Novos argumentos contra o Acordo
Ortográfico de 1990
Por Manuela Barros Ferreira*
“Qualquer crítica - e qualquer defesa - que se baseie
sobretudo em insultos não é crítica nem defesa: é mero desabafo. Não vale nada.
Por isso apresento uma série de argumentos relativos à eficiência operativa do
OA 90 e a aspectos de ordem linguística, educativa, sociológica, diplomática,
económica e de preservação patrimonial que me levam a não concordar com a sua
aplicação.
1. Argumento da pouca
eficácia
O AO 90, em vez de diminuir o número de palavras que se
escreviam diferentemente em Portugal e no Brasil, aumentou-o consideravelmente.
Segundo um estudo de Maria Regina Rocha (que exclui três tipos de vocábulos),
2.691 palavras que se escreviam de forma diferente mantêm-se diferentes; apenas
569 que eram diferentes se tornaram iguais; 1.235 palavras que eram iguais
tornaram-se diferentes e, destas, 200 mudaram apenas em Portugal, dando origem
a soluções aberrantes como aceção, conceção, confeção, contraceção, deceção,
impercetível..., enquanto no Brasil se continua a escrever acepção, concepção,
confecção, contracepção, decepção, imperceptível, etc. (cf. “A falsa unidade
ortográfica”, Jornal Público, 19.01.2013, retomado em
http://ciberdúvidas.iscte-iul.pt/.)
2. Argumento de ordem
fonológica
Uma das características da língua portuguesa falada em
Portugal é a chamada “elevação das vogais átonas”, ou seja: para nós, a
pronúncia das vogais “a” , “e” e “o” em posição tónica não é a mesma que a que
têm em posição átona. Compare-se o primeiro “a” de “casa” com o de “casinha”:
na primeira palavra o “a” é aberto, e na segunda o “a” é fechado. Compare-se o
“e” de “mesa” com o primeiro de “meseta”: em “mesa” pronunciamos “ê”, em
“meseta” o “e” é mudo. Mesmo que esse “e” desapareça da fala e digamos “mzeta”,
continuamos a perceber que se trata de “meseta”. Dizemos “tolo” com “ô” mas em
“tolice”, o “o” é fechado. Esta regra é de aprendizagem automática, desde a
primeira infância. Existem excepções, por motivos etimológicos e de paradigma
morfológico: caveira, dilação, especar, especular, padeira, relator, retrovisão
e algumas mais. Algumas dessas palavras até costumavam, até certa altura, levar
um acento grave para indicar que a vogal era aberta: pàdeira e rètaguarda por
exemplo. Hoje ele só subsiste como indicador da junção do artigo “a” com a
preposição “a” e com os demonstrativos aquele, aquela, aquilo (“Dei um bolo à
Maria”, “Àquele nunca falo”). Em 1971 no Brasil e em 1973 em Portugal foi
eliminado dos advérbios de modo, e assim “sòmente” e “fàcilmente” passaram a
escrever-se “somente”, “facilmente”. Considerou-se inútil porque “os falantes
da língua sabiam como se pronunciavam as palavras”. Foi talvez essa a primeira
“facada” que os legisladores da língua deram na transparência que a escrita
devia ter para quem o português não era a língua materna – como era o caso da maior
parte dos nativos das colónias de então. Noutros casos subsistia porém o
recurso a letras etimológicas, com a função de indicar que as vogais que as
precediam eram abertas. É o caso de “nocturno”,“espectador”, “tractor”. Sem
esse auxílio, a regra de fechamento da vogal que não tem acento tónico tende a
aplicar-se. É por isso que o AO 90 induz a que se leia “nuturno” ou, quando
muito, “nôtúrno”; “espetador” como um derivado de “espeto” e “trator” com “a”
fechado, vocábulo que não existe. Quer dizer, o AO aumentou desmesuradamente o
número das excepções a uma regra de pronúncia que permitia uma leitura
intuitiva.
3. Argumento de ordem
morfológica
Há um princípio básico de qualquer ortografia: a coerência
morfológica. O AO 90, seguindo estritamente a produção fonética, exige que se
escreva “os egípcios são os nativos do Egito”. Conserva-se, e muito bem, o “p”
do “egípcio” porque se pronuncia, mas em “Egito” perde-se a ligação gráfica
entre o nome do país e o dos seus habitantes.
