quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O Mar , a Praia, a Póvoa do Varzim

 


O vento enchia o Mundo. Mal deixava

lugar para a tremenda voz das ondas.

Mas era o Mar apenas que se ouvia.

                                                                                Sebastião da Gama


Todos os verões passávamos uma grande temporada na Praia. O mês de Setembro fazia sempre parte dessa temporada, além de largos dias do mês de Agosto.
Enquanto vivi na Quinta, era a Póvoa do Varzim a nossa praia. Os meus pais tinham os amigos que, com eles, se acertavam para passarem o mesmo período na praia. Era uma longa fila de barracas ocupada por  famílias conhecidas ou/e amigas. Alinhava-se em frente ou junto ao Diana Bar. Para nós crianças, era o tempo do reencontro e do convívio. O tempo que nos trazia os amigos e o Mar. Um tempo que nos marcaria de diferente vivência. Estar na casa da praia, não era comparável a tempo algum passado na Quinta. Todos os encantos e ritos eram, em tudo, diferentes, ou  apenas outros. E como nos atraíam e nos faziam sentir  seres ainda mais felizes.
Fui , este ano de 2017, à Povoa do Varzim a um evento literário, Correntes d’Escritas, que penso ser considerado o festival literário mais importante da cidade , talvez  do país. Homenageava-se o maior crítico literário da actualidade, Eugénio Lisboa, que lançava um novo volume complementar aos cinco tomos das suas valiosas Memórias, “Acta Est Fabula”. Transcrevo um excerto dos textos que compunham a Revista do Festival que era dedicada a este grande escritor, que me dá o privilégio do  ser meu amigo:

 

“(…) Eugénio Lisboa, desde cedo, manteve uma relação com a Póvoa de Varzim, tendo em conta a sua ligação a José Régio que, como se sabe, escreveu grande parte da sua obra poética no Diana Bar.

Foram muitas as correspondências trocadas entre ambos, desde cedo.

Foi o próprio poeta que escreveu a Eugénio Lisboa, em carta de 19 de Fevereiro de 1968: «De manhã, depois das dez horas, ou estou em casa (...) ou no Diana-Bar da Póvoa, onde nos encontrámos da última vez. No Diana-Bar, de manhã, estou em baixo, no primeiro piso. À tarde, geralmente no segundo piso, que a gente chama a Galeria. Dessa última vez, foi aí que nos encontrámos».

O anterior encontro tivera lugar no Verão de 1963 e incluíra uma visita conjunta à Casa de Camilo, em S. Miguel de Seide. Eugénio Lisboa há-de recordar tais momentos, em carta de 4 de Agosto de 1964: «Tenho imensas saudades dos dois escassos dias que passei em Vila do Conde/Póvoa, o ano passado». E há-de celebrar, anos mais tarde, o apaixonado camilianismo dos dois visitantes, num luminoso ensaio a que deu o saboroso e evocativo título de «‘Coisas Nossas’. José Régio e Camilo: a love for all seasons», ensaio hoje disponível no seu Ler Régio.

No Diana-Bar, edifício modernista do final dos anos trinta, plantado no areal da Póvoa de Varzim e virado para a antiga Praia de Banhos, funciona desde 2002 um dos pólos daquele modelar equipamento cultural que é a Biblioteca Municipal Rocha Peixoto onde, em recente sessão comemorativa dos seus 25 anos, tive oportunidade de tratar o tema «Livros: difícil é lê-los». Todavia, durante seis décadas, o velho e belo Diana-Bar foi um lugar selecto de encontros estivais e de tertúlias intelectuais, onde José Régio escreveu muitas das suas páginas, como ainda hoje é recordado no próprio local. (in “Música no Diana Bar” texto de Jorge M. Martins publicado na Revista Correntes D’ Escritas 2017, cujo dossiê é dedicado a Eugénio Lisboa)

Fui à Povoa. Já, por lá, passara, ocasionalmente, em variadas épocas. Nesta viagem,  queria ter tempo para uma romaria da saudade. Pretendia calcorrear as ruas da cidade, em busca do tempo que fora meu, ali. Vã esperança. Apenas o areal e o mar  permaneciam  na infância da minha vida. Souberam manter-se indiferentes  às falácias do progresso. A geografia da cidade alterara-se com a invasão de um betão armado que fizera da vila um aglomerado turístico e balnear igual a muitos outros que proliferam pelo país  e por esse   mundo fora. A bela Avenida dos Banhos estava, agora, delimitada por uma muralha gigantesca de edifícios em série , irmanados na mesma linha arquitectónica que  faz deles objecto de rendimento financeiro. O turismo de massas , a grande aspiração que transformou muito dos nossos mais belos recantos do litoral em grandes metrópoles de consumo social.

Sobre essa transformação, retiro, do meu Diário de Bolso,  excertos de duas  entradas de Fevereiro, quando fui à Póvoa:

 

21.02.2017

(…) Lanço-me, um tanto confusa, em viagem de reconhecimento pela Avenida dos Banhos. Junto ao areal, onde criança passei alguns verões memoráveis, existe ainda o Diana Bar. É agora propriedade da Câmara Municipal. 

Tudo o que compõe esta avenida é novo. Betão armado dando forma a uma fila interminável de prédios iguais a muitos outros que despersonalizaram a costa portuguesa. A política de massificação generalizou-se partout, tornando as nossas praias em lugares fantasmas no Inverno e gaiolas lotadas e insuportáveis no Verão. Resta o Mar, impassível e sobranceiro à  mudança.

 

 

22. 02. 2017

Pela manhã, em romaria de saudade, tento descobrir a Póvoa de Varzim da minha infância. Quase tudo mudou, impedindo reconhecer a casa que sempre nos acolheu. Foi demolida, bem como o jardim que compunha um largo fronteiro. A Póvoa é uma nova povoação que, como muitas outras cidades costeiras, sofreu uma mudança radical.

 

Mas a Póvoa do Varzim era bela e diferente. Mal passávamos Vila do Conde, onde vivia o Tio Eduardo, a vontade de chegar ao nosso destino tornava o tempo uma eternidade. Nem sei explicar como era agradável a viagem para lá. Apenas os últimos momentos nos excediam pelo desespero, que só as crianças sentem. Queríamos já ter chegado. E quando a maresia começava a entrar forte e intensa pelas janelas abertas do automóvel,  sabíamos que faltava muito pouco. Impacientes, lançávamos os olhos em jeito de reconhecimento e de júbilo renascido.
A chegada era sempre saudada com intensa alegria, embora disciplinados obedecêssemos às instruções que nos eram dadas. Mas não havia quem nos sustivesse, assim que entrávamos na casa da praia. A corrida era sempre a mesma, repetia-se : verificar cada divisão, olhar cada grande ou pequeno objecto que identificava aquele espaço e chegar ao quarto para nos reapropriarmos de um lugar que nos pertencia, que era nosso.
Nesse dia, nunca havia tempo para ir a banhos, à praia. Quando já estávamos instalados, os nossos pais levavam-nos a dar um passeio pela Avenida dos Banhos e Passeio Alegre , onde estavam o Grande Hotel da Póvoa e o Casino. No Largo fronteiriço, havia uma improvisada loja de aluguer de bicicletas de todos os tamanhos e feitios. Ficavam–me sempre presos os olhos naquelas bicicletas . Foi ali que dei as primeiras pedaladas. Quando deixámos de ir para a Póvoa já sabia andar de bicicleta, com perícia e desenvoltura.
Ganhei também, ali, a minha primeira bicicleta. Quem ma ofereceu foi um dos amigos do meu pai, que acabara de ganhar à roleta no Casino, e se deparou comigo e com o meu pai, no Largo, junto às bicicletas.
Magnânimo, considerou ser o momento de repartir com a filha do amigo um prémio que lhe coubera em dia de  sorte, nos ditos jogos de azar. Como sabia do meu fascínio pelas bicicletas , obsequiou-me sem qualquer hesitação.
Exultei de alegria e fui recebida, com verdadeira estupefacção por todos, quando cheguei  a casa , a pedalar na bicicleta.
Passou a ser um dos objectos mais cobiçados até ao dia em que duas novas bicicletas vieram aumentar o espólio velocípede da casa.

