CRÓNICA DE INVERNO
Por Eugénio Lisboa
"No dia 15 de
Julho de 1960, por ocasião da Convenção do Partido Democrático, J. F. Kennedy
cunhou uma frase para a eternidade: “Estamos na orla de uma Nova Fronteira.”
Hoje, nesta passagem de 2013 para 2014, estamos também na orla de uma Nova
Fronteira, mas é a fronteira que nos separa do inferno. Não vale a pena enganar
quem nos lê, vendendo-lhe a moeda falsa de uma esperança enganadora. Dizia um
anónimo que um optimista é alguém que pensa que o futuro é incerto. Ora nós não
cremos que o futuro, tal como se desenha, com os dados que temos, seja um
futuro incerto: é, pelo contrário, um futuro certo e, por sinal, bem negro.
Porque é um futuro de pobreza, sem esperança. Diz um provérbio que um homem a
afogar-se se agarra a uma palha. Nós assistimos hoje a toda uma sociedade com
História, a afogar-se sem ter uma palha a que se agarrar. A esperança, mesmo
remota, costumava ser essa palha. Mas um governo de depredação e de pilhagem
sem escrúpulos tem estado determinado a surripiar até essa pífia bóia de
salvação: uma esperança, mesmo pouco fundamentada. As pessoas, de tanto
sofrerem, deixaram de acreditar. Um autor francês célebre observou um dia, com
cinismo cauterizante, que o futuro já não era o que costumava ser. Ele parece,
agora, simplesmente não existir. De há dois anos e meio para cá, assistimos à
execução exemplar do que há de pior nos manuais da governação: a mentira, a
falta de escrúpulos, a violência, a opressão, o empobrecimento programado, o
enriquecimento escandaloso e obsceno de poucos.
Governar
teve, quase sempre, má imprensa e má literatura. Já Voltaire, “gamin” pouco
domesticável, observava que “em geral, a arte de governar consiste em tirar
tanto dinheiro quanto possível a uma parte dos cidadãos, para o dar a outra
parte” (em geral, tirar aos que já pouco têm, para dar aos que já têm
demasiado). Kin Hubbard assanhava o tom assassino, quando dizia: “Governar é
uma espécie de pilhagem legalizada.” E o grande Tolstoi, do alto da sua santa
iconoclastia, gostava de não medir por aí além as palavras: “Governo é uma
associação de homens que exercitam a violência sobre o resto de nós.” Foi assim
no tempo dos czares e foi assim no tempo dos czares que vieram depois – mesmo
aqueles que falavam em nome do povo.
Não vivemos
num mundo em que falte o dinheiro: o que se passa é que há cada vez menos
pessoas a terem a posse de uma fatia cada vez maior desse dinheiro (não por
mérito, mas por manha maligna). Dizia Cervantes, no seu Don Quixote, que “só há duas famílias no mundo: os que têm muito e
os que têm pouco.” No entanto, depois dele e por algum tempo, as coisas
deixaram de ser assim: havia alguns que tinham muito, havia bastantes que
tinham alguma coisa e havia também bastantes que tinham pouco. Os governos
actuais andam, com eficácia, a destruir o grupo do meio – os bastantes que
tinham alguma coisa – transferindo-os para o grupo dos que não tinham quase
nada ou mesmo nada. Esta pobreza crescente tem sido causada, paradoxalmente,
pelo muito dinheiro que há nas mãos de muito poucos! O dinheiro tem tomado de
assalto todas as conquistas mais notáveis do século XX: trabalho, educação,
saúde, recreio... Dizia Cicero, qui s’y connaissait, que “não há fortaleza tão
forte que o dinheiro não possa tomar de assalto.” Tudo se torna negócio, para
quem é provido de dinheiro e desprovido de escrúpulos (nem precisa de ser
provido de muita inteligência: ao contrário da crença em vigor, não é preciso
ter muita inteligência para enriquecer – uma combinação bem doseada de astúcia
e falta de escrúpulos é amplamente suficiente). O dinheiro permite todas as
vitórias para uns poucos e todas as derrotas para os muitos mais. Tudo se torna
negócio: a educação, a saúde, o bem-estar... O dinheiro toma conta de tudo, até
da verdade, amordaçando-a ou pervertendo-a. Arthur Balfour, mais tarde Lord
Balfour, que foi primeiro ministro britânico, ao qual se deve a famosa
“Declaração Balfour”, que está na origem da criação do Estado de Israel, não
era peco a falar: as suas “tiradas” são famosas (por exemplo: “A lucidez de
estilo de Asquith é positivamente uma desvantagem, quando ele não tem nada a
dizer”) e uma delas rezava assim: “Nada deve impedir a verdade, salvo uma
substancial soma de dinheiro.” É isto que tem sido a bíblia e a medalha de toda
a praga neoliberal que nos governa por esse mundo fora. Uma praga que se
considera cristã, mas para quem o espírito do cristianismo é letra morta. Dizia
o dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, com a ferina acutilância que o
caracterizava, que “o cristianismo talvez fosse uma coisa boa, se alguma vez
tivesse sido experimentado.” Infelizmente, o neoliberalismo que impera, infecta
e destrói todo o tecido social é a negação mesma do espírito cristão.
A pobreza é
um mal, não é um vício. Pode e deve ser combatida com energia e eficácia, sob pena
de toda a sociedade ruir. Dizia alguém que a melhor maneira de ajudarmos os
pobres é não nos tornarmos um deles. É essa realmente a via. Como? Não quero
terminar esta crónica de fim de ano, em estado de negra negação. Há de facto
uma via – e só uma: dar luta continuada e sem quartel à gente que nos governa –
e não só em Portugal. Lutar, dizer não, não e não, até nos ouvirem: quer
gostem, quer não gostem (e, seguramente, não vão gostar). Nós somos muitos e
isto é uma força!"
Eugénio Lisboa