segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Ouvi uma voz cantar

Zeca Afonso, em Fui à beira do mar, do álbum "Eu Vou ser como a Toupeira", de 1972

Fui à beira do mar
Ver o que lá havia
Ouvi uma voz cantar
Que ao longe me dizia

Ó cantador alegre
Que é da tua alegria
Tens tanto para andar
E a noite está tão fria

Desde então a lavrar
No meu peito a alegria
Ouço alguém a bradar
Aproveita que é dia

Sentei-me a descansar
Enquanto amanhecia
Entre o céu e o mar
Uma proa rompia

Desde então a bater
No meu peito em segredo
Sinto uma voz dizer
Teima, teima sem medo.
Zeca Afonso


Chamaram-me um dia
Cigano e maltês
Menino, não és boa rés
Abri uma cova
Na terra mais funda
Fiz dela
A minha sepultura
Entrei numa gruta
Matei um tritão
Mas tive
O diabo na mão
Havia um comboio
Já pronto a largar
E vi
O diabo a tentar
Pedi-lhe um cruzado
Fiquei logo ali
Num leito
De penas dormi
Puseram-me a ferros
Soltaram o cão
Mas tive o diabo na mão
Voltei da charola
De cilha e arnês
Amigo, vem cá
Outra vez
Subi uma escada
Ganhei dinheirama
Senhor D. Fulano Marquês
Perdi na roleta
Ganhei ao gamão
Mas tive
O diabo na mão
Ao dar uma volta
Caí no lancil
E veio
O diabo a ganir
Nadavam piranhas
Na lagoa escura
Tamanhas
Que nunca tal vi
Limpei a viseira
Peguei no arpão
Mas tive
O diabo na mão
Zeca Afonso

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Ao Domingo Há Música

Brasil - Rio de Janeiro ( Pão de Açúcar)
O que foi feito, amigo,
De tudo que a gente sonhou
O que foi feito da vida,
O que foi feito do amor
Quisera encontrar aquele verso menino
Que escrevi há tantos anos atrás
Falo assim sem saudade,
Falo assim por saber
Se muito vale o já feito,
Mas vale o que será
Mas vale o que será
E o que foi feito é preciso
Conhecer para melhor prosseguir
Márcio Borges e Fernando Brant 


De tudo o que a gente sonhou nem sempre a vida permite cumprir. Muito se deseja, muito se acalenta e, de tudo fica a lembrança, num muito ou num pouco que se  alcançou. 
Na música, há gente que se destaca pelo muito. O nosso repertório tem nomes que nos encantam e que se afirmaram pela qualidade e talento. Muitos falam  português . Milton Nascimento é um deles. Um excelente e produtivo compositor e  um extraordinário cantor. Compôs canções para vozes inesquecíveis . Elis Regina cantou-o abundantemente. Sobre ele já muito se escreveu.Transcrevemos algumas palavras. 
"Carioca de certidão, mineiro de coração, Milton Nascimento integra o primeiro escalão dos nomes mais importantes da história da música brasileira.  O seu disco de estreia, “Travessia”, foi lançado em 1967, um período de mudanças intensas (sociais, culturais e politicas). De cabeça aberta para o mundo, Milton experimentava. Se o primeiro disco trazia a bossa nova do Tamba Trio e no segundo, “Courage” (1968), os arranjos eram de Eumir Deodato e havia participação de Herbie Hancock, o quarto, “Milton” (1970), tinha acompanhamento do progressivo Som Imaginário (Wagner Tiso, Tavito, Zé Rodrix). O quinto disco foi lançado em 1972, dividido com Lô Borges, e recebeu o nome de “Clube da Esquina”. Milton Nascimento seguiu produzindo clássicos nas décadas seguintes.
Há mais de cinco décadas, Milton encanta a todos com uma obra repleta de poesia e riqueza melódica."

Fernando Brant, Milton Nascimento e Márcio Borges
Vamos apresentar algumas canções deste cantor brasileiro. A primeira é a canção  O que foi feito de(vera), obra que tem uma história. Verificámos no  site Tagarelices
"A história da música O QUE FOI FEITO DE(VERA), de Milton Nascimento, Márcio Borges e Fernando Brant é pura magia. Durante a criação do disco duplo Clube da Esquina 2, Bituca, como Milton Nascimento é conhecido pelos amigos, enviou para Márcio Borges e Fernando Brant uma música, sem que um soubesse da missão do outro, e pediu para que eles reflectissem sobre o que havia sido feito "de vera", ou seja, de verdade nos últimos anos.