Um grande repórter:
Fernando Magalhães
Por Eugénio Lisboa
"Fernando
Magalhães, ontem (1.2.2013) falecido, aqui, em Lisboa, após alguns meses de
sofrimento, foi um grande e singular jornalista.
Privei
com ele, de perto, em Moçambique, nos anos sessenta e setenta e, depois, em
Lisboa, a partir da segunda metade dos anos noventa. Tínhamos uma tertúlia
mensal, aqui no concelho de Cascais, de que faziam parte, sempre, o Fernando
Magalhães, o Carlos Adrião Rodrigues, o João Afonso dos Santos e eu próprio, e,
ocasionalmente, outros elementos ( o Salvador Amaro, a Joana Pereira Leite,
etc).
Em
Moçambique, a tertúlia era aos sábados, em casa do Adrião Rodrigues, e aí conspirávamos
os nossos textos e disparos para A Voz de Moçambique e, durante algum tempo,
para A Tribuna. O Fernando Magalhães pecara, literariamente falando, apenas uma
vez, com uma magra ficção que não teve seguimento. O seu temperamento era,
sobretudo, de jornalista e, nesse pelouro, ele era único. Lembro-me de um
concurso literário (que incluía a sub-espécie do jornalismo), em que tivemos,
por uma razão qualquer, de congeminar um Prémio Hors Concours, para não ficar
por assinalar uma fabulosa reportagem do Fernando Magalhães.
Entre
nós, ele recortava o perfil de um personagem peculiar: objectivo, friamente analista,
raramente dava escape aos ventos da indignação: mais depressa se inclinava a um
desprezo distante do que a uma fúria incontida. Escondia o tumulto das emoções
no exercício de uma ironia que se alcandorava, por vezes, até ao nível do humor
negro.
A
sua prosa era secamente acutilante, às vezes, subtilmente perversa, nunca
romântica. Recentemente, ofereceu-me, num gesto de amiga homenagem, uma
reportagem saborosamente mortífera acerca de uma viagem à Coreia do Norte,
quando Samora Machel era ainda vivo e Presidente. O texto é de uma maldade saudável e ferina,
digna dos melhores momentos do Swift de “A Modest Proposal”.
O
Fernando escondia, com pudor, os seus afectos e só em raros momentos – e sempre
“defendendo-se” com o apetrecho da ironia – deixava escapar um sinal de maior
entrega. Mas era um ser raro e a sua morte deixa, na nossa tertúlia, um feio
buraco negro. Não há muito, partira de nós o Adrião Rodrigues: duas presenças
insubstituíveis.
Seria
interessante – e recomendável – que, num qualquer departamento universitário,
alguém se dispusesse a fazer ou mandar fazer um inventário exaustivo dos
trabalhos de reportagem de Fernando Magalhães com vista à publicação de um
livro onde elas se acolhessem. Ver-se-ia assim melhor o que foi o trabalho de
investigação e análise, na prosa enxuta e desafiadora de um dos nossos grandes
jornalistas ( e, neste “nosso”, incluo Portugal e Moçambique)."
Eugénio
Lisboa, in Jornal Savana nº 996, 8/02/2013
O PAÍS
DOS CINCO CORTES DE CABELO
Por
Fernando Magalhães
"Em meados da
longínqua década de 60, vivíamos nós na então Lourenço Marques, o Eugénio
Lisboa presidiu a um júri nomeado pelo Município que me atribuiu um primeiro
prémio de reportagem. Tratava-se da minha descoberta da Bolsa de Joanesburgo, na
Hollard Street, uma ruazinha de uns 200 metros onde se concentrava mais dinheiro e
se fazia mais negócio do que em toda a África. Decidi pois homenageá-lo agora à
minha maneira: oferecer-lhe a reportagem que na altura não tive a coragem de
escrever, porque ainda não era claro para mim que um jornalista não pode deixar
de denunciar o totalitarismo quando o descobre no exercício da sua função.
Estávamos
em Março de 1975 e eu, jornalista experiente, preparava-me para mudar de
paradigma, como é moda dizer agora. Ia ser finalmente um verdadeiro jornalista
moçambicano, livre da odiosa censura colonial e “engajado” (como se dizia
então), na missão de informar, defender, educar e ser educado pelo meu povo,
libertado pela Frelimo. Era o meu velho sonho tornado realidade.
