sexta-feira, 31 de março de 2023

Balanço severo

 
Tanto tempo que, na vida, perdemos.
Tantos gestos lindos que não fizemos.
Tanta boa dádiva que não demos.
Tanto que quisemos e não quisemos.
 
Tanta desatenção, tanto não ver.
Tanta luz que ficou por acender.
Tanto que morreu antes de nascer.
Tanto fogo que ficou por arder.
 
Tanta vida sempre tão mal vivida.
Tanta ardência, mas sempre mal ardida.
Tanta esperança tão mal cumprida.
 
Tanta coisa que tanto se sonhou.
Tanto que se perdeu e não achou
ou, antes de começar, acabou.
                               31.03.2023
Eugénio Lisboa

O homem sem qualidades

 
O homem sem qualidades
por Robert Musil
“Nesse momento ele desejou ser um homem sem qualidades. Mas provavelmente em todas as pessoas se passa algo semelhante. No fundo, poucos sabem, no meio da sua vida, como se tornaram aquilo que são, com os seus prazeres; a sua visão do mundo, a esposa, o carácter, profissão e realizações, mas têm a sensação de que já não se poderá mudar lá muita coisa. Até se poderia afirmar que foram traídas, pois não se encontra em lugar algum uma razão suficientemente forte para tudo ter sido como é; poderia ter sido diferente; os acontecimentos raramente dependeram delas, em geral dependeram de uma série de circunstâncias, do capricho, vida, morte de outras pessoas, e apenas se lançaram sobre elas num momento determinado. Assim, na juventude ainda jazia à frente delas algo como uma manhã inesgotável, cheia de possibilidades e de vazio por todos os lados; mas já ao meio-dia aparece de repente algo que pode pretender ser a vida delas; isso é tão surpreendente como certo dia, de súbito, vermos uma pessoa com quem nos correspondemos durante vinte anos sem a conhecer, e a tínhamos imaginado tão diferente. Mas muito mais estranho ainda é que a maioria das pessoas nem notam isso; adoptam o homem que apareceu nelas, cuja vida viveram;  as suas experiências lhes parecem agora a expressão das próprias qualidades, e o  destino lhes parece ser seu próprio mérito ou desgraça. Passou-se com elas o que acontece com um papel pega-moscas e uma mosca: aquilo colou-se nelas, aqui por um pelinho, ali por um movimento, e aos poucos as envolveu, até que ficam enterradas numa camada grossa que corresponde só muito de longe à forma original que tiveram um dia. E então só recordam vagamente sua juventude, quando ainda tinham certa resistência. Essa outra força puxa e gira, não quer ficar em lugar algum e desencadeia uma tempestade de desnorteados movimentos de fuga; a ironia da juventude, sua rebeldia contra o estabelecido, a disposição dos jovens para tudo o que é heroico, o sacrifício pessoal e o crime, sua fervorosa seriedade e sua inconstância — tudo isso não significa senão movimentos de fuga. No fundo, apenas expressam que nada daquilo que o jovem empreende lhe parece necessário e unívoco, nascido do seu interior, embora o manifestem como se tudo aquilo em que agora se precipitam fosse absolutamente inadiável e necessário.”
Robert Musil, in O Homem Sem Qualidades. Livro I, cap. 34, Publicações Dom Quixote, 1978. p. 96. 
Sinopse
Prémio Goethe em 1933.
"Pela primeira vez traduzido directamente da língua alemã por João Barrento.
Uma obra singular e única no panorama da ficção do século XX, um dos mais importantes livros da literatura mundial. Mais do que um romance, "O Homem Sem Qualidades" é o maior projecto romanesco, deliberada e quase necessariamente inconcluso e inconclusivo, da literatura do século passado.
No momento da morte inesperada de Musil em 15 de Abril de 1942, no exílio de Genebra, "O Homem Sem Qualidades" é verdadeiramente o “livro por vir”, aquele cuja essência – no seu protagonista acentrado, no processo da sua génese, no cerne do seu pensamento – é a de um laboratório de possibilidades que o transformarão na obra aberta por excelência e na “tarefa criadora [mais] desmedida” da história da literatura moderna. "O Homem Sem Qualidades" será, durante mais de duas décadas, a obra em processo de criação e transformação que se autonomiza e se impõe de forma obsessiva e implacável ao próprio criador, aprendiz de feiticeiro que a controla cada vez menos à medida que ela se vai transformando numa rede rizomática de possibilidades de crescimento e de perspectivas de finalização sempre adiada, que parece querer reflectir o próprio feixe aleatório de possibilidades que é aquilo a que chamamos “realidade”.
Se a ironia é neste livro, como diz Blanchot, “um dom poético e um princípio de método” que modula, não apenas a palavra mas também a própria composição romanesca, na oposição contrapontística permanente e irresolvida entre “a exactidão e a alma”, a reflexão e os sentimentos, o indivíduo em busca de si e o mundo dos factos (nas vésperas da Primeira Grande Guerra), essa mesma ironia haveria de determinar todo o acidentado e contraditório processo de génese e de publicação deste objecto literário esquivo que, ao contrario do que frequentemente se tem dito, será mais um não-romance do que um anti-romance."

Questionar o óbvio


Tantos que viram cair a maçã,
mas só um decidiu saber porquê!
Estranhar o óbvio é coisa vã?
O óbvio é mesmo óbvio ou quê?
 
Achar o óbvio muito pouco óbvio
ou o evidente pouco evidente
será mesmo coisa de pacóvio
ou suspeita de segredo ardente?
 
