sábado, 25 de setembro de 2021

Cantares

Manoel de Andrade

Desmemória 2
O medo seca a boca, humedece as mãos e mutila. O medo de saber condena-nos à ignorância ; o medo de fazer reduz-nos à impotência. A ditadura militar, medo de ouvir, medo de dizer, transformou-nos em surdos-mudos. Agora, a democracia , que tem medo  de recordar, enferma-nos de amnésia; mas não precisamos de ser Sigmund Freud para sabermos que não há tapete capaz de esconder o lixo da memória.
               Eduardo Galeano, O Livro dos Abraços.

 

Manoel de Andrade, o grande poeta de Curitiba-Brasil, publicou , em 2007,  um novo livro, Cantares,  após um interregno forçado devido à ditadura militar que reprimiu o Brasil. Fora obrigado a um exílio e, posteriormente,  a um apagamento da sua identidade para poder sobreviver juntamente com a sua família. Um tempo escuro e sujo que foi vivido por alguns países , tal como Portugal ,  que não  deve ser esquecido  para que a memória não seja mutilada. Para isso, é urgente relembrar e não adormecer na sombra da Liberdade. Sendo a flor mais preciosa, precisa de ser regada e vitalizada para que se  mantenha viva. Há que temer os falsos arautos que chegam ao poder para a fazer murchar. Denunciá-los  é um dever de todos. Manoel de Andrade  fê-lo. E  retomou-o  com outro olhar, quando o tempo da justiça chegou. Era a natureza que corria riscos. Riscos e perigos que ameaçavam o equilíbrio do planeta. Desde então, e apesar de incessantes  apelos  , o mundo continua a maltratar o ambiente.  A ONU estima uma catástrofe iminente. A negação dessa ameaça é um caminho que trará  consequências e poderá conduzir  a humanidade à irremediável destruição do seu habitat, o planeta Terra.

Abrimos este livro, Cantares-Poemas, para retirar alguns excertos que nos surgiram, de imediato,  enformados em   extrema actualidade . Começamos pela Nota Introdutória , em que  Manoel de Andrade nos esclarece do seu propósito, seguida de alguns poemas:

"Estes poemas são os frutos do meu venturoso reencontro com a poesia depois de trinta anos de abstinência literária.
Apenas três deles -- Temporada de amigos, Marítimo e Um homem no cais -- foram escritos na década de sessenta e engavetados por não refletirem as prioridades políticas de minha poesia naqueles “anos de chumbo”.
Estes meus Cantares reúnem algumas janelas pelas quais eu vejo o mundo: através da minha infância litorânea, da nostálgica ansiedade do marinheiro que não fui, pelo olhar crítico da indignação política, social e, sobretudo, pela inquietude com a sobrevivência ambiental do planeta.
Com eles entrego a expressão mais bela e honesta da minha condição humana sem nada esperar em troca a não ser a anónima emoção que alguém possa ter em sua leitura. E se este alguém fores tu..., é exactamente para ti que eu escrevo. E se tu fores capaz de abrir tuas velas e navegar comigo, de te indignar perante a injustiça ou de sentir, como eu, esse profundo respeito por tudo o que respira, valeu a pena buscar-te nos meus versos. É com esta única intenção que minha lírica paternidade envia, despojada e comovida, estes meus filhos ao mundo. Para que cumpram alguma missão de beleza para a qual foram escritos."
                                                      Curitiba, Fevereiro de 2007
Manoel de Andrade, in  Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007


Soneto do reencontro

Na primavera tu voltaste de mansinho
finda a tempestade, surgiste na bonança
me conjugando o verbo da esperança
num íntimo gesto de lírico carinho.

Tu foste meu fuzil, o meu canto guerreiro
a voz peregrina acesa no meu peito,
ensina-me a cantar agora de outro jeito
para entoar amor e paz ao mundo inteiro.

Combatente e amordaçada em meu destino
silenciados e por atalhos clandestinos
trinta anos se passaram, dia-a-dia.

Depois a liberdade chegou para o meu povo
mas só agora eu te encontrei de novo
para nunca mais perder-te... ó poesia.
                    Curitiba, Dezembro de 2002
Manoel de Andrade, in  Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007, p. 72

“POR QUE CANTAMOS”
                              
                               para Mario Benedetti(*)

Se tantas balas perdidas cruzam nosso espaço
e já são tantos os caídos nesta guerra...
Se há uma possível emboscada em cada esquina
e temos que caminhar num chão minado...

“você perguntará por que cantamos”

Se a violência sitia os nossos atos
e a corrupção gargalha da justiça
Se respiramos esse ar abominável
impotentes diante do deboche...

“você perguntará por que cantamos”

Se o medo está tatuado em nossa agenda
e a perplexidade estampada em nosso olhar
se há um mantra entoado no silêncio
e as lágrimas repetem: até quando, até quando, até quando...

“você perguntará por que cantamos”

Cantamos porque uma lei maior sustenta a vida
e porque um olhar ampara os nossos passos
Cantamos porque há uma partícula de luz no túnel da maldade
e porque nesse embate só o amor é invencível

Cantamos porque é imprescindível dar as mãos
e recompor, em cada dia, a condição humana
Cantamos porque a paz é uma bandeira solitária
a espera de um punho inumerável

Cantamos porque o pânico não retardará a primavera
e porque em cada amanhecer as sombras batem em retirada
Cantamos porque a luz se redesenha em cada aurora
e porque as estrelas e porque as rosas

Cantamos porque nos riachos e lá na fonte as águas cantam
e porque toda essa dor desaguará um dia.
Cantamos porque no trigal o grão amadurece
e porque a seiva cumprirá o seu destino

Cantamos porque os pássaros estão piando
e ninguém poderá silenciar seu canto.
Cantamos para saudar o Criador e a criatura
e porque alguém está parindo neste instante

Pelo encanto de cantar e pela esperança nós cantamos
e porque a utopia persiste a despeito da descrença
Cantamos porque nessa trincheira global, nessa ribalta
nossa canção viverá para dizer por que cantamos.

