por Diogo Vaz Pinto
"Uma nova
antologia poética do período surrealista de Paul Éluard, com selecção e
tradução de Regina Guimarães, obriga-nos a retomar o confronto com o regime
prisional em que vivemos e a dieta de realidade a que nos submetem por razões
de saúde.
Os sonhos
hão-de ter consequências, tal como a imaginação e o desejo. De outro modo, e de
tanto rebaixar a vida, o homem já não acede às fontes, nem lhes escuta o
murmúrio como uma mágoa sopesada pelo que há de mais fundo em si, essa água
capaz de reflectir na perfeição qualquer outro rosto. A transformação ou
mudança ocorre porque o homem passa a relacionar-se intimamente com uma
projecção qualquer, e a realidade sente-se intimada a comparecer a esse
encontro. Como nos explica Octavio Paz, o surrealismo não partiu de uma teoria
da realidade ou sequer de uma doutrina da liberdade, mas de um exercício
concreto e livre, ou seja, ousou pôr em acção a livre disposição do homem num
corpo a corpo com o real. “Desde o princípio a concepção surrealista não
distingue entre conhecimento poético da realidade e a sua transformação:
conhecer é um acto que transforma aquilo que se conhece.” Neste quadro, a
actividade poética volta a ser uma operação mágica, adianta o poeta e ensaísta.
“Quando as pessoas começam a imaginar um mundo diferente, é natural que o mundo
mude”, foi a frase destacada de Luís Trindade, aquela que se lia no título de
uma entrevista que o professor de História Contemporânea na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa concedeu recentemente ao “Público” e que foi amplamente
divulgada. As pessoas dizem estas coisas e depois parece que se desentendem com
elas, e não alcançam a profundidade do seu sentido. E isto porque a imoralidade
crucial da época que vivemos se prende com a forma como esta atinge a soberania
das nossas noções espirituais.
Este
admirável mundo novo finge-se alheado em todos os aspectos das antigas
tradições do conhecimento, entregue a um acelerado movimento em direcção a uma
barbárie sem paralelo na história, pois ao invés de caracterizar um estado anterior
à civilização é já o outro extremo, um mundo sintetizado pela técnica, essa
utopia que parece, no limite, prescindir da própria humanidade. Em certo
sentido, parece que cessaram “as aventuras do rosto humano”, e a expressão que
resta é meramente confusa, efusiva num segundo para no seguinte se quebrar como
uma máscara e revelar-se um absoluto desamparo. Sucedem-se os “gritos sem ecos,
sinais de morte, tempos fora de memória”. A vida parece incapaz de registo;
vivemos existências devolutas, devorando reflexos informes, deixando à nossa
passagem “carcaças de conhecimentos, carcaças de asnos”. As esperanças de
outrora parecem abolidas, o próprio destino e a noção de uma relação livre
entre os homens foi-se vendo coberta de desprezo… “Os astros estão na água a
beleza já não tem sombras”. O tempo imprime-se hoje de forma totalitária tanto
mais quanto parece algo anárquico, desprovido de nexo. Por isso, a única
sensação de se tirar algum proveito dos dias vem desses momentos que parecem
desalojados, como que fora do tempo.
Comparecem
enquanto elementos contundentes deste diagnóstico alguns versos de Paul Éluard,
poeta que viu como os rostos podiam reduzir-se a “migalhas de anseios”, num
regime em que está aberta “a caça aos enforcados a pesca aos afogados”. Parece
também sinalizar a dificuldade que há em levar-se o que reconhecemos como
verdade a sério, vendo passar “a verdade com o seu interminável cortejo/
de evidências pueris”. Destaque-se o título bastante longo de um dos seus
poemas: “Boas e más-línguas afirmam que o mal está bem feito. Assim, o falso, o
negativo obrigam a odiar-se”. A sua obra está cheia de avisos, desses que
persistem mesmo depois do desastre, tornando-se ruínas aflitivas: “Cólera mel a
definhar”, é um deles. Esse entendimento de como o pior na raiva é a perda do
encanto pelas coisas. E estes: “Fechámos as portadas/ As árvores não mais se
elevarão/ Não mais se vasculhará a terra/ Não seremos desenterrados// Já não há
profundezas/ Nem superfícies.”