Nos registos escritos do século XIX, a Póvoa do Varzim aparece como uma estância onde o jogo da roleta já se praticava e vitimava muitos curiosos. Era uma vila que crescera e ganhara notoriedade pelas suas águas , ricas em iodo, e também  pelas diversões e comércio que oferecia.  
Alberto Pimentel, em “O que anda no ar”, obra publicada em 1881, pela Empreza litteraria de Lisboa, escreve o seguinte:
 Povoa de Varzim. A mais movimentada de todas as praias que eu conheço. Parece uma peça de Sardou. Ha lojas cheias de gente e gente para encher as lojas. Falla-se, descute-se, joga-se, dança-se. Há animação. A noite, a villa enche-se de luz e de murmúrios. Tem um aspecto venesiano, vista do mar. O amor faz ali cincoenta casamentos por anno; mas as victimas da roleta são em muito maior numero. Alguns namorados sahem de lá com lagrimas nos olhos—como os batoteiros. Por terem perdido muito ou por terem ganho demasiadamente .. . N'este ultimo caso, as lagrimas são de remorso.” (Nota – o jogo praticava-se no Café Chinês e no Café David)
 
Também O Occidente n.º 119 de 11 de Abril de 1882, acompanhando uma gravura da “praia do Pescado”:
“Esta villa, qua ainda não ha muitos annos, era de pouca importancia, tem tomado nos ultimos tempos um grande desenvolvimento, já pelo augmento da sua industria de pesca, já porque é hoje uma das melhores praias de banhos procurada por nacionaes e estrangeiros.”
 
Para nós, a vida na praia orquestrava-se melodicamente. Quero eu dizer, que tudo era uma celebração harmoniosa. Um tempo que corria célere e que nos deixava uma saudade que se consumia o ano inteiro. Apesar das inúmeras visitas que fazíamos à Praia , ao longo do ano, não existia qualquer  termo de comparação com esses meses de autêntico festim .
Maria José Vieira de Sousa, in O Livro que Já escrevi, pp.39-43 

terça-feira, 9 de agosto de 2022

Até sempre


Livres Pensantes vai fazer uma pausa. Em jeito de despedida, apresenta uma  colectânea de temas musicais de John Barry que tão bem ilustrou muitas das telas de cinema que nos encantaram. 
Até sempre!

 
John Barry (1933 - 2011), natural da  cidade de York, norte da Inglaterra, foi um compositor e maestro britânico que compôs  bandas sonoras  para mais de 100 filmes e programas de televisão. Foi ele o autor da banda sonora de onze filme , com o icónico espião de Ian Fleming, James Bond: Dr. No, From Russia with Love, Goldfinger, Thunderball, You Only Live Twice, On Her Majesty’s Secret Service, Diamonds Are Forever, The Man with the Golden Gun, Moonraker, Octopussy, A View to a Kill, and The Living Daylights
Durante a sua  carreira de compositor,   conquistou cinco Oscars por Born Free ( melhor partitura e melhor música); The Lion in Winter, Out of Africa (1985) e Dances with Wolves (1990), além de indicações para Mary Queen of Scots (1971) e Chaplin (1992).As outras bandas  sonoras incluem Zulu (1964), The Ipcress File (1965), Midnight Cowboy (1969), Somewhere in Time (1980), Body Heat (1981), Peggy Sue Got Married (1986) e Enigma (2001). Também compôs para o teatro, incluindo os musicais de sucesso moderado Passion Flower Hotel (1965) e Billy (1974). Ganhou  quatro prémios Grammy, o de  melhor performance instrumental de jazz, big band, pela banda  sonora do filme The Cotton Club (1984). ). Em 1998, John Barry foi inscrito no Songwriters Hall of Fame; em 1999 , nomeado Oficial da Ordem do Império Britânico (OBE), no Palácio de Buckingham por serviços à música, e recebeu o Prémio de Bolsa da Academia Britânica de Cinema e Televisão (BAFTA), em 2005. Também em 2005, o American Film Institute classificou a pontuação de John Barry para Out of Africa com No.15 , na  lista das maiores pontuações de filmes.

Temas desta colectânea:
-The John Dunbar Theme (From “Dances with Wolves"). Performed by the Royal Philharmonic Orchestra 
-Main Theme (From "Out of Africa"). Performed by the City of Prague Philharmonic -Orchestra Instrumental Suite Theme Performed by the City of Prague Philharmonic Orchestra 
-Theme (From "Somewhere in Time"). Performed by the City of Prague Philharmonic Orchestra 
-Give me a Smile .Performed by the English Chamber Orchestra
-Flying over Africa. Performed by the London Symphony Orchestra Richard Kaufman, Conductor
- Lullabying. Performed by the English Chamber Orchestra 
- Chaplin: Smile (From the Original Motion Picture Soundtrack)
-The Old Woman (From “Somewhere In Time”). Performed by the City of Prague Philharmonic Orchestra
- Winning. Performed by the English Chamber Orchestra

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Noruega - Terra do Sol da Meia-Noite

 

Noruega - Terra do Sol da Meia-Noite, por Man and Drone (4K) 
"Tendo construído uma autocaravana durante o confinamento, garanti que a Noruega fosse um dos primeiros grandes testes para isso. Escolhi a rota mais desafiadora, apanhando a balsa de 'Hirtshals' na Dinamarca para 'Kristiansand' na Noruega, depois ziguezagueando pela área de Fjordland até Lofoten Isles e, em seguida , Nordkapp (o ponto mais distante da Europa). A viagem foi principalmente para testar a minha van e voltar à natureza após um hiato de quase 3 anos. Os vídeos do drone foram meramente complementares. 
Do sul do Reino Unido, a distância total percorrida  foi de aproximadamente 6.000 milhas. A viagem de volta de Nordkapp (não filmada) foi pela Finlândia e toda a extensão da Suécia, em seguida, seguindo pela ponte Øresund de Malmo a Copenhague, pelo resto da Dinamarca e norte da Alemanha, Holanda, Bélgica e França. Dunkirk Ferry de volta para Dover, Reino Unido.
Filmado durante 24 dias em Maio no drone Mavic 2 Pro. 
Maio é uma boa altura para visitar a Noruega, mas tenha em atenção que muitas estradas de montanha ainda estão fechadas, pelo que alguns locais não estarão acessíveis até ao final de Maio e início de Junho. 
Em Maio / Junho e Julho terão 24 horas de sol nas regiões mais ao norte." Man and Drone 

