sábado, 31 de dezembro de 2016

É quase meia-noite

 "Coimbra, 31 de Dezembro de 1969 -  É quase meia-noite. Numa inquietação crescente, vou escrevinhando  a consultar  o relógio a cada momento. Quero assistir à passagem do ano. Faltam vinte minutos, faltam quinze, faltam dez... Um agiota não faria melhor se estivesse ao pulso dum agonizante de quem esperasse herdar uma grande fortuna. E acabo por me rir. Farto de saber que nada vai mudar, roído de desilusões, e teimo na estupidez das mais vezes! Simplesmente, não desisto. A razão  argumenta, a experiência ensina, e nos  recônditos  do meu ser nenhuma lição de objectividade encontra eco. Orgulhosos da nossa ciência, e seguros de que dominamos a natureza, zombamos dos nossos avós e dos rituais com que tentavam exorcizar as forças do mal e propiciar a renovação do tempo. Mas, no fundo, continuamos supersticiosos e crédulos como  eles.  A abafar  ruidosamente a emoção a tiros de petardo ou de champanhe , ouvimos bater as doze badaladas na secreta esperança de que elas sejam a meta remissa do passado e o ponto de partida dum futuro redentor. Assim persiste  sob a máscara soberba do civilizado  a humildade do primitivo. A humildade que o mantém vivo nas selvas da ignorância, ao lado do morto que vai sendo nas avenidas da sabedoria..."
Miguel Torga, in Diário XI, Círculo de Leitores, p. 1056

Os dez melhores romances que li

Os dez melhores romances que li
Por Eugénio Lisboa
" Pedem-me que indique os dez melhores  romances que até hoje li. A resposta é evidente que é impossível. Porquê dez? Porque não doze, ou vinte ou cinquenta? Há, neste número, dez, um não sei quê  de arbitrário. Seja como for , entremos no jogo. Suponhamos , por exemplo, que se trata de limites de espaço, de limites de bagagem...
Segundo André Gide, foi Jules Lemaître que lançou a moda destes jogos: " Tendo que passar o resto dos seus dias  numa ilha deserta, quais os vinte livros  que desejaria levar consigo?" Jules Lemaître era menos rigoroso: vinte em vez de dez, e livros, em geral, sem indicação de que devessem ser romances. Romances, limita. Por outro lado, esta escolha reflecte sempre as inclinações pessoais  de cada um. Como dizia Somerset Maugham, a quem também perguntaram pelos seus dez, uma pessoa apaixonada por música tenderá a incluir  livros que tenham que ver com esse mundo (o Doutor Fausto,  de Thomas Mann, por exemplo). Um espanhol ou um francês, segundo Maugham, nunca se lembrariam de incluir o Pride and Prejudice, de Jane Austen que, para um inglês, é provável  que se torne obrigatório.  Por outro lado, a Princesse de Clèves, de Madame de Lafayette, inevitável para um francês , poderá ser esquecida pelo inglês, pelo espanhol ou pelo alemão.  E por ai fora. Quis apenas dar uma ideia, ainda que superficial, das armadilhas que espreitam este tipo de escolhas.
Por outro lado, quando se ama profundamente um autor, a tentação é grande de escolher os livros todos desse autor e esquecer os outros. Porque não? Porquê escolher o Le Rouge et le Noir de Stendhal e deixar de fora La Chartreuse de Parme e o Lucien Leuwen?
Porquê aceitar a convenção  (arbitrária e, se calhar, injusta) de que se não deve seleccionar mais do que um livro de cada autor? Porquê os Karamazov e não Os possessos , o Crime e Castigo ou O Idiota? Quase percebo a tentação em que se deixou cair um crítico inglês, quando lhe perguntaram quais os seis  maiores romances deste século. respondeu, sem hesitar: " Quaisquer seis , desde que sejam todos de Conrad." A mim, quando um dia me perguntaram pelos meus três compositores preferidos, também não hesitei: " Mozart, Mozart e Mozart". Há que ter a coragem das nossas convicções...
Feitas as reservas anteriores, irei dar, não a minha lista de dez, mas duas, três ou quatro listas de dez, todas elas viáveis e duvido que alguma delas especialmente melhor do que as outras. É o meu modo de afirmar, com ênfase, a relatividade destas escolhas:

Primeira Lista:
Le Rouge et Le Noir, Stendhal
Le Cousin Pons, Balzac
Middlemarch, George Eliot
David Copperfield, Charles Dickens
Os Irmãos Karamazov, Dostoievsky
Ana Karenina, Tolstoi
Les Liaisons Dangereuses, Choderlos de Laclos
Nostromo, Joseph Conrad
Os Maias, Eça de Queirós
Jogo da Cabra Cega, José Régio

Segunda Lista
La Chartreuse de Parme, Stendhal
Adolphe, Benjamin Constant
Guerra e Paz, Tolstoi
Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco
As Aventuras de Huckleberry Finn, Mark Twain
À la Recherche du Temps Perdu, Marcel Proust
O Processo , Kafka
O Doutor Fausto, Thomas Mann
Moby Dick, Herman Melville
Le Chaos et La Nuit, Henry de Montherlant

Terceira Lista
Vilette, Charlotte Brontë
Great Expectations, Charles Dickens
Tess of the  D'Urbervilles, Thomas Hardy
Amor de Salvação, Camilo Castelo Branco
A Loucura de Peredonov ( ou O Demónio Mesquinho) , Fiodor Sologub
Dom Casmurro, Machado de Assis
Les Faux Monnayeurs, André Gide
Les Thibault, Roger Martin du Gard
A Confissão Impúdica, Junichiro Tanizaki
Para Sempre, Vergílio Ferreira

Quarta Lista
Wuthering Heights, Emily Brontë
Os Possessos, Dostoievsky
Niels Lyhne, Jens Peter Jacobsen
Madame Bovary, Flaubert
L'Immoraliste, André Gide
Etzel Andergast, Jacob Wasseman
Les Jeunes Filles, Henry de Montherlant
The Heart of the Matter, Graham Greene
Nome de Guerra, Almada Negreiros
Sons and Lovers, D.H. Lawrence

Posto o que, fico perfeitamente inconsolável por causa de todos os nomes e títulos que deixei de fora... os quais me ficam a azedar a alma, sussurando-lhe que são indesculpáveis as exclusões que fiz. Onde ficaram Cervantes, Sterne, Fielding Musil, Svevo, Goncharov, Teixeira Gomes, Guimarães Rosa, Faulkner, Gogol etc.,etc., etc.? Até à náusea... Não me perdoarei nunca, por exemplo, não ter incluído esse notabilissimo romance que é The Sun Also Rises, de Hemingway. E, depois, a palavra "romance" exclui do mundo da ficção as histórias menos longas de Karen Blixen, de Isaac Bashevis Singer, de Irene Lisboa... Mais vale terminar mesmo! De uma vez por todas.
                                                             Londres, Março de 1985"
Eugénio Lisboa, in Portugaliae Monumenta Frivola, Universitária Editora, Lisboa

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Algumas conclusões

"Pour être poète, il faut croire à son génie; pour devenir  artiste , il faut le mettre en doute. L'homme vraiment fort est celui chez qui ceci augmente cela."
André Gide, in Journal - 1909 , Gallimard, France

"I - Linha recta
 A vida é o caminho mais curto entre o caos e a noite.

II - Circunferência
Na perspectiva da duração do universo, todos os homens são equidistantes do frio final. O conjunto dos homens é , pois , uma circunferência cujo centro é um frio."
Eugénio Lisboa, in O Ilimitável Oceano, Edições Quasi, p 67

À sombra da memória

Rio Douro
Rio Douro, Porto


"Chega ao fim, o rio. Vem de longe só para morrer às mãos das vagas. Chega extenuado, o caminho é longo, nem sempre fácil, embora se demore muita vez a contemplar as margens, ora escarpadas, ora em socalcos verdes, entre oiro e carmim. Na foz esperam-no as gaivotas, mas sobre os seus flancos, onde o céu é mais fértil, as garças cinzentas seguem-no de perto – não sei dizer qual destas aves prefere para companhia. O que ele mais ama, sobre isso não tenho dúvidas, são aqueles álamos frios das terras de Sória, onde as suas águas são delgadas e jovens. Os álamos e a música que neles há, quando os anjos lhes acariciam as folhas, que tremem à sua aproximação. É com eles na alma, que se verga por fim o rio às águas salgadas da sua última morada." Eugénio de Andrade, em "À sombra da memória",1993, Edições Quasi
Lisa Gerrard  e  Patrick Cassidy,  em Immortal Memory.
Denez Prigent  e Liza Gerrard, em  An Hini A Garan.
Lisa Gerrard  e  Patrick Cassidy, em I asked for love.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Os Diários de Sylvia Plath