E voltamos a
ele graças a uma nova antologia da sua obra, a qual se cinge ao período entre
1916-1936, ou seja, antes de o poeta francês que esteve entre os iniciadores do
surrealismo se ter afastado deste movimento. Com selecção e tradução de Regina
Guimarães, “O Homem Inacabado” traz-nos um conjunto de poemas impregnados ainda
de uma mensagem capaz de livrar-se do efeito de defunção com que hoje se encara
o surrealismo, como se essa aventura estivesse encerrada. “Estamos reunidos
para além do passado”, parecem gritar estes poemas, recusando-se a ser
alvo do culto amorfo que se ergue em torno dos digníssimos cadáveres
históricos.
Mas leia-se o
resto do poema que conclui com esse verso e que se chama “Minha Vivente: “Ainda
não embandeirei suficientemente/ O ver e o azul perderam a cabeça/ Toda a paisagem
é ofuscante/ Entre os teus dois braços mundo sem cor/ O teu corpo toma a forma
das chamas// A mexer na terra/ E no seu cheiro de rosa extinta/ Mãos corajosas
eu trabalho/ Para uma noite que não é a última/ Mas seguramente a primeira sem
terrores/ Sem ignorância sem cansaço// Uma noite parecida com um dia sem
trabalho/ E sem tormentos e sem asco/ Toda uma vida toda a vida/ Ouve-me bem/
As tuas mãos estão tão quentes uma como a outra/ És como a natureza/ Sem
amanhã// Estamos reunidos para além do passado.”
Ainda que se
deseje encarar o surrealismo como uma fogueira hoje extinta, muitos continuaram
a mergulhar as mãos nas suas cinzas a sentir como estas nos aquecem os ossos e
acendem a nossa imaginação, para usar a imagem de Octavio Paz. O facto é que o surrealismo
foi o último movimento que, tendo a poesia e a literatura como formas de se
manifestar, se apresentou como uma revolução e uma ruptura. E Paz admite que
terá sido mesmo a última grande ruptura nessa história de sucessivas rupturas
que caracteriza a poesia moderna. “Tudo o que veio depois não foram mais que
combinações e recriações”, adianta. Além disso, mais do que uma inflexão ou uma
nova atitude artística, este veio a reconhecer-se como uma tradição. “Nos
primeiros tempos esta noção quase rompeu de forma inadvertida, mas André Breton
não tardou a dar-se conta dela e assumiu-a com valerosa lucidez”, lembra Paz.
Este poeta
mexicano que contactou com os membros do grupo original em Paris diz ter-se
apercebido do que unia aquele movimento às seitas gnósticas dos primeiros
séculos, ao hermetismo neoplatónico do Renascimento e à intricada e poderosa
rede subterrânea do iluminismo que atravessa os séculos XVIII e XIX. No
entender de Paz, isto explica essa dupla vertente do surrealismo: “foi uma
revolução, algo que começa, e uma tradição, algo que regressa”. E é também ele
que caracteriza esses “graves críticos” que hoje se debruçam sobre aquele
advento espantoso e, comportando-se como coveiros profissionais, se apressam a
enterrá-lo e a garantir que se trata de um movimento do passado. “A sua acta de
defunção havia sido estendida, não sem prazer, pelos notários do espírito. Para
descanso de todos, o surrealismo dormia já o sonho eterno de outras escolas de
princípios do século: futurismo, cubismo, imaginismo, dadaísmo, ultraísmo,
etcétera. Bastava, pois que o historiador da literatura pronunciasse o seu
pequeno eleogio fúnebre para que, já tranquilos, voltássemos às nossas
ocupações diárias. O maravilhoso quotidiano estava morto. Na realidade, nunca
tinha existido. Apenas existia o quotidiano: a moral do trabalho, o ‘ganharás o
pão com o suor do teu rosto’ o mundo sólido do humanismo clássico e da
prodigiosa ciência atómica.”