domingo, 7 de agosto de 2022

Morreu Ana Luísa Amaral

 
 Ler Mais Ler Melhor: Vida e Obra de Ana Luísa Amaral

"A poetisa , ensaísta ,  tradutora Ana Luísa Amaral morreu na sexta-feira à noite, ( 5 de Agosto), aos 66 anos, vítima de cancro.
A cerimónia fúnebre está marcada para domingo no Tanatório de Matosinhos. O velório realiza-se este sábado, a partir das 17 horas, na Capela do Corpo Santo, em Leça da Palmeira, onde a poetisa residia, segundo um comunicado da Universidade do Porto (UP). Autora de mais de trinta obras de poesia, teatro, ficção e literatura infantil, publicadas em vários países, Ana Luísa Amaral era também investigadora e professora aposentada da Faculdade de Letras da UP.
Numa nota de pesar, o Reitor da Universidade do Porto recorda a docente e escritora como "uma autora extraordinária, uma académica distinta e uma cidadã empenhada". "A sua obra literária irá certamente garantir que o nome de Ana Luísa Amaral perdurará para todo o sempre, mas quem teve o privilégio de a conhecer de perto terá a memória de uma pessoa generosa e uma ativista dedicada às causas da igualdade e da solidariedade social", referiu António de Sousa Pereira.
Foi a figura homenageada na edição deste ano da Feira do Livro do Porto, numa cerimónia que decorreu nos jardins do Palácio de Cristal, no mês passado. Na ocasião, disse estar "felicíssima" com a distinção - que somou à Medalha de Ouro da Cidade do Porto - e não poupou elogios a Rui Moreira. "Tenho muita pena que nos vá deixar, com o tanto que eu o admiro", disse. E acrescentou: "As pessoas com alguma visibilidade têm obrigação cívica de se empenhar do ponto de vista político, e também com as questões das mulheres e com os retrocessos como o que está a acontecer nos Estados Unidos".
Ana Luísa Amaral teve uma carreira literária distinguida e premiada, em Portugal e no estrangeiro, onde os seus livros foram publicados, em países como Brasil, França, Espanha, Suécia, Itália, Holanda, Colômbia, Venezuela, México e Estados Unidos da América, estando ainda representada em diversas antologias. Foi distinguida, entre outros com o Prémio Literário Casino da Póvoa (2007), o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi (2007), o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (2008), o Prémio Rómulo de Carvalho/António Gedeão (2012), o Premio Internazionale Fondazione Roma: Ritratti di Poesia (2018), o Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho (2018), o Prémio Literário Guerra Junqueiro (2020), o Prémio Vergílio Ferreira (2020), o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, ou o Prémio Literário Francisco de Sá de Miranda (2021).
Licenciada em Germânicas e doutorada em Literatura Norte-Americana pela FLUP, Ana Luísa Amaral era investigadora nos campos da Literatura e Cultura Inglesa e Americana. Foi estudiosa da obra de Emily Dickinson e distinguiu-se como referência internacional nos Estudos Feministas, com o importante ensaio realizado em coautoria com Ana Gabriela Macedo "Dicionário da Crítica Feminista".
Estando atualmente aposentada, exercia as funções de membro da Direção do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, no âmbito do qual dirigia o grupo internacional de pesquisa Intersexualidades." JN,06.08.202 

 

Ao Domingo Há Música

Eu ouço música
como quem apanha chuva:
resignado
e triste
de saber que existe um mundo
do Outro Mundo...
              Mário Quintana

Agosto é o mês dos festivais, dos grandes convívios musicais e de muitos concertos populares. Por aqui, há o Festival da Sardinha que lança na cidade, à noite, os sons dos artistas convidados. A zona ribeirinha da cidade passa a ser o ponto central e difusor da música que nos entra pela casa, sem permissão prévia.  
A peça musical deste domingo traz em si a capacidade de amenizar  e de nos transportar , em suavidade,  para outras galáxias musicais.
Concerto para Piano nº 2 em Fá Maior II. Andante,  de Dimitri Shostakovich,  pela virtuosa pianista  Yuja Wang, acompanhada pela  Orquestra Sinfónica de Londres, sob a batuta do Maestro  Michael Tilson Thomas. O concerto realizou-se no LSO St Luke's (Londres, GB) no dia 2 de Junho de 2021, com produção do registo por C Major.

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MATER SEMPER DOLOROSA


Um filho que se perde de-repente,
na confusão brutal de uma guerra,
é algo tão bizarro, tão demente,
que abre ferida que nunca mais encerra.
 
Perder um filho viola a ordem
da natureza: inverte o verdadeiro
rumo da vida, instala a desordem
num mundo que se torna traiçoeiro.
 
Perder um filho abre chaga eterna
e dor de inconcebível dimensão,
mas do tamanho do amor materno.
 
Nesta dor, descarrila a razão,
tudo carece de algum sentido,
num mundo onde tudo foi mentido.
                                        06.08.2022
Eugénio Lisboa

sábado, 6 de agosto de 2022

Valente menina


Valente menina
por  Rubem Braga
"Debruçado cá em cima, no 13.° andar, fiquei olhando a porta do edifício à espera de que surgisse o seu vulto lá em baixo.
Eu a levara até o elevador, ao mesmo tempo aflito para que ela partisse e triste com a sua partida. Nossa conversa fora amarga. Quando lhe abri a porta do elevador esbocei um gesto de carinho na despedida, mas, como eu previra, ela resistiu. Pela abertura da porta vi a sua cabeça de perfil, séria, descer, sumir.
Agora sentia necessidade de vê-la sair do edifício, mas o elevador deve ter parado no caminho, porque demorou um pouco a surgir o seu vulto rápido. Desceu a escada fez uma pequena volta para evitar uma poça de água, caminhou até a esquina, atravessou a rua. Vi-a ainda um instante andando pela calçada da transversal, diante do café; e desapareceu, sem olhar para trás.
“Valente menina!” — foi o que murmurei ao acaso lembrando um verso antigo de Vinicius de Moraes; e no mesmo instante  lembrei-me também de uma frase ocasional de Pablo Neruda, num domingo em que fui visitá-lo na  sua casa de Isla Negra, no Chile. “Que valientes son las chilenas!” dissera ele, apontando uma mulher  que entrava no mar ali em frente, na manhã nublada; e explicara que estivera andando pela praia e apenas molhara os pés na espuma: a água estava gelada, de cortar.
“Valente menina!” Lá em baixo, na rua, era tocante o seu pequeno vulto, reduzido pela projeção vertical. Iria com os olhos húmidos ou sentiria apenas a alma vazia? “Valente menina!” Como a chilena que enfrentava o mar, em Isla Negra, ela também enfrentava a solidão. E eu ficava com a minha, parado, burro, triste, vendo-a partir por minha culpa.
Deitei-me na rede, sentindo dor de cabeça e um certo desgosto por mim mesmo. Eu poderia ser pai dessa moça — e pergunto- me o que sentiria, como pai, se soubesse de uma aventura sua, como essa, com um homem de minha idade. Tolice! Os pais nunca sabem nada, e quando sabem não compreendem; estão perto e longe demais para entender. Ele, esse pai de quem ela falava tanto, não acreditaria se a visse entrar pela primeira vez em minha casa, como entrou, com a bolsa a tiracolo, o passo leve e o riso nervoso. “Como  pensava que eu fosse?” Lembro-me de que fiquei olhando, meio divertido, meio assustado, aquela mocetona loura e ágil que só falava  olhando-me nos olhos, e me fez as confissões mais íntimas e graves entremeadas de mentiras pueris — sempre me olhando nos olhos. Disse-me que a metade das coisas que me contara pelo telefone era pura invenção — e logo inventou outras. Senti que as mentiras eram um jeito enviesado que ela tinha de se contar, um meio de dar um pouco de lógica às suas verdades confusas.
A ternura e o tremor de seu duro corpo juvenil, o  riso, a insolência alegre com que invadiu a minha casa e a minha vida, e as previsíveis crises de pranto — tudo me perturbou um pouco, mas reagi. Terei sido grosseiro ou mesquinho, terei deixado a  sua pequena alma trémula mais pobre e mais só?
Faço-me estas perguntas, e ao mesmo tempo  sinto-me ridículo em fazê-las. Essa moça tem a vida pela frente, e um dia se lembrará de nossa história como de uma anedota engraçada de sua própria vida, e talvez a conte a outro homem olhando-o nos olhos, passando a mão pelos seus cabelos, às vezes rindo — e talvez ele suspeite de que seja tudo mentira."
Rubem Braga,   in Crónicas.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Retrato do tirano

É próprio do tirano vir dizer
que a vítima da sua tirania
é que é culpada de cometer
o mal que ele traz à sua agonia.
 
O tirano tortura porque vê
um inimigo em cada ser humano
e um fautor não sabe bem de quê,
mas que o deixa perfeitamente insano.
 