Después de años en que los diarios de la estadounidense Sylvia ­Plath eran inencontrables en castellano, la editorial Alba se ha decidido a publicar la versión íntegra de los mismos, restaurada por Karen V. Kukil. De la primera edición (The Journals of Sylvia Plath, The Dial Press, 1982) fue responsable el marido de la escritora, el poeta Ted Hughes, y la traducción la publicó Alianza en 1996. Era una edición relativamente expurgada, de la que se habían suprimido algunos pasajes y dos de los últimos cuadernos de la autora (escritos entre 1957 y 1959). En el prólogo, Hughes reconocía haber destruido un tercero, el último escrito antes de morir, para evitar que sus hijos pudieran leerlo y también porque “en aquellos días yo consideraba el olvido como un elemento esencial de mi supervivencia”. Sin embargo, poco antes de morir, en 1998, el poeta retiró los sellos de dichos cuadernos depositados, como el resto del legado, en el Archivo Plath del Smith College, institución que tuvo a la escritora como estudiante y después como docente y que adquirió todos sus papeles. De acuerdo a todo ello, la responsable del archivo preparó la edición completa de los diarios (The Unabridged Journals of Sylvia Plath; Anchor, 2007) que ahora comentamos, en la estupenda versión de Elisenda Julibert.
El texto recorre la vida adulta de la escritora, desde los 18 años, cuando es una estudiante de literatura inglesa, hasta seis meses antes de morir. Todos conocemos los hechos más relevantes de su vida (el matrimonio con Ted Hughes, su novela Campana de cristal, los inquietantes poemas de Ariel), pero sobre todo sabemos que murió de una forma dramática. Todas las muertes lo son, pero apoyar la cabeza en el horno de la cocina abriendo la espita del gas con 30 años y dejando a dos hijos pequeños en la casa es algo que conmueve a cualquiera. No hemos dejado de pensar en lo que pudo ocurrir para que una mujer tan joven, intelectualmente brillante y bellísima tomara aquella decisión. El suicidio nos atrae como la llama de un hogar porque apunta a situaciones anímicamente insoportables. Y este es un interés implícito en los diarios de Plath: ahí tenemos la oportunidad de leer y comprender el proceso interior que la condujo a la muerte. Lo primero que me ha sorprendido esta vez es su inteligencia abrumadora, de la que ella es consciente muy pronto, pero que no sabe cómo conjugar con sus otras aspiraciones y necesidades (por ejemplo, con el sexo y su fuerte necesidad de un hombre junto a ella). Es una mujer formada en los años cincuenta, los años del new deal americano, de muchachas con vestidos vaporosos y collares de perlas que sueñan con niños sonrosados y pastel de cerezas. Piensan en casarse y, solo por ello, ser felices a la nueva manera propuesta por Roosevelt para luchar contra los efectos de la Gran Depresión. Ella quiere eso ansiosamente, pero también quiere escribir y publicar y ser reconocida como escritora. Su cabeza es un estilete que muy pronto comprende los inmensos intersticios que se abren en sus sueños. “¿Por qué diablos se nos acostumbra de pequeños a un mundo de color de rosa si no es así?”, se pregunta ya en las primeras páginas de su diario. Una lectura apasionante si estamos dispuestos a zambullirnos en la vida mental de una mujer con un gran talento introspectivo.
El diario tiene varios puntos de inflexión: el primero, cuando sufre un tratamiento de electrochoque después de su primer intento de suicidio. Solo tiene 19 años y aquello marca su escritura. Se vuelve más grave y aparece por primera vez la devastación interior con la que convive. El segundo, cuando conoce a su marido y su vida cambia por completo (“dijo mi nombre, Sylvia, y de un soplo barrió el desierto que ocultan mis ojos”). El tercero, cuando descubre a su apuesto marido en el campus del Smith College (llevan dos años casados) coqueteando, entusiasmado, con una estudiante, y su frágil mundo se viene abajo. Unas páginas extraordinarias (a partir de la 526), implacables: “Aquí termina mi vida”. Terminaría, en efecto, tres años después, con el intento desesperado de formar una familia. El cuarto punto de inflexión tiene que ver con el durísimo psicoanálisis que emprende de la relación con su madre. Ahí Sylvia Plath muestra toda la tristeza facetada de su vida. Demasiados conflictos para una persona de su sensibilidad. Tenía que romperse. Su diario muestra claramente el conflicto de una mujer que desea vivir una vida amorosa plena y al tiempo centrarse en su carrera como escritora. Su poderosa libido sexual, sobre la que ­Plath escribe hasta que se casa, la lleva a pensar que es un aspecto muy delicado en una joven tan atractiva como ella: puede contribuir a su triunfo o a su fracaso. Su entrega a los hombres será su baza más poderosa o su peor defecto. “En 10 años lo sabremos”, escribe. “O seré dama, o seré tigre”. No fue ni una cosa ni otra, Sylvia Plath fue una leona que luchó hasta donde pudo por sus sueños, por una vida perfecta." Anna Caballé, Babelia, El País, 26 Dezembro 2016

