"Livro de Vozes e Sombras, de João de Melo, Publicações D. Quixote, 2020,foi o vencedor da 26.ª edição do Grande Prémio de Literatura. A decisão do júri, constituído pelo professor e escritor Vítor Aguiar e Silva, pelo presidente da Associação Portuguesa de Escritores, José Manuel Mendes, e, pelo professor da Universidade do Minho Carlos Mendes de Sousa, foi unânime. O prémio tem o valor pecuniário de 15 mil euros.
O júri, segundo comunicado enviado à agência Lusa, realçou o “apurado sentido de composição e a qualidade de escrita no desenvolvimento de um romance que, percorrendo diversos espaços geográficos e sociais, bem como tempos convulsionados, traçam uma memória colectiva densa, avessa a todo o esquematismo, a partir de núcleos efabulatórios, nos quais avultam personagens de grande finura e poder contrastivo”.Um belíssimo romance que aproxima ou supera o autor das suas obras mais credenciadas. Rebuscou e acertou uma estrutura febril e avassaladora, puxou para a literatura a história da FLA – Frente de Libertação dos Açores mediante uma entrevista a uma das suas figuras icónicas de uma jornalista vinda de Lisboa, umas boas décadas depois. Há memórias de uma guerra da Guiné, chega o 25 de Abril com os seus ventos de independentismo insular, salta-se para a Angola colonial e depois a descolonização, aqui João de Melo legou páginas que passarão para a posteridade, tal o vigor emprestado àquela turbulência, ao espetáculo das fugas, ao desmoronamento de vidas. Vozes e sombras a atestar que o tempo passa e o bicho humano se adapta.
Com os Açores, de onde João de Melo é natural, no centro da narrativa, o Livro de Vozes e Sombras é uma obra sobre as aspirações revolucionárias do pós-25 de Abril de 1974, vividas entre os Açores, Lisboa e as nações africanas, que estiveram sob administração portuguesa.
Há um incontestável esmero na arquitetura desta obra. Logo o encontro entre a jornalista Cláudia Lourenço e o lendário agente da FLA, Mariano Franco, partem do porto de Ponta Delgada para as Capelas. João de Melo está em casa, daí a vivacidade de nos falar do incenso, dos canaviais, cedros, ciprestes, dragoeiros e criptomérias, e aquele vento forte, desalmado, que atravessa lameiros, córregos e canadas. É pela voz do lendário insurrecto que se começa a falar do colonialismo, do império, ele estivera na Guiné, experiência duríssima. Diga-se de passagem, é o episódio mais canhestro deste belíssimo romance, só mesmo quem não andou pela Guiné e não lhe conhece a orografia é que pode falar em precipícios e abismos. Mariano conta e torna a contar, assistiu à revolução em Lisboa, meteu-se mesmo nas manifestações, jurou a si próprio que iria travar todo aquele delírio proletário na sua terra. Surge Manuel Cristóvão, um sindicalista que um dia será forçado a vir para o continente, descobrirá uma companheira, uma retornada de Angola a quem caberá o discurso final da reconciliação pós-Império. Este Manuel Cristóvão será alvo de sevícias, o tempo se encarregará de atirar a FLA para o caixote do lixo da História, a normalização far-se-á sentir após os acontecimentos do 25 de Novembro.
E saltamos para Angola, para a Casa Grande de Munakala, mergulhamos a sério no colonialismo, personificado pelo granjeiro Custódio Pinto, o 25 de Abril chegou a África, onde se esperava compromisso entre os diferentes movimentos de libertação, estala a demência, começam as fugas, os assassinatos, as destruições, mata-se selvaticamente o gado, Custódio manda a mulher e uma das filhas para Nova Roma, incendeia a casa. Aqui se encetam páginas literárias de grande qualidade, até porque a narrativa cabe à menina cega transformada no oráculo daquela curva da história, Ângela conta igualmente a chegada a Lisboa, a vergonha de serem chamados colonialistas, racistas, reacionários, exploradores e assassinos dos africanos. E depois a vida em Lisboa, o pai perde a saúde mental, a vida de três mulheres muda radicalmente.
Mariano Franco retoma a conversa com Cláudia Lourenço, muito cedo se apercebe que a CIA também veio ajudar a atear o fogo, fazia jeito a subversão dos Açores contra Portugal, para dar dinamismo à FLA foi mesmo dissolvido o Movimento para a Autodeterminação do Povo Açoriano, percebeu-se que era na brutalidade e no bombismo que convinha intimidar. Mariano conta mesmo um episódio dessa brutalidade que o leva ao remorso. Tem o maior interesse a descrição que João de Melo faz deste interior da FLA, o que motiva os seus membros.