Cantamos porque somos os trovadores desse impasse
e porque a poesia tem um pacto com a beleza.
E porque nesse verso ou nalgum lugar deste universo
o nosso sonho floresce deslumbrante.
Curitiba, Maio de 2003
(*) Escrevi estes versos motivado pelo belíssimo poema “POR QUE CANTAMOS” do poeta uruguaio MARIO BENEDETTI. Num tempo em que todos caminhamos sobre o “fio da navalha” me senti, como poeta, implicitamente convocado a também testemunhar por que cantamos.

Manoel de Andrade, in  Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007, pp.73-74 

Retrato

Outrora
outro era o mar
o grande mar da infância...
tinhas aquela água imensa para salgar tua inocência
o horizonte incendiado pelo fogo das auroras
e as manhãs de espumas, conchas, redes e gaivotas.
Tinhas os crepúsculos de verão para extasiar tuas retinas
e no caminho rútilo dos pirilampos
tinhas a dança luminosa de um farol
e a lua flutuando no plácido espelho das águas.

Na voz submersa de um tempo inumerável
o mar te ensinou a mágica leitura do infinito.
No seu murmúrio ouviste o eco de todas as origens,
na linguagem das ondas e das tormentas,
na força das correntes e nas grandes calmarias,
o mar te ensinou a sonoridade e o silêncio,
o encanto e a indomável magnitude dos movimentos.
Os pescadores te contaram de sua insondável beleza,
de passarelas de algas e corais
onde desfilam cores, formas e mistérios.
Te contaram histórias de tempestades e naufrágios,
de embarcações que se perderam,
de sobreviventes, órfãos e viúvas.
O mar te seduziu com o beijo incessante das espumas,
te acenou com o lampejo intermitente dos relâmpagos,
com o branco das velas que voltavam.
Encheu teu samburá de caramujos e mariscos,
teus lábios de sal, teus pés de areia
e tatuou em tua vida esta única saudade.
O mar te inundou com sua água imensa e horizontal
e, com suas imensuráveis distâncias,
deixou em teus passos um caminho aberto para todos os portos.

Teu coração enfim,
repleto como um dique,
era um relicário de rotas e promessas
e desde então em tua alma navegam todos os possíveis...

Desabrochavas a flor da adolescência
quando uma onda solitária escorreu teus passos
e a vida te levou para o planalto.
Não conhecias o exílio e a penumbra das cidades
onde piratas velozes manejam o vício e a lança.
Não conhecias os tentáculos da noite
nem as paisagens sitiadas pela sedução.
Sobrevives nestes mares e ilhas inquietantes,
te consolas com a foz dos ribeirões,
recrias aqui a tua praia, o teu manguezal
e um horizonte impossível.

Retornas ao teu mar, de quando em quando,
mas ele não é mais o teu mar de outrora.
Recordas um tempo de saudosas navegações,
de pescadores partindo pelas madrugadas
e do regresso das canoas trazidas pelo vento.
Um tempo em que as estações se sucediam em equilíbrio
e num céu de ozônio o sol te oferecia a carícia de uma luz imaculada.
Num tempo em que o petróleo ainda não boiava sobre as águas
e os rios não despejavam nos litorais sua agonia.
As redes chegavam pesadas e repletas
porque os radares ainda não cercavam os cardumes no teu mar.
Não conhecias o protesto das baleias suicidas,
nem os estertores dos pinguins betumizados.
Os arpões não tinham ainda sua infalível precisão,
os rios não choravam os seus mortos,
nem choravam os recifes os seus corais despedaçados.

No fundo e na superfície
teu pranto assiste agora a um funeral de vítimas.
Num tempo que se curva sob o peso dos pressentimentos,
teus punhos se fecham contra uma legião de predadores.

Eis o teu cálice...
tua indignação, teu suplício...
teu grito... como tantos
tua lágrima... como tantas.
Impotente, num mundo que se afoga, sobrevives...
Sobrevives...
na memória e no esquecimento...
Sobrevives...
quando te hospedas na infância...
Sobrevives...
porque um estuário de esperança te sobrepõe à realidade...
Sobrevives...
porque um território de sonho te preserva do naufrágio.
                                Curitiba, Outubro de 2003
Manoel de Andrade, in  Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007, pp.27-29

Beira-mar


Tudo abeirou minha infância
beira do rio, beira-mar,
orla branca de esperança
no leste do meu olhar.

Meu batelão emborcado
à beira de me afogar,
eu sobre a ponte abeirado
puxando minhas puçás.

Beirando todas as rotas,
nas asas das gaivotas
meus olhos cruzavam o mar;

sonhava à beira do caís
com um barco, nada mais,
e eu no mundo a navegar.
Curitiba, Novembro de 2004
Manoel de Andrade, in  Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007, p.44

Baía

Baía, meu manguezal,
arvoredo de forquilhas,
verde estuário de ilhas
branca areia, meu quintal.

Pampos, bagres, paratis,
mariscos no quebra mar,
tanto boto a mergulhar,
tantas tocas de siris.

No porto um casco furado,
negro sangue derramado,
ó que cinzenta agonia,

os pescadores chorando,
e o óleo que chega boiando
no rastro da maresia.

Curitiba, Novembro de 2004
Uma semana após a explosão do
navio Vicuña no porto de Paranaguá.

Manoel de Andrade, in  Cantares, Poemas, Editora Escrituras, São Paulo , Brasil, 2007, p.45

Nota: Livres Pensantes vai fazer uma pausa.  Deixa-vos , a todos vós que nos têm acompanhado , o canto de Manoel de Andrade a quem saudamos. O Brasil vive um momento  de ensombrada  claridade. A voz dos poetas não pode ser amordaçada. Que o clamor de um povo se não ensurdeça. Que a justeza da paz e da harmonia não deixem de ser o garante de um país,  que  já muito sofreu ,  para que a Liberdade possa prosseguir  em fecundação plena. 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Um singular interlúdio musical

  
De "War Requiem" , de  Benjamin Britten, interpretada pela  Berliner Philharmonike, regida pelo Maestro  Sir Simon Rattle e pelo coro Rundfunkchor Berlin,  sob a direcção do Maestro  Simon Halsey, numa gravação na Berlin Philharmonie, em 15 de  Junho de 2013.