O tirano assassina e difama,
com uma convicção digna de loucos
e tece uma inconcebível trama
 
que à piedade faz ouvidos moucos.
O tirano é insensível à dor
e a sua pátria é só o terror.
                        05.08.2022
Eugénio Lisboa
 
NOTA – O século XX foi um tempo de muitos e variados tiranos: de direita e de esquerda, tanto faz. Não há tiranias boas e tiranias más. Todas oprimem igualmente e usando os mesmos métodos. Tanto faz morrer à direita, como à esquerda, tudo é morrer sem culpa, ao arbítrio da paranoia de quem manda. Defender uma tirania de esquerda é tão criminoso como defender uma de direita. Eu às vezes penso que, no fundo, elas são todas de direita. Querem todas o mesmo: o poder indiscriminado e não escrutinado. Este soneto foi escrito a pensar neles, um dos monstruosos flagelos do nosso tempo. Outro flagelo quase igual foi o dos que, de boa consciência, lhes deram cobertura e apoio. Entre Hitler e Staline, entre Pol Pot e Mussolini, entre Cunhal e Salazar, o diabo que escolha. Mas estes que cito não esgotam o baralho. O poder totalitário atrai os energúmenos como o excremento atrai as moscas.

Leia, Ouça, Veja , Pense

Leia, Ouça, Veja, mas sobretudo, Pense
por Agostinho da Silva
"Se grandes invenções ou descobertas, como o fogo, a roda ou a alavanca, se fizeram antes que o homem fosse, historicamente, capaz de escrever, também se põe como fora de dúvida que mais rapidamente se avançou quando foi possível fixar inteligência em escrita, quando o saber se pôde transmitir com maior fidelidade do que oralmente, quando biblioteca, em qualquer forma, foi testamento do passado e base de arranque para o futuro. A livro se veio juntar arquivo, para o que mais ligeiro se afigurava; e fora de bibliotecas ou arquivos ficaram os milhões de páginas de discorrer ou emoção humana que mais ligeiras pareceram ainda, ou menos duradouras. Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço, e os limitados braços se põem a abraçar o mundo; a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia.
Milhões de homens, porém, no mundo actual estão incapacitados de escrever e de ler, muito menos porque faltam métodos e meios do que incitamento que os levante acima do seu tão difícil quotidiano e vontade de quem mais pode de que seus reais irmãos mais dependam de si próprios do que de exteriores e quase sempre enganadoras salvações. Mais se comunica falando do que de qualquer outra forma; o que nos dizem muitas vezes nos parece de nenhuma importância, mas talvez tenha havido uma falha na atitude de escutar do que no conteúdo do que se disse; porventura a palavra-chave estava aí, mas estávamos distraídos, ou ansiosos por nós próprios falarmos; e no vento fugiu, a outros ouvidos ou a nenhuns. Ouça.
No tempo em que a antropologia ainda julgava que o homem descendia do macaco notou-se, para os distinguir, que um, mesmo no estádio mais primitivo, desenhava; o outro, mesmo que antropóide superior, nem olhava o desenho. Imagem nos veio acompanhando pela História fora, desde as pinturas ou gravuras rupestres, cujo verdadeiro significado ainda está por encontrar, até cinema ou televisão, sobre cujo significado igualmente muitas vezes nos podemos interrogar e que se tem de arrancar o mais depressa possível ao domínio do lucro, da publicidade ou das propagandas ideológicas para que possam cumprir, como nas formas mais antigas, a sua missão de iluminar, inspirar e consagrar o mundo. Imagem o cerca. Veja.
Mas o que vê e ouve ou lê nada mais lhe traz senão matéria-prima de pensamento, já livre de muita impureza de minério bruto, porquanto antes do seu, outros pensamentos o pensaram; mas, por o pensarem, alguma outra impureza lhe terão juntado. Nunca se precipite, pois, a aderir; não se deixe levar por nenhum sentimento, excepto o do amor de entender, de ver o mais possível claro dentro e fora de si; critique tudo o que receba e não deixe que nada se deposite no seu espírito senão pela peneira da crítica, pelo critério da coerência, pela concordância dos factos; acredite fundamentalmente na dúvida construtiva e daí parta para certezas que nunca deixe de ver como provisórias, excepto uma, a de que é capaz de compreender tudo o que for compreensível; ao resto porá de lado até que o seja, até que possa pôr nos pratos da sua balancinha de razão. A tudo pese. Pense."
Agostinho da Silva, in "Textos e ensaios filosóficos", Âncora Editora

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Sons para descobrir e ouvir

 
Black Pumas, em Colors (Official Live Session), do Álbum Black Pumas.
Video Directed by Amos David McKay. Video Filmed at Arlyn Studios – Austin, TX.

  
Black Pumas , em Oct 33 (Official Live Session With String Quartet).

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Um amigo ou uma ideia duvidosa?

Mesmo quando as ideias divergem,
as amizades não devem fazê-lo:
as amizades saudáveis convergem,
mesmo se as ideias eriçam pêlo.

Arrisca-se a vida por um amigo,
mas seria tolo por uma ideia:
o amigo é garantia de abrigo
e a ideia até pode ser feia.

Perder a vida pelo duvidoso,
dar à ideia um valor sagrado
é pisarmos caminho pedregoso

e fiar de nevoeiro cerrado.
Acolha-se a ideia com cuidado,
prezando-se o amigo, confiado.
                            03.08.2022
Eugénio Lisboa


Este soneto foi escrito a pensar nos promotores da ideologia fria, que põem a ideologia acima da amizade, numa perversa e maligna inversão de valores.

A FILOLOGIA LEVA AO CRIME



IPSISSIMA VERBA
A FILOLOGIA LEVA AO CRIME
por Eugénio Lisboa

"Deslumbra-me quotidianamente ver o esforço desenvolvido por certos articulistas mais ou menos colados à esquerda dura ou dinossáurica, no sentido de “situarem” ou “contextualizarem” a guerra brutal e ilegal de Putine. De um lado, temos a realidade boçal, brutal e assassina da guerra, que destrói, mata, mutila e reduz a escombros um belo país; do outro, temos um inefável tecido filológico, uma teia de palavras desinfectadas, um colar de fonemas quase inocentes, a justificarem ou a ”explicarem” um crime horroroso. Quando lemos as “justificações” ou “contextualizações” de Manuel Loff, saímos confortavelmente da brutalidade destrutiva da guerra, para entrarmos no universo da filologia asséptica: palavras bem procuradas e lavadinhas envolvem-nos numa cumplicidade doce e afastam-nos do ruído mortífero das bombas. A filologia lava tudo, até as mãos cheias de sangue do carrasco. “Contextualizar” o crime é o mesmo que lavá-lo ou até apagá-lo.

Tudo isto me traz à memória uma extraordinária peça de Ionesco, que vi vezes sem conta no Théatre de la Huchette, em Paris, juntamente com a célebre Cantora Careca. Refiro-me à pecinha em um acto (curto), La Leçon (A Lição). Nela, um professor de filologia vai, numa lição que dá a uma aluna, envolvê-la, a pouco e pouco e cada vez mais, numa teia de palavras gradativamente mais apertada, que atordoam a aluna, diante das teorias desvairadas do mestre. Por fim, aterrada com aquela artilharia filológica, a pobre aluna, sem ter para onde fugir, acaba estrangulada pelo professor e pela sua aquecida e assassina filologia. A conclusão célebre é: a filologia leva ao crime. Temos visto que sim: a filologia levou ao crime, ou foi ajudante do crime ou “contextualizou” o crime (em massa), na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, na Rússia de Staline, na Espanha de Franco, no Cambodja de Pol Pot, para nos ficarmos por estes.

