"Passo, agora, a apresentar quatro situações específicas, de meu interesse, para as quais a bioética tem voltado a sua atenção: pedidos para morrer, eutanásia, suicídio assistido e distanásia. Na sequência, serão abordados os cuidados paliativos, como opção às três últimas situações nomeadas, e algumas críticas possíveis a eles.
Ao introduzir o assunto, quero ressaltar a importância da clarificação dos termos usados, para que as discussões que envolvem temas tão polémicos não sejam prejudicadas por diferentes entendimentos. Schramm (2002) aponta que não se trata, apenas, de uma melhor definição dos termos, mas também deve ser observado qual é o posicionamento tomado em cada questão.
Segundo este autor, só uma definição de morte não esclarece este assunto; é preciso entrar no mérito existencial e filosófico, isto é, o que significa fim da vida e por que se quer planeá-lo. A discussão é se existe ou não o direito de determinar o fim da própria vida. O autor cita Frankl e as suas obras que apontam para a questão do sentido da vida, para a percepção do vazio existencial e para o direito de exercer a liberdade da maneira mais radical, ou seja, decidindo sobre a própria vida.
O autor afirma que o temor, em relação à legalização da eutanásia, se relaciona a um suposto aumento do poder dos médicos na determinação da morte. Por outro lado, os que a defendem retomam o princípio da autonomia e a priorização do que é qualidade de vida, apontando que na sociedade actual se observa uma desapropriação da morte. Será que o paciente tem direito a pedir para morrer? O direito à auto-determinação é que poderia justificar uma discussão mais aprofundada sobre a questão da eutanásia.
Retomando a questão de esclarecimento, Wooddell e Kaplan (1997-1998) apontam algumas distinções que devem ser consideradas:
Eutanásia activa: acção que causa ou acelera a morte.
Eutanásia passiva: a retirada dos procedimentos que prolongam a vida. Esta modalidade, na actualidade, não é mais considerada como eutanásia (grifo meu), desde que diante de um caso irreversível, sem possibilidade de cura e quando o tratamento causa sofrimento adicional. A interrupção dos tratamentos, neste caso, recebe o nome, de ortotanásia, ou seja, a morte na hora certa - distinção ainda não aceita por muitos profissionais. Segundo Maurice Abiven, director da Unidade de Serviços Paliativos do Hospital Universitário de Paris, citado por Zaidhaft (1990, p. 120), não há eutanásia passiva, sendo esta uma expressão inadequada. Há, simplesmente, respeito à natureza.
Eutanásia voluntária: a acção que causa a morte quando há pedido explícito do paciente.
Eutanásia involuntária: acção que leva à morte, sem consentimento explícito do paciente. Neste caso, não deveria mais ser chamada de eutanásia, e sim, de homicídio; com o atenuante de que é executada para aliviar o sofrimento, possivelmente dos cuidadores, familiares ou profissionais.
Suicídio: acção que o sujeito faz contra si próprio, e que resulta em morte.
Suicídio assistido: quando há ajuda para a realização do suicídio, a pedido do paciente. Esta situação é considerada crime, do ponto de vista legal.
Suicídio passivo: deixar de fazer alguma acção, podendo resultar em morte; por exemplo, não tomar medicação. Esta é uma situação muito difícil de ser comprovada. Falar em suicídio sempre implica na necessidade de uma cuidadosa investigação, já que vários factores podem estar envolvidos nesta acção.
Há, ainda, outros termos que são usados quando se fala de morrer com dignidade, envolvendo temas como eutanásia e suicídio assistido:
Duplo efeito (double effect): quando uma acção de cuidados é realizada e acaba conduzindo, como efeito secundário, ao óbito. Um exemplo desta situação é a analgesia e sedação, aplicada em pacientes gravemente enfermos, que têm como objectivo principal aliviar os sintomas e promover qualidade de vida, e não provocar a morte, embora esta possa ocorrer.
Testamento em vida, vontade em vida (living will): o paciente escreve o seu testamento em vida, referindo-se ao que gostaria que acontecesse, quando não mais pudesse fazer escolhas e participar de seu tratamento. Este procedimento é muito utilizado quando se trata de um pedido de não ressuscitamento. É um documento legal nos Estados Unidos da América.