Acontece que
a natureza humana permanece insatisfeita. O homem é ainda essa criação
inacabada, e nele persistem a imaginação e o desejo, talvez mais degradados e
até num grau mais incipiente, afastado da sua natureza agressiva, dessa
arrogância capaz de se mostrar de tal modo selvagem que dissuada qualquer
tentativa de o capturar e vergar. Talvez nunca tenhamos estado tão alinhados
com a religião do conformismo, mas o certo é que vão surgindo sinais de um
renovado desejo de destruir tudo, de dar origem a uma rebelião total que faça
tábua rasa da civilização racionalista que faz do homem apenas uma peça num
feixe de estruturas que humilham qualquer perspectiva de uma existência
aventurosa. Tem ficado claro, por vezes da forma mais grotesca nas
manifestações populares, que a casa construída pela civilização ocidental
começa a parecer-se cada vez mais com uma prisão, um labirinto sangrento ou um
matador colectivo, isto nas palavras de Octavio Paz. “A vida recusa-se/ Os
olhos ninguém os pode vazar/ Beber seu brilho nem suas lágrimas/ O sangue acima
deles só para si triunfa/ Intratável desmedida/ Inútil/ Esta saúde edifica uma
prisão”, isto nas palavras de Éluard. E não é estranho, portanto, que se
recusem as evidências científicas, que a própria noção de realidade tenha
entrado em crise, e que cada vez ganhe maior expressão o número desses que
simplesmente anseiam por uma saída. Se uma não for encontrada, haverá motins,
conflitos civis despontando por disputas aparentemente espúrias, mas que
revelam, no fundo, uma incapacidade de coincidir com um mundo onde as
necessidades do espírito têm sido amesquinhadas e negadas. E o certo é que o
“cadáver” do surrealismo continua a lutar contra este imenso caixão onde fomos
todos enterrados vivos. A sua insurreição foi desde sempre contra um certo
“realismo” cada vez mais estreito e intolerável que a nossa sociedade nos
impõe. Assim, como vinca Octavio Paz, “ao mundo de robots da sociedade
contemporânea, o surrealismo opõe os fantasmas do desejo, que se mostram
dispostos sempre a encarnar num rosto de mulher”.
E é aqui que
entra a poesia de Éluard, especificamente aquela que escreveu enquanto se
manteve fiel a essa aspiração de transformar a realidade, estando dedicada,
segundo a tradutora, “às facetas irregulares do pensamento amoroso, e
desdobrada em descrições das múltiplas roupagens do desejo”. Anteriormente,
António Ramos Rosa, também seu tradutor, dizia-nos que esta é uma poesia em voz
baixa, um murmúrio apaixonado e veemente, uma poesia interior do sonho e do
desejo, que o poeta mistura livremente ao espaço do mundo real. “Nenhum outro
poeta nos dá tão luminosamente a impressão de jamais sair do seu coração”,
asseverava. Por sua vez, o crítico Jean Tortel fala na inspiração privilegiada
de Éluard, que fez dele “o mais feiticeiro nos acasos, o mais singular na
evidência”, acrescentando: “Ele canta no efémero para aí eternizar a sua voz.
Ele fala sem ter nada que dizer e só diz o que quer dizer. É a grande voz
branca deste século.”