4. Argumento de
linguística histórica
A língua
portuguesa é, como todas as línguas naturais, um produto da História. A nossa
deriva maioritariamente do latim, tem muitas raízes gregas, muitas achegas
vocabulares árabes, tem remodelações renascentistas, tem neologismos oriundos
das nações até onde viajou e dos variadíssimos povos, objectos e ideias que
aqui foram chegando através dos séculos. A escrita reflecte essa riqueza.
Sobretudo
com o Renascimento, a nossa língua sofreu um impulso extraordinário. A partir
dessa altura foram criadas ou recuperadas numerosas palavras com base no grego
e latim. Não falemos nos termos da Botânica, Medicina, Biologia, Química, que
não há lugar nem tempo para tamanha empresa. Falemos apenas de um processo: o
da criação de palavras derivadas.
Se repararem
bem, a coerência morfológica que mencionei acima, é coisa que aparentemente
falha: as palavras derivadas muitas vezes diferem daquela que lhes deram
origem. Por exemplo, “lunar” e “luneta” não derivam de “lua”, “pedal” não
deriva de “pé”, “lacticínio” não deriva de “leite”, “nocturno” não deriva de
“noite”. Todas estas (e tantas, tantas outras...) palavras foram criadas, não a
partir da palavra portuguesa (que sofreu todas as evoluções que o tempo
imprimiu à raiz latina), mas sim directamente a partir do étimo latino,
recuperado por pessoas eruditas: “luna-”, “pede-“, “lacte-“, “nocte-“. Uma
coisa é o ter-se a pronúncia do latim transformado por via popular, através dos
séculos (perdendo o “n“, o “l” e outras consoantes sonoras intervocálicas,
transformando “–ct” em “-it”, etc.) outra coisa é criar-se uma palavra nova,
aproveitando, reciclando um étimo já longínquo para fazer frente às novas
necessidades de vocabulário. Deste modo, muitas das nossas palavras derivadas
conservaram o étimo latino a partir do qual foram criadas. Elas fazem parte do
património da língua, veiculando uma dupla marca de origem: social (erudita) e
temporal (tardia).
5. Argumento
educativo
Como ensinar
a uma criança que “soturno” se lê com “o” fechado, pronunciado “u” na maior
parte do país, e a palavra “noturno” se lê com “o” aberto”? A resposta é fácil:
não se fala no assunto e fica o caso arrumado. Como ensinar a uma criança que
da palavra “noite” se formou “noitada”, mas que “noiturno” e “noitívago” não
existem, o que existe para o AO 90 é “noturno” e a dupla grafia “notívago” e
“noctívago”?
Não seria
mais fácil escrever estas últimas com “ct” e dizer-lhe que são palavras
entradas na língua por via erudita e não por via popular? E que, se elas,
crianças, comeram papa “láctea”, esta é outra palavra também erudita, tal como
“lacticínios” ? Escrever “laticínios” não remete para outra coisa a não ser
para “lata”. Talvez a lata de leite condensado que se vende nos supermercados?
6. Argumento
sociológico
Antes de
1990 já existiam duas grafias em Portugal: a norma de 1945, muito bem
destrinçada e explicada em Prontuários Ortográficos; e uma grafia difusa,
sempre em reconstrução e evolução - a das mensagens juvenis - caracterizada
pela simplicidade extrema, minimalista, com consoantes isoladas representando
palavras, sem pontuação, nem cedilhas nem tiles. Esta tendência não fez senão
acentuar-se com a generalização do uso electrónico. É nesta situação dicotómica
que se insere uma terceira forma ortográfica, a do AO 90. Os defensores da norma
de 45 agridem verbalmente os defensores da de 90 e vice-versa. E os jovens? Uns
são penalizados nas notas por escreverem à antiga algumas palavras-ratoeira;
outros são menosprezados porque escrevem à sua, deles, moda “simplex”; e os que
escrevem “à moderna” deixam de respeitar as edições existentes na biblioteca da
sua escola e inclusive invocam o pretexto da “confusão gráfica” para deixarem
completamente de ler.
Se o AO 90
não é um erro sociológico, não sei o que será.
7. Argumento
diplomático
O Acordo Ortográfico
de 1990 tinha-se proposto unificar a escrita de todos os países de língua
oficial portuguesa. Este objectivo não foi conseguido. Portugal impôs
unilateralmente uma grafia que não tem o acordo de todos .