Diarios completos. Sylvia Plath. Traducción: Elisenda ­Julibert Edición española de Juan A. Montiel Alba, 2016. 848 páginas. 29,50 euros

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Ler

"19 décembre (1920). - J'ai fait un grand pas le jour où je me suis enfin rendu compte qu'il ne s'agit pas tant de lire beaucoup de livres, mais de lire bien, de lire intelligemment sans s'inquiéter  du nombre des volumes parcourus. Il faut être le maître de ses livres, les posséder, faire en sorte qu'ils  n'aient plus de secrets pour vous. Multum legere, non multa."
Julien Green, in  " On est si sérieux quand on a 19 ans, Journal  1919-1924",  Fayard, France, p.44

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Errar é humano

Ler e falar
Por Ferreira Gullar
28/02/2016, 02h03
"O facto de que, nas provas do Enem* ( Exame Nacional de Ensino Médio), é cada vez menor as referências à literatura brasileira –o mesmo ocorrendo nos exames de vestibulares– causou preocupação nos membros da Academia Brasileira de Letras que, em face disso, decidiu manifestar-se sobre o assunto.
Essa questão foi trazida à ABL, no final do ano passado, por Arnaldo Niskier, que havia representado a instituição numa reunião promovida na Comissão de Educação da Câmara Federal pela deputada Maria do Rosário, do PT do Rio Grande do Sul. Ela realizou uma audiência pública para debater a situação da leitura e do ensino da literatura particularmente no ensino médio. A constatação lamentável é que, se não se estimula a leitura da literatura e seu ensino, não há razão para que a matéria faça parte dos exames e das provas.
A iniciativa da deputada em trazer à discussão esse facto merece o apoio da intelectualidade e dos cidadãos conscientes da importância da literatura para a vida nacional. Não obstante, nem todos têm essa compreensão e há mesmo, em certos sectores, a tendência a ver o ensino da literatura como um resto do elitismo que deve ser eliminado da formação dos jovens.
Se a minha observação for procedente, a ausência da literatura na formação da nossa juventude seria parte de um fenómeno mais amplo, que afecta outros sectores da sociedade brasileira e que tem raízes mais profundas do que parece à primeira vista. Para nos atermos ao âmbito literário e do ensino, lembro da tendência entre filólogos e gramáticos de considerar que não há erros no uso da língua, mas apenas modos diversos de usá-la conforme a classe social de quem a usa. Ou seja, há a língua culta, falada pelos que têm cultura, e a língua do povo inculto, que não tem acesso à educação.
A constatação, até certo ponto, é correcta, mas deduzir dela a conclusão de que tanto faz dizer "nós vamos" quanto "nós vai" é um equívoco que contraria a natureza da linguagem. Falar correctamente não é uma manifestação elitista e, sim, o resultado da necessidade humana de se expressar com coerência e clareza. Não sou linguista nem muito menos sei (alguém sabe?) como se formaram os idiomas, mas tenho certeza de que não se trata da invenção de um sujeito erudito e presunçoso que decidiu inventar as concordâncias entre sujeito e verbo, adjectivo e substantivo. Na verdade, fico fascinado ao constatar, já nas primeiras manifestações literárias, a concordância e a coerência entre os elementos da linguagem.
Como tampouco creio que os idiomas foram criados por Deus, contento-me em admitir que eles expressam, tanto quanto possível, a lógica que descobrimos no mundo e que nos ajuda a reinventá-lo. Pode ser até que a lógica da linguagem não seja a mesma do mundo – cuja complexidade excede à nossa compreensão–, mas, como nos ensina o exemplo da Torre de Babel, um idioma sem normas torna inviável o entendimento e, consequentemente, o convívio humano.
Claro que, por felicidade, estamos longe disso. O que importa aqui é afirmar que falar e escrever correctamente não são snobismos, mas necessidades da linguagem humana.
Certamente, há que distinguir a linguagem falada da escrita. A fala coloquial, pelas circunstâncias em que se exerce, com frequência viola a correcção da linguagem escrita. Tampouco teríamos que exigir, mesmo desta, um rigor sem concessões. Errar é humano e, modéstia à parte, citando a mim mesmo, cabe lembrar que "a crase não foi feita para humilhar ninguém".
Em suma, ninguém deve ser punido por errar na concordância vocabular. Tampouco é correcto subestimar o homem do povo que desconhece as regras gramaticais e, por isso mesmo, fala errado.
O que, porém, não se pode aceitar é que linguistas e gramáticos afirmem que não se deve exigir que se fale e escreva correctamente, quando eles mesmos falam e escrevem conforme as regras gramaticais.” Ferreira Gullar, em Crónica publicada na Folha de S. Paulo
*"O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é uma prova realizada pelo  Ministério da Educação do Brasil, criada em 1998. É utilizada para avaliar a qualidade do ensino médio no país. Seu resultado serve para acesso ao ensino superior em universidades públicas brasileiras, através do Sistema de Selecção Unificada (SiSU), assim como em algumas universidades no exterior."