Ladeira escorregadia (Slippery slope): trata-se de uma zona de conflito e polémica, na qual certa decisão pode ter efeitos sobre os quais não se havia pensado anteriormente. Por exemplo: a legalização da eutanásia poderá colocar em risco de morte antecipada (embora este não seja o objectivo explícito) populações vulneráveis, como: idosos, pobres e doentes mentais.
Poder durável de um advogado para cuidados de saúde (Durable powers of attorney for health care): é o documento por meio do qual a pessoa nomeia outra pessoa para tomar decisões sobre os cuidados de sua saúde, se, e quando ela própria se tornar incapaz de fazê-lo, permitindo, assim, que o médico obtenha de alguém o consentimento informado para algum procedimento ou para interrupção de tratamento.
Assim considerados os diversos graus de acção do paciente, pode-se analisar o grau de envolvimento da equipa médica em questões, tais como conhecimento, cumplicidade e uma acção mais directa da equipe, com conhecimento ou não do paciente.
Estas modalidades não são estanques, mas propõem uma forma de compreensão dos movimentos dos pacientes e médicos na preservação da vida, bem como na possibilidade de induzir a morte.
Pedidos para morrer
Muitas pessoas, em fase final da doença, pedem para morrer. O que estaria na base destes pedidos, uma dor intolerável ou depressão?
Chochinov et al. (1995) estudaram 200 casos de pacientes em estágio terminal e verificaram que apenas 8,5% destes pediram que se apressasse a morte e, entre estes, observou-se uma história de depressão e abandono por parte da família.
Vários pedem para morrer porque consideram a sua vida insuportável, sentem-se como sobrecarga para a família. Estão internados em hospitais, solitários, abandonados e impotentes diante da vida e da morte. Muitos se referem a um sentimento de falta de controle. Em outros casos, o pedido para morrer está relacionado com o facto de não estarem recebendo cuidados adequados, tendo sua dor subtratada.
Markson (1995) alerta para que não se considerem todos os pedidos para morrer como irracionais, delirantes, ou vindos de uma profunda depressão. Assim, os pedidos nunca devem ser avaliados como questões simples; ao contrário, devem ser escutados e contextualizados, e jamais deveriam receber respostas rápidas e impensadas. Sem dúvida, valores importantes são questionados nestes casos, inseridos numa cultura que sacraliza a vida e vê a morte como um inimigo a ser combatido a todo custo.
Por outro lado, sabe-se que muitas pessoas não aguentam mais a vida, mas nada dizem sobre isso. Não imaginam poder falar com seus médicos sobre o assunto, nem sequer se acham no direito de pedir informações sobre o seu estado de saúde e prognóstico de suas doenças.
Mishara (1999) observou que a dor e o sofrimento estão na base de inúmeros pedidos para apressar a morte. Também foi encontrada, pelo autor, forte relação com depressão clínica. Observa, ainda, que está havendo maior incidência de pedidos de eutanásia, suicídio e comportamentos auto-destrutivos em pessoas com os seguintes problemas psicossociais: depressão, perdas significativas, falta de apoio social e dificuldades em dar conta da vida. Mais recentemente, tem-se observado uma alta relação entre suicídio e demência. Muitas pessoas pedem para morrer, ou cometem o suicídio, quando se vêem diante da possibilidade de dependência, aliada a um sentimento de perda de dignidade. No caso do câncer e da Aids, os tratamentos podem causar tanto mal estar e desespero que preferem morrer. Segundo Mishara, há maior tolerância da sociedade com os pedidos de eutanásia, quando são manifestos por pacientes gravemente enfermos, mesmo que nem sempre a morte esteja tão próxima ou que não haja nada mais que possa ser feito.
É necessário saber se a pessoa quer, de facto, morrer, observando-se suas atitudes, pedidos e acções. Chochinov et al. (1995), na pesquisa já mencionada, verificaram que 44,5% dos pacientes falaram que queriam que a morte chegasse logo, mas só 8,5% fizeram um pedido mais explícito e, destes, 60% tinham um quadro de depressão clínica. Entretanto, muitos pacientes em fase terminal se queixaram de solidão, da falta de presença da família e de dor.