Os recados “contextualizantes” que os serventuários daqueles regimes mandavam, devidamente enlatados, para serem distribuídos urbi et orbi eram o colar de palavras que os discípulos penduravam ao pescoço, para com elas “apagarem” a visão das atrocidades cometidas, ao som da música filológica. A filologia sempre foi amiga dos tiranos (Nero ter-se-ia servido dela para cantar o incêndio de Roma), sempre cobriu os seus açougues com o manto diáfano dos fonemas. Como dizia o ardido Rei Ferrante, da peça La Reine Morte, de Montherlant, “tantas palavras para esconderem um vício!”


Os porta-vozes de serviço de Putine aprenderam há muito a arte de perverter o uso das palavras, para assim lavarem a sujidade e o sangue que as suas guerras deixam como rasto.”
Eugénio Lisboa, em artigo publicado na rubrica Ipsissima Verba, da revista LER , 2022

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Paul Éluard

 

Paul Éluard. Rastejar à flor de todos os horizontes
por Diogo Vaz Pinto
"Uma nova antologia poética do período surrealista de Paul Éluard, com selecção e tradução de Regina Guimarães, obriga-nos a retomar o confronto com o regime prisional em que vivemos e a dieta de realidade a que nos submetem por razões de saúde.
Os sonhos hão-de ter consequências, tal como a imaginação e o desejo. De outro modo, e de tanto rebaixar a vida, o homem já não acede às fontes, nem lhes escuta o murmúrio como uma mágoa sopesada pelo que há de mais fundo em si, essa água capaz de reflectir na perfeição qualquer outro rosto. A transformação ou mudança ocorre porque o homem passa a relacionar-se intimamente com uma projecção qualquer, e a realidade sente-se intimada a comparecer a esse encontro. Como nos explica Octavio Paz, o surrealismo não partiu de uma teoria da realidade ou sequer de uma doutrina da liberdade, mas de um exercício concreto e livre, ou seja, ousou pôr em acção a livre disposição do homem num corpo a corpo com o real. “Desde o princípio a concepção surrealista não distingue entre conhecimento poético da realidade e a sua transformação: conhecer é um acto que transforma aquilo que se conhece.” Neste quadro, a actividade poética volta a ser uma operação mágica, adianta o poeta e ensaísta. “Quando as pessoas começam a imaginar um mundo diferente, é natural que o mundo mude”, foi a frase destacada de Luís Trindade, aquela que se lia no título de uma entrevista que o professor de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa concedeu recentemente ao “Público” e que foi amplamente divulgada. As pessoas dizem estas coisas e depois parece que se desentendem com elas, e não alcançam a profundidade do seu sentido. E isto porque a imoralidade crucial da época que vivemos se prende com a forma como esta atinge a soberania das nossas noções espirituais.
Este admirável mundo novo finge-se alheado em todos os aspectos das antigas tradições do conhecimento, entregue a um acelerado movimento em direcção a uma barbárie sem paralelo na história, pois ao invés de caracterizar um estado anterior à civilização é já o outro extremo, um mundo sintetizado pela técnica, essa utopia que parece, no limite, prescindir da própria humanidade. Em certo sentido, parece que cessaram “as aventuras do rosto humano”, e a expressão que resta é meramente confusa, efusiva num segundo para no seguinte se quebrar como uma máscara e revelar-se um absoluto desamparo. Sucedem-se os “gritos sem ecos, sinais de morte, tempos fora de memória”. A vida parece incapaz de registo; vivemos existências devolutas, devorando reflexos informes, deixando à nossa passagem “carcaças de conhecimentos, carcaças de asnos”. As esperanças de outrora parecem abolidas, o próprio destino e a noção de uma relação livre entre os homens foi-se vendo coberta de desprezo… “Os astros estão na água a beleza já não tem sombras”. O tempo imprime-se hoje de forma totalitária tanto mais quanto parece algo anárquico, desprovido de nexo. Por isso, a única sensação de se tirar algum proveito dos dias vem desses momentos que parecem desalojados, como que fora do tempo.
Comparecem enquanto elementos contundentes deste diagnóstico alguns versos de Paul Éluard, poeta que viu como os rostos podiam reduzir-se a “migalhas de anseios”, num regime em que está aberta “a caça aos enforcados a pesca aos afogados”. Parece também sinalizar a dificuldade que há em levar-se o que reconhecemos como verdade a sério, vendo passar “a verdade com o seu interminável cortejo/ de evidências pueris”. Destaque-se o título bastante longo de um dos seus poemas: “Boas e más-línguas afirmam que o mal está bem feito. Assim, o falso, o negativo obrigam a odiar-se”. A sua obra está cheia de avisos, desses que persistem mesmo depois do desastre, tornando-se ruínas aflitivas: “Cólera mel a definhar”, é um deles. Esse entendimento de como o pior na raiva é a perda do encanto pelas coisas. E estes: “Fechámos as portadas/ As árvores não mais se elevarão/ Não mais se vasculhará a terra/ Não seremos desenterrados// Já não há profundezas/ Nem superfícies.”
E voltamos a ele graças a uma nova antologia da sua obra, a qual se cinge ao período entre 1916-1936, ou seja, antes de o poeta francês que esteve entre os iniciadores do surrealismo se ter afastado deste movimento. Com selecção e tradução de Regina Guimarães, “O Homem Inacabado” traz-nos um conjunto de poemas impregnados ainda de uma mensagem capaz de livrar-se do efeito de defunção com que hoje se encara o surrealismo, como se essa aventura estivesse encerrada. “Estamos reunidos para além do passado”, parecem gritar estes poemas, recusando-se a ser alvo do culto amorfo que se ergue em torno dos digníssimos cadáveres históricos.
Mas leia-se o resto do poema que conclui com esse verso e que se chama “Minha Vivente: “Ainda não embandeirei suficientemente/ O ver e o azul perderam a cabeça/ Toda a paisagem é ofuscante/ Entre os teus dois braços mundo sem cor/ O teu corpo toma a forma das chamas// A mexer na terra/ E no seu cheiro de rosa extinta/ Mãos corajosas eu trabalho/ Para uma noite que não é a última/ Mas seguramente a primeira sem terrores/ Sem ignorância sem cansaço// Uma noite parecida com um dia sem trabalho/ E sem tormentos e sem asco/ Toda uma vida toda a vida/ Ouve-me bem/ As tuas mãos estão tão quentes uma como a outra/ És como a natureza/ Sem amanhã// Estamos reunidos para além do passado.”
Ainda que se deseje encarar o surrealismo como uma fogueira hoje extinta, muitos continuaram a mergulhar as mãos nas suas cinzas a sentir como estas nos aquecem os ossos e acendem a nossa imaginação, para usar a imagem de Octavio Paz. O facto é que o surrealismo foi o último movimento que, tendo a poesia e a literatura como formas de se manifestar, se apresentou como uma revolução e uma ruptura. E Paz admite que terá sido mesmo a última grande ruptura nessa história de sucessivas rupturas que caracteriza a poesia moderna. “Tudo o que veio depois não foram mais que combinações e recriações”, adianta. Além disso, mais do que uma inflexão ou uma nova atitude artística, este veio a reconhecer-se como uma tradição. “Nos primeiros tempos esta noção quase rompeu de forma inadvertida, mas André Breton não tardou a dar-se conta dela e assumiu-a com valerosa lucidez”, lembra Paz.