De um lado
temos a ideia de utilidade, a qual, segundo explica Paz, não é mais que a
degradação moderna da noção de bem, do outro lado temos o amor. E Éluard
bateu-se por essa forma de recusa, o amor como resolução e saída. “Só tenho
vontade de te amar/ Uma tempestade enche o vale/ Um peixe enche o rio/ Fiz-te à
medida da minha solidão./ O mundo inteiro para nos escondermos/ Dias e noites
para nos compreendermos/ Para já nada ver nos teus olhos/ Além do que penso de
ti/ E dum mundo à tua imagem/ E dos dias e das noites pautadas pelas tuas
pálpebras.” O elo entre os amantes renova assim um pacto com uma outra ideia
das forças que deviam presidir a construção da realidade em comum. Por isso o
poeta escreve: “E o teu amor parece-se com o meu desejo perdido”.
Num mundo em
que a nossa ideia de realidade está cada vez mais impregnada pela noção de
utilidade, em que os entes e os objectos que o constituem se arrumam em
categorias tão ridículas, em que o progresso nos leva a encarar o próprio mundo
como um vasto utensílio, e nada escapa a esta relação – nem a natureza, nem os
homens, nem a própria mulher –, tudo existe em função de algo que acaba por ser
alheio à maioria de nós, e, por essa razão, as instituições da nossa sociedade,
com o perverso regime burocrático através do qual se reforçam e nos esmagam,
parecem-se com hospícios, nos quais todos nós vamos sendo admitidos e
submetidos ao programa de requalificação enquanto instrumentos ao serviço de um
mundo que foi convertido “numa gigantesca máquina que gira no vazio,
alimentando-se sem cessar dos seus detritos” (Octavio Paz, uma vez mais). Nisto,
o que o poeta enquanto espírito que salvaguarda a sua inocência, a sua
capacidade de espanto, de horror, que não se habitua aos mecanismos da
perversidade por mais que estes tenham impregnado a própria noção de realidade,
o que o poeta nos diz é algo deste teor: “Constatou-se que se refugiaram nos
ramos nus duma cortesia desesperada”. Até que os homens sejam degradados na sua
condição e passem a actuar como um vírus, resta-lhes a fragilidade dos seres
isolados, dos sacrificados, daqueles que se submetem à ausência de propósito e
até a uma “morte sem consequência”. Ao menos isso: no fim, a morte poderia ao
menos ser um acto de disposição singular e afirmante, mas, por agora, é apenas
mais outro sintoma dessa abdicação geral. Era, de resto, esse o título do livro
que Éluard publicou em 1924: “Morrer de não morrer”, e continha uma preciosa
dedicatória: “Morro…/ Para simplificar tudo/ dedico este livro/ a André
Breton”. É certamente uma das mais espantosas dedicatórias que conhecemos,
desde logo pelo sinal de entrega, de confiança esplendente no juízo de um
outro. É contra os gestos que se detêm antes de tempo, contra essa hipocrisia
que tomou conta de tudo, que o poeta se submete a um auto-exame rigoroso: “De
tudo o que disse de mim o que é que resta/ Guardei falsos tesouros em armários
vazios/ Um navio inútil junta a minha infância ao meu tédio/ Os meus jogos ao
cansaço”… E mostra como o impulso da crítica deve começar por si mesmo, e só
então se expande ao redor: “Não se pensa na ignorância/ E a ignorância reina/
Sim eu esperei tudo/ E desesperei de tudo/ Da vida do amor do esquecimento do
sono/ Das forças das fraquezas/ Já ninguém me conhece/ O meu nome e a minha
sombra são lobos.”
Num dos
textos incluídos nesta antologia (“Em Sociedade”), o poeta parece antever as
fronteiras do erro para o qual resvalámos: “eis os cegos que não consentem em
pôr o pé onde falta o degrau, eis os mudos que pensam com palavras, eis os
surdos que mandam calar os ruídos do mundo”. Fala-nos ainda no “cálculo mais
rasca” que faz com que os olhos quotidianamente se fechem. “Só favorecem o sono
para depois mergulharem na contemplação das mãos laboriosas que nunca fizeram o
mal e que se aborrecem e que aborrecem toda a gente. Odioso tráfico. Tudo isso
vive: esse corpo paciente de insecto”…
Encontramos
“o chão por toda a parte dividido”, e corpos mal apoiados nas suas sombras como
em muletas, enquanto se cumprem as necessidades mais básicas, até a vida ser só
isso, e acabar ela mesma um tráfico de ilusões adiadas ou esvaziadas de sentido.