Este
trabalho, melhor, esta missão, de cobrir a visita do presidente (ainda só da
Frelimo) Samora Machel, aos “países amigos e irmãos” da República Popular da
China e da República Popular Democrática da Coreia, enchia-me de orgulho. Além
do mais fora-me confiada a responsabilidade de chefiar a delegação de
jornalistas moçambicanos.
O
Boeing da CAAC (Linhas Aéreas da RPC) deslizava suavemente sobre as nuvens
aproximando-se de Pyongyang quando um “camarada dirigente altamente
responsável” se veio sentar ao meu lado e me disse com convicto: – Agora vais
conhecer um país socialista verdadeiramente organizado, talvez mais organizado
que a China ou a RDA (antiga República Democrática Alemã). Toma atenção que vais
aprender muito.
Devo
referir que este então “camarada dirigente altamente responsável” – ainda hoje
meu amigo, acho eu, era dos poucos a tratar-me por tu. Para os outros, como
estava estabelecido e mesmo que fossemos velhos conhecidos, eu era o “camarada
Magalhães”. Claro que havia outra excepção, mas Samora Machel tratava todos por
tu, do guerrilheiro analfabeto, ao embaixador da URSS ou dos EUA. Adiante.
Aterrámos
pois em Pyongyang com o aeroporto cheio de coreografias, danças, canções e
bandeirinhas e eu de olhos e ouvidos bem abertos, desejoso de aprender. Sabia
apenas que a cidade tinha sido completamente arrasada por bombardeamentos
aéreos americanos durante a guerra da Coreia e que, sobre as ruínas, Kim
Il-sung erguera uma urbe que pretendia socialista, moderna e exemplar.
À
entrada da cidade, o guia coreano apontou-nos um enorme cartaz com a efígie de
Kim e explicou-nos em mau castelhano: Ali está escrito, bem-vindo a Pyongyang a
cidade onde já foi instalado o verdadeiro comunismo. Alguém lá de trás da
carrinha, acho que o Miguéis Lopes ou o Albino Magaia, rosnou: o comunismo não
foi instalado em lugar nenhum do mundo, camarada, ainda estamos na fase da
edificação do socialismo. E o guia solícito a replicar que não, não, não, no
nosso país o querido e glorioso líder e marechal de aço Kim Il- sung já
construiu o verdadeiro comunismo! A réplica veio noutro rosnanço do género,
este camarada é parvo ou quê? Mas do que víamos, lá que a cidade era bonita,
isso era.
Chegámos
ao belo hotel e sobre a entrada, bem em grande, muito grande, sorria-nos a
imagem de Kim Il-sung. Solícito, o pessoal não nos deixou levar as malas. Eles
de fato à Mao, com um bem grandinho “pin” do querido líder no peito. Elas, de longo
vestido tradicional, em cetim com florinhas, com o mesmo “pin”, de olhos sempre
no chão e muitas reverências, lembrando gueixas.
Na
recepção, lá estava, em grande, o rosto sorridente de Kim, e também, fardado ou
à civil, a meio corpo ou corpo inteiro, em todas as paredes. Nos longos
corredores a caminho dos quartos, de três em três metros, multiplicavam-se as
imagens do querido líder e à entrada de todos os quartos havia uns quadrinhos
com um miúdo a perorar a outros miúdos e a graúdos que o ouviam entre espantados
e veneradores. Alguém dos nossos perguntou o que é isto camarada? e a resposta
veio rápida: ilustram a história do nosso querido líder e marechal de aço,
ainda criança mas já divulgando a linha política correcta.
Chegado
finalmente ao meu belo aposento, lá estava ele, fitando-me de frente, de trás e
de lado, umas vezes como querido líder, outras como marechal de aço. Sorridente,
olhava-me também da primeira página do jornal nacional, à minha espera na
secretária. Ao lado, uma avantajada resma de 10 ou 11 calhamaços (em português)
com o seu nome e efígie explicando a sua filosofia “juche” (da
auto-suficiência).
Desesperado
e ansioso por descansar os olhos, escancarei a janela do quarto. Caía a noite e
sobre a cidade pairava um silêncio estranho, inédito numa capital. Lá em cima, dominando
Pyongyang, qual Cristo do Corcovado, resplandecia envolvida em focos luminosos
a estátua do querido líder. O que vale é que o jantar, como todos os outros, foi
óptimo e muito bem brindado.
No
dia seguinte lá fomos, muito de manhãzinha em peregrinação ao monumento de 20 metros de altura, todo
de bronze dourado, estrategicamente colocado em frente à Biblioteca Nacional e
Museu da Revolução.
Perguntámos
ao guia quantos livros havia na biblioteca. Disse-nos que mais de um milhão. De
que tipo? Todos escritos pelo querido líder ou sobre o querido líder e com
muitas traduções. Julgámos ouvir mal. Um milhão e só sobre Kim Il-sung? O guia
confirmou, feliz. E então não há nada de Marx, Lenine, Mao? Que não, não eram
necessários. Estavam ultrapassados pela filosofia “juche”do querido líder.
Mais
resmungos “pouco próprios da linguagem do nosso partido” e lá fomos, numa longa
coluna automóvel a velocidade desenfreada por largas avenidas vazias, visitar a
cidade “onde já fora edificado o verdadeiro comunismo”. Era a hora das crianças
irem para as creches ou escolas, todas muito organizadas, de mãozinha dada, lencinho
vermelho de “pioneiras” ao pescoço, em intermináveis filas, professores à
frente (lindo!) e cantando (informou-nos o guia) odes ao querido líder. Visitámos
uma das creches. Danças e mais canções (já não perguntámos nada) e depois, para
todas, uma sessão de tiro com espingardinhas de pressão, tendo como alvos o
“cachorro presidente imperialista americano” (lá estava ele caricaturado) e o
navio espião americano “USS Pueblo” que anos antes tinha sido capturado pela
marinha norte-coreana.
Adiante
e passemos à nossa muito ambicionada visita ao complexo industrial desse
“modelar país amigo”. Tínhamos sido informados de que nos seriam mostradas
moderníssimas fábricas, muitas quais, pelo seu valor estratégico e a sempre
presente ameaça do imperialismo ianque, funcionavam dentro de galerias enormes,
escavadas em montanhas.
Aí
já ia também parte da delegação política e não apenas nós, pobres jornalistas. O
meu amigo “camarada dirigente altamente responsável”, depois de me ouvir alguns
reparos sobre aquela estranha forma de socialismo, tranquilizou-me: “Culto da
personalidade, especificidades do socialismo asiático; já discutimos isso entre
nós. Agora é que a visita vai começar. Abre os olhos”.
Estávamos
preparados para uma longa visita ao campo mas acabámos num imponente edifício
no centro de Pyongyang. Lá dentro apresentaram-nos “algumas das gigantescas
fábricas”. Estavam de facto escondidas em montanhas de papelão dentro de
grandes vitrines. Um camarada carregava num botão e a montanha abria-se. Mais
um toque revelava-nos zonas com máquinazinhas a trabalhar e bonequinhos cumprindo
a sua função de operários. A visita acabou com a reconstituição de algumas das
grandes batalhas vencidas pelo querido e glorioso líder e marechal de aço
contra o imperialismo. Lembro-me de muitas luzinhas a apagar e a acender e,
acho eu, canhões, carros de combate e soldados em miniatura. Não
havia qualquer referência aos aliados chineses (morreram mais de 300 mil na
guerra da Coreia) e perguntámos porquê. Aliados chineses? Estávamos enganados… a
guerra tinha sido integralmente feita e vencida pelo povo coreano dirigido pelo
querido líder e marechal de aço. Lembro-me de incontidos sorrisos em alguns camaradas
dirigentes. Eu, mais do que frustrado estava sobretudo preocupado. É que os
meus companheiros jornalistas começavam a revelar “comportamentos pouco
próprios da nossa disciplina”. Sussurravam entre si como conspiradores,
ouviam-se risinhos e o mesmo já se passava com alguns representantes das nossas
organizações populares. Adiante.
A
visita estava a acabar mas faltava o grande final, a festa do encontro com o
querido líder.
Era
ao fim da tarde mas foram-nos buscar muitas horas antes, “a preparação”. Reuniram
toda a delegação, com excepção de Samora Machel, numa ampla sala de hospital. Mandaram-nos
despir. Depois urinámos para um tubinho. Em fila (camaradas dirigentes à
frente) com o tubinho erguido na mão direita e todos em pêlo avançámos para uma
enfermaria onde um camarada coreano (julgo que médico ou enfermeiro) nos
auscultava, outro via-nos os olhos e um outro tirava-nos uma amostra de sangue.
Aqui já se ouviam reclamações algo coléricas, não só de alguns dos meus
jornalistas como também de camaradas “altamente responsáveis”, nomeadamente de
um famoso comandante da guerrilha (ainda não havia generais da Frelimo e ainda
se acreditava que no “nosso exército popular” não seriam necessárias patentes) exigindo
explicações. Tudo para o nosso bem, explicavam os guias intérpretes, já que
vínhamos da guerra no mato e poderíamos ser portadores de doenças que assim
seriam detectadas e tratadas. Adiante. A fila lá seguiu nuazinha (éramos só
homens, julgo que as poucas camaradas estavam, algures, a ter tratamento igual)
por um corredor onde subitamente se desencadeou um chuveiro infernal de água
com desinfectante. Alguns berros e alguma desorganização, como acontece com as
vacas quando tomam o primeiro banho carracicida. Depois toalha felpuda, secagem
e devolução das nossas roupas, ainda quentes, impecavelmente engomadas. Lembrei-me
das palavras do meu “amigo camarada altamente responsável” sobre a exemplar
organização norte-coreana. Ali estava ela.
E
chegou o grande momento. No enorme salão de festas do palácio da Assembleia
Popular esperavam-nos muitas centenas de altas entidades, claro que todas com o
seu “pin” do grande líder. Como em qualquer reunião burguesa falava-se (aqui
sussurrava-se) e bebia-se um aperitivo. Numa extremidade havia uma espécie de
salão caixa de vidro e lá dentro, muito só, sorriso permanente nos lábios,
estava Kim Il-sung, mais velho e mais gordo do que nas fotografias. De vez em
quando um grupo de convidados aproximava-se da parede de vidro, fazia uma
reverência e brindava. O querido líder, do outro lado do vidro, acenava com a
mão esquerda, sorria e levantava a sua taça. Depois o grupo brindante recuava,
olhos no chão, para dar oportunidade a outros.
Pressuroso,
um guia-intérprete introduziu-nos no salão caixa de vidro (muito florido, com muitas
sedas, brocados e aveludados) para conhecermos o grande líder em carne e osso. Tivemos
até oportunidade de descobrir que na zona posterior do pescoço se notava um
tumor bem grande (maior que uma bola de ténis ou de bilhar) que os milhões de
imagens do querido líder, mostradas ao seu povo e ao mundo, não revelavam.
Soube mais tarde, muito em segredo, por um camarada jornalista chinês que se
tratava de um depósito de cálcio não removível por se situar numa zona demasiadamente
próxima da espinal-medula e do cérebro.
Kim
foi muito afável. Cumprimentou-nos, disse umas palavras e até abraçou os
agraciados com a Ordem dos Combatentes Anti-Imperialistas. Minutos depois, com
excepção de Samora Machel, que permaneceu a conversar com Kim, fomos devolvidos
ao salão de festas para o convívio possível.
O
último banquete foi opíparo e muito brindado, tanto por nós como por eles. De
tal forma que o nosso guia-intérprete acabou por se deixar enredar num debate
sobre a necessidade de democracia no socialismo. Será que isso acontecia no
“juche”? De toda a argumentação do camarada guia-intérprete a provar que a RDPD
era um verdadeiro estado democrático, lembro-me bem de um exemplo decisivo: no
país de Kim Il-sung, qualquer camarada podia escolher entre cinco cortes de
cabelo! Confirmei mais tarde que era verdade.
Quanto
à reportagem, nunca a consegui escrever. O mesmo aconteceu com a maioria dos
outros jornalistas. Ficaram-se pelas fotos, com umas legendazinhas de
circunstância. Não tenho dúvidas que aquela viagem foi extremamente pedagógica
para todos, que foi o que eu disse ao meu amigo, então camarada altamente
responsável.
Lisboa,
Dezembro de 2010 "
Fernando Magalhães,in " Eugénio Lisboa: Vário,Intrépido e Fecundo - Uma homenagem", organização de Otília Pires Martins e Onésimo Teotónio Almeida, Editora Opera Omnia
Nota: Curiosamente, volvidos 38 anos após esta visita à Coreia do Norte, registou-se alguma evolução na oferta e permissão de cortes de cabelo, nesse país, conforme noticia a Revista Visão em artigo publicado, ontem, 26 de Fevereiro.
“ Coreia do Norte só autoriza 28
cortes de cabelo
Cabelos
curtos para as mulheres casadas e um pouco mais compridos para as solteiras.
Para os homens também há uma lista de cortes permitidos... que, curiosamente,
não inclui o do líder Kim Jong Un .”in Revista Visão
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