Muitos membros da equipe de saúde não sabem como manejar a dor e outros sintomas incapacitantes, e acabam se afastando destes pacientes. Hennezel (2001) considera que 90% dos pedidos de eutanásia desapareceriam se os doentes se sentissem menos sós e com menos dor. Para ela é importante considerar a legitimidade dos pedidos, ou seja, os pacientes poderem falar que estão cansados da vida, que não aguentam mais o sofrimento. Mas ao pedirem que se finalizem os seus sofrimentos, a autora se pergunta: será que para nos apropriarmos de nossa própria morte, é preciso pedir para que alguém nos mate?
Hennezel, explorando o tema, lança um outro olhar para a questão, ao afirmar que, quando o doente pede para morrer, pede também que se olhe para ele, para o seu sofrimento, para que se sinta legitimado na sua dor. Procura também aprofundar a questão, discutindo a diferença entre desejo e necessidade. Para ela, a necessidade é o que está premente, acessível à consciência e demanda uma resolução imediata, como, por exemplo, o alívio da dor. O desejo não é tão claro à consciência. Uma grande dor para o paciente, sensível e atento, é pensar que o enterraram antes do tempo, prevendo sua morte. Nesta situação, antecipa-se, pedindo para morrer antes que o matem. E a autora afirma que, tanto no pedido para morrer, como na eutanásia, podem estar embutidos uma agressividade inconsciente, uma desilusão de ambos os lados, claros indícios de impotência.
E será que o pedido do paciente para morrer não poderia ser também uma resposta ao olhar de impotência do profissional, que não sabe o que fazer na situação? Como já referi, o pedido para morrer pode ser visto como um pedido de atenção, uma afirmação de que se é humano, que ainda se está vivo. Às vezes, o paciente está tão deformado que não se sente mais vivo, nem é mais visto assim. Não pede obrigatoriamente que se faça algo, mas para que seja visto e ouvido. Não podemos nos esquecer da importância dos últimos momentos de vida para o doente e para os seus familiares.
É importante ressaltar: será que o desejo de morrer está sempre relacionado com sofrimento e depressão? Será que, em alguns casos, não é a constatação de que a vida chegou ao fim? A diferença é que, no primeiro caso, os pacientes exalam tristeza e, no segundo, serenidade.
Há pessoas que não conseguem morrer e pedem ajuda para soltar-se. Morrer pode ser tão tensionante, que não conseguem se libertar. Permitir morrer não é igual a matar. Às vezes, o medo de morrer é tão grande que há enorme necessidade de paz, segurança e, à semelhança do parto, é a busca de um contacto que não retém e sim liberta. Como o assunto é, certamente, polémico e não há consenso entre os profissionais envolvidos, aqui estão apenas sendo alinhavadas algumas considerações.
Outro assunto de interessante abordagem é o do testamento em vida (prática que tem aumentado significativamente), no qual é pedido o não ressuscitamento em caso de parada cardíaca - também uma forma de pedir para morrer. É bastante usual, principalmente nos Estados Unidos, segundo Whiting (1995-1996). No Brasil, ainda não temos esta prática estabelecida.
Os testamentos em vida envolvem a recusa de certos tratamentos médicos que têm como objectivo o prolongamento da vida; são feitos pelos pacientes quando conscientes, e deixados com outras pessoas para o momento em que for necessário, seja em caso de inconsciência, ou de qualquer outra impossibilidade de decisão. Mesmo que este documento represente a vontade da pessoa, respeitando-se o princípio da autonomia, é gerador de muita ambivalência, quando se considera a possibilidade de eventual mudança de opinião durante o curso da doença.
Nos EUA, se não tiver sido feito o testamento em vida, os pacientes passarão por procedimentos de ressuscitamento, em caso de parada cardíaca. Segundo Stephen e Grady (1992), um terço destes procedimentos ocorreu contra a vontade dos pacientes, pelo facto de não haver pedido explícito para que não fosse realizado.
Considero que o testamento em vida pode ser instrumento facilitador, quando se trata de tomar uma decisão sobre o que fazer em situação de conflito. O paciente pode, então, clarificar os seus desejos, reduzindo a possibilidade de serem realizados tratamentos contra sua vontade; facilita, também, a situação para a família, quando esta não teve a oportunidade de conversar com ele a respeito deste assunto, e favorece o princípio de autonomia do paciente.
