"Lugar de Estudo" de Fernando Echevarría, publicado pelas Edições Afrontamento, recebe o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores(APE)/CTT.O Júri que analisou a obra declarou em comunicado que " Lugar de Estudo "representa um momento singularmente alto de Poesia Portuguesa Contemporânea. Os cerca 270 poemas inéditos que o compõem são a expressão vigorosa de uma arte poética que o título resume. A poesia é, para este autor, um lugar de Estudo e de, aperfeiçoamento do trabalho poético, o qual é também o lugar da língua.”
Lugar de Estudo
Começa na velhice a erguer-se um halo
de acolhimento. Promete,
não só indulgência, mas também um sábio
silêncio, de onde se difunde e deve
a auscultação desenvolver o pálio
de outro silêncio mais profundo. Que ergue
a escuta a um ponto, cada vez mais alto,
que, com maior intensidade, tende.
Terá esse exercício força de hausto?
Ou será padecê-lo que protege?
O certo é que a velhice encontra os anos.
E os anos sabem a fecunda messe
de estudos que, mesmo inacabados,
a outros estudantes se oferecem.
A escuta cresce por dentro
de estar atenta a escutar.
Traz um agudo silêncio
a estender cada vez mais
o seu domínio. Que a escuta,
arraigada, polariza
de forma a serem só uma
operação. Mais ainda,
uma unidade profunda
onde sofrê-la se activa.
Ou há um silêncio de escuta
onde só a escuta domina.
E aquilo a escutar
punge o grande sofrimento
da alegria, que se vai
na escuta recrudescendo.
A penúria da língua é a sua força.
Reconhecendo nela a indigência
mais o apuro se empolga
e a submissão empolga a subtileza
do espírito, dado à obra
e a mais nada que não seja ela.
De aí que se desenvolva
uma abertura hiante de surpresa
que pede língua cada vez mais nova
e de mais adequada obediência.
Ou, se quiserem, língua peremptória.
Porque, vinda do fundo da pobreza,
entrega apenas quanto falta. E torna
a sua falta uma abertura imensa,
indigitando o extremamente fora,
cuja ausência feliz se nos entrega.
Por trás do céu há o céu inteligível.
E, por trás deste, um céu aberto
a abrir-se ainda, sem qualquer limite,
mas puxando após si o pensamento.
Ou, se quiserem, o feliz requinte
de alargarem a paz a um céu inédito
onde o reino profundo do invisível
funda o visível no fecundo aspecto
de ímpeto. Lume imperioso. Riste
abrindo a um novo assunto de silêncio.
E através do silêncio silencia-se
o assunto. Apenas o incremento
do ímpeto se abstrai ao eco do que disse
para o luto do dito abrir assento
a um penúltimo cume. A um trampolim de
invisível a ir pelo invisível dentro.
Não cabe em nome algum. O que lhe demos
apenas dele nos diz quanto nos falta.
Que nomear é reduzir a objecto
de submissão quem alicerça a dádiva.
E a dádiva o que dá é um dar aberto.
Partindo de um recuo de distância
irradia, a nome algum sujeito
ou, se algum se lhe der, é o que o afasta
da precisão estrita de conceito.
Então só resta que uma escuta de alma
se intensifique para abrir-nos dentro essa profundidade inominada
a dar somente para o sempre imenso.
E desse imenso se divulga a flama,
não só invisível, mas também efeito
da pungência feliz da sua falta.
Estamos graves a ir
por esse longe que vem
ao nosso encontro. E assim
ir e vir resumem ver
como vai sendo feliz
o tempo que o tempo tem.
Mas o tempo tem-se a si
somente quando refém
da palavra que o diz.
Dizê-lo deixa-o, porém,
exposto a um vento sem fim,
que venta sem fim. Amen.
Promontório de Deus. De onde Ele se ausenta.
Só nos deixando a grande nostalgia
na sua massa espessa.
Que abre distância de recuo assídua
e alarga a inteligência
por uma busca quase que festiva.
Ou mais, talvez, por uma via tensa
de júbilo e sentido. E, até, sofrida
na sua panda activação de vela.
Que vai sofrendo e activando a vinda
da invisibilidade, da surpresa
inominada, que procura ainda
seu nome peremptório. Mas nomeia
essa distância a distanciar-se implícita.
Ou promontório de onde Deus se ausenta
para auscultarmos sua face viva.
Com Deus. E vivos. E andando sempre
ao sol. À chuva. E ainda ao vento.
Vivos, escutam. Nem sente
a aura oculta do seu corpo aceso
que à volta difundem e dispendem
como dispendem o conhecimento.
Que conhecer é reunir a febre,
o frio e o silêncio
num todo indivisível que só serve
a intimidade de sofrer o peso
do mundo, da intempérie.
E aquilo que eles trazem desde dentro.
E, desde dentro, emerge
de modo à tez iluminar o vento,
quando passarem quase a si se esquece,
embora punja em os estarmos vendo.
Estão com Deus. E, do fundo
de estarem ali, vem vindo
a grande escuta. Aí tudo
especifica o seu vínculo.
O mar instrui no marulho
sua imagem. Como o rio
a sua traça no fluxo
figurado do sentido.
Na grande escuta abre o mundo
o silêncio. E abre um sítio
onde só reina o estudo
aberto ao reino do espírito.
E com Deus aberto, ao fundo
de estarem ali ouvindo.
Fernando Echevarría, in " Lugar de Estudo", Ed. Afrontamento
04.01.10