“Quanto mais avanço, mais a sombra cresce. Em breve estarei sitiado pelos seus
monumentos destruídos e suas estátuas derrubadas (…) Agora só existe uma
maneira de sair desta escuridão: ligar a minha ambição à miséria singela, viver
toda a minha vida no primeiro escalão da noite, pouco acima de mim, próximo das
aves nocturnas. Separado desta terra, desta sombra que me sepulta.”
Olhamos à
volta, e nem somos capazes de interceder junto dos que nos são mais próximos.
Tornamo-nos frágeis até no território da intimidade, a qual se vai dissipando,
até não se poder salvar e nem sequer tocar o próprio filho. “Em lugar de uma
filha, tenho um filho. Deu um tiro na cabeça, puseram-lhe um penso, mas
esqueceram-se de lhe tirar o revólver. Voltou a fazer o mesmo. Estou à mesa com
todas as pessoas que conheço. De repente, alguém que eu não vejo chega e
diz-me: ‘O teu filho deu sete tiros na cabeça e não morreu.’ Só então um imenso
desespero me invade, então desvio-me para que não me vejam chorar.”
Como já se
referiu, nesta antologia comparecem apenas poemas escritos entre 1916 e 1936,
ou seja, antes da ruptura com o surrealismo e com Breton, em 1938, num
afastamento que se ficou por uma ferida silenciosa, um corte do qual Breton não
se refez, tentando até ao fim chamá-lo de volta, mas Éluard tornara-se uma
figura estratosférica, e não olhou mais para trás. Ensaiando o que poderia ser
lido como uma defesa, no início do texto já acima referido (“Em Sociedade”),
Éluard diz-nos isto: “Não me arrependo – mas só porque o arrependimento não é
uma forma suficiente do desespero – do tempo em que eu era desconfiado, em que
ainda esperava ter algum inimigo a vencer, alguma brecha a abrir na natureza
humana, algum esconderijo sagrado. A desconfiança ainda era a paragem, o
deleite na constatação do finito.” Seja como for, pode dizer-se que muitos dos
seus versos parecem ter-se cumprido e sobrevivido mesmo aos escrúpulos ou aos
remorsos que lhe faltaram, e enquanto um dos autores que melhor se soube valer
dos instintos recobrados pelo surrealismo, pode dizer-se que colheu flores bem
profundas, dessas que servem como provas de uma primavera autónoma e perpétua.
Soube descobrir esse vislumbre como “a derradeira aflição à flor dum rosto
transformado”. Por isso, foram dele momentos de fabulosa inspiração, e isso tem
consequências, e é talvez o que levou a escrever um verso como este: “E tudo
quanto dizes atrás de ti se agita.”
O desacordo
de fundo deu-se quando o papa do surrealismo entender por fim que a vontade de
emancipação mais ampla do homem e dos seus sentidos entrara num conflito
insanável com a disciplina imposta aos seus membros pelo partido comunista. De
qualquer modo, embora a participação de Éluard desde o início nas actividades
do grupo, Breton lembraria que esta sempre foi um tanto reticente: “entre o
surrealismo e a poesia, no sentido tradicional do termo, a finalidade desta
última surge-lhe como muito mais clara, o que, do ponto de vista surrealista,
constitui a heresia maior (como se a estética, que havíamos proscrito, se servisse
dessa porta para voltar)”. Sem deixar de reconhecer ao antigo companheiro as
qualidades sensíveis pelas quais a sua personalidade se impôs, Breton acusa-o
de uma atitude retrógrada e de uma contradição formal com o fim último do
movimento que haviam criado, pois Éluard haveria de abdicar da rebelião total e
do desacato mais íntimo, desde logo desse esforço de desregramento dos
sentidos, para se colocar em linha com a perspectiva do materialismo histórico,
e tornar-se uma das celebridades daquele outro sistema que reivindicava “o
monopólio da transformação social do mundo” mas que, no entender de Breton, ao
invés de estarem comprometidos com a libertação do homem poderiam na verdade
estar a condená-lo a uma escravidão ainda pior do que aquela em que já se encontrava.