Este poeta mexicano que contactou com os membros do grupo original em Paris diz ter-se apercebido do que unia aquele movimento às seitas gnósticas dos primeiros séculos, ao hermetismo neoplatónico do Renascimento e à intricada e poderosa rede subterrânea do iluminismo que atravessa os séculos XVIII e XIX. No entender de Paz, isto explica essa dupla vertente do surrealismo: “foi uma revolução, algo que começa, e uma tradição, algo que regressa”. E é também ele que caracteriza esses “graves críticos” que hoje se debruçam sobre aquele advento espantoso e, comportando-se como coveiros profissionais, se apressam a enterrá-lo e a garantir que se trata de um movimento do passado. “A sua acta de defunção havia sido estendida, não sem prazer, pelos notários do espírito. Para descanso de todos, o surrealismo dormia já o sonho eterno de outras escolas de princípios do século: futurismo, cubismo, imaginismo, dadaísmo, ultraísmo, etcétera. Bastava, pois que o historiador da literatura pronunciasse o seu pequeno eleogio fúnebre para que, já tranquilos, voltássemos às nossas ocupações diárias. O maravilhoso quotidiano estava morto. Na realidade, nunca tinha existido. Apenas existia o quotidiano: a moral do trabalho, o ‘ganharás o pão com o suor do teu rosto’ o mundo sólido do humanismo clássico e da prodigiosa ciência atómica.”
Acontece que a natureza humana permanece insatisfeita. O homem é ainda essa criação inacabada, e nele persistem a imaginação e o desejo, talvez mais degradados e até num grau mais incipiente, afastado da sua natureza agressiva, dessa arrogância capaz de se mostrar de tal modo selvagem que dissuada qualquer tentativa de o capturar e vergar. Talvez nunca tenhamos estado tão alinhados com a religião do conformismo, mas o certo é que vão surgindo sinais de um renovado desejo de destruir tudo, de dar origem a uma rebelião total que faça tábua rasa da civilização racionalista que faz do homem apenas uma peça num feixe de estruturas que humilham qualquer perspectiva de uma existência aventurosa. Tem ficado claro, por vezes da forma mais grotesca nas manifestações populares, que a casa construída pela civilização ocidental começa a parecer-se cada vez mais com uma prisão, um labirinto sangrento ou um matador colectivo, isto nas palavras de Octavio Paz. “A vida recusa-se/ Os olhos ninguém os pode vazar/ Beber seu brilho nem suas lágrimas/ O sangue acima deles só para si triunfa/ Intratável desmedida/ Inútil/ Esta saúde edifica uma prisão”, isto nas palavras de Éluard. E não é estranho, portanto, que se recusem as evidências científicas, que a própria noção de realidade tenha entrado em crise, e que cada vez ganhe maior expressão o número desses que simplesmente anseiam por uma saída. Se uma não for encontrada, haverá motins, conflitos civis despontando por disputas aparentemente espúrias, mas que revelam, no fundo, uma incapacidade de coincidir com um mundo onde as necessidades do espírito têm sido amesquinhadas e negadas. E o certo é que o “cadáver” do surrealismo continua a lutar contra este imenso caixão onde fomos todos enterrados vivos. A sua insurreição foi desde sempre contra um certo “realismo” cada vez mais estreito e intolerável que a nossa sociedade nos impõe. Assim, como vinca Octavio Paz, “ao mundo de robots da sociedade contemporânea, o surrealismo opõe os fantasmas do desejo, que se mostram dispostos sempre a encarnar num rosto de mulher”.
E é aqui que entra a poesia de Éluard, especificamente aquela que escreveu enquanto se manteve fiel a essa aspiração de transformar a realidade, estando dedicada, segundo a tradutora, “às facetas irregulares do pensamento amoroso, e desdobrada em descrições das múltiplas roupagens do desejo”. Anteriormente, António Ramos Rosa, também seu tradutor, dizia-nos que esta é uma poesia em voz baixa, um murmúrio apaixonado e veemente, uma poesia interior do sonho e do desejo, que o poeta mistura livremente ao espaço do mundo real. “Nenhum outro poeta nos dá tão luminosamente a impressão de jamais sair do seu coração”, asseverava. Por sua vez, o crítico Jean Tortel fala na inspiração privilegiada de Éluard, que fez dele “o mais feiticeiro nos acasos, o mais singular na evidência”, acrescentando: “Ele canta no efémero para aí eternizar a sua voz. Ele fala sem ter nada que dizer e só diz o que quer dizer. É a grande voz branca deste século.”
De um lado temos a ideia de utilidade, a qual, segundo explica Paz, não é mais que a degradação moderna da noção de bem, do outro lado temos o amor. E Éluard bateu-se por essa forma de recusa, o amor como resolução e saída. “Só tenho vontade de te amar/ Uma tempestade enche o vale/ Um peixe enche o rio/ Fiz-te à medida da minha solidão./ O mundo inteiro para nos escondermos/ Dias e noites para nos compreendermos/ Para já nada ver nos teus olhos/ Além do que penso de ti/ E dum mundo à tua imagem/ E dos dias e das noites pautadas pelas tuas pálpebras.” O elo entre os amantes renova assim um pacto com uma outra ideia das forças que deviam presidir a construção da realidade em comum. Por isso o poeta escreve: “E o teu amor parece-se com o meu desejo perdido”.
Num mundo em que a nossa ideia de realidade está cada vez mais impregnada pela noção de utilidade, em que os entes e os objectos que o constituem se arrumam em categorias tão ridículas, em que o progresso nos leva a encarar o próprio mundo como um vasto utensílio, e nada escapa a esta relação – nem a natureza, nem os homens, nem a própria mulher –, tudo existe em função de algo que acaba por ser alheio à maioria de nós, e, por essa razão, as instituições da nossa sociedade, com o perverso regime burocrático através do qual se reforçam e nos esmagam, parecem-se com hospícios, nos quais todos nós vamos sendo admitidos e submetidos ao programa de requalificação enquanto instrumentos ao serviço de um mundo que foi convertido “numa gigantesca máquina que gira no vazio, alimentando-se sem cessar dos seus detritos” (Octavio Paz, uma vez mais). Nisto, o que o poeta enquanto espírito que salvaguarda a sua inocência, a sua capacidade de espanto, de horror, que não se habitua aos mecanismos da perversidade por mais que estes tenham impregnado a própria noção de realidade, o que o poeta nos diz é algo deste teor: “Constatou-se que se refugiaram nos ramos nus duma cortesia desesperada”. Até que os homens sejam degradados na sua condição e passem a actuar como um vírus, resta-lhes a fragilidade dos seres isolados, dos sacrificados, daqueles que se submetem à ausência de propósito e até a uma “morte sem consequência”. Ao menos isso: no fim, a morte poderia ao menos ser um acto de disposição singular e afirmante, mas, por agora, é apenas mais outro sintoma dessa abdicação geral. Era, de resto, esse o título do livro que Éluard publicou em 1924: “Morrer de não morrer”, e continha uma preciosa dedicatória: “Morro…/ Para simplificar tudo/ dedico este livro/ a André Breton”. É certamente uma das mais espantosas dedicatórias que conhecemos, desde logo pelo sinal de entrega, de confiança esplendente no juízo de um outro. É contra os gestos que se detêm antes de tempo, contra essa hipocrisia que tomou conta de tudo, que o poeta se submete a um auto-exame rigoroso: “De tudo o que disse de mim o que é que resta/ Guardei falsos tesouros em armários vazios/ Um navio inútil junta a minha infância ao meu tédio/ Os meus jogos ao cansaço”… E mostra como o impulso da crítica deve começar por si mesmo, e só então se expande ao redor: “Não se pensa na ignorância/ E a ignorância reina/ Sim eu esperei tudo/ E desesperei de tudo/ Da vida do amor do esquecimento do sono/ Das forças das fraquezas/ Já ninguém me conhece/ O meu nome e a minha sombra são lobos.”
Num dos textos incluídos nesta antologia (“Em Sociedade”), o poeta parece antever as fronteiras do erro para o qual resvalámos: “eis os cegos que não consentem em pôr o pé onde falta o degrau, eis os mudos que pensam com palavras, eis os surdos que mandam calar os ruídos do mundo”. Fala-nos ainda no “cálculo mais rasca” que faz com que os olhos quotidianamente se fechem. “Só favorecem o sono para depois mergulharem na contemplação das mãos laboriosas que nunca fizeram o mal e que se aborrecem e que aborrecem toda a gente. Odioso tráfico. Tudo isso vive: esse corpo paciente de insecto”…