O meu tema é a Guerra, e a miséria da Guerra.
A poesia encontra-se na miséria…
E tudo o que um poeta pode fazer hoje é denunciar.

"A história da humanidade tem sido permanentemente marcada pela alternância de momentos de guerra e paz, de conflito e pacificação, de confronto e reconciliação, de opressão e resistência silenciosa, de crise e bonança. Durante o século XX, o mundo assistiu às mais violentas e globais manifestações de ódio entre povos, muitas das quais se estenderam até aos nossos dias, e deparou-se pela primeira vez com a possibilidade da destruição total e definitiva.
Foi no longo rescaldo da Segunda Grande Guerra, em plena Guerra Fria e durante a sucessão de conflitos como o Bloqueio de Berlim, as Guerras da Coreia, do Vietname e no deflagrar da Crise dos Mísseis de Cuba, que Benjamin Britten deu a conhecer o War Requiem, o mais comovente manifesto pacifista da música ocidental. A sua crença era antiga e foi proferida na alegação para o pedido de objecção de consciência: «Uma vez que acredito que habita em cada homem o espírito de Deus, não posso destruir. Acredito que é meu dever ajudar a evitar a destruição humana. Toda a minha vida tem sido dedicada a actos de criação, sendo eu um compositor profissional, pelo que não posso participar em actos de destruição.»
No War Requiem, Britten narra a história de Wilfred Owen através dos poemas deste pacifista que morreu nas trincheiras da Primeira Grande Guerra, uma semana antes no Armistício. A inutilidade da guerra entre os homens é desmascarada nos poemas de Owen que sugerem a reconciliação dos inimigos após a morte. No contexto do Requiem, os seus textos confrontam o ritual de salvação da missa com o horror apocalíptico e sem esperança da guerra, estabelecendo um paralelo entre a morte do “soldado desconhecido” e a Paixão de Cristo.
Britten transpôs a metáfora da reconciliação entre os povos inimigos ao escrever o seu Requiem para as vozes de uma soprano russa, um tenor inglês e um barítono alemão – Galina Vishnevskaya, Peter Pears e Dietrich Fischer-Dieskau.(...)
Benjamin Britten foi o mais importante compositor britânico de meados do século XX e a sua música continuou a ser apresentada profusamente nas décadas posteriores à sua morte. Nascido em Lowestoft, na costa inglesa do Mar do Norte, viveu a maior parte da sua vida nesse mesmo condado de Suffolk. Começou a escrever música ainda na infância e, depois de estudar com Frank Bridge e no Royal College of Music em Londres, depressa causou impacto na cena musical britânica com música para a rádio, o cinema e o teatro, assim como para as salas de concerto. Passou os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial na América do Norte, regressando a Inglaterra em 1942. A sua primeira ópera, Peter Grimes, estreada em 1945, foi um sucesso imediato, seguindo-se-lhe muitas mais óperas, grandes e pequenas, a maior parte das quais se firmaram no repertório. Estas, juntamente com a sua música orquestral, coral e vocal, incluindo várias peças para jovens artistas muito apreciadas, fizeram dele uma figura célebre internacionalmente. Britten foi ainda co-fundador do English Opera Group e do Festival de Aldeburgh, um pianista dotado – muitas vezes em recitais com o tenor Peter Pears – e maestro. A sua morte aos 63 anos deixou um vazio enorme na vida musical britânica.
A oração de abertura da Missa de Requiem é cantada pelo coro num trítono fortemente dissonante, fá sustenido e dó, acompanhado pelos sinos, enquanto na orquestra uma longa melodia em ritmos quíntuplos arrastados conduz gradualmente a um clímax e esmorece."

O talento do Maestro Sir Simon Rattle  é reconhecido mundialmente. Ei-lo , em  "Nimrod" de "Enigma Variations",  de Edward Elgar, regendo a  Berliner Philharmoniker . A gravação foi realizada  na  Berlin Philharmonie, em  16 de Fevereiro de  2012.

 
E ainda Sir Simon Rattle, na Symphony No. 8 , "Symphony of a Thousand", de Gustav Mahler , na direcção da  Berliner Philharmoniker . Acompanham-no   Susan Bullock, soprano ; Erika Sunnegårdh, soprano;  Anna Prohaska, soprano;  Lilli Paasikivi, mezzo-soprano; Nathalie Stutzmann, contralto; Johan Botha, tenor ; David Wilson-Johnson, baritone ; John Relyea, bass; MDR Rundfunkchor Leipzig · Howard Arman, chorus master · Knaben des Staats- und Domchors Berlin ; Kai-Uwe Jirka, chorus master Rundfunkchor Berlin e Simon Halsey, chorus master . A gravação aconteceu na  Berlin Philharmonie, a 18 de Setembro de  2011.
 
E, por fim, duas peças de Giacomo Puccini , interpretadas por dois grandes e inesquecíveis cantores. Peças líricas que me  ocorrem sempre,  com prazer renovado ,  apesar de tantas outras consideradas superiores pelos "cultistas " de serviço.

"E lucevan le stelle"
, da ópera "Tosca, de Giacomo Puccini, numa fantástica interpretação de Luciano Pavarotti.
  
Maria Callas , em Madama Butterfly, Act 2: "Un bel di vedremo", de Giacomo Puccini.
  