Tudo se normaliza então, Mariano é expulso como expulso fora o sindicalista Manuel Custódio. Nesta trama literária de diferentes retornos vamos encontrar pessoas à deriva como a própria jornalista e o entediado representante do jornal na ilha, um tal Gil, que não sabe bem quem ama, que corre de uma paixão para outra.
A jornalista regressa a Lisboa e ouve das boas do chefe da redação, falta nervo ao material da entrevista, havia para ali muita mentirinha doce e heroísmo bacoco, ela que trabalhasse mais, é nisto que Cláudia Lourenço tem inspiração de saber por onde anda o sindicalista Manuel Cristóvão, chegou a hora de grandes revelações, a tal menina ceguinha da Casa Grande de Munakala tem muito para contar, dirá coisas como: “Um dia, ouvia um militar – que lá esteve a defender os bens e a pátria dos colonos – que a experiência dessa guerra lhe entrara nos ossos como um veneno, e não mais saíra. Sei o que isso é. Uma enfermidade do espírito e da consciência, para sempre. Fomos os demónios da memória portuguesa. De lá, desse continente histórico, regressou connosco uma ferida para a qual não há remédio nem cura possível”. Os desabafos não se ficam por aqui: “Não encontro as palavras certas para falar da minha mágoa histórica. Gostava de ser filha de um país primitivo, anterior à loucura da sua expansão para o exterior. Tivessem os portugueses visto no mar o prolongamento simbólico do território, e já não teriam complexos quanto à pequenez do seu país. Foi o passado que determinou o meu destino. Por isso me queixo dele e dele me lamento”.
Manuel Cristóvão também tem muito para contar. “Descobrira algo de novo no seu trabalho: a dignidade da vítima. Ninguém como a vítima nos mostra a sua própria realidade de baixo para cima, do chão para a cabeça dos homens, e destes para o céu dos deuses ou para a terra fria dos vivos e dos mortos”. Lisboa, Açores, Guiné e Angola. Projectos derrubados, vidas recomeçadas neste esplêndido romance marcado por retornos e pelo amor aos lugares, dêem eles pelo nome de Campo de Ourique ou a ilha de S. Miguel."
Mário Beja Santos, in "Mais Ribatejo".
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Ponta Delgada nos primórdios do sec. XX. |
Colonialistas quem, nós?
por João de Melo
"Começou por justificar historicamente as razões da luta pela independência das ilhas dos Açores . Portugal só fora um país a valer no conceito das nações enquanto manteve as suas possessões ultramarinas. O Brasil na América do Sul, as províncias na África e na Ásia, os arquipélagos europeus dos Açores e da Madeira a meio do Atlântico, uma universidade lusíada a bem dizer à escala do globo terrestre. Segundo a FLA, o país mantinha os Açores e a Madeira na condição de últimas colónias. Porque as outras , as ricas e cobiçadas terras de África, iam recebendo de presente a libertação nacional, as inacreditáveis guerras civis, os bárbaros genocídios tribais, os vandalismos guerreiros e a vingança dos pretos sobre os brancos - que já debandavam em massa para Portugal. Essas tais colónias acabaram por cair nas garras de rapina das potências mundiais - em tratos e pilhagens de blocos e nações que entre si dividiam as possessões portuguesas- com o capitalismo à frente e o comunismo logo atrás.
- Colonialistas, nós? Nem por isso, menina Cláudia.
Ou, por outra, continuou Mariano, fomos nem mais nem menos colonialistas do que o têm sido nos Açores: seus ocupantes. O colonialismo é a doença crónica dos impérios - e nós gozávamos de saúde no nosso falso imperialismo. Ao invés de outras potências coloniais, fomo-nos miscigenando com os indígenas à medida que os civilizávamos. Conhece outro povo que tivesse praticado isso à nossa maneira - ingleses, espanhóis, franceses, holandeses? Nem por sombras. Nós transmitimos valores humanos, padrões de atitude, modos e ensinamentos de uma civilização, uma língua, a religião católica, civilidade, costumes, protocolos. Prova disso, o facto de a civilização lusíada se ter disseminado por todos os continentes. Vemo-las nas igrejas de Macau, Goa, Damão e Diu, nas fortalezas militares da costa africana de Marrocos, em Malaca e em Mombaça e na melhor arquitectura do Brasil - quando os portugueses se tornaram senhores do comércio marítimo e introduziram na Europa os misteriosos produtos da Índia: pimenta, canela, açafrão, gengibre, noz-moscada. Povoámos terras desertas - outras ficaram sob o estado selvagem dos indígenas-, e nelas os portugueses ergueram cidades, vilas e aldeias, com as suas igrejas , as tendas e cabanas nos matos de África, e caminhos de ida e volta nos sertões. Além disso, ensinámos a negros e índios o nome das coisas , os instrumentos e ofícios, o modo de trabalhar e a prática de tudo:(...)