Estranhar o que nada tem de estranho
será um sinal de obtusidade
ou não querer inserir-se no rebanho
 
dos para quem nada é novidade?
Ver no óbvio uma dificuldade
abrirá portas pra outra cidade?
                        30.03.2023
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 30 de março de 2023

JOYCE – II

James Joyce
 
JOYCE – II
por Eugénio Lisboa
"Pois é, Joyce. No último número de LER, falei da minha prolongada inibição em relação à esmagadora aura de Joyce. Todo o mundo que se prezava lhe reconhecia grandeza e até uma grandeza muito especial: Joyce seria, pelos vistos, uma espécie de monstro esplendoroso e magnificamente sagrado – ninguém que lhe fizesse sombra, mesmo uma sombra recatadamente modesta. Erguia-se na paisagem literária, grande, imponente e só. Ora eu achara-o sempre - sem grande coragem para confessá-lo – um chato árido e irredimível. Durante muito tempo, curvei-me ao consenso. Depois, indignado com a minha própria cobardia, rebelei-me. Afrontaria, sozinho, se necessário, a avalanche consagradora daquele bizarro “génio” irlandês. Mas eis que vim a descobrir que, afinal, não estava assim tão irremediavelmente sozinho. Outros, entre fauna bem eminente, também rejeitavam - e em termos bem enfáticos – a grandeza do autor de Ulisses. E alguns iam mesmo ao ponto de caçoarem desbocadamente com as picardias hieroglíficas do Finnegans Wake. O diletante V. Ernest Cox, por exemplo, dedicou a este livro mais ou menos ilegível os seguintes versinhos maliciosos, que eu me dispenso de traduzir: “ Finnegans Wake / Is one long spelling mistake / With not a lot / Of plot.
Plot, coitado, não era o forte de Joyce. Nem a criação de verdadeiros personagens. Manipulações linguísticas, vá. Mas à quoi bon ?
O superintelectual Aldous Huxley também não foi macio para o bardo prosador do Ulisses. Ei-lo: “ Nunca tirei grande coisa do Ulisses. Penso que é um livro extraordinário mas uma tão grande parte dele consiste em demonstrações demasiado compridas de como um romance não deve ser escrito, não é verdade?” David Herbert Lawrence, o autor de Filhos e Amantes, que ninguém se lembraria de acusar de puritanismo, demite o desgracioso irlandês, atribuindo-lhe apenas “ citações da Bíblia e do resto, tudo cozinhado no molho de uma deliberada e jornalística sujidade mental”. Não se pode dizer que Lawrence tenha sido suave… Por outro lado, o romancista inglês Malcom Muggeridge despacha também, em poucas e decisivas palavras, o congeminador de Finnegans Wake:  “ Considerado como um livro […]Finnegans Wake deve ser pronunciado um autêntico fiasco. “. “Considerado como um livro “, diz Mggeridge , o que significa que talvez pudesse ser avaliado noutra qualquer categoria : hieróglifo, jogo linguístico, brincadeira para cabeçudos sem sentido de humor.
Evelyn WWaugh, génio do cómico da literatura inglesa, também não mede as palavras. Ei-las: “ Experimentação? Deus não o permita. Olhem para os resultados da experimentação, no caso de um escritor como Joyce. Começa por escrever muito bem, depois podemos vê-lo a enlouquecer, de vaidade. Acaba completamente lunático. “ Poderia aqui citar outros testemunhos de gente egrégia: Virginia Woolf , por exemplo ( “Nunca li tanto disparate “,  ou ainda : “ A independência do Sr. Joyce  no Ulisses parece-me ser a indecência calculada e consciente de um homem desesperado que é de opinião que, para poder respirar tem de quebrar as janelas. Por momentos, quando a janela se quebra , ele é magnificente . Mas que desperdício de energia!”, entre vários outros. Mas não quero atravancar o leitor com tanta artilharia anti-Joyce. Embora não resista a terminar, registando aqui o juízo benevolente , mas enviesadamente demolidor do juiz americano John Woolsey, que decidiu , nestes termos, permitir a circulação do Ulisses nos Estados Unidos. “A minha considerada opinião, após longa reflexão, é a de que embora em alguns pontos o efeito de Ulisses sobre o leitor pudesse ser o de lhe provocar vómitos, em lugar nenhum tenderá o livro a mostrar-se afrodisíaco. Ulisses pode , portanto, entrar nos Estados Unidos."
Eugénio Lisboa , in Ipsissima Verba , Revista LER,  Inverno 2016/2017, nº144

quarta-feira, 29 de março de 2023

Elogio do Perguntar

Vassily Kandinsky, Composição VIII, 1923, Museu Guggenheim


Descobrir o princípio de Arquimedes
é fácil: basta saber estranhar.
Se, à curiosidade, tu cedes,
não hás de hesitar em perguntar.
 
Perguntar é o começo de tudo.
O que pergunta quer sempre resposta
e o universo não fica mudo
a quem, na curiosidade, aposta.
 
Todos os cientistas perguntaram,
todos os filósofos o fizeram:
todos, com paciência, aguardaram
 
até que, dos segredos, dispuseram!
Perguntar é dar saber ao futuro,
porque é deitar abaixo um muro.
                               29.03.2023
Eugénio Lisboa

A propósito da Liberdade

A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida. 
Miguel de Cervantes,
(29 de Setembro de 1547-  22 de Abril de 1616) in "Dom Quixote".