Mas depois Éluard tinha esse seu triunfo que cria uma espécie de cegueira, essa
sua relação privilegiada com a simplicidade fulgurante dos versos que lembram o
rapto amoroso: “A minha imaginação amorosa foi sempre suficientemente constante
e suficientemente elevada para que ninguém ouse tentar convencer-me dos meus
erros.” E não foram poucos. Mas o amor, mesmo se chega a tornar-se um equívoco
quase sórdido, é talvez um dos aspectos do sonho que melhor soube ancorar-se na
realidade, neste mundo doloroso, o que resiste até à última é essa perspectiva
de encontro, essa relação cativante que nos tem a catar as priscas do acaso
para saborear nelas essa outra boca fresca e feroz que, se por um momento
pousasse na nossa, talvez nos restituísse à integridade, a de um corpo pesado
de amor, capaz de nos aliviar até do sufoco a que nos condena uma existência
mesquinha. Cada vez mais temos a sensação de que “o amor está no mundo para o
mundo ser esquecido”, sendo impossível adequar um ao outro. Ora, dentro dessa
rara aristocracia evasiva, Éluard cedo assumiu esse que é, de todos, um dos
principais títulos de nobreza ainda ao dispor, o de ser considerado um dos
grandes poetas do amor. Veja-se o poder sedutor e a quase sagrada simplicidade
de se dizer isto: “Alfazema/ Toda a extensão da mulher”. O encantamento da sua
poesia está na forma como “encandeia o amor suas sombras insurrectas”. Mesmo
nas épocas mais desesperadas, quando este assunto, nos parece já praticamente
encerrado, há um contingente constante de seres que mergulham nos seus
arquivos, que o estudam e lhe repassam o rastro, para se medirem contra os
grandes amantes, e mesmo quando mais tarde a experiência amorosa se revela
humilhante, há quem tome nota de todo o mal que lhe foi feito. Éluard escreve isto:
“E oponho ao amor/ As imagens já feitas/ Em lugar das imagens a fazer…” Não
pode haver oposição mais dilacerante, provas mais irrefutáveis, e a dor vem de
ser evidente como não nos resta já futuro para aguentar com a sombra e o eco da
pulsação desse passado imenso que virá cobrar ainda tudo o que lhe é devido e a
seu tempo foi ignorado. “na renda dos desaparecimentos/ O abismo desvendou-se
os outros que o apaguem/ As sombras que crias não têm direito à noite.” Muitas
vezes, esta é uma poesia que funciona melhor enquanto se mantém naquele registo
oracular, adquirindo outros sentidos, como reconhece a tradutora, Regina
Guimarães, que teve de se confrontar com essa margem de irradiação em que cabem
sempre “outras tantas versões da ideia de obra, outras tantas aversões ao fecho
da abóbada, outras tantas dúvidas quanto à fixação da matéria instável de que
são feitos os versos”. As escolhas tornam-se decisivas quando o esforço passa
por capturar “Todo o sol à face da terra/ Nos caminhos da tua beleza”. E se é tão
proveitoso desenhar outros caminhos, separando versos mais salientes numa obra
que parece convidar a um deslocamento e a uma renovação perpétua dos sentidos,
por vezes há poemas, sobretudo esses de amor, em que a integridade merece todo
o respeito. É ocaso do tão conhecido e citado poema “A Curva dos Teus Olhos”,
ou deste excerto do livro “O Amor à Poesia” (1929): “Tão calma a pele cinzenta
extinta calcinada/ Exaurida pela noite presa nas suas flores de geada/ Da luz
só lhe restam as formas// Enamorada fica-he bem ser bela/ Não espera pela
primavera./ O cansaço a noite o repouso o silêncio/ Todo um mundo vivo entre
astros mortos/ A confinaça no poder durar/ É sempre visível quando ela ama”. E
depois, desgarrados, há outros versos que colhemos no arranjo que cabe a cada
leitor fazer: “O sono conserva o [s]eu molde (…) A sua cabeça adormece nas
minhas mãos (…) E a minha cabeça rola nos sonhos dela.”