Encontramos “o chão por toda a parte dividido”, e corpos mal apoiados nas suas sombras como em muletas, enquanto se cumprem as necessidades mais básicas, até a vida ser só isso, e acabar ela mesma um tráfico de ilusões adiadas ou esvaziadas de sentido. “Quanto mais avanço, mais a sombra cresce. Em breve estarei sitiado pelos seus monumentos destruídos e suas estátuas derrubadas (…) Agora só existe uma maneira de sair desta escuridão: ligar a minha ambição à miséria singela, viver toda a minha vida no primeiro escalão da noite, pouco acima de mim, próximo das aves nocturnas. Separado desta terra, desta sombra que me sepulta.”
Olhamos à volta, e nem somos capazes de interceder junto dos que nos são mais próximos. Tornamo-nos frágeis até no território da intimidade, a qual se vai dissipando, até não se poder salvar e nem sequer tocar o próprio filho. “Em lugar de uma filha, tenho um filho. Deu um tiro na cabeça, puseram-lhe um penso, mas esqueceram-se de lhe tirar o revólver. Voltou a fazer o mesmo. Estou à mesa com todas as pessoas que conheço. De repente, alguém que eu não vejo chega e diz-me: ‘O teu filho deu sete tiros na cabeça e não morreu.’ Só então um imenso desespero me invade, então desvio-me para que não me vejam chorar.”
Como já se referiu, nesta antologia comparecem apenas poemas escritos entre 1916 e 1936, ou seja, antes da ruptura com o surrealismo e com Breton, em 1938, num afastamento que se ficou por uma ferida silenciosa, um corte do qual Breton não se refez, tentando até ao fim chamá-lo de volta, mas Éluard tornara-se uma figura estratosférica, e não olhou mais para trás. Ensaiando o que poderia ser lido como uma defesa, no início do texto já acima referido (“Em Sociedade”), Éluard diz-nos isto: “Não me arrependo – mas só porque o arrependimento não é uma forma suficiente do desespero – do tempo em que eu era desconfiado, em que ainda esperava ter algum inimigo a vencer, alguma brecha a abrir na natureza humana, algum esconderijo sagrado. A desconfiança ainda era a paragem, o deleite na constatação do finito.” Seja como for, pode dizer-se que muitos dos seus versos parecem ter-se cumprido e sobrevivido mesmo aos escrúpulos ou aos remorsos que lhe faltaram, e enquanto um dos autores que melhor se soube valer dos instintos recobrados pelo surrealismo, pode dizer-se que colheu flores bem profundas, dessas que servem como provas de uma primavera autónoma e perpétua. Soube descobrir esse vislumbre como “a derradeira aflição à flor dum rosto transformado”. Por isso, foram dele momentos de fabulosa inspiração, e isso tem consequências, e é talvez o que levou a escrever um verso como este: “E tudo quanto dizes atrás de ti se agita.”
O desacordo de fundo deu-se quando o papa do surrealismo entender por fim que a vontade de emancipação mais ampla do homem e dos seus sentidos entrara num conflito insanável com a disciplina imposta aos seus membros pelo partido comunista. De qualquer modo, embora a participação de Éluard desde o início nas actividades do grupo, Breton lembraria que esta sempre foi um tanto reticente: “entre o surrealismo e a poesia, no sentido tradicional do termo, a finalidade desta última surge-lhe como muito mais clara, o que, do ponto de vista surrealista, constitui a heresia maior (como se a estética, que havíamos proscrito, se servisse dessa porta para voltar)”. Sem deixar de reconhecer ao antigo companheiro as qualidades sensíveis pelas quais a sua personalidade se impôs, Breton acusa-o de uma atitude retrógrada e de uma contradição formal com o fim último do movimento que haviam criado, pois Éluard haveria de abdicar da rebelião total e do desacato mais íntimo, desde logo desse esforço de desregramento dos sentidos, para se colocar em linha com a perspectiva do materialismo histórico, e tornar-se uma das celebridades daquele outro sistema que reivindicava “o monopólio da transformação social do mundo” mas que, no entender de Breton, ao invés de estarem comprometidos com a libertação do homem poderiam na verdade estar a condená-lo a uma escravidão ainda pior do que aquela em que já se encontrava. Mas depois Éluard tinha esse seu triunfo que cria uma espécie de cegueira, essa sua relação privilegiada com a simplicidade fulgurante dos versos que lembram o rapto amoroso: “A minha imaginação amorosa foi sempre suficientemente constante e suficientemente elevada para que ninguém ouse tentar convencer-me dos meus erros.” E não foram poucos. Mas o amor, mesmo se chega a tornar-se um equívoco quase sórdido, é talvez um dos aspectos do sonho que melhor soube ancorar-se na realidade, neste mundo doloroso, o que resiste até à última é essa perspectiva de encontro, essa relação cativante que nos tem a catar as priscas do acaso para saborear nelas essa outra boca fresca e feroz que, se por um momento pousasse na nossa, talvez nos restituísse à integridade, a de um corpo pesado de amor, capaz de nos aliviar até do sufoco a que nos condena uma existência mesquinha. Cada vez mais temos a sensação de que “o amor está no mundo para o mundo ser esquecido”, sendo impossível adequar um ao outro. Ora, dentro dessa rara aristocracia evasiva, Éluard cedo assumiu esse que é, de todos, um dos principais títulos de nobreza ainda ao dispor, o de ser considerado um dos grandes poetas do amor. Veja-se o poder sedutor e a quase sagrada simplicidade de se dizer isto: “Alfazema/ Toda a extensão da mulher”. O encantamento da sua poesia está na forma como “encandeia o amor suas sombras insurrectas”. Mesmo nas épocas mais desesperadas, quando este assunto, nos parece já praticamente encerrado, há um contingente constante de seres que mergulham nos seus arquivos, que o estudam e lhe repassam o rastro, para se medirem contra os grandes amantes, e mesmo quando mais tarde a experiência amorosa se revela humilhante, há quem tome nota de todo o mal que lhe foi feito. Éluard escreve isto: “E oponho ao amor/ As imagens já feitas/ Em lugar das imagens a fazer…” Não pode haver oposição mais dilacerante, provas mais irrefutáveis, e a dor vem de ser evidente como não nos resta já futuro para aguentar com a sombra e o eco da pulsação desse passado imenso que virá cobrar ainda tudo o que lhe é devido e a seu tempo foi ignorado. “na renda dos desaparecimentos/ O abismo desvendou-se os outros que o apaguem/ As sombras que crias não têm direito à noite.” Muitas vezes, esta é uma poesia que funciona melhor enquanto se mantém naquele registo oracular, adquirindo outros sentidos, como reconhece a tradutora, Regina Guimarães, que teve de se confrontar com essa margem de irradiação em que cabem sempre “outras tantas versões da ideia de obra, outras tantas aversões ao fecho da abóbada, outras tantas dúvidas quanto à fixação da matéria instável de que são feitos os versos”. As escolhas tornam-se decisivas quando o esforço passa por capturar “Todo o sol à face da terra/ Nos caminhos da tua beleza”. E se é tão proveitoso desenhar outros caminhos, separando versos mais salientes numa obra que parece convidar a um deslocamento e a uma renovação perpétua dos sentidos, por vezes há poemas, sobretudo esses de amor, em que a integridade merece todo o respeito. É ocaso do tão conhecido e citado poema “A Curva dos Teus Olhos”, ou deste excerto do livro “O Amor à Poesia” (1929): “Tão calma a pele cinzenta extinta calcinada/ Exaurida pela noite presa nas suas flores de geada/ Da luz só lhe restam as formas// Enamorada fica-he bem ser bela/ Não espera pela primavera./ O cansaço a noite o repouso o silêncio/ Todo um mundo vivo entre astros mortos/ A confinaça no poder durar/ É sempre visível quando ela ama”. E depois, desgarrados, há outros versos que colhemos no arranjo que cabe a cada leitor fazer: “O sono conserva o [s]eu molde (…) A sua cabeça adormece nas minhas mãos (…) E a minha cabeça rola nos sonhos dela.”