terça-feira, 28 de março de 2023

JOYCE – 1

JOYCE – 1
por Eugénio Lisboa
"Como quase toda a gente – há excepções! – tenho-me enganado. Mais precisamente, tenho-me deixado enganar. O que nem chega a ser grave dizia alguém que não comete erros  também, de uma maneira geral, não comete coisa nenhuma. Estou , como não é evidente, a falar de Joyce. Para ser franco, achei-o  sempre um bocado  sobre o “fitirioso” ( de phthirus pubis, isto é, “chato”. Uma das maiores estopadas da minha vida foi assistir , num cinema de Londres, em fim de tarde de inverno, à exibição do filme  Ulisses, de Joseph Strick, baseado na obra do mesmo nome , de Joyce. Éramos quatro, - eu, mimha mulher, o meu amigo Carlos Adrião Rodrigues  e a mulher: fizemos, os quatro, uma das grandes sonecas  da nossa vida. O filme, como o tão alardeado livro que lhe esteve na origem , era soberana e ultrajantemente chato (  de phthirus pubis, recorde-se). Mas quando eu era novo, era tímido : quem era eu, para se opor a todos os veneráveis  escritores e eruditos que promoviam Joyce como um dos três ou quatro indiscutíveis  GRANDES do século XX? ( De SEMPRE!) Como diria o Eça , curvei o espinhaço. Não gostava , mas não me atrevia. Não diria que não nem que sim ( era cauteloso mas não mentiroso): calava-me , com ar hipocritamente respeitoso: Joyce, claro!
Depois, um dia, achei que era melhor deixar-me de hipocrisias e adoptar o franc parler  tão caro ao meu grande Sthendal. Pus-me a “ testar” os meus amigos: quando, timidamente, circunvolutamente,  se punham a entaramelar o que não pensavam de Joyce, eu interrompia-os  de chofre com  um “ Que grande chato!". O resultado da minha iconoclastia era esplendoroso: o supremo alívio que se reflectia naqueles rostos macerados! Enfim, alguém se atrevia  a dizer o que eles também, muito secretamente, pensavam! Que fardo tirado de cima dos seus frágeis ombros!
Mas sentia-me só. Não haveria, entre os grandes  cognoscenti, quem estivesse de acordo comigo? Até que, há dias, lendo umas deliciosas e sempre provocantes entrevistas de Jorge Luís Borges, dei com algumas passagens que me restituíram  a autoestima. Borges começava por insinuar que era a sua grande admiração por Cervantes que lhe obstruía por completo a adesão ao irlandês. Depois, ia mais longe e afirmava: “ Joyce é uma espécie de curiosidade literária, um pouco como Gôngora.” E acrescentava, literato como Gôngora e Quevedo. Talvez Cervantes fosse muito diferente e superior. De resto”, concluía “ a comparação é impossível , porque ele era romancista e Joyce não. O talento deste último, como o de Gôngora, era verbal , mas aplicável a composições breves do que a um romance longo […]. O erro de Joyce foi o de dedicar-se a escrever romances. Deste modo,  conseguiu frases esplêndidas, mas não criou personagens”. Isto já era suficientemente forte, em termos de consignar uma boa parte da obra do escritor para o cesto dos papéis, embora, até aqui, Borges preservasse as boas maneiras  e não se atrevesse a uma execução sem apelo. Mas, mais adiante, não esteve  com meias-medidas e concluiu assim: “ Ulisses e Finnegans Wake [são] autênticos malogros. “  Quanto a este último romance , a minha opinião é mais benigna: não se trata sequer de um romance – não foi isso que empreendeu o escritor – mas de um daqueles saudosos “ hieróglifos comprimidos”, que inundavam as páginas do antigo Alm, insuspeito anaque Bertrand.
Para me sentir  mais amparado – Borges é um magnífico amparo, mas a sua verve de “ gamin” pode parecer a alguns , pouco respeitável – fui procurar outras bengalas e elas surgiram em barda: afinal , não estava assim tão só! Hoje fico-me pelo grande dramaturgo George Bernard Shaw, insuspeito porque até é também irlandês: “ Na Irlanda, diz o autor de Pigmalião, “ tentam limpar um gato, esfregando-lhe o nariz na própria imundície. O Sr. Joyce tentou o mesmo tratamento com o ser humano. Espero que prove ter êxito”.
No próximo número de LER, a festa continua: talvez o melhor esteja ainda para vir…"
Eugénio Lisboa,  em Ipssima verba,  Revista LER , nº 143, Outono de 2016 
Cena do filme Ulisses, de Joseph Strick, baseado no livro de Joyce

segunda-feira, 27 de março de 2023

Gato à janela

Explicou-me tudo a minha gatinha:
o sol que, ao meio dia, vem à janela,
traz uma caloria bem quentinha,
prá gatinha se poder deitar nela!

A gatinha percebe muito bem
que o universo esteja ao seu serviço:
o sol, a Via Láctea, são refém
do que manda o felino feitiço!

O gato sabe que tudo lhe obedece,
que tudo dança à ordem da batuta,
que, de caprichos, não se compadece!

Ao sol que aquece, o gato imputa
que seja assíduo à janela,
para que se possa aquecer nela.
                         27.03.2023
Eugénio Lisboa

Ensinar é Aprender


Ensinar é Aprender
(provérbio japonês)
 
No ensinar está o aprender:
é quando se ensina que se aprende.
Só desaguamos no compreender,
quando, ante nós, o aluno se rende.
 
Ensinar é compreender melhor.
Aprender é ser capaz de ensinar.
Quem dá recebe e torna maior
o seu dom já grande de semear.
 
Ensinar é aprender, como diz
um antigo provérbio japonês.
Não há pois mal em ser-se aprendiz,
 
porque muito aprende, com avidez,
o que ensina para compreender
o que, assim, se torna bom saber!
                            26.03.2023
Eugénio Lisboa

domingo, 26 de março de 2023

Ao Domingo Há Música

Joaquin Sorolla, 
Há domingos assim
"(...)Sim há domingos que nos fazem pensar  que há domingos
e não porque haja sinos mais ou menos gente fatos coloridos  e novos 
mas talvez porque há sol ou toldos ou vultos leves toldados
coisas que nos levam a ser de uma forma ligeiramente diferente
só por ser domingo e pensarmos que esse dia é domingo"
Ruy Belo, Obra Poética ,volume 2

...Assim, por ser domingo,  a música  abre o dia de forma ligeiramente diferente .
 