A pedra no caminho

A pedra no caminho 
"Conta-se a lenda de um rei que viveu há muitos anos num país para lá dos mares. Era muito sábio e não poupava esforços para inculcar bons hábitos nos seus súbditos. Frequentemente, fazia coisas que pareciam estranhas e inúteis; mas tudo se destinava a ensinar o povo a ser trabalhador e prudente. — Nada de bom pode vir a uma nação — dizia ele — cujo povo reclama e espera que outros resolvam os seus problemas. Deus concede os seus dons a quem trata dos problemas por conta própria. 
Uma noite, enquanto todos dormiam, pôs uma enorme pedra na estrada que passava pelo palácio. Depois, foi esconder-se atrás de uma cerca e esperou para ver o que acontecia. Primeiro, veio um fazendeiro com uma carroça carregada de sementes que ele levava para a moagem. 
 — Onde já se viu tamanho descuido? — disse ele contrariado, enquanto desviava a sua parelha e contornava a pedra. — Por que motivo esses preguiçosos não mandam retirar a pedra da estrada? E continuou a reclamar sobre a inutilidade dos outros, sem ao menos tocar, ele próprio, na pedra. 
Logo depois surgiu a cantar um jovem soldado. A longa pluma do seu quépi ondulava na brisa, e uma espada reluzente pendia-lhe à cintura. Ele pensava na extraordinária coragem que revelaria na guerra. O soldado não viu a pedra, mas tropeçou nela e estatelou-se no chão poeirento. Ergueu-se, sacudiu a poeira da roupa, pegou na espada e enfureceu-se com os preguiçosos que insensatamente haviam deixado uma pedra enorme na estrada. Também ele se afastou então, sem pensar uma única vez que ele próprio poderia retirar a pedra. Assim correu o dia. Todos os que por ali passavam reclamavam e resmungavam por causa da pedra colocada na estrada, mas ninguém lhe tocava. Finalmente, ao cair da noite, a filha do moleiro passou por lá. Era muito trabalhadora e estava cansada, pois desde cedo andara ocupada no moinho. Mas disse consigo própria: “Já está quase a escurecer e de noite, alguém pode tropeçar nesta pedra e ferir-se gravemente. Vou tirá-la do caminho.” E tentou arrastar dali a pedra. Era muito pesada, mas a moça empurrou, e empurrou, e puxou, e inclinou, até que conseguiu retirá-la do lugar. Para sua surpresa, encontrou uma caixa debaixo da pedra. Ergueu a caixa. Era pesada, pois estava cheia de alguma coisa. Havia na tampa os seguintes dizeres: “Esta caixa pertence a quem retirar a pedra.” Ela abriu a caixa e descobriu que estava cheia de ouro. A filha do moleiro foi para casa com o coração cheio de alegria. Quando o fazendeiro e o soldado e todos os outros ouviram o que havia ocorrido, juntaram-se em torno do local onde se encontrava a pedra. Revolveram com os pés o pó da estrada, na esperança de encontrarem um pedaço de ouro. 
 — Meus amigos — disse o rei — com frequência encontramos obstáculos e fardos no nosso caminho. Podemos, se assim preferirmos, reclamar alto e bom som enquanto nos desviamos deles, ou podemos retirá-los e descobrir o que eles significam. A decepção é normalmente o preço da preguiça. 
Então, o sábio rei montou no seu cavalo e, dando delicadamente as boas-noites, retirou-se."
William J. Bennett, in   O Livro das Virtudes II , Editora Nova Fronteira,1996 (adaptado)

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

É preciso agarrar a oportunidade pelos cabelos

Ilustração: Susa Monteiro

É preciso agarrar a oportunidade pelos cabelos mas não esquecer que ela é careca
por António Lobo Antunes
"Não somos um país, somos um enorme convento de carmelitas autistas em silenciosa comunicação com o seu écranzinho que os põe em contacto com um estranho universo inexistente, cheio de palavras e imagens irreais. Os humanos já não falam: dialogam em silêncio com o nada, isto é com o que pensam ser os outros e o mundo
Andei agora uma série de dias no estrangeiro e o que mais me surpreendeu foi não ter visto uma única pessoa de iphone na mão, a carregar nas teclas, alheada do mundo. Eu como todos os dias fora, num restaurante aqui perto, vou e venho a pé, cruzo-me com gente na rua, passo por uma paragem de autocarro e é extraordinário o que Portugal mudou. Por exemplo o que mais me aborrecia, nos sítios onde almoçava e jantava, eram os guinchos de meninas e meninos a correrem entre as mesas, enlouquecendo todo o mundo sob o olhar desvelado ou ausente dos pais. Não é que as crianças se tenham tornado bem educadas, isso seria pedir demais aos lusitanos, é que em lugar de gritarem, incomodarem e empurrarem os vizinhos estão caladinhas ao lado dos adultos, cada uma com o seu iphone, a carregarem nas teclas num autismo absoluto, concentradas num jogo qualquer. Como os pais não conversam com elas ou entre si, ocupados a comerem, de olhos no prato
(se calhar existem iphones escondidos no puré)
completamente sozinhos,  tenho a sensação de estar, com o bacalhau à Brás em frente, num silêncio de capela. A mesma coisa nos transportes, a mesma coisa nas esplanadas, a mesma coisa nas paragens de autocarro
(há semanas, ao passar por uma delas, vi sete pessoas sete à espera, todas de olhos baixos, a picarem o seu quadradinho de plástico com o indicador, alheadas do universo. Não somos um país, somos um enorme convento de carmelitas autistas em silenciosa comunicação com o seu écranzinho que os põe em contacto com um estranho universo inexistente, cheio de palavras e imagens irreais. Os humanos já não falam: dialogam em silêncio com o nada, isto é com o que pensam ser os outros e o mundo, trocando banalidades arrasadoras com criaturas e acontecimentos tão fantasmáticos quanto elas. Não se relacionam entre si: relacionam-se com silhuetas vazias, interessam-se por acontecimentos ocos, os afectos transformam-se em siglas, a ternura em bjs sem carne, meia dúzia de consoantes e de k estratégicos substituem os sentimentos e as emoções. Os corpos transformam-se em silhuetas, a partilha em frases feitas, o amor no supermercado do face book onde as pessoas se apaixonam por criaturas irreais, ou seja fotografias minúsculas e ideias sem carne, encharcando os iphones de lugares comuns patetas nos quais se sente o enorme peso de uma solidão irremediável. Tenho muito dó desses infelizes fantasmas procurando desesperadamente outros infelizes fantasmas na esperança de uma relação fantasmática que, ao fim e ao cabo, não é possível porque não se pode amar uma ausência sem espessura de gente. O poeta Fernando Pessoa, por exemplo, parece-me não uma criatura mas um nada falante. Não é ao artista que me refiro agora, é ao homem que tentava existir através da bebida na esperança de obter, por intermédio de um substituto do leite materno, a densidade carnal que não tinha e, portanto, os seus escritos não respiram. Fingem que respiram, num sofrimento imenso. As criaturas dos iphones não pensam, não lhes interessa pensar, interessa-lhes existir no vazio, relacionando-se com vazios tão brancos quanto os deles, procurando desesperadamente bjs sem substância. Conversam com ninguéns em diálogos de uma pobreza afectiva absoluta que é o único anteparo de que são capazes para tentarem lutar contra a depressão, porque ao princípio não era o Verbo, era a Depressão, e as nossas almas tão sozinhas, tão pobres. O que queremos de facto, o que esperamos ainda é encontrar um modo de nos acharmos menos desamparados, menos indefesos, menos perdidos, e esperamos, como crianças que esqueceram o caminho para casa, que um bj nos aponte o caminho. E não aponta porque nenhum bj se transforma em beijo, é uma metamorfose impossível. Toma o meu bj, dá-me o teu bj em troca. E ficamos cada um com o bj do outro na palma a pensar
– O que faço eu com isto?
enquanto as duas letras se dissolvem ou se evaporam num écranzinho que não responde.Na fila dos automóveis de regresso a casa ao fim do dia vemos as pessoas sentadas no carro, olhando fixamente em frente, imóveis e sérias. Se repararmos nos olhos delas estão todas mortas atrás dos olhos. Não faz mal: o iphone está aqui no bolso; em chegando a casa ligo-o e encontro outros desgraçados, tão defuntos quanto eu, à espera de um colo que não existe. Há uma ausência apenas e lá ao fundo, na cozinha, uma torneira que não veda bem a pingar no lava-loiças o ritmo angustiado do nosso desespero. Talvez um bj ajude um bocadinho a torná-lo suportável: é que somos tão pobres que nos contentamos com uma côdeazita de nada. E amanhã encontraremos na fronha algumas migalhas que sobraram. Se as metermos na boca têm um gosto a lágrimas.”
António Lobo Antunes, em Crónica publicada na VISÃO 1319 de 14 de Junho 2018
 
