“Ver,
recordar, compreender. Tudo depende de onde te encontras. Na primeira vez que
fui a Hammars, tinha pouco mais de um ano de idade e nada sabia acerca do
grande amor revolucionário que me tinha levado até ali.
Na
verdade, havia três amores.
Se
existisse um telescópio que pudéssemos apontar para o passado, eu poderia
dizer: olha, aqui estamos nós, foi assim que aconteceu. E sempre que
duvidássemos se aquilo que recordo correspondia à verdade, ou se aquilo que
recordas correspondia à verdade, ou se aquilo que aconteceu de facto aconteceu,
ou se sequer existíamos, poderíamos juntar‑nos e espreitar o passado.
Numero,
ordeno e catalogo. Afirmo: eram três amores. Tenho agora a idade que o meu pai
tinha quando nasci. Quarenta e oito anos. A minha mãe tinha vinte e sete, e na
altura parecia em simultâneo muito mais velha e muito mais nova do que era.
Não
sei qual dos três amores chegou primeiro. Mas começo com o que surgiu entre os
meus pais em 1965 e que terminou antes de eu ter idade suficiente para o
recordar.
Vi
fotografias e li cartas e ouvi‑os falar do tempo que passaram juntos, e ouvi
também relatos de outras pessoas, mas a verdade é que não se pode saber muito
sobre a vida das outras pessoas, em especial dos próprios pais, e sobretudo se
esses pais fizeram questão de transformar a sua vida em histórias que desde
então contam com uma naturalidade que advém de não se preocuparem minimamente
com o que é verdade e o que não é.
O segundo amor é um prolongamento do primeiro
e concerne um casal de namorados que se tornaram pais e a rapariga que era sua
filha. Amava os meus pais sem reserva e dava como certa a sua existência, como
a das estações do ano ou dos dias, ou das horas, um era a noite e o outro era o
dia, um terminava onde o outro começava, eu era filha dela e filha dele, mas,
tendo em conta que eles também queriam ser crianças, facilmente se percebe que
nem sempre era fácil ser sua filha. E há mais uma coisa. Eu era filha dele e
filha dela, mas não era filha deles, nunca fomos três, e, quando vejo a pilha
de fotografias que tenho à minha frente na mesa, não encontro uma única imagem
em que apareçamos os três juntos. Ela e ele e eu.
Essa
constelação não existe.
Queria
tornar‑me adulta o mais depressa possível, não gostava de ser criança, tinha
medo das outras crianças, da sua inventividade, da sua imprevisibilidade, das
suas brincadeiras, e, para expiar a minha própria infantilidade, costumava
imaginar‑me capaz de me dividir e de me transformar em várias pessoas, de me
converter num exército de liliputianos, e nós tínhamos muita força — éramos
pequenos, mas éramos muitos. Dividia‑me e marchava de um para o outro, do meu
pai para a minha mãe e da minha mãe para o meu pai, tinha muitos olhos e muitos
ouvidos, muitos corpos magros, muitas vozes agudas e muitas coreografias.
O terceiro amor. O lugar. Hammars, ou
Djaupadal, como se costumava chamar antigamente. Era o lugar dele, não dela,
não das outras mulheres, não dos filhos, não dos netos. Durante algum tempo,
senti que pertencíamos àquele lugar, que era o nosso sítio. Se é verdade que
todos têm um lugar — não é verdade, mas se o fosse —, aquele seria o meu lugar,
em todo o caso mais meu do que o nome que me deram, porque passear por Hammars
não era tão angustiante quanto passear pelo meu nome. Reconhecia o cheiro do ar
e o mar e os rochedos e o modo como os pinheiros se dobravam ao vento.
Dar
um nome. Dar e receber e ter e viver e morrer com um nome. Gostaria de ter
escrito um livro sem nome. Ou um livro com muitos nomes. Ou um livro onde todos
os nomes fossem tão normais que os esqueceriam de imediato, ou que soassem tão
semelhantes que fosse impossível distingui‑los uns dos outros. Os meus pais
deram‑me (após muita hesitação) um nome, mas nunca gostei desse nome. Não me
reconheço nele. Quando alguém me chama pelo nome, sobressalto‑me como se me
tivesse esquecido de me vestir e só então me apercebesse de que estava na rua e
rodeada de pessoas.
No
outono de 2006 aconteceu algo que posteriormente entendi como um eclipse — um
escurecimento.
A astrónoma Aglaonice, ou Aganice de Tessália,
como também é conhecida, viveu muito antes de o telescópio ser inventado, mas
conseguiu, apenas com a ajuda dos seus olhos, calcular com precisão quando
ocorreriam os eclipses lunares.
Consigo
atrair a Lua até mim,
disse ela. Sabia aonde e quando ir.
Sabia
o que iria acontecer e quando. Estendia os braços ao céu, e o céu ficava negro.
Nos seus Preceitos Conjugais, Plutarco
adverte para o perigo daquilo a que chama bruxas, como Aglaonice, e instiga os
recém‑casados a ler, aprender e a manterem‑se informados. Uma mulher que
domina a geometria, escreve ele, não sentirá necessidade de dançar. Uma mulher
instruída não se deixa ludibriar pela insensatez. Uma mulher sensata e com
conhecimentos de astronomia rir‑se‑á à gargalhada sempre que outra mulher a
tente convencer de que é capaz de atrair a Lua até si.
Ninguém
sabe ao certo quando Aglaonice viveu. O que sim, sabemos, e que Plutarco de
algum modo reconheceu, ainda que se lhe tenha referido com tanta
condescendência, é que ela era capaz de prever quando e onde ocorreriam os
eclipses lunares.