Para os
surrealistas o amor era algo tão decisivo porque era na pessoa amada que se
enlaçavam liberdade e necessidade. O amor, como frisa Octavio Paz, revela-nos a
forma mais elevada da liberdade: “livre escolha da necessidade”. Por sua vez,
Mário Cesariny lembra que, “como no acto mais vital, o do amor, o surrealismo
nasce do ensaio de fusão de duas mentes adultas e individuadas em estado de
delírio voluntário, trazido pela primeira vez ao mundo ocidental nas páginas de
‘Les champs magnétiques’, de Breton e Soupault, escritas ainda na época dadá e
publicadas em 1920. Mais tarde repetirá com extraordinário fulgor poético o
mesmo feito, levando-o mais longe, levando-o a ensaios de simulação de estados
patológicos psiquiatricamente só reconhecíveis nos ‘verdadeiros doentes’
mentais: debilidade, mania aguda, paralisia geral, delírio de interpretação e
demência precoce. O poder da paixão, da imaginação, do desejo aniquilador dos
universos de categorias e perseguindo não ‘a igualdade dos contrários’ mas a
sua fusão fecundadora, nesses dois livros como em muitos outros, são o próprio
exercício da fala surrealista, nunca erguida ‘contra a realidade’ mas contra ‘o
pouco de realidade’”. Ou seja, aqueles que têm em si a soberania de se deixarem
levar à loucura são os únicos capazes de lançar um genuíno movimento de
rebelião e libertação face a uma sociedade que pretende internar-nos nas suas
instituições que trabalham para constranger a ideia que fazemos da realidade e
das nossas verdadeiras possibilidades de eleger uma “verdadeira vida”, longe
desses grosseiros constrangimentos. É preciso, num certo sentido, enlouquecer
de modo a ser capaz de uma actividade empenhadamente destrutiva, uma revolução
que terá de passar antes de tudo por rejeitar todo o conteúdo moral deste
presídio onde estamos trancados. Curiosamente, o amor surge aqui como o
principal acto de rebelião, mas é preciso começar primeiro por despojá-lo
“desse sabor amargo que a poesia não tem”. E então somos reencaminhados para
essa similitude que Breton traça entre os actos da poesia e do amor: “A poesia
faz-se na cama como o amor/ Os seus lençóis desfeitos são a aurora das coisas/
A poesia faz-se nos bosques (…) O abraço poético como o abraço carnal/ Enquanto
perduram/ Proíbem-nos de cair na miséria do mundo.” Assim o amor e a poesia
reforçam-se um no outro, abrindo a nossa consciência a uma outra relação face
ao mundo e, desde logo, face ao próprio tempo, que não tem de ser encarado
apenas como sucessão: “ontem, hoje, e amanhã deixam de ter significado”,
diz-nos Octavio Paz: “apenas resiste um sempre que é também um aqui e agora”. E
é neste ponto que o contributo de Éluard se revela decisivo, pois ele traça
essa identidade comum entre amor e poesia e encara a mulher como a morada
terrestre do homem: “Mulher dás à luz um corpo sempre igual/ O teu// És a
semelhança.”