Para os surrealistas o amor era algo tão decisivo porque era na pessoa amada que se enlaçavam liberdade e necessidade. O amor, como frisa Octavio Paz, revela-nos a forma mais elevada da liberdade: “livre escolha da necessidade”. Por sua vez, Mário Cesariny lembra que, “como no acto mais vital, o do amor, o surrealismo nasce do ensaio de fusão de duas mentes adultas e individuadas em estado de delírio voluntário, trazido pela primeira vez ao mundo ocidental nas páginas de ‘Les champs magnétiques’, de Breton e Soupault, escritas ainda na época dadá e publicadas em 1920. Mais tarde repetirá com extraordinário fulgor poético o mesmo feito, levando-o mais longe, levando-o a ensaios de simulação de estados patológicos psiquiatricamente só reconhecíveis nos ‘verdadeiros doentes’ mentais: debilidade, mania aguda, paralisia geral, delírio de interpretação e demência precoce. O poder da paixão, da imaginação, do desejo aniquilador dos universos de categorias e perseguindo não ‘a igualdade dos contrários’ mas a sua fusão fecundadora, nesses dois livros como em muitos outros, são o próprio exercício da fala surrealista, nunca erguida ‘contra a realidade’ mas contra ‘o pouco de realidade’”. Ou seja, aqueles que têm em si a soberania de se deixarem levar à loucura são os únicos capazes de lançar um genuíno movimento de rebelião e libertação face a uma sociedade que pretende internar-nos nas suas instituições que trabalham para constranger a ideia que fazemos da realidade e das nossas verdadeiras possibilidades de eleger uma “verdadeira vida”, longe desses grosseiros constrangimentos. É preciso, num certo sentido, enlouquecer de modo a ser capaz de uma actividade empenhadamente destrutiva, uma revolução que terá de passar antes de tudo por rejeitar todo o conteúdo moral deste presídio onde estamos trancados. Curiosamente, o amor surge aqui como o principal acto de rebelião, mas é preciso começar primeiro por despojá-lo “desse sabor amargo que a poesia não tem”. E então somos reencaminhados para essa similitude que Breton traça entre os actos da poesia e do amor: “A poesia faz-se na cama como o amor/ Os seus lençóis desfeitos são a aurora das coisas/ A poesia faz-se nos bosques (…) O abraço poético como o abraço carnal/ Enquanto perduram/ Proíbem-nos de cair na miséria do mundo.” Assim o amor e a poesia reforçam-se um no outro, abrindo a nossa consciência a uma outra relação face ao mundo e, desde logo, face ao próprio tempo, que não tem de ser encarado apenas como sucessão: “ontem, hoje, e amanhã deixam de ter significado”, diz-nos Octavio Paz: “apenas resiste um sempre que é também um aqui e agora”. E é neste ponto que o contributo de Éluard se revela decisivo, pois ele traça essa identidade comum entre amor e poesia e encara a mulher como a morada terrestre do homem: “Mulher dás à luz um corpo sempre igual/ O teu// És a semelhança.”
Esta ideia de semelhança aponta, segundo Paz, para um ideal e uma necessidade de correspondência que está em todos nós e nos predispõe a essa busca que se confunde com o próprio sentido da vida. E a resolução começa na percepção de que, neste mundo, “tudo rima, tudo se chama e se responde”, adianta Paz. “Como acreditavam os antigos, e sempre o sustiveram os poetas e a tradição oculta, o universo compõe-se de forças em oposição que se unem e separam de acordo com um certo ritmo secreto. O conhecimento poético – a imaginação, a faculdade produtora de imagens em cujo seio os contrários se reconciliam – deixa-nos vislumbrar a analogia cósmica. Baudelaire dizia: ‘A imaginação é a mais científica das nossas faculdades porque só ela é capaz de compreender a analogia universal, aquilo a que uma religião mística chamaria a correspondência (…) a natureza é um Verbo, uma alegoria, um modelo’”.
A força muito particular de uma antologia como esta consegue ser ainda mais prometedora por inaugurar uma nova colecção de uma editora que nos tem dado tanto do melhor como do pior que se vai publicando à margem dos esquemas do mercado, embora nem sempre desatenta das persistentes ilusões de uma suposta legitimação literária de personagens de um enredo algo patético. Depois da colecção Avesso, dirigida por Rui Manuel Amaral, a editora Exclamação abre agora espaço para os Elefantes, chancela em que Amaral surge ao lado de Regina Guimarães, evocando essa aristocracia possante e, em geral, paciente, procurando firmar pisadas “com o peso luminoso dos meteoros, a corpulência dos mercadores de memória e a fabulosa elegância dos seres em vias de extinção”, os quais se propõem atravessar também entre nós os territórios da poesia, hoje, desertificados pelo ruído, sendo que esta colecção se impõem o objectivo de providenciar a água que anima a leitura. A edição deste livro consegue impor um contraste com tantos outros publicados pela mesma editora, e traz também uma boa dose de irrisão ao vincar que “ainda deve ser possível contrariar as exigências do design de produto aplicado à edição e fazer uma colecção de excepções”. Esperemos que sim, reconhecendo embora que muitas vezes estes esforços se oferecem como a tempestade “que distribui as armas desastradas/ às ervas e aos insectos”. Afinal, como tem sido notório na edição portuguesa, e para nos servimos da previdência dos versos de Éluard, tem-se visto como “O desejo e o enfado confraternizam/ Carrossel das manias/ Tudo está esquecido/ Nada é sacrificado/ O cheiro dos escombros persiste”, e hoje damos por tantos que usam a leitura como mais outra distracção, um modo distinto, ainda que com o mesmo resultado, de manter os olhos fechados. A este respeito, Éluard frisava que “a objectividade poética só se alcança na sucessão, no encadeamento de todos os elementos subjectivos de que o poeta é, até nova ordem, não senhor mas escravo.” A diferença entre o poeta e esse que apenas se faz coroar, pois precisa de um título, é que aquele sabe que o que conta é ir até ao fim. Por isso, Éluard enaltece essas “filhas de nada prontas a tudo/ irmãs das flores sem raízes (…) reduzidas à inteligência/ à razão até morrer”. Faz toda a diferença que da poesia que se escreve ou se traduz e edita não se possa sair impune, e que, tal como os sonhos que se tem, haja consequências. Essa é a beleza para a qual se dirigem os mais intrépidos, os sonhadores definitivos, uma beleza “mais simples do que a desgraça”, e que é alimento da carne, tornando-a expressiva. Hoje, muita da edição de poesia participa num registo de ofuscação também ele da necessidade urgente de se organizar o pessimismo, de se alcançar um compromisso mais largo e para que os versos não sejam senão alguns pássaros mais desses que perfumam os bosques um momento antes destes serem abatidos.”
Diogo Vaz Pinto, em artigo publicado no Jornal I,13.06.2022

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Maman

Maman, quand tu es en colère,
Je t'aime de travers.

Maman, quand tu t'en vas,
Je t'aime couci-couça.

Maman, quand tu es de bonne humeur,
Je t'aime de tout mon coeur.

Maman, quand tu me cajoles,
Je t'aime sans parole.

Maman, quand je te dis ce poème,
Comprends tu combien je t'aime.

Marie Aubinais
, escritora e jornalista


Nota : Encantei-me com este poema. A autora é Marie Aubinais, nascida em Nantes a 23 de Maio de 1960, especialista e autora  em literatura infantil. Jornalista e escritora  há longos anos, foi  directora da redacção  da "Pomme d'Api" ( 2004). Participou no desenvolvimento de bibliotecas de rua , em Angers e na região de Paris. Durante mais de vinte anos, escreveu, mensalmente, as histórias   do "Petit Ours Brun".