 Concerto para piano n ° 1, de Piotr Ilitch Tchaikovski (1840-1893), por Lang Lang. (ensaio) .
 Extracto de repetição do ensaio do concerto de 15 de Janeiro de 2015,   com a orquestra de Paris,  regida pelo maestro  Paavo Järvi.

sábado, 25 de março de 2023

Monólogo do gato, em voz baixa

 
Estes bípedes são tão previsíveis!
Inventaram carros e aviões,
submarinos, balões dirigíveis,
e, com isso, ficaram fanfarrões.
 
Mas qualquer gato os vira do avesso,
fazendo-se muito engraçadinho,
com arzinho dengoso e travesso,
deixando-os mesmo pelo beicinho!
 
Os coitados julgam que nos dirigem,
pensam que, com eles, nós aprendemos!
Mas, francamente, eles só nos afligem,
 
se se derretem, quando os lambemos.
É tão fácil enganar um humano,
que se baba todo, ao ver um bichano!
                               25.03.2023
Eugénio Lisboa

A força dessas visões magníficas

"Minha alma inunda-se de uma serenidade maravilhosa, harmonizando-se com a das doces manhãs primaveris que procuro fruir com todas as minhas forças. Estou só e abandono-me à alegria de viver nesta região criada para as almas iguais à minha. Sou tão feliz, meu amigo, e de tal modo mergulhado no tranquilo sentimento da minha própria existência, que esqueci a minha arte. Neste momento, ser-me-ia impossível desenhar a coisa mais simples; e, no entanto, nunca fui tão grande pintor. Quando em torno de mim os vapores se elevam do meu vale querido, e o sol a pino procura devassar a impenetrável penumbra da minha floresta, mas apenas alguns dos seus raios conseguem insinuar-se no fundo deste santuário; quando, à beira da cascata, ocultas sob os arbustos, descubro rente ao chão mil diferentes espécies de plantazinhas; quando sinto mais perto do meu coração o formigar de um pequeno universo escondido em baixo das ervinhas, e são os insectos, moscardos de formas inumeráveis cuja variedade desafia o observador, e sinto a presença do Todo-Poderoso que nos criou à sua imagem, o sopro do Todo-Amante que nos sustenta e faz flutuar num mundo de ternas delícias...; então, meu amigo, é quando o meu olhar amortece, e o mundo em redor, e o céu infinito adormecem inteiramente na minha alma como a imagem da bem-amada; muitas vezes, então, um desejo ardente me arrebata e digo a mim mesmo: "Oh! Se tu pudesses exprimir tudo isso! Se tu pudesses exalar, sequer, e fixar no papel tudo quanto palpita dentro de ti com tanto calor e plenitude, de modo que essa obra se tornasse o espelho de tua alma, como tua alma é o espelho de Deus!..." meu amigo!... este arroubamento me faz desfalecer; sucumbo sob a força dessas visões magníficas. (...)"
Johann Wolfgang von Goethe, in Werther, Editorial Verbo

sexta-feira, 24 de março de 2023

Nélida Piñon

 
Nélida Piñon na sessão solene do centenário da
Academia Brasileira de Letras em 1997 — Foto: ABL


SOU MULHER, BRASILEIRA , ESCRITORA, cosmopolita,aldeã, criatura de todas as partes, de todos os portos.
                  Nelida Piñon, Uma furtiva lágrima

A escritora brasileira Nélida Piñon,  que morreu em Lisboa, a 17 de Dezembro de 2022, aos 85 anos, foi a primeira mulher no mundo a presidir a uma Academia de Letras em 100 anos,  eleita em 1989, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda. Recebeu inúmeros prémios e distinções no mundo literário e académico. Autora de mais de vinte livros, entre novelas, contos, literatura infanto-juvenil, ensaios e memórias, era tida pela Academia Brasileira de Letras como "uma das maiores representantes da literatura brasileira".
Nélida Piñon,(1937-2022), que se estreou com o romance "Guia-mapa Gabriel Arcanjo" publicado em 1961, recebeu o Prémio Internacional Juan Rulfo de Literatura Latino-Americana e do Caribe, em 1995, o que aconteceu pela primeira vez para uma mulher e para um autor de língua portuguesa, assim como o prémio Bienal Nestlé, na categoria romance, pelo conjunto da obra, em 1991, e o da APCA e o Prémio Ficção Pen Clube, ambos em 1985, pelo romance "A república dos sonhos".
Licenciou-se, em jornalismo em 1956, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, tendo colaborado em jornais e revistas literários e sido correspondente, no Brasil, da revista Mundo Nuevo, de Paris, e editora assistente de Cadernos Brasileiros.
A escritora tinha um vínculo estreito com Espanha, já que os pais e avós foram emigrantes galegos no Brasil, e foi-lhe concedida, no início deste ano, a nacionalidade espanhola.
Eis um   informativo registo que traça um longo retrato desta escritora , datado de 02.11.2020.

quinta-feira, 23 de março de 2023

A perfeição do gato

Quando o primeiro gato nasceu,
alguém, curioso, lhe perguntou:
“A perfeição existe?” Respondeu:
“Agora já existe, porque eu sou
 
aquele que a este mundo a trouxe!”
Há quem ache que isto é vaidade,
mas, a quem, da perfeição, tem a posse,
não se exige reserva de abade.
 
O gato é perfeito, acabou-se!
Não vale a pena espernear.
Com o gato, a perfeição fechou-se
 
e não se ganha com vociferar!
Diz que a perfeição não é deste mundo
só quem nunca olhou para o gato, a fundo!
                                        23.03.2023
Eugénio Lisboa

O segredo é amar...

