"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
segunda-feira, 31 de outubro de 2022
APOCALIPSE
Digam-me, por favor, se estes dilúvios
Madrigal
A minha história é simples.
A tua, meu Amor,
é bem mais simples ainda:
"Era uma vez uma flor.
Nasceu à beira de um Poeta..."
Vês como é simples e linda?
(O resto conto depois;
mas tão a sós, tão de manso
que só escutemos os dois).
Sebastião da Gama, in Campo aberto. Prefácio de Maria de Lourdes Belchior Pontes.3ª. Edição.Lisboa: Edições Ática, 1967. 112 p. Obras de Sebastião da Gama IV (Colecção “Poesia”, fundada por Luiz de Montalvor).
Dito por Carmen Dolores, no CD «Poemas da Minha Vida», Dito e Feito, 2003
Poesia
Ai deixa, deixa lá que a Poesia
no perfume das flores, no quebrar
das ondas pela praia,
na alegria
das crianças que riem sem porquê
— deixa-a lá que se exprima, a Poesia.
Fica sentado aí onde estás, Poeta,
e não mexas os lábios nem os braços:
deixa-a viver em si;
não tentes segurá-la nos teus braços,
não pretendas vesti-la com palavras...
Se a queres ter,
se a queres sempre ver pairando à flor das coisas, fica aí
no teu cantinho, e nem respires, Poeta, e não te bulas,
p'ra que ela não dê por ti.
Não a faças fugir, toda assustada
com a tua presença...
Deixa-a, nua, pairando à flor das coisas,
que ela não sabe que a viste,
nem sabe que está nua,
nem sequer sabe que existe...
domingo, 30 de outubro de 2022
Ao Domingo Há Música
Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum
estatuto. Não é um dote. É um dom.
Miguel
Torga
A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida.
Miguel de Cervantes, (29 de Setembro de 1547- 22 de Abril de 1616), "Dom Quixote".
O
afinador de palavras apresentou-se ao fim do dia. A luz, obumbrada pelo ocaso,
escondia as cores que sempre exibia. Era um aparecimento estudado. Sorria com
alguma astuta ingenuidade, não fossem descobrir que tudo fora
planeado. A quoi bon, o jogo das palavras
pertencia-lhe.
Nesse
dia, vestira o azul. Fora um labor infindável. Vieram tantas que ficara
exausto. Tinha sido uma revelação. Não era que havia um ror de
palavras a acreditar no impossível.
O azul
era a cor da utopia. Todas aquelas palavras que tinham lançado acordes,
que poetavam, que esgrimiam o som libertário para uma nova humanidade, que
carregavam o sonho de um mundo justo se enfileiraram para que as afinasse. Outras
ainda, mal alinhadas nas letras que as faziam nascer, vinham trôpegas à espera
de um elixir que as fortalecesse. Só ele conhecia os poderes do azul. Só
ele sabia quem o podia vestir. A autenticidade revelava-se a um pequeno
lançar de olhos. Ficou atónito com tanta palavra genuína. Que fazer se o dia
tinha cronómetro? E ele que se exigia demais. Como dizimar tanta maleita
inesperada?
Frágeis e
desamparadas rogavam, com assertiva doçura, uma recuperação. O azul
era melodicamente gentil, intrinsecamente harmonioso. Fugia ao aparatoso, ao
ruído dissonante da exigência. Elas, as palavras, queriam não um remendo,
não um penso que se acomodasse às circunstâncias desse tempo crísico,
dessa época infame. Não . Ouvira, límpido e nítido, sem qualquer
vacilação, um rotundo e ardente não. Que
burilasse. Que se servisse de um cinzel e as esculpisse sem demora, mas
para todo o sempre.
Qual
folha caduca? Que pensamento abstruso. O Outono acontecia apenas na
natureza. Palavras são palavras. Têm vida própria. Forma definida e lugar no
repositório das nações. E sabia-se. Era um dado categórico. E
o azul identificava as palavras que acreditavam no impossível.
Trabalhou.
Recuperou. Cinzelou. Remendou. O dia prolongou-se até que a cor se tornou
invisível. Muitas palavras ficaram prostradas no chão, quando se obscureceu.
Nada mais podia fazer. Sem os raios do sol, o azul tornava-se volátil.
Desaparecera na magia do insondável poder da luz.
Amanhã
seria outro dia. Vestiria também uma outra cor. Afinaria outras palavras. O
azul teria de esperar pela roda do tempo.
Agora,
escurecia. A noite protegia. Guardara uma única palavra. Trazia-a no bolso.
Vinha redonda . A sorrir para quem a esperava, a espargir um odor
magnificente. Que azul luminoso a vestia. Era única e imperdível. Fora
difícil restabelecê-la. Com ela estavam associadas muitas outras
palavras . Não eram visíveis. Mas compunham-na .
Uma
sinfonia soltava-se, audível apenas para ele: a sinfonia da
criação. Desconhecida, majestosa e sedutora. Nem ao fluir, a lembrança dos sons
do Oratorio de Haydn se apunha. Surgiam
diferentes, apesar de produzidos pela estética do belo e sustentados por um
denominador comum. Separava-os a sonoridade dos instrumentos. Era uma
sinfonia de acordes únicos, heróicos e gloriosos. Uma
sinfonia que se erguera do caos, do nada informe que debruava o vazio.
Explodia, alargando-se, em eufónicos e imparáveis movimentos, para lhe
encher o corpo e a mente de novas forças, de diferentes vontades que
teria de partilhar.
Vinha com
uma palavra forte. Sabia-o. Vira-a por dentro. Tinha as letras bem desenhadas.
Nove letras em sincronia perfeita. Ficaria para sempre, como a saudade das
coisas felizes. Deixaria de lhe pertencer, logo que fosse apresentada.
Seria de todos e para todos.
Com leveza
e disciplinada ternura, começou a retirá-la devagarinho. À medida que
saía, a noite transformava-se. Tomava-a um novo e estranho
esplendor. E quando a desnudou e a mostrou inteira , o brilho intenso da
Liberdade iluminou os rostos e encheu de promessas o coração de
cada um.
Assim se
cumpria, naquele dia, o sonho que veste o azul.
Maria José Vieira de Sousa , in "O Afinador de Palavras", pp.11, 12
sábado, 29 de outubro de 2022
Lei de Murphy
Se algo pode correr mal, corre.Lei de Murphy, na forma abreviada.
Se uma coisa pode correr mal, corre.
Em Portugal, tudo corre tão bem,
que tudo, no fim de contas, concorre
para que tudo corra mal, porém.
Porque a verdade é que correr mal,
seja o que for o que planeamos,
é o modo de correr natural,
por isso nos acontecer, há anos.
Que tudo pode aqui correr mal,
que mal tem, se isto é Portugal?
O nosso correr mal é sem igual,
porque somos os melhores do mundo.
Se nos visitar pedregulho astral,
Portugal, com orgulho, irá ao fundo!
29.10.2022
Eugénio Lisboa
Um instinto de luz
sexta-feira, 28 de outubro de 2022
Uma criança índia que chora
Amazónia , Brasil |
Devastação do maior bioma do Brasil, Amazónia |
Chora uma criança na Amazónia,
ela é índia e criança e chora,
despejada naquela babilónia,
aguardando ajuda que demora.
Ser índio desprezado é destino
de imensas crianças na floresta.
Lágrimas lavam seu corpo franzino,
lágrimas sendo tudo que lhes resta!
Quem isto tolera e até promove
diz-se cristão de não sei que evangelhos:
a ganância assassina é que move
estes autênticos escaravelhos!
Uma criança índia que ali chora
é pra sempre mancha em qualquer aurora!
28.10.2022
Eugénio Lisboa
quinta-feira, 27 de outubro de 2022
Nos Rastros da Utopia
Se as coisas são inatingíveis...ora!Não é motivo para não querê-las...Que tristes os caminhos se não foraA mágica presença das estrelas!Mário Quintana
[1] Apodo que tinha o Partido Comunista de Brasil, na época considerado o maior partido político de esquerda do país.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022
Alguns poemas de Reinaldo Ferreira
de Reinaldo Ferreira
Volver às rimas suaves,
Aos metros embaladores,
Cantar o canto das aves,
A aurora, a brisa e as flores…
Dos trovadores sepulcrais
Delidas queixas d’Elvira
Zelos de bardo, fatais
De outras apenas diferente,
Ao fogo do coração
Arda a razão descontente.
Rico mais do que partira,
Pois trago coisa nenhuma
Sem desespero e sem ira.
No meu exílio sereno;
Tomei tamanho de gente
E não me dói ser pequeno.
Tranquilidade dos charcos,
Deixem dormir minha alma,
Como apodrecem os barcos…
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos, dancemos
Já que temos
A dança começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
Dum par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh…
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une – é estar ausentes.
RECEITA PARA FAZER UM HERÓI
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
terça-feira, 25 de outubro de 2022
Centenário de Reinaldo Ferreira
O poeta fala a todos os homens, daquela outra vidaque eles sufocaram e esqueceram. Edith Sitwell
Novas vozes portuguesas
Prémio Camões 2022
Silviano Santiago diz que este "prémio chega num momento difícil para o mundo e para o Brasil".
Silviano Santiago, de 86 anos, anunciado esta segunda-feira o vencedor do Prémio Camões 2022 afirmou que este é um reconhecimento do seu "longo trabalho em literatura".
Para o brasileiro, em declarações ao Estadão, jornal onde chegou a colaborar como colunista, este "prémio chega num momento difícil para o mundo e para o Brasil".
"Não deixa de ser, para mim, em particular, um momento de alegria - um reconhecimento do meu longo trabalho em literatura", acrescentou.
Nascido em 1936, em Formiga, Minas Gerais, Brasil, Silviano Santiago mudou-se com dez anos para Belo Horizonte e, aos 18 anos, começou a escrever para uma revista de cinema, além de ter ajudado a idealizar e publicar a revista Complemento.
Apesar de não ter qualquer obra publicada em Portugal, Silviano Santiago escreveu cerca de 30 livros, entre os quais se destacam romances como "Em liberdade", "Stella Manhattan", "Machado" e "Mil rosas roubadas".
A escolha do escritor brasileiro Silviano Santiago como vencedor do Prémio Camões 2022 foi anunciada esta segunda-feira pelo ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva.
No ano passado, o Prémio Camões foi atribuído à escritora moçambicana Paulina Chiziane, autora de "Balada de Amor ao Vento" e "Ventos do Apocalipse".
O Prémio Camões de literatura em língua portuguesa foi instituído por Portugal e pelo Brasil, com o objetivo de distinguir um autor "cuja obra contribua para a projeção e reconhecimento do património literário e cultural da língua comum".
Segundo o texto do protocolo constituinte, assinado em Brasília, em 22 de junho de 1988, e publicado em novembro do mesmo ano, o prémio consagra anualmente "um autor de língua portuguesa que, pelo valor intrínseco da sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum".
Foi atribuído pela primeira vez, em 1989, ao escritor Miguel Torga.
Em 2019, o prémio distinguiu o músico e escritor brasileiro Chico Buarque, autor de "Leite Derramado" e "Budapeste", entre outras obras; em 2020, o professor e ensaísta português Vítor Aguiar e Silva (1939-2022).
O Brasil lidera a lista de distinguidos com o Prémio Camões, com 14 premiados cada, seguindo-se Portugal, com 13 laureados, Moçambique, com três, Cabo Verde, com dois, mais um autor angolano e outro luso-angolano.
A história do galardão conta apenas com uma recusa, exatamente a do luso-angolano Luandino Vieira, em 2006.” Lusa/DN, 24.10.2022
Saiba mais: Aqui
segunda-feira, 24 de outubro de 2022
ANATOMIA DA GLÓRIA
I am famous.That is my job.Jerry Robin
mas são gestos tristes e sem grandeza:
congeminam-se todas as minúcias
de que precisa uma boa defesa.
porque mais precisa é ainda a glória:
o amigo que tivesse juízo
e pensasse melhor na trajectória!
e ganha-se, mesmo que seja a murro.
Não dá para pruridos de inteireza
A glória não se importa com mãos sujas
e acha úteis palavras sabujas!
Eugénio Lisboa
Haverá sempre Guerras?
domingo, 23 de outubro de 2022
Elogio do Bichano
Ser ou não ser bichano, eis a questão!
Pode provar-se, com bom fundamento,
que não ser bichano é perdição
e, provavelmente, puro tormento.
Assim sendo, qual será a razão
de existir dos que não são bichanos?
Não ser bichano é só desrazão
que causa aos outros bichos muitos danos!
Deus criou Leonardo já tarde(2),
e, por isso, criou os não bichanos
e fê-lo xó com medo do alarde
que os bichanos trariam aos humanos:
Deus sabia muito bem que os bichanos
satisfariam gregos e troianos!
(1) - Bichano: o mesmo que gato ou, de preferência, gatinho.
Eugénio Lisboa
Ao Domingo Há Música
Não se ouve passos no corredor
Ninguém cá vem chamar, a calma há-de voltar
O céu quebrado ilumina sonhos
Já a caminho de um novo lar
Bosques, veredas, que conheci
Visões de eu poder chegar a ti
Abismos onde eu voei, promessas que eu tentei
Enganos meus, amor, adeus
Abismos onde eu voеi, promessas que eu tеntei
Enganos meus, amor, adeus
Leva na memória cada beijo que eu te dei
sábado, 22 de outubro de 2022
Livros , as Novidades do Outono
Da Gradiva
NOVIDADE
As Guerras de Albert Einstein Vol. 2, de François de Closets, Corbeyran, Éric Chabbert
Edição Outubro 2022
Páginas 64
Preço - €19,50 €17,55
Sinopse
Edição Outubro 2022, Colecção Obras de Luís Filipe ThomazISBN 978-989-785-160-5
Páginas- 328
Preço-€
Brevemente
Sinopse
Edição Outubro 2022P
Páginas -264
Preço- €
Sinopse
Do Grupo Presença
Da
Relógio D’Água
Outubro
1 — A Alma dos Ricos, de Agustina Bessa-Luís
2 — Aforismos, de Agustina Bessa-Luís (Prefácio de Paulo Tunhas)
3 — Ferry, de Djaimilia Pereira de Almeida
4 — O Passageiro, de Cormac McCarthy (Tradução de Paulo Faria)
5 — O Meu Ano de Repouso e de Relaxamento, de Ottessa Moshfegh
6 — O Tempo É Uma Mãe, de Ocean Vuong
7 — Os Nossos Corações Perdidos, de Celeste Ng
8 — O Império da Dor: A História Secreta da Dinastia Sackler, de Patrick Radden Keefe
9 — Anotação do Mal, de Jaime Rocha
10 — A Lua de Bruxelas, de Amadeu Lopes Sabino
11 — Obra Poética, de José Afonso
12 — Espíritos Afins, de Virginia Woolf
Novembro
1 — A Ucrânia e a Rússia: Do Divórcio Civilizado à Guerra Incivil, de Paul D’Anieri (Versão Actualizada)
2 — A Morte Breve ou A Democracia Imanente, de José Gil
3 — Flores para Algernon, de Daniel Keyes
4 — Inteligência Artificial 2041, de Kai-Fu Lee e Chen Qiufan
5 — A Floresta Negra, de Liu Cixin
6 — Maternidade, de Sheila Heti
7 — Fé, Esperança e Carnificina, de Nick Cave e Sean O’Hagan
8 — A Decisão, de Karine Tuil
9 — O Que não Compreendo É a Música, de Ana Teresa Pereira
10 — W. B. Yeats, de Cristina Carvalho
11 — O Chef, de Luís Afonso (Colecção Contos Singulares)
Da
Quetzal
Conheça os nossos cabazes |
Conheça os nossos cabazes |
Das Edições 70, Grupo Almedina
Novidades
Ano: 2022
Páginas – 216
Preço – 15,21€
Sinopse
Edição/reimpressão: 09-2022
Páginas - 372
Preço – 16,92€
Annie Ernaux vence Prémio Nobel Livros do Brasil orgulha-se de publicar em Portugal a autora francesa Prémio Nobel da Literatura de 2022. CONTINUAR A LER |
Do Leste para o resto do mundo 24 de fevereiro de 2022 é uma data que ficará inscrita nos livros de História, porque marca o início de uma guerra anunciada. A invasão russa avançou ... CONTINUAR A LER |
Entrevista a Richard Zimler A intolerância religiosa, o medo e a desconfiança na época d a Inquisição assombram este novo livro de Richard Zimler narrado por um menino judeu de nove anos, ... LER ENTREVISTA |
Escolha do Editor Uma receita literária sem pecados, preparada de uma assentada por uma autora britânica, de ascensão caribenha e residente em Itália – inevitavelmente atraída pelo poder... CONTINUAR A LER |
Um Porto de Encontro com Carlos Tê O letrista e escritor apresentou «Arquibaldo» no arranque da 11.ª temporada deste ciclo de conversas... CONTINUAR A LER |
Sugestões para o outono Um policial e um romance histórico que nos levam do norte de Portugal até ao sul de Angola. CONTINUAR A LER |