Diz-se que o
AO 90 foi feito, essencialmente, para aumentar as vendas de livros portugueses
no Brasil. Para isso pretendia unificar a escrita. Não unificou. Temos, por
exemplo, acentos agudos onde os brasileiros têm acentos circunflexos (fenómeno
/fenômeno, o que corresponde a uma efectiva diferença de pronúncia); e
eliminamos o “c” e o “p” que são pronunciados em palavras brasileiras e não o
são nas correspondentes portuguesas. Por exemplo, no Brasil: respectivo,
perspectiva, recepção; em Portugal, segundo o AO: respetivo, perspetiva,
receção, embora os “e” destas palavras não se pronunciem como os de “repetido”
e “recessão”.
Angola e
Moçambique não assinaram o AO 90 (o que me parece um grande exemplo de bom
senso, sobretudo se tivermos em conta o argumento que se segue). A opinião
destes países de língua oficial portuguesa devia ter sido ponderada e tida em
conta pelo governo português antes de avançar para uma “situação de facto”
extremamente difícil de reverter.
8. Argumento
económico
O que seria
economicamente mais recomendável?
Adoptar como
obrigatório o AO 90 em nome de futuras vendas de futuros livros, tornando
obsoletas as bibliotecas existentes? Ou manter a escrita de 1945, com todo o
enorme acervo literário e científico que produziu?
Leiamos as
palavras da escritora moçambicana Paulina Chiziene:
“Quantos
dicionários Moçambique terá de comprar de novo? Quantos livros terá de mandar
reescrever? Quantos livros de escola terão de ser refeitos, em nome de um
acordo ortográfico? Será que vale a pena sacrificar tanto dinheiro dos pobres
só para tirar um “c” e um “p” do que está escrito? [...] Penso que é um
capricho tão desnecessário quanto caro”. (Tradutores contra o Acordo
Ortográfico).
9. Argumento da
preservação patrimonial
É natural
que uma língua que se começou a escrever e ensinar há relativamente pouco tempo
– por exemplo, o mirandês, no fim do século XX – não tenha qualquer obrigação
de respeitar formas que os portugueses foram elaborando ao longo dos séculos.
Porém a mim parece-me que todos nós, portugueses, que dispomos de uma língua
escrita desde, pelo menos, D. Afonso II, temos obrigação de manter o mais
possível as marcas históricas das palavras que até nós chegaram.
A grafia
portuguesa já em tempos renunciou a algumas marcas históricas: por exemplo, o
“ph” e os “ll” etimológicos (pronunciados “f” e “l”), dado que esse modo de
escrever induzia a leituras erradas, e podia, por isso mesmo, ser descartado.
Porém o AO 90 vai longe demais, ao afectar de modo evidente a leitura das
vogais não acentuadas e a íntima conexão lógica que existe dentro de cada
paradigma vocabular.
Ao
modificar-se a escrita, com base numa (suposta) maior facilidade da sua
aprendizagem, estabeleceu-se uma enorme confusão nessa mesma escrita e
perdeu-se a possibilidade de jovens e menos jovens compreenderem os mecanismos
de formação das palavras. Perdeu-se o nexo entre elas.
Para terminar:
Outra coisa
ainda deveria ser tida em conta: ao renunciar de modo cego às marcas
históricas, este “acordo” insere-se num movimento global de apagamento da
memória e de negação da História. Terrível movimento, que cada dia se torna
mais evidente e que deixará sem raízes, sem passado, uma série de povos, se não
a maioria. E que já está deixando o mundo à deriva, presa dócil de todas as
tiranias. Admiramo-nos do modo como estão sendo destruídos monumentos, museus,
cidades, inúmeras etnias e línguas. Este desrespeito, este crime que hoje nos
parece abrupto, começou devagar, por pequenas coisas, aparentemente
insignificantes.
É
inelutável? Será irreversível? Há quem diga que é demasiado tarde para recuar.
Mas talvez ainda se possa fazer qualquer coisa. Mesmo este Acordo, que ainda
não está instaurado em todo o mundo lusófono, é passível de emendas
fundamentais.”Manuela Barros Ferreira
* ex-investigadora do Centro de Linguística da Universidade
de Lisboa, em artigo de opinião ,publicado no Jornal Expresso, em 11.05.2016