E a saberem as palavras com que o mundo designa as coisas: dinheiro é dinheiro, pólvora é pólvora, sapato é sapato, uma mesa e uma cama são uma mesa e uma cama, e pronto!
- Quer-me parecer que não concorda comigo. Pois não?
Pouco ou nada subsiste por essas Áfricas e Ásias da escola civilizadora dos brancos. A corja da tropa lembrou-se de pôr fim à nossa posse sobre as províncias ultramarinas. O regresso em massa dos brancos e a fantochada da independência dos novos países deu sabe em quê, menina?, numa enorme e terrível tragédia. Nossa e deles. Ficámos todos a ver navios, ao cabo de cinco séculos de expansão marítima e de presença militar em tais paragens : o ouro, o diamante, o petróleo e as minas de sal-gema foram dadas a mãos estrangeiras. A tragédia dos africanos? Terem de aprender tudo de novo, a começar pelo engano ilusório de se dizerem independentes, enquanto jibóias, leões e aves carnívoras rondam as suas riquezas.(...) Mais do que um erro histórico e uma estupidez política, a nossa descolonização deu origem a uma cadeia de amanhos e desgraças. Encheu-nos a todos da nossa vergonha nacional.
- O país anterior deixou de existir. O de agora, veremos se sobreviverá enquanto estado e nação desta Europa.
Não podíamos ficar de braços cruzados nem deixar que tudo nos acontecesse por livre-arbítrio dos comunistas, e se consumassem as traições da pátria. A ordem dos três «dês»», «democratizar, descolonizar , desenvolver », ficou por cumprir em todas e em cada uma das paragens portuguesas de aquém e além-mar, e não só nas partes de África e da Ásia, sob a nossa bandeira. Falta-nos uma solução para os Açores e para a Madeira.
Então estes arquipélagos não são colónias, como os outros o eram, ou seja, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe? Quatro arquipélagos achados desertos, e depois povoados. (...) O certo é que deram origem a novos povos, o açoriano e o madeirense, com matriz histórica, cidadania e uma cultura própria. Nem são uma raça nem uma tribo, são uma etnia da memória e do pensamento a que chamamos identidade insular. Daí o nosso direito à soberania: sermos tão índios e tão pretos quanto os da Índia , do Brasil e de África. (...)
Portugal não mais quis saber de nós, desta pobreza, da perdição solitária das ilhas. (...) Fomo-nos na diáspora sem regresso, idos da terra da fome e das belezas naturais para a terra prometida da saúde e da abundância, na outra margem do mar. Saímos da agricultura, do leite das vacas, da pesca e dos baixos ofícios, e fomos para a neve, o gelo, os tufões americanos. Quisemos o que os portugueses não nos deram: liberdade económica, progresso, trabalho digno nas fábricas e nas terras, o direito a casa própria, família e futuro. Sabem lá, os senhores de Lisboa, o que custa ser estrangeiro num país de estrangeiros. Começava tudo por uma carta de chamada que nunca mais vinha e que nos fazia penar na ansiedade da espera. Chegávamos ao destino, era outra língua, gente a falar connosco e nós nada, uma tristeza alegre, uma alegria triste: havia trabalho, ganhava-se bom dinheiro, e mais nada.(...) Assim nos forjámos como povo. Em terra alheia, na nostalgia das coisas recordadas por entre lágrimas que gelavam nos invernos de Boston e de Toronto. As luas americanas traziam-nos à lembrança a rua da ilha onde nascêramos, a casa que nos vira crescer e ir embora de vez, na solidão das saudades. O arquipélago continuou a ser para nós o centro de uma ideia, uma pátria que nos merecia na hora do regresso à nossa terra: sem a sombra dos continentais por cima de nós, nem as leis , os tributos , as ordens colonialistas de Lisboa."
João de Melo, in Livro de Vozes e sombras, Publicações Dom Quixote, Junho de 2020, pp.43- 47