estradas e picadas
clandestinas
de súbitas clareiras
desse assalto
interminável... lento e invisível.
Falo de grileiros,
posseiros, garimpeiros, bandoleiros
e de terras demarcadas sob a
mira das pistolas.
Falo de dragas e crateras
das águas manchadas e dos
rios estropiados.
Falo da vida degradada pelas
pastagens da ambição.
Amazônia...Amazônia...
com que verde vestiremos
nosso mapa
acuados pelo apetite voraz
das motosserras,
por uma fronteira
incinerante que avança insaciável.
Acuados pelo gatilho
mercenário da violência
e pelo estigma oficial da
impunidade.
Passo a passo e esse avizinhar-se do colapso...
quantos fóruns se abrirão para “resolver” essa tragédia!?
Crimes silenciados na cumplicidade regional dos gabinetes...
gritos sem eco nas vozes da omissão...
acenos sem resposta nos protocolos renegados...
e o poder dos maiorais contra tudo o que respira.
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Deixaste ali teu heróico
testemunho
teu seringal sagrado
teu rosto solidário.
Contigo... caiu o tronco
ensangüentado...
Tua alma...teu nome...Chico
Mendes,
sobrevivem em deslumbrante hiléia,
na invisível bandeira das
espécies
e na memória da pátria
agradecida.
Depois chegaste
tu...Dorothy Stang
estrangeira, franzina e
destemida
desafiando víboras e chacais
e defendendo a floresta com
a paz do nazareno.
Em Anapu
ergueram teu calvário
mas hoje
ergo aqui, no jardim humilde da
poesia,
a tua estátua de missionária
imperecível.
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Amazônia... Amazônia...
quantos ainda cairão para
que sobrevivas?
com que vozes cantaremos a
esperança
enlutados pela ausência dos
que ousaram manter suas denúncias?
quem te fará justiça?
quem suspenderá esse cerco
que te aperta lentamente?
como conter teu holocausto
e a agonia silenciosa das
espécies?
E eis porque canto o
desencanto da árvore secular que tomba
e essa sinistra paisagem de
troncos decepados...
E falo da imensa copa baqueada...
seus frutos, seus aromas
remédios e resinas,
seus colares e adereços...
Falo de samambaias e
orquídeas
de cipós e de bromélias
agonizantes.
De garras, patas e
plumagens...
de berços destroçados, de
ninhos mortos
e dessa maternidade em
lágrimas.
Falo do patrimônio ambiental
da pátria
da grilagem descarada
de negociatas e falsos
documentos.
Falo da destruição diária e
sorrateira
de pastagens criminosas
de uma ingrata agricultura
e da natureza usada e
abandonada.
Falo de uma terra arrasada
e de um deserto verde que
cresce...dia a dia.
o mundo te observa e nos
pergunta: por quê???
e todos nos
perguntamos: até quando???
os que irão
nascer perguntarão quem foste tu e por que tanto desamor...
os céus vigiam
teus passos,
rastreiam teus
crimes
e a tua sombra
imensa que avança para o norte...
Sabem de ti o rei
e os seus vassalos...
conhecem teus
látegos de aço
tua tocha
incendiária
teus cúmplices,
tuas vítimas
tuas mãos manchadas com o
sangue da floresta...
Somos os que te acusamos
nessas sementes queimando
nessas pétalas feridas
nesses pássaros sem ninho...
somos os que assistimos,
impotentes, esse indigesto banquete,
tua dieta vegetariana
e a euforia com que brindas
o lucro e o bom negócio
nessa taça transbordante de
cinzas, de sangue e de lágrimas...
Amazônia... Amazônia... sem
lei, sem testemunhas...
e essa oficial improvidência...
Nada que te ampare...
nada...
Talvez um vento reverso
uma chuva perene que apague
essa queimada.
Talvez um decreto impossível
uma lei implacável
a mão de Deus, quem sabe...
a espada da justiça pra
sangrar os que te sangram...
algo que feche essa ferida
algo que estanque essa
agonia.
Quem sabe, o refluxo
imperdoável do teu próprio martírio...
uma malária cruel...
algo que empeste essa ganância...
antes... bem antes
que essa segunda geração de
abutres choque também os seus filhotes.
Curitiba, Abril de 2006
Manoel de Andrade , in " Cantares ", Editora Escrituras, São Paulo, 2007, pp. 97-102
Manoel de Andrade |
O poeta é um visionário . Vê para além de qualquer um e regista o seu olhar em palavras que cantam , sorriem ou choram. Talvez , por isso, alguém tivesse ousado dizer que seriam os melhores legisladores do mundo.
Manoel de Andrade, poeta brasileiro, escreveu este longo e belo poema em 2006. Um poema que canta e chora uma Amazónia que deixou de sorrir às mãos de quem a sufoca, a mutila e incendeia.
A ganância foi sempre o motor que gerou o crime. A hecatombe que dizima esta enorme e magnifica floresta brasileira é ,actualmente, a dor que está exposta aos olhos e coração de todos nós.
Manoel de Andrade sentiu-a e fê-la nossa, através deste comovente poema.