 

Tenho um sonho

 
My Name is William and I have a Dream, de Joel Santos
"Este vídeo sobre um menino real, antes um escravo no Lago Volta, Gana, agora resgatado e amado. Expressa um sonho, que também está mais perto de se concretizar, porque educação e propósito são fundamentais para esse processo. Tenho orgulho de ter filmado e produzido este vídeo, juntamente com Magali Tarouca, em nome da Filhos do Coração. É a primeira de quatro histórias que compartilharei com todos vocês. Muito obrigado a Tânia Henriques por virar o mundo de cabeça para baixo para tornar isso realidade, entre tantos outros projetos que realizamos no Gana, nos últimos quatro anos. Eles merecem o nosso melhor, porque também nos tornam melhores seres humanos por meio de seus exemplos inspiradores. Muito obrigado também a Rui Ventura pela edição destes vídeos - mais uma vez um trabalho fantástico - e a Atweri Clement - verdadeiro amigo que nos mantém sempre seguros."Joel Santos

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Bom dia

“ Entre o céu e a terra passam “
 
Entre o céu e a terra passam.
Quem passa? Nós?
Quem nós? Quem?
 
Passam terra e céu entre –
- O quê? Nós?
- O nós? O ?
                      11.06.61

Jorge de Sena, Visão Perpétua, INCM, p.66


Mais um dia. Diz-se que ser velho é perder a noção do tempo. Ele passa voraz e sem corpo. Talvez seja essa a grande vantagem da tal "geração grisalha". O tempo não tem peso nos dias porque já se corporizou em nós. O traço, que tínhamos, perdeu o vigor primeiro e alastra-se na fugacidade de traços que se esvaem em réplicas informes. As rugas, o corpo vivido dão-nos a dimensão dessa voracidade do tempo, em nós. Mas , se o corpo o sente, o espírito continua a afirmar que é hoje o presente e o futuro é só amanhã. E o vigor do pensamento liberta-se da proximidade desse futuro que sabemos carregar um fim. Sonhamos, cantamos, rimos, choramos e somos nós como sempre o fomos.
Registo um excerto de Carta ao Futuro de Vergílio Ferreira:

«O que há a redimir é a adequação deste milagre brutal de nos sabermos uma evidência iluminada, de nos sentirmos este ser que é vivo, se reconhece único no corpo que é ele, na lúcida realidade que o preenche, o identifica nas mãos que prendem, na boca que mastiga, nos pés que firmam, de nos descobrirmos como uma entidade plena, indispensável, porque ela é de si mesma um mundo único, porque tudo existe através dela e é impossível que esse tudo deixe de existir, porque ela irrompe de nós como a pura manifestação de ser, e o «ser» é a única realidade pensável — o que há a redimir é a adequação desta fantástica evidência que nos cega e a certeza de que ela está prometida à morte, de que o seu destino é a impossível e absoluta certeza do não-ser, da pura ausência, da totalidade nula, da pura irrealidade. »


Um tanto tortuoso este caminho vergiliano, mas a evidência é a certeza de que há uma finitude estabelecida à vida, desde a sua nascença.  Adequar ou conectar  o milagre da vida à verdade da morte é o maior desafio humano.
Neste ano de tanta ameaça, de tanta morte inesperada é ainda mais difícil esse desafio. A emergência  do perigo fez-nos ainda mais irrelevantes, mais precários, mais frágeis. O futuro nem sempre é o amanhã, embora o pensemos diferente daquilo que o projectáramos. Porém continuamos. Permanecemos . Estamos vivos e , se a vida é a negação da morte , celebremos, pois, o dia que começa.
Bom dia!

domingo, 19 de setembro de 2021

Ao Domingo Há Música


A arte está cheia de coisas que todos conhecem, de verdades que andam pelas ruas.
           Boris Pasternak, Ensaio de Autobiografia
 

Quando penso no trecho musical que devo seleccionar para a rubrica de domingo, tenho como  cuidado primeiro a não repetição de temas. Acredito  que nem sempre  respeitei esse princípio. Sei que várias composições foram repetidas. A Música tem o fascínio de nunca nos entediar. Podemos ouvir  repetidamente uma canção, uma sinfonia , uma peça coral  que nos encantou e o prazer , que nos acometeu da primeira audição,  quase cresce e nos mergulha num novo enamoramento. Dou, por mim, a  procurar , no meu arquivo musical  , as minhas  peças aladas. Escolho-as, geralmente,  de acordo com aquilo que , naquele momento, me vai na alma. Creio que acontece com todos. Ouvimos, ouvimos e ouvimos , num sem fim de audições,  a "música" que nunca deixou de nos falar. Não se esgota esse prazer. Sei que esse  meu prazer é eclético. Deixo-me   seduzir por tantos sons , por tantos ritmos,  por tanta variedade de registos e por tipos e formas musicais diversas. Costumo pensar que nasci ao som de um sinfonia maravilhosa .  Não sei se teria sido Mozart ou Beethoven a compô-la de tão perfeita e eficaz que foi. Nunca o descobri.  Sei apenas que me empurraram para um mundo de sons harmoniosos e de magia a descobrir. A minha ligação à música é umbilical. Sem música,  o mundo ficaria totalmente cinzento e a apatia tomaria conta de mim. 

O destaque de hoje vai para um famoso violinista. O violino tem aquele extraordinário jeito de nos levar para onde a magia acontece e a fantasia se reproduz. Ora ri, ora chora, ora grita, ora sussurra, ora explode  em paixão sublime , ora  se queda  num  aconchego de infindo  amor. 

A  composição que se apresenta,  Smile, é mundialmente conhecida. Tem servido várias causas . Interpretada por múltiplos artistas,  nunca deixou de ser  reconhecida como uma obra ímpar,  que faz parte da  banda sonora do  filme "Tempos Modernos", de Charlie Chaplin. A versão pertence ao violinista Renaud Capuçon, acompanhado  pelo pianista Guillaume Bellom e foi extraída do Álbum "Un violon à Paris". Quando  o primeiro confinamento de 2020 começou em França, Renaud Capuçon "levou sorrisos aos rostos de seus seguidores nas redes sociais,  com vídeos diários realizados e emitidos de sua casa, Oferecia músicas de esperança e conforto. Com o   álbum Un Violon à Paris,  recriou, em estúdio,  acompanhado pelo pianista Guillaume Bellom, esses momentos mágicos."

   
Renaud Capuçon & Khatia Buniatishvili, em Dvořák, Romantic Pieces (do Álbum Franck, Grieg,  Dvořák)
 
Acrescentamos , agora , a voz inconfundível da francesa Nolwenn Leroy à  magnífica interpretação de  Renaud Capuçon no violino , em  Calling You,  do filme "Bagdad Café".
 

sábado, 18 de setembro de 2021

Nada voltou a ser igual

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"Uma nova invenção começou a transformar silenciosamente o mundo durante a segunda metade do século VIII a.C., uma revolução agradável que acabaria por transformar a memória , a linguagem , o acto criador, a maneira de organizar o pensamento , a nossa relação com a autoridade, com o saber e com o passado. As mudanças foram lentas, mas extraordinárias. Depois do alfabeto, nada voltou  a ser igual.
Os primeiros leitores e os primeiros escritores eram pioneiros. O mundo da oralidade resistia a desaparecer - nem sequer se extinguiu totalmente - e a palavra escrita sofreu inicialmente um certo estigma. Muitos gregos preferiam que as palavras cantassem. As inovações não lhes agradavam muito, resmungavam e grunhiam quando as tinham à frente.  Ao contrário de nós, os habitantes do mundo antigo achavam que o novo tinha tendência para provocar mais degeneração do que progresso.  Algo dessa hesitação perdurou no tempo; todos os grandes avanços - a escrita, a imprensa, a Internet... - tiveram de enfrentar  detractores apocalípticos . De certeza  que alguns resmungões acusaram a roda de ser um instrumento decadente e até preferiram transportar menires às costas.
No entanto, era difícil resistir à promessa da nova invenção. Toda a sociedade aspira a perdurar e a ser recordada.  O acto de escrever prolongava a vida da memória, impedia que o passado se dissolvesse para sempre.
Nos primeiros tempos, os poemas ainda nasciam e viajavam pela via oral, mas alguns bardos aprenderam o traçado das letras e começaram a transcrevê-los  em folhas de papiro  ( ou ditaram-nos) como passaporte para o futuro. Talvez então alguns  começassem a tomar consciência das inesperadas implicações daquela ousadia. Escrever os poemas significava imobilizar o texto, fixá-lo para sempre. Nos livros , as palavras foram cristalizadas. Era preciso escolher uma única versão dos cantos, a mais bela possível, para que sobrevivesse às outras. Até aquele momento, o canto era um organismo vivo que crescia e mudava, mas a escrita ia petrificá-lo. Optar por uma versão do relato significava  sacrificar todas as outras  e, ao mesmo tempo, salvá-lo da destruição e do esquecimento.
Graças a esse acto audacioso, quase temerário, chegaram até nós duas obras memoráveis que formaram a nossa visão do mundo. Os 15.000 versos da Ilíada e os 12.000 versos da Odisseia que agora lemos como se fossem dois romances são um território fronteiriço entre a oralidade e o novo mundo. Um poeta , provavelmente educado na fluidez das recitações, mas em contacto com a escrita, enfiou vários cantos tradicionais no fio de uma trama coerente. Será que Homero foi essa personagem no limiar de dois universos? Nunca o saberemos. Cada investigador imagina o seu próprio Homero: um bardo analfabeto de tempos remotos; o responsável pela versão definitiva da Ilíada e da Odisseia; um poeta que lhes deu um último toque; ou um editor seduzido pela extravagante invenção dos livros, ar escrito. Não deixa de me fascinar que um autor tão importante para a nossa cultura seja apenas um fantasma.
Com a escassa informação disponível , é impossível esclarecer o mistério. A sombra de Homero desaparece em terras de penumbra. E isso ainda torna a Ilíada e a Odisseia mais fascinantes - são documentos excepcionais que nos permitem aproximarmo-nos ao mesmo tempo dos relatos alados e das palavras perdidas."
Irene Vallejo, in "O Infinito num junco" - (Cap. 32), Bertrand Editora, Lisboa 2021, pp.95-97

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Adeus , Rui

Professor  Rui Baptista (19.05.1931-13.09.2021)

ADEUS, RUI

À memória do meu amigo,

Rui Baptista, lembrando

África, Mafra & outras safras!


Morre-se muito, na nossa idade,
Rui! A morte abusa da nossa fragilidade,
e prega-nos grandes partidas,
com cínicas armadilhas escondidas:
por todo o lado, escorregadelas no banho,
que nos fazem chorar baba e ranho,
estatelados em poses esquisitas,
gritando e fazendo tristes fitas!
Morremos de todas as maneiras,
sossegados, à sombra das bananeiras,
ou, no dia seguinte, acordando mortos,
mas serenos, cheios de confortos.
Há mortes para todos os gostos,
Rui, e a nossa não é diferente:
morremos, às vezes, nos nossos postos
e outras, teremos, com sorte, uma morte irreverente!
Tu morreste, Rui, como eu espero morrer,
cheio de memórias africanas, tão boas,
porque a África nos dava bom viver,
com um mar grande e frutas boas.
Devo-te, Rui, teres-me dado um palpite
para o lugar onde passar a noite de núpcias
um lugar na serra, habitado por Afrodite,
onde fiquei, descobrindo doces minúcias!
Fomos, Rui, ao longo dos anos,
conversando, concordando, discordando,
mas ultimamente já não fazendo planos,
porque o fim se vinha aproximando.
Se eu acreditasse no além,
pensaria em ali te encontrar,
para continuarmos em ameno conversar:
o muito magicar ensina-me, porém,
que, quando expiramos, é mesmo o fim:
mesmo não entendendo bem o nada,
tudo acaba, sei lá porquê, porque sim:
o nada é apenas a vida dispensada.
Mas não vale a pena, Rui, ralar-nos.
Porquê, no fim de contas, preocupar-nos?
Será mesmo que vale a pena,
só porque vamos sair de cena?
O que fomos ficará algum tempo na memória
de quem outrora muito amámos:
isto, depois, será pálida história
que se apaga como nós nos apagámos.
              16.09.2021
Eugénio Lisboa, ( Poesia inédita)

Parabéns, pai

SILÊNCIO

Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios se emudecem.
                              1960
Octavio Paz,(1914 – 1998), “Antologia Poética – Poesia Século XX”

Meu querido pai

Há dias que nos tiram o fôlego. Levam-nos ao silêncio que brota do fundo e se reconstrói em silêncios de emoção,  de esperança,  de saudade dorida e intensa. Hoje,  o  fulgor desse grito, que se desvanece antes de nascer,  é a ausência longa e sentida do pai. É aquele seu dia que chegava todos os anos. Era o dia mais importante de um Setembro que, inexorável,  fecharia o Verão. Era o dia do seu aniversário. Continua  a ser , passados que são tantos anos desde que nos deixou. Mas tudo mudou. Não foi apenas a sua ausência. O mundo mudou e, com ele , mudaram os dias. Temos agora dias negros, carregados de sombra , de tragédias , de  tempestades incontroláveis que desabam sem clemência. Este Setembro, o mundo reviveu os vinte anos do terror  sobre a  América: o ataque ao World Trade Center.  Vinte anos que transformaram a Humanidade. Vinte anos perdidos que conduziram a iníquas guerras , a fogueiras de vaidades,  que se converteram em  agudas torres e espadas que crescem e  ficam  suspensas , tais cutelos à espera da vítima. 

A Peste continua por aqui. Todos os dias , os noticiários anunciam as baixas que vão dos infectados aos mortos. A luta  é feita através de uma vacina. Aqui , em casa, todos a tomámos , mas isso só reduz a intensidade da doença. As garras da facínora agarram-nos, ainda assim. E os beijos, os abraços, os afectos ficam em sobressalto. Foram quase banidos, como que proibidos por causa do fácil contágio que propagam. Pois, pai, não sei se o poderíamos beijar, abraçar quanto o desejamos neste seu dia. Imagina um aniversário sem isso?! Ora, se  sempre fomos afectuosamente ruidosos, seria como desembocar num deserto, sem emoções, sem sentido.

O ano lectivo está aí. As aulas vão começar e o martírio da imprevisibilidade arrasta-se. Os professores continuam  em itinerância forçada e os alunos desconhecem se  terão professores para todas as disciplinas. Há ainda a sempre e leviana pretensão dos Ministros da Educação de marcarem a sua passagem. Reformar, alterar, baralhar programas e arrasar o sistema educativo. Como sempre,  a confusão instala-se porque nem sequer os estudos de uma experimentação tida como ineficiente foi aferida, analisada e divulgada. A dita paz inicial continua a ser um mito. 

E, pai, estou a envelhecer. Há muito que pertenço à geração grisalha. Um termo novo para os idosos. Nem vale a pena analisar o que pode encerrar . Sei apenas que, se cá estivesse, concluiria que , apesar de tudo, a vida tem o seu lado belo. Apenas temos de o procurar. É impossível agarrá-lo de tão fugidio que é. Mas existe beleza no sorriso terno dos meus netos. Aquele encanto que o pai  descobria nos meus filhos. Eles continuam a sorrir-lhe. Evocam-no com muito carinho e estima. A saudade brilha-lhes na alma e as lágrimas acendem-se nos meus olhos. Sim, pai, uma saudade que tanto dói como rejubila de orgulho e alegria por o ter tido como avô e como pai.

Parabéns, querido pai. Temo-lo para sempre.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Um caso de burro

Um caso de burro
por Machado de Assis
“Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crónica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos não são iguais.
Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que seja que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena acção. Se o autor dela é homem que leia crónicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez — ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos.
O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro mostra que o fenómeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas, mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
E diria o burro consigo:
“Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade”.
“Passando à ordem mais elevada de acções, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, em resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.”
“A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada — ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno.
Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Enfim…”
Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, colectivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?
Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste mundo. Sem exagerar o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século.
Requiescat in pace.”
Machado de Assis, in Contos e  Crónicas, Editor  Malê ,Brasil 

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

As Palavras



Eugénio Lisboa deu forma às palavras e criou um novo poema. Há quem afirme que os poetas são os melhores legisladores do mundo. Eugénio Lisboa prova-nos , (constantemente),  que o poeta é o melhor especialista das palavras. Conhece-lhes todos os segredos.

AS PALAVRAS

No poema, as palavras encontram outras palavras,
que nunca tinham visto, mas logo se enamoram,
uma da outra, porque se sentem próximas
uma da outra, atraídas por uma química
irresistível.
As palavras, no poema,
fazem casamentos singulares, inesperados, fecundos,
e, juntas, exploram o mundo,
como, antes, nunca tinha sido explorado.
Palavras banais, em que ninguém repara
e andam para aí usadas, quase sem serem vistas,
surgem de novo, com outra força, com outra luz,
com outra sedução, que lhes dá o poeta,
com a sua lâmpada de Aladino.
Friccionando bem as palavras
o poeta trá-las de novo à vida
como o Cesário, que, tuberculoso,
sonhava com uma mulher,
imaginem,“aromática e normal”!
O Cesário, doente e, por isso,
nada normal,
ficou seduzido, não por uma mulher muito bela
ou muito vistosa ou muito inteligente,
mas por uma mulher que tivesse
aquilo que ele não tinha e não voltaria a ter:
a normalidade da saúde que,
naquela mulher sonhada, se iluminara, de repente,
como a coisa mais apetecida do mundo.
A palavra “normal” foi assim ressuscitada da sua morte aparente
pela fragilidade criativa do Cesário.
É que as palavras têm tesouros escondidos,
só há que encontrá-los, para transformar palavras murchas
em palavras cintilantes e acabadinhas de nascer.
Não se esqueçam das palavras, mesmo as mais humildes:
há nelas possibilidades que ninguém imagina.
Os especialistas destas coisas chamam-se poetas.
                             06.09.2021
Eugénio Lisboa, ( Poesia inédita)

domingo, 12 de setembro de 2021

Jorge Sampaio, um político improvável

Jorge Sampaio

Jorge Sampaio, um político improvável
por Eugénio Lisboa
“Jorge Sampaio, que foi esta coisa mais rara do que se supõe – um homem fundamentalmente decente – acaba de nos deixar. Foi, desde os tempos de estudante, um homem saudavelmente turbulento, corajoso e generoso, isto é, capaz de se arriscar, na luta contra um regime iníquo, pelintra, pifiamente provinciano, que se queria pobrete mas alegrete, o que o não impedia de ser brutal quanto baste.
Como jovem advogado – que dizem ter sido brilhante – defendeu incansavelmente os presos políticos acusados de coisa nenhuma, pelos sipaios do antigo regime, incluindo um grande número de estudantes, acusados do crime nefando de afixarem cartazes a pedir que o país mudasse.
Jorge Sampaio foi político por generosidade de temperamento, porque tinha o coração no lado certo e porque a falta de respeito pelos direitos humanos, tão acarinhada pelo Estado Novo, lhe fazia mau sangue. Era, dizem, muito impulsivo e emotivo, características que costumam habitar em seres que não sofrem bem as injustiças e os atropelos de toda a ordem.
Era hábil, politicamente, como se comprova com ter conquistado a difícil câmara de Lisboa e ter ascendido ao topo da hierarquia política: a Presidência da República. Mas subiu – coisa altamente improvável – sem se conspurcar. Subiu porque usou a mais esbelta e decente das armas que normalmente levam ao topo da pirâmide: segundo Sócrates, via Platão, é mais fácil corromper do que persuadir. Sampaio ficou conhecido por preferir a segunda: a persuasão, em que era, dizem, exímio.
Jorge Sampaio deixa-nos este património invulgar em qualquer político: uma carreira impoluta que, mesmo assim (ou por isso) se impôs a correligionários e a adversários políticos. E ao povo em geral.
O filósofo espanhol Ortega y Gasset escreveu um ensaio admirável, que todos os políticos (e os não políticos também) deviam ler: “Mirabeau ou o político”. Neste ensaio, admiravelmente pensado e melhor escrito, o pensador espanhol, servindo-se de Mirabeau, como arquétipo do político, desvela, com invulgar argúcia e minúcia, de que metal é feito este peculiar animal: o político – as virtudes que tem e as que não tem, acontecendo que são estas segundas, as que não tem, que sobretudo lhe permitem subir no organograma do poder. Sampaio, improvavelmente, ascendeu ao topo, fazendo profusamente uso das virtudes que Mirabeau não teve, principalmente esta: uma inatacável decência.
O áspero e grande escritor francês Henry de Montherlant escreveu um dia isto, acerca do seu colega Roger Martin du Gard, em tudo tão diferente de si: “Um escritor francês vivo, que se pode respeitar – é sensacional.” Vou, com gosto, parafraseá-lo, para me despedir de Jorge Sampaio, a quem todos tanto devemos: “Um político que sobe ao ponto mais alto da hierarquia, sem se sujar – é sensacional.”
                                                                                     12.09.2021
Eugénio Lisboa

Ao Domingo Há Música


TEU RISO
Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, porém nunca
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que debulhas,
a água que de repente
em tua alegria estala,
essa onda repentina
de prata que te nasce.

De áspera luta volto
com olhos fatigados
por vezes de ter visto
a terra que não muda,
mas ao chegar teu riso
sobe ao céu me buscando
e abre para mim todas
as portas desta vida.
    (...)
    Pablo Neruda, Os versos do capitão

 
Talvez a Música tenha, em cada um de nós,  a força motriz que faz estalar as emoções e a alegria redentora , como se de um enamoramento se tratasse.
Do compositor húngaro, Miklos Rózsa ( 1907-1995), a belíssima melodia da banda sonora do filme   El Cid  - (Love Theme) - , interpretada pela Royal Stockholm Philharmonic Orchestra , regida pelo Maestro Alexander Shelley e com a excelente interpretação do violinista Daniel Hope. A peça foi extraída do  álbum Escape to Paradise, The Hollywood  Album , com interpretações e organização do virtuoso violinista Daniel Hope.