Esta ideia de
semelhança aponta, segundo Paz, para um ideal e uma necessidade de
correspondência que está em todos nós e nos predispõe a essa busca que se
confunde com o próprio sentido da vida. E a resolução começa na percepção de
que, neste mundo, “tudo rima, tudo se chama e se responde”, adianta Paz. “Como
acreditavam os antigos, e sempre o sustiveram os poetas e a tradição oculta, o
universo compõe-se de forças em oposição que se unem e separam de acordo com um
certo ritmo secreto. O conhecimento poético – a imaginação, a faculdade
produtora de imagens em cujo seio os contrários se reconciliam – deixa-nos
vislumbrar a analogia cósmica. Baudelaire dizia: ‘A imaginação é a mais
científica das nossas faculdades porque só ela é capaz de compreender a
analogia universal, aquilo a que uma religião mística chamaria a
correspondência (…) a natureza é um Verbo, uma alegoria, um modelo’”.
A força muito
particular de uma antologia como esta consegue ser ainda mais prometedora por
inaugurar uma nova colecção de uma editora que nos tem dado tanto do melhor
como do pior que se vai publicando à margem dos esquemas do mercado, embora nem
sempre desatenta das persistentes ilusões de uma suposta legitimação literária
de personagens de um enredo algo patético. Depois da colecção Avesso, dirigida
por Rui Manuel Amaral, a editora Exclamação abre agora espaço para os
Elefantes, chancela em que Amaral surge ao lado de Regina Guimarães, evocando
essa aristocracia possante e, em geral, paciente, procurando firmar pisadas
“com o peso luminoso dos meteoros, a corpulência dos mercadores de memória e a
fabulosa elegância dos seres em vias de extinção”, os quais se propõem
atravessar também entre nós os territórios da poesia, hoje, desertificados pelo
ruído, sendo que esta colecção se impõem o objectivo de providenciar a água que
anima a leitura. A edição deste livro consegue impor um contraste com tantos
outros publicados pela mesma editora, e traz também uma boa dose de irrisão ao
vincar que “ainda deve ser possível contrariar as exigências do design de
produto aplicado à edição e fazer uma colecção de excepções”. Esperemos que
sim, reconhecendo embora que muitas vezes estes esforços se oferecem como a
tempestade “que distribui as armas desastradas/ às ervas e aos insectos”.
Afinal, como tem sido notório na edição portuguesa, e para nos servimos da
previdência dos versos de Éluard, tem-se visto como “O desejo e o enfado
confraternizam/ Carrossel das manias/ Tudo está esquecido/ Nada é sacrificado/
O cheiro dos escombros persiste”, e hoje damos por tantos que usam a leitura
como mais outra distracção, um modo distinto, ainda que com o mesmo resultado,
de manter os olhos fechados. A este respeito, Éluard frisava que “a
objectividade poética só se alcança na sucessão, no encadeamento de todos os
elementos subjectivos de que o poeta é, até nova ordem, não senhor mas
escravo.” A diferença entre o poeta e esse que apenas se faz coroar, pois
precisa de um título, é que aquele sabe que o que conta é ir até ao fim. Por
isso, Éluard enaltece essas “filhas de nada prontas a tudo/ irmãs das flores
sem raízes (…) reduzidas à inteligência/ à razão até morrer”. Faz toda a
diferença que da poesia que se escreve ou se traduz e edita não se possa sair
impune, e que, tal como os sonhos que se tem, haja consequências. Essa é a
beleza para a qual se dirigem os mais intrépidos, os sonhadores definitivos,
uma beleza “mais simples do que a desgraça”, e que é alimento da carne,
tornando-a expressiva. Hoje, muita da edição de poesia participa num registo de
ofuscação também ele da necessidade urgente de se organizar o pessimismo, de se
alcançar um compromisso mais largo e para que os versos não sejam senão alguns
pássaros mais desses que perfumam os bosques um momento antes destes serem
abatidos.”
Diogo Vaz Pinto, em artigo publicado no Jornal I,13.06.2022