domingo, 25 de dezembro de 2016

No Natal Há Música

Quando te lembrares de mim, virei como se não tivesse partido. Ver-me -ás no sorriso das crianças, nas gotas que reluzem nos vidros da janela, nos sons que sobram do silêncio da noite,  na névoa que  se desprende dos campos,  no gesto que te abraça pela manhã, nas palavras caladas que se balbuciam. 
Estarei aí. Como sempre no lugar que tens para mim, mesmo que Natal seja apenas um dia e a  saudade do amor  a celebrar.

Diana Ross, Placido Domingo & Jose Carreras  num concerto de Natal , em Viena,  Austria 1992

sábado, 24 de dezembro de 2016

Noite da Natal

Uma linda versão da canção  O Holy Night.
Boas Festas para todos nós.

O Natal era uma boa festa

" Contemplar , na Noite de Natal, o presépio armado ora sobre a grande cómoda, ora sobre o canapé já com fundo de pau, era para mim um gosto cuja intensidade não poderiam os outros compreender. Chegava, sentado no chão sobre os calcanhares, chegava a imaginar-me transformado numa daquelas figurinhas de barro, e ver-me descer aqueles pequenos grandes montes cobertos de musgo, atravessar aquelas sombrias florestas representadas por galhos de arbustos, vir chegando à cabana onde Nossa Senhora e S. José, extraordinariamente vivos  a meus olhos, se curvavam embevecidos para Jesus recém-nascido. À porta, com os seus presentes ao lado, camponesas e pastores ajoelhados comungavam na adoração.  Outros bailavam no pequeno terreiro, entre músicos bonacheirões e fantasias. Os três Reis Magos, lá longe, mal saíam ainda do seu Castelo, a Estrela que os guiava estava pendurada sobre o sagrado curral, pela encosta abaixo havia casinhas de papelão e tocos de vela cujas chamazinhas tremeluziam... Que festa! Nunca houvera, nunca mais poderia haver outra assim. Que bem pago me sentia das canseiras que tudo aquilo pudera custar-me, aliás já entremeadas de belos sonhos em que entrevia este mundo maravilhoso! Mas que digo?! Levantado ele, já de modo nenhum acreditava que esse mundo maravilhoso pudesse haver saído das nossas mãos...
O Natal era , de facto, uma boa festa  na nossa casa. Sentia-se um íntimo aconchego na grande mesa oval com velas acesas, porque  ainda não havia luz eléctrica, e reunida toda a costumada companhia daquela Santa Noite." Vinha o tio Manuel, mouco perdido, com a sua cabecinha rapada e o seu nariz de judeu, repetindo sempre as suas histórias de eleições. Vinha o meu tio e padrinho com nossos primos . A Maria do Avô já viera de tarde ( era a cozinheira do avô, muito nossa estimada) para ajudar a Piedade nos trabalhos da cozinha. O avô  também vinha, está claro,  e outra gente da família, e era bom pensar que todos voltariam no dia seguinte. E depois no Ano Novo. E depois  nos Reis, quando já estivessem ajoelhados diante da cabana..."
José Régio, in Confissão dum homem religioso, INCM, pp.42-43