O poeta beija tudo
por Sebastião da Gama
"O poeta beija tudo, graças a Deus... E aprende com as coisas a sua lição de sinceridade... E diz assim: "É preciso saber olhar..." E pode ser, em qualquer idade, ingénuo como as crianças, entusiasta como os adolescentes e profundo como os homens feitos... E levanta uma pedra escura e áspera para mostrar uma flor que está por detrás... E perde tempo (ganha tempo...) a namorar uma ovelha... E comove-se com coisas de nada: um pássaro que canta, uma mulher bonita que passou, uma menina que lhe sorriu, um pai que olhou desvanecido para o filho pequenino, um bocadinho de sol depois de um dia chuvoso... E acha que tudo é importante... E pega no braço dos homens que estavam tristes e vai passear com eles para o jardim... E reparou que os homens estavam tristes... E escreveu uns versos que começam desta maneira: "O segredo é amar..." 
Sebastião da Gama, in Diário, Lisboa, Edições Ática, 1975, 5.ª ed
 
Thomas Bergersen, em  Heart .

quarta-feira, 22 de março de 2023

O gato e os nichos

 
O gato e os nichos
                                 
                                         Aos meus inúmeros gatos
 
 
O gato é um grande inventor de nichos:
não cessa nunca de os descobrir,
dando total vazão aos seus caprichos,
em busca de lugar onde dormir.
 
Para fazer de nicho, tudo serve:
um livro, um papel, uma panela,
uma caixa de cartão que conserve
o gato bem aquecidinho, nela!
 
Quanto mais inverosímil, melhor
é o nicho: o gato gosta do bizarro
e até serve o colo de Monsenhor!
 
O gato, até dentro de um jarro,
se acomoda, sem dificuldade:
tudo se verga à sua vontade!
                         22.03.2023
Eugénio Lisboa

O gato diplomático

 

O gato diplomático
 
Aos suspeitos do costume, mais os recentemente
admitidos: Oreo e Freddie
 
Estes mínimos tigres de salão,
que também dão pelo nome de gatos,
são tão garbosos, são tão, tão, tão, tão
adversários de fulanos tão chatos
 
que não sabem entender-se com gatos!
É que não pode ser gato quem quer:
há, pra ser gato, muitos candidatos,
mas, alta, a fasquia que se requer!
 
Ser cão ou coelho, ainda vá!
Também não custa ser vaca ou pato,
mas ser um gato esbelto, olá!
 
Um curso não chega pra ser gato:
nenhum curso dá a sabedoria
de um gato fino em diplomacia!
                             21.03.2023
Eugénio Lisboa

terça-feira, 21 de março de 2023

Celebrar a Poesia em dia próprio

A poesia tem muitas claves. O Soneto é  talvez uma das mais nobres  e rigorosas.  Escolhemo-lo para   celebrar este dia mundial da poesia,
Como  introdução/ dissertação,  fomos roubar ao poeta  Eugénio Lisboa este sucinto e esclarecedor texto.

O SONETO
por Eugénio Lisboa
“Toda a gente sabe o que é um soneto: uma estrutura literária com catorze versos de dez sílabas, distribuídos normalmente – mas não necessariamente – por dois quartetos e dois tercetos. Há sonetos com versos de doze sílabas, mas são raros. O soneto tem fama de ser muito difícil de construir, a tal ponto que, apesar de Petrarca e Camões os terem feito primorosos, Godeau, bispo de Vence, era de opinião que é impossível fazer um soneto perfeito. Godeau ia mesmo ao ponto de dizer que o soneto não é deste mundo. A este propósito, o notável crítico de arte francês, Charles Asselineau, um dos poucos amigos que Baudelaire teve, dizia, chocarreiramente, que Godeau era crente em Deus, mas ateu em soneto. Antero de Quental, por exemplo, escreveu belos sonetos, mas como, por confissão própria, nunca se deu ao trabalho de estudar, a sério, a arte do soneto, alguns dos seus são um pouco imperfeitos. Dizer isto às viúvas de Antero é altamente perigoso: corre-se mesmo risco de vida. Mas é tudo por bem.
Não vim, porém, nesta crónica que se quer curta, falar dos problemas e dificuldades que surgem aos perpetradores de sonetos. Ora eu sou um desses perpetradores porque, durante esta guerra russo-ucraniana, tenho andado a fazê-los quase à média de um por dia, o que significa, se mais não significar, que tenho, pelo menos, alguma experiência. Queria pois aproveitar esta experiência, não, como disse, para esmiuçar pormenores de arte poética, mas para responder a esta magna pergunta: PARA QUE SERVE UM SONETO? Para responder a isto, dada a tal minha grande e prolongada experiência, estou eu magnificamente equipado: porque os tenho escrito, nos mais variados estados de espírito e para os mais variados fins. O soneto serve, por exemplo, para a guerra: tenho-o usado como fisga, para tentar atingir Putine entre os olhos. O soneto, na guerra, faz imensos estragos ao inimigo e até mata. Pode servir, em dias de neura, para nos interrogarmos sobre o sentido (nenhum) da vida e, noutros dias (de euforia), para celebrarmos e trincarmos, com lascívia, os frutos da terra. Podemos, com ele – e apesar de termos de o fazer só em catorze versos – recordar os tempos em que fomos felizes ou, alternativamente, os momentos piores da nossa vida. O soneto dá para tudo, e sempre em apenas catorze versos. Fazer caber o mundo num envelope tão pequeno, tem uma graça que só o sonetista consegue apreciar. O soneto dá para ser irónico, para ser sarcástico, para ser romântico, para ser terra-a terra, para ser colérico, como Aquiles ou admiravelmente sóbrio e digno como Heitor. O soneto dá para ser casto e para ser lúbrico. O soneto pode ser religioso ou ateu. O soneto pode servir para mandarmos recado à namorada ou para acabar com o namoro. Não há nada debaixo do sol para que o soneto não sirva. Só há uma coisa para que nunca consegui que ele servisse: para tirar nódoas. O bispo de Vence tinha razão: não há sonetos perfeitos.”
Eugénio Lisboa, em 20.06.2022 

Eu cantei já, e agora vou chorando…

Eu cantei já, e agora vou chorando…
Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado:
Parece que no canto já passado

Se estavam minhas lágrimas criando.
Cantei; mas se me alguém pergunta, quando?
Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado,

Que o passado por ledo estou julgando.
Fizeram-me cantar manhosamente
Contentamentos não, mas confianças:

Cantava, mas já era ao som dos ferros.
De quem me queixarei, se tudo mente?
Porém que culpas ponho às esperanças,
Onde a fortuna injusta é mais qu’os erros?

Luis de Camões, in Sonetos de Luís de Camões, Livraria Clássica Editora

A um Poeta

Surge et ambula!

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares…
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno…

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções…
Mas de guerra… e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Antero de Quental, Sonetos Antero de Quental, Edição organizada, prefaciada e anotada por António Sérgio, 4ª Edição. Sá da Costa Editora 1972.

AH, UM SONETO...

Meu coração é um almirante louco
Que abandonou a profissão do mar
E que a vai relembrando pouco a pouco
Em casa a passear a passear...
 
No movimento (eu mesmo me desloco
Nesta cadeira, só de o imaginar)
O mar abandonado fica em foco
Nos músculos cansados de parar.
 
Há saudades nas pernas e nos braços.
há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
 
Mas — esta é boa! — era do coração
Que eu falava... e onde diabo estou eu agora
Com almirante em vez de sensação?...
                             12-10-1931?
Álvaro de Campos ,  in Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. 


Desejos vãos

Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o sol, a luz imensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...
As Árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...
Florbela Espanca, in Sonetos , Porto Editora

Educação Sentimental
 
Na janela mais alta de Lisboa
és a ave chamada Todavia:
a que posta  no céu não se desvia, 
mas que perto do rio já não voa...
 
Hei-de ensinar-te, devagar ( perdoa!), 
a pressa com que Amor se pronuncia
e a conjugares a noite com o dia 
quando o corpo do corpo se condoa...
 
Fecha os olhos, e voa! Mas não queiras 
ao inferno do céu traçar fronteiras
nem ao céu do inferno pôr limites:
 
voar só vale a pena enquanto for 
uma forma de amar além do amor,
furor que todavia não habites...
David Mourão-Ferreira, in "Infinito pessoal [1959-1962] - Obra Poética", Assírio & Alvim ,  p 145

Rio de Fogo

Há na minha alma, desde sempre, um fogo
e há , também na minha vista , um rio.
A minha vida é uma forma de jogo , ~
endireitando à morte um desafio.

Há nesse fogo um rio que fascina
e no rio um fogo que devora:
leio no rio a minha ígnea sina,
o destino aceso que em mim demora.

E leio no fogo que vai no rio,
como num livro que me fosse aberto,
o meu andar para junto do frio

que há-de queimar-me em dia certo:
se a água é chama humedecida,
minha imagem será nela esculpida.
                     Londres, 07.01.1984
Eugénio Lisboa, in A matéria intensa, Editora Peregrinação, Baden/Suíça, p. 62

Soneto do reencontro                                     
 
Na  primavera  tu  voltaste de mansinho
finda a tempestade, surgiste na bonança
me  conjugando o verbo  da esperança
num  íntimo  gesto  de  lírico carinho.
 
Tu foste  meu fuzil, o meu canto guerreiro
a  voz  peregrina  acesa  no  meu  peito,
ensina-me  a cantar agora de outro jeito
para entoar amor e paz ao mundo inteiro.
 
Combatente e amordaçada em meu destino
silenciados e por atalhos clandestinos
trinta  anos  se  passaram,  dia-a-dia.
 
Depois a liberdade chegou para o meu povo
mas  só  agora  eu  te encontrei de novo
para  nunca  mais  perder-te... ó poesia.
                                                                 
                          Curitiba, dezembro de 2002
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil,  p.72


O Livro dos Amantes

VII

Tu pedes-me a noção de ser concreta
num sorriso num gesto no que abstrai
a minha exactidão em estar repleta
do que mais fica quando de mim vai.

Tu pedes-me uma parcela de certeza
um desmentido do meu ser virtual
livre no resultado de pureza
da soma do meu bem e do meu mal.

Deixa-me assim ficar. E tu comigo
sem tempo na viagem de entender
o que persigo quando te persigo.

Deixa-me assim ficar no que consente
a minha alma no gosto de reter-te
essencial. Onde quer que te invente.

Natália Correia, in Antologia Poética- O livro dos Amantes, Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral, Publicações Dom Quixote

Que Encanto é o Teu?
 
Amo-te muito, meu amor, e tanto
que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda
depois de ter-te, meu amor. Não finda
com o próprio amor o amor do teu encanto.
 
Que encanto é o teu? Se continua enquanto
sofro a traição dos que, viscosos, prendem,
por uma paz da guerra a que se vendem,
a pura liberdade do meu canto,
 
um cântico da terra e do seu povo,
nesta invenção da humanidade inteira
que a cada instante há que inventar de novo,
 
tão quase é coisa ou sucessão que passa…
Que encanto é o teu? Deitado à tua beira,
sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.
Jorge de Sena, in As Evidências, Assírio & Alvim

segunda-feira, 20 de março de 2023

FUGIDO À JUSTIÇA


 
O Putin anda fugido à justiça,
indo esconder-se em Mariupol.
Está sem motorista, grande injustiça,
e conduz com maus ares de mongol!
 
Se sair da Rússia, será fisgado
e mandado curtir no Tê Pê I:
ficaria em Haia, mal amanhado,
e iria portar-se como uma Fifi!
 
Vai ter saudades do Kapa Gê Bê,
onde tinha os orgasmos que sabia:
fazer tortura com creme flambé!
 
Gozava, digamos, como podia,
mas resta-lhe agora comer borche
e guiar a versão russa do Porche!
                              20.03.2023
Eugénio Lisboa

Assim acorda um dia de Primavera

.
 "Da noite ao dia", um curto  vídeo que sonha e  acorda em Portimão, num terraço com vista.

domingo, 19 de março de 2023

A generosidade do gato


A generosidade do gato
 
Aos meus gatos todos,
antigos e recentes.
 
Nenhum animal foi tão caluniado
como o gato: que é egoísta,
que é arrogante e malcriado,
só falta dizer que é Maoísta!
 
Que é amado mas não sabe amar.
Que gosta de receber mas não dá!
Se o maçamos, manda-nos bugiar.
Que se julga oriundo de Bagdá!
 
Mas do que toda a gente se esquece
é de que o gato, como ninguém,
sem nunca pestanejar, nos oferece
 
sem “mas”, sem “se” e sempre sem “porém”,
a majestade e a esbelteza
da sua inconfundível beleza!
                         19.03.2023
Eugénio Lisboa
 
Sim, queridos destinatários deste soneto, nunca se esqueçam do sumptuário cadeau royal que é um gato! É como possuir um Leonardo que nos tivesse sido oferecido e não comprado. Nunca se distraiam a não devidamente avaliarem o tesouro que não merecem! 

Ao Domingo Há Música


Federico Zandomeneghi, Ragazza che raccoglie fiori


A canção, expressão da melancolia, do amor, do entusiasmo, só morrerá se estes sentimentos morrerem; ela é, como o suspiro, como o grito, um dos movimentos naturais da alma.
                                      Eça de Queirós


Nem sempre há vozes que nos capturem e resistam ao tempo. E por mais que nos tenhamos surpreendido acabaram por desaparecer da nossa memória. Há outras que se vestiram de eternidade e que resistem pela beleza da sua sonoridade , pelo imenso talento. Tornaram-se a expressão de muitos momentos carregados de muita vida sentida.
São três vozes . São três mulheres que se afirmaram  , encantaram e permanecem em imperecível  sedução. 

Aretha Franklin , em  I Dreamed A Dream.
   
Ella Fitzgerald , em Cry Me a River , canção composta por Arthur Hamilton.
   
Tina Turner, em Let's Stay Together ao vivo , do álbum Celebrate!, gravado no ano 2000 em comemoração aos seus 60 anos de idade.
 

sábado, 18 de março de 2023

Os Direitos do Gato

Se a Declaração Universal
dos Direitos do Gato é pra valer,
isso quer dizer que em Portugal
todo o gato tem muito a haver!
 
Ela garante comida e colo,
bom aquecimento e também cama
e tudo conforme o protocolo
que o gato impõe e proclama!
 
Com Declarações destas, não se brinca
e, desta, o gato nunca se esquece:
lê-a com atenção e logo vinca
 
o parágrafo que mais lhe apetece!
Direitos são direitos e o gato
ganha, em direitos, o campeonato!
                                18.07.2023
Eugénio Lisboa
 

Depois dos Poderes do Gato, vieram os Direitos do Gato. E ainda a procissão vai no adro… 

Os poderes do gato

 
Os gatos olham-nos com uma atenção
que só mesmo os gatos conseguem ter:
olhar de cognição ou de paixão?
Olhamos e ficamos sem saber!
 
Tudo, no gato, é misterioso:
o que ele faz e também o que não faz!
É inteligente e ardiloso
e nada de que não seja capaz!
 
Quando o gato decide o que quer,
não adianta nada resistir-lhe:
o gato acaba sempre por vencer,
 
como se fôssemos nós a pedir-lhe!
Os gatos têm poderes ocultos,
que dominam vontades e tumultos!
                                17.03.2023
Eugénio Lisboa
 
 
Na falta de tema, recorro ao gato. O gato é inesgotável e os outros temas disponíveis, no mercado, não são. Como é que os grandes poetas passaram a vida a esbanjar talento com temas de carregar pela boca, havendo o gato?! Isto só confirma uma suspeita que sempre tive: os grandes poetas serão grandes, mas não são inteligentes. Ainda bem: deixaram o gato para eu recorrer a ele, sempre que me não apeteça falar de coisas menores e áridas.

sexta-feira, 17 de março de 2023

De novo, feliz, em Lourenço Marques

 South Bank, Londres
De novo, feliz, em Lourenço Marques
por Eugénio Lisboa
"A felicidade é caprichosa: não se deixa facilmente capturar por quem a persegue. Dizia Bertrand Russell que a melhor maneira de se conseguir a felicidade não é procurá-la, directamente. Ela é, repito, caprichosa. Surpreende-nos, quando menos a esperamos. E toma conta de nós, pelas vias mais insuspeitadas.
Toda a gente conhece, de o ter lido ou de nele ter ouvido falar, o episódio relatado pelo narrador de À la recherche du temps perdu (de Proust), relativo à pequena “madeleine” que, embebida em chá e oferecida ao narrador pela sua tia, lhe trouxe inesperadamente e involuntariamente à memória, pelo seu sabor, todo um mundo do passado: a velha casa cinzenta, a cidade, a praça, a igreja, Combray e os seus arredores, a boa gente da terra… Um universo que, assim involuntariamente trazido à memória, se revela portador de uma indescritível felicidade. Levar à boca a pequena “Madeleine” impregnada de chá de tília foi a via insuspeitada de activar uma memória criadora de felicidade.
Todos nós, ao longo das nossas vidas, passámos por experiências análogas, mas, na maioria dos casos, passa-se por isso com alguma desatenção e sem se lhe atribuir importância ou significado de maior. Por vezes, porém, a experiência toca-nos tão fundo que, por momentos, não podemos deixar de reparar nela. Proust, psicólogo e anotador minucioso, deu-lhe, na sua Recherche, uma importância e um significado enormes.  É um exemplo extraordinariamente elaborado de “memória involuntária”, capaz de surpreender e encher de felicidade quem passa por tal experiência. Eis, nas inesquecíveis palavras de Proust: “E assim que reconheci o gosto do pedaço de madeleine embebido no chá de tília que me dava a minha tia (embora não soubesse ainda e devesse remeter para bem mais tarde descobrir a razão por que essa recordação me tornava tão feliz), imediatamente a velha casa cinzenta na rua (……), e as boas pessoas da aldeia e as suas pequenas habitações e a igreja e toda a Combray e os seus arredores, tudo isso que ganha forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha chávena de chá.” Trata-se de uma passagem justamente célebre, naqual se poderá rever – agora arrancado da sua desatenção  pela minúcia da atenção de Proust – o leitor do romance celebrado.
Tenho voltado muitas vezes a este momento do folhetim psicológico de Proust, que profundamente me tocou por ter eu próprio vivido momentos idênticos e tão ou mais intensos do que os experimentados pelo narrador de À la recherche du temps perdu. É um desses momentos que agora aqui vos trago.
Vivi em Londres dezassete bem fruídos anos – de 1978 a 1995 – na qualidade de conselheiro cultural da nossa embaixada. Foram dezassete anos cheios de uma variada vivência cultural, numa cidade em que a oferta era imensa e de grande qualidade. Foram anos felizes mas muito diferentes da vida que deixara para trás: 38 anos de experiência africana, em Lourenço Marques, cidade onde nascera e onde passara os primeiros dezassete anos da minha formação. Ali me casara e ali me nasceram duas filhas.
Culturalmente falando, Lourenço Marques não era uma cidade sem interesse: com um bom Cine-Clube, um Núcleo de Arte, grupos de teatro amador de grande qualidade (um deles dirigido por Mário Barradas) e páginas culturais cheias de vivacidade em vários jornais, com cinema onde a censura era menos apertada do que nas salas de Lisboa ou Porto (no Cine-Clube, vimos todo o cinema soviético – Eisenstein, Pudovkine, etc - , polaco, checoslovaco, romeno, húngaro, francês, sem que o censor visse objecção), com uma vida de grande convívio e tertúlia, cimentada nas reuniões de A Voz de Moçambique  ou do Cine-Clube ou, aos sábados de manhã, nas visitas às boas livrarias que por lá havia – não se morria propriamente de tédio. De uma maneira muito intensa e muito especial, era-se feliz. E era uma maneira de se ser feliz muito diferente da maneira de se ser feliz, em Londres. Nesta grande cidade, faltavam-nos as tertúlias,, o convívio assíduo e de porta aberta, a conversa quotidiana, o desafio constante, as polémicas intermináveis, a cumplicidade entre amigos. Londres tinha coisas que em Lourenço Marques não havia, mas, por outro lado, não tinha outras que em Lourenço Marques havia. Era-se, em suma, feliz de modo diverso. Londres tinha indiscutivelmente uma maior diversidade de oferta e coisas (exposições, teatro profissional, música, ópera) de uma qualidade excelsa, que em Lourenço Marques eram impensáveis. Mas faltava-lhe a camaradagem quotidiana, o convívio quente, a amizade cúmplice sempre à mão de semear, a dialética vivificadora…
Ora, num certo dia da minha estadia em Londres, resolvi ir de viagem, no meu carro, até à margem sul do Tamisa (a South Bank), numa qualquer missão de serviço. Saí da embaixada por volta das onze horas da manhã e fui ao meu destino.  Estava um dia de sol relutante mas abafado e ameaçando chuva. Chegado à South Bank, estacionei o carro e dirigi-me, a pé, ao local onde tencionava ir. Fui andando e, subitamente, começou a chover. Não sei bem porquê, soube-me bem. Recebi a chuva quase como uma bênção, numa espécie de expectativa de nem sabia bem o quê. E, de repente, subiu do chão até mim o bafo capitoso da terra molhada. Uma difusa sensação de felicidade tomou, com grande força e intensidade, conta de mim. Aquele era o cheiro da terra molhada que eu tantas vezes experimentara, em Lourenço Marques, nas minhas sortidas à praia da Polana: aquele bom cheiro da terra fecundada pela chuva tropical. Era esse mesmo cheiro que agora se me oferecia, ali, na margem sul do Tamisa. Levava-me de novo, transportava-me a Lourenço Marques, numa viagem improvável mas imensamente real. Por momentos, eu estava em Lourenço Marques e não em Londres. E, repito, incrivelmente feliz, não de uma felicidade londrina, mas de uma felicidade perfeitamente laurentina. Daquele cheirinho a terra molhada saíra todo um meu passado de cumplicidades, amizades e convívio tal como os fruíra no meu tempo de Lourenço Marques. Ao meio dia de um dia de calor, na margem sul do Tamisa, rodeado de coisas londrinas, eu estava de novo a ser feliz em Lourenço Marques. Recuperara uma felicidade antiga, que se substituía a outra mais recente. A felicidade obtém-se, já o disse, por vias enviesadas. Por via do bom cheirinho da terra molhada, em Londres, eu ascendi, nesse dia de verão chuvoso, à felicidade peculiar que, tantos anos antes, me visitara em Lourenço Marques. "
Eugénio Lisboa, in PRO MEMORIA- JL, 2016