quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Um país de espera e promessa


Lagos II
I
Lagos onde reinventei o mundo num verão ido
Lagos onde encontrei
Uma nova forma do visível sem memória
Clara como a cal concreta como a cal
Lagos onde aprendi a viver rente
Ao instante mais nítido e recente 

Lagos que digo como passado agora
Como verão ido absurdamente ausente
Quase estranho a mim e nunca tido
II
Foi um país que eu encontrei de frente
Desde sempre esperado e prometido
Um puro dom total de ter nascido
E o sol reinava em Lagos transparente 

III
Lagos lição de lucidez e liso
Onde estar vivo se torna mais completo
-Como pode meu ser distraído
De sua luz de prumo e de projecto?

IV 
Ou poderemos Abril  ter perdido 
O dia inicial inteiro e limpo
Que habitou nosso tempo mais concreto?

Será que vamos paralelamente
Relembrar e chorar como um verão ido
O país linear e transparente

E sua luz de prumo e de projecto?
                                       1975
Sophia de Mello Breyner Andresen, in " O Nome das Coisas", 1977, Editorial Caminho

Nas Artes Poéticas I, II, III, IV e V, sínteses meditativas sobre a própria Arte Poética,  Sophia Mello Breyner Andresen, através de uma incessante busca, foi tecendo e desvendando o seu próprio ser poético  que se revelou com genialidade e de forma universal numa extensa produção lírica que se coloca no patamar da melhor poesia de sempre.
Na  Arte Poética I , Sophia traça "*as linhas fulcrais do seu “estar poético” que respira a “aliança das coisas”, ou seja, a aliança conducente à construção de um “reino”, que o sujeito lírico procura e encontra, e que considera extensivo à procura e conquista de cada um de nós, no agora da passagem desta vida – “o reino que com paixão encontro, reúno e edifico ; o reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece” - que se opõe ao “ mundo onde a aliança é quebrada".
A cidade de Lagos é o ponto de partida, na Arte Poética I, para a meditação sobre a limpidez, o rigor, a realização, a vivência e a beleza poética - não estética-, a da poesia.
A cidade de Lagos é também espaço de nitidez e brancura, nostalgia, identificação, de um projecto poético individual e colectivo – “acorda em mim a nostalgia de um projecto/ racional, limpo e poético” . Lagos é ainda símbolo de aprendizagem da vida próxima do concreto, do quotidiano, bem como símbolo de um país de espera e promessa, o espaço do dom de nascer e conhecer a luz"


Arte  Poética I
«Em Lagos em Agosto o sol cai a direito e há sítios onde até o chão é caiado. O sol é pesado e a luz leve. Caminho no passeio rente ao muro mas não caibo na sombra. A sombra é uma fita estreita.
Mergulho a mão na sombra como se a mergulhasse na água.
A loja dos barros fica numa pequena rua do outro lado da praça. Fica depois da taberna fresca e da oficina do ferreiro.
Entro na loja dos barros. A mulher que os vende é pequena e velha, vestida de preto. Está em frente de mim rodeada de ânforas. A direita e à esquerda o chão e as prateleiras estão cobertos de louças alinhadas, empilhadas e amontoadas: pratos, bilhas, tigelas, ânforas. Há duas espécies de barro: barro cor-de-rosa-pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos imemoriais os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que através dos séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de Creta. Olho as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte deste tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor.
Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar.
A beleza da ânfora de barro pálido é tão evidente, tão certa que não pode ser descrita. Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade da qual ela não pode ser separada. Não falo de uma beleza estética mas sim de uma beleza poética.
Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação.
Olho para a ânfora na pequena loja dos barros. Aqui paira uma doce penumbra. Lá fora está o sol. A ânfora estabelece uma aliança entre mim e o sol.
Olho para a ânfora igual a todas as outras ânforas, a ânfora inumeravelmente repetida mas que nenhuma repetição pode aviltar porque nela existe um princípio incorruptível.
Porém, lá fora na rua, sob o peso do mesmo sol, outras coisas me são oferecidas. Coisas
diferentes. Não têm nada de comum nem comigo nem com o sol. Vêm de um mundo onde a aliança foi quebrada. Mundo que não está religado nem ao sol nem à lua, nem a Ísis, nem a Deméter, nem aos astros, nem ao eterno. Mundo que pode ser um habitat mas não é um reino.
O reino agora é só aquele que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece.
Este é o reino que buscamos nas praias de mar verde, no azul suspenso da noite, na pureza da cal, na pequena pedra polida, no perfume do orégão, Semelhante ao corpo de Orfeu dilacerado pelas fúrias  este reino está dividido. Nós procuramos reuni-lo, procuramos a sua unidade, vamos de coisa em coisa.
É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa. Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro, reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.» Sophia Mello Breyner Andresen, in "Obra Poética III" Ed. Caminho

Lagos permanecerá no horizonte de Sophia , ocupando um lugar forte e privilegiado no seu sentir poético , na sua escrita. Uma cidade que já não é como ela a conheceu. Uma cidade que também apresenta alguma erosão provocada  pela  transformação arquitectónica  que varreu quase todo o Algarve.
Eis o Mercado, que já sofreu obras de  restauro, brilhante e vivo de gente,  lapidarmente descrito por  Sophia de Mello Breyner Andresen em :

Caminho da Manhã
“Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco de cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada. 
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível. “
Sophia de Mello Breyner Andresen, in” Livro Sexto”, Obra Poética I, Círculo de Leitores, 1992
*in Sophia de Mello Breyner Andresen:Transmutação da palavra em Poesia, Artes Poéticas, Aedos e Cidades" por Helena S. C. Langrouva em  Colóquio Internacional III, Lisboa

1 comentário:

  1. A Poesia e as Cidades, essa simbiose perfeita, ou quase perfeita.
    De um modo geral, os poetas preferem as cidades, preferem esconder um pouco da sua poética pelas ruelas, pelas ruas de uma cidade, da cidade que mais amam, da cidade-província que os acolhe e tempera a sua ousadia, a ousadia da palavra, dessa arma a que a Poesia deu uso e símbolo.
    Neste caso, Sofia, a Mulher-Poeta, e Lagos, terra cheia de História, cidade sulina, solar, no sul da Europa, daquela Europa que se volta toda ela para o AtLântico, em direcção às Américas.

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