Aliás, os familiares são ambivalentes quando se trata do paciente, mas muitos, quando pensam o que gostariam para si, relatam que prefeririam terminar logo com tudo.
Hennezel (2001) aponta que muitos familiares acabam pedindo que se apresse a morte do paciente, porque não aguentam ver seu sofrimento; o fim da vida pode ser muito assustador, o paciente pode se tornar um estranho para si mesmo, e para aqueles que lhe são mais próximos. Por outro lado, quando o período final da doença é prolongado, os próprios familiares acabam se esgotando por causa das semanas de vigília ao pé do leito, estimulando os pedidos para o abreviamento da situação.
A equipe de saúde também não sabe o que fazer quando surge o pedido de morte pelo paciente. A tendência mais comum é a de sempre preservar a vida; entretanto, o aumento da expectativa de vida e do tempo de doença, começa a criar pontos de conflito sobre até que ponto é legítimo o prolongamento da vida, às custas de muito sofrimento. Os médicos não se sentem preparados para conversar sobre o assunto e não conseguem lidar com o facto de que o pedido para morrer possa ter uma motivação ligada a um sofrimento intolerável - neste caso, o pedido para morrer seria, basicamente, para alívio. Pesquisa de Chochinov et al. (1995) indicou que 54% dos médicos entrevistados acham que o pedido é razoável, quando levam em conta o grau de sofrimento envolvido; entretanto, quando questionados sobre a possibilidade de, eles mesmos, realizarem o acto de apressar a morte, esta percentagem cai para 33%.
Pesquisas mostraram que 40% dos médicos entrevistados já receberam, de seus pacientes, pedidos para morrer. Este número de pedidos é significativo e demonstra como o fim de vida pode ser muito penoso. Entretanto, a maioria destes pedidos não resultou em sua aceitação. Quando os médicos falam da consumação do acto, o método mais utilizado é o dos coquetéis que misturam calmante, anestésico e veneno, e que permitem uma morte tranquila. A fronteira entre sedação e eutanásia é muito ténue; o que diferencia as duas é a intenção, nem sempre muito clara. Infelizmente, a diferença entre palavras e intenções nem sempre pode ser explicitada.
Hennezel (2001) aponta para a importância de o profissional poder se referir à sua impotência e vulnerabilidade diante do paciente, principalmente quando os tratamentos não estão surtindo os efeitos esperados, mas não significa que se tenha de atender o pedido de apressamento da morte. Confirmando, não prolongar a vida com tratamentos invasivos, permitir morrer, não é igual a matar.
Aponta, também, que vários profissionais não suportam ver o sofrimento de seus pacientes, acabando por atender seu pedido de morte, transformando-se nos anjos da morte, também conhecidos como eutanatólogos. Alguns actos de apressamento da morte podem ser fruto da solidão dos profissionais, que se sentem sem apoio nas tarefas de cuidar dos pacientes em grande sofrimento. Esta solidão pode ocorrer, também, em hospitais ultra movimentados, nos quais os corredores fervem com pessoas correndo de um lado para o outro e, talvez, por isto mesmo sejam chamados de "corredores". Nesta correria ninguém se enxerga e, muitas vezes, nem se sabe o que está acontecendo na sala ao lado.
Em vários hospitais, o fim de vida é pleno de sofrimento, com muitas dores e sem calor humano; pacientes, familiares e enfermeiros abandonados à própria sorte, não sabendo o que fazer, e os últimos tendo mesmo de realizar procedimentos com os quais não concordam.
O que é mais complicado nos hospitais não é a morte em si, mas os dramas até a morte, a agonia. É aí que surge a tentação de aliviar o sofrimento, induzindo a morte. Mishara (1999) observa que houve um aumento de 35% nos pedidos de eutanásia, de 1990 a 1995. Acredito que este facto esteja directamente ligado às intervenções médicas, que provocam um prolongamento da vida, sem preocupação equivalente com a qualidade da mesma."
Maria Júlia Kovács, Instituto de Psicologia –USP, São Paulo 20