Lembro‑me
perfeitamente de onde estava, mas falta‑me a capacidade de prever o que quer
que seja. O meu pai era um homem pontual. Quando eu era criança, abriu o
relógio de pêndulo que havia na sala e mostrou‑me o seu interior. O pêndulo. Os
pesos de latão. Exigia pontualidade a si mesmo e a todos os outros.
No outono de 2006 restava‑lhe pouco mais de um
ano de vida, mas eu ainda não o sabia. Nem ele. Esperava‑o junto ao celeiro de
pedra caiado de branco e com a porta vermelho‑ferrugem. O celeiro tinha sido
convertido em cinema e estava rodeado de campos de cultivo, muros de pedra e
umas poucas casas. Não muito longe situava‑se o lago Dämba, um local com uma
grande riqueza ornitológica: entre as espécies que o habitavam, contavam‑se os
abetouros, os grous, as garças‑reais e os maçaricos‑reais.
Íamos
ver um filme. Quando estava com o meu pai, todos os dias víamos um filme,
exceto ao domingo, e tento agora lembrar‑me que filme íamos ver nesse dia.
Talvez o Orfeu, de Cocteau, um filme tão rico em imagens oníricas e
pungentes. Não sei, não me lembro.
«Quando faço um filme», escreveu Jean Cocteau,
«é como um sonho, e eu sonho dentro desse sonho. Só as pessoas e os lugares do
sonho fazem sentido.»
Tentei uma e outra vez recordar que filme era,
mas não me consigo lembrar. Os olhos demoram vários minutos a habituar‑se à escuridão,
costumava dizer o meu pai. Vários minutos. Por esse motivo, combinávamos sempre
encontrar‑nos às três menos dez.
Nesse
dia, o meu pai só chegou às três e sete, ou seja, dezassete minutos atrasado.
Não houve nenhum sinal. O céu não escureceu. O
vento não sacudiu as árvores. Não se levantou nenhuma tempestade e as folhas
não rodopiaram ao vento. Uma trepadeira‑azul sobrevoou os campos cinzentos em
direção ao pântano — de resto, estava tudo em silêncio, o céu nublado. As
ovelhas, a que na ilha chamavam sempre cordeiros, independentemente da sua
idade, baliam não muito longe dali, como
sempre haviam feito. Quando dou meia‑volta e olho em redor, tudo está como é
habitual.
O
meu pai era tão pontual que a sua pontualidade vivia dentro de mim. Se cresces
numa casa junto à linha de caminho de ferro e acordas todas as manhãs com o
comboio que passa a toda a velocidade perto do teu quarto, e que faz tremer as
paredes, as pernas da cama e o caixilho da janela, acabas por acordar todas as
manhãs com o comboio que passa dentro de ti, mesmo que já não vivas na casa
junto à linha.
Não foi o Orfeu de Cocteau. Talvez
tenha sido um filme mudo. Costumávamos sentar‑nos cada um na sua cadeira verde
e deixar que as imagens, nunca acompanhadas pela música de um piano, flutuassem
sobre a grande tela. Ele dizia que se perdera toda uma linguagem com o
desaparecimento do cinema mudo. Teria sido A Carruagem Fantasma, de
Victor Sjöström? Era o seu filme preferido. Para ele, um só dia equivale a
cem anos na Terra. Tem de deambular noite e dia para atender aos assuntos do
seu amo. Lembrar‑me‑ia se tivesse sido A Carruagem Fantasma. A única
coisa que recordo desse dia em Dämba, além da trepadeira‑azul a sobrevoar o
campo, é que o meu pai chegou atrasado. Isso custou‑me tanto a entender quanto
às seguidoras de Aglaonice que a Lua tinha desaparecido. As mulheres que, de
acordo com Plutarco, não sabiam astronomia e se deixavam ludibriar. Aglaonice
disse: Atraio a Lua até mim, e o céu escurece. O meu pai chegou
dezassete minutos atrasado e tudo foi como sempre e nada como antes. Atraiu a
Lua até ele e o tempo descarrilou. Deveríamos encontrar‑nos às três menos dez,
e já passavam sete minutos das três quando estacionou diante do celeiro. Tinha
um jipe vermelho. Gostava de conduzir depressa e de fazer muito barulho. Tinha
grandes óculos escuros cujas lentes pareciam asas de morcego. Não me deu nenhuma
explicação. Não se apercebeu de que chegou atrasado. Vimos o filme como se nada
tivesse acontecido. Foi a última vez que vimos um filme juntos.”
Linn
Ullmann, in Os Inquietos,
Relógio D’Água, 2023
Sobre
o Livro:
"Os Inquietos
é um livro sobre as conversas e recordações que a narradora preservou do seu
pai, o realizador e encenador Ingmar Bergman.
Os Inquietos é uma elegia sobre a memória e a perda, a identidade
e a arte, e também sobre a linguagem e as narrativas que compõem uma vida. E
aceita que «não se pode saber muito sobre a vida das outras pessoas, em
especial dos próprios pais».
Ela era a mais nova de nove filhos. Todos os verões, quando era ainda rapariga,
visitava-o na sua casa de pedra rodeada de bosques e papoilas, na remota ilha
de Fårö, no mar Báltico, onde ele procurara refúgio nos seus últimos anos de
vida.
Quando se tornou adulta, ele era já um velho. Bergman considerou a hipótese de
escrever um livro sobre os seus últimos anos, porque receava perder a memória e
a lucidez. Tentaram escrevê-lo em conjunto. Ela fazia as perguntas e ele
respondia, já com dificuldade.
Sete anos depois da morte de Bergman, Linn Ullmann encontrou coragem para
escutar as gravações que fizera e preencher as lacunas com as suas memórias,
recriando a história do seu pai, da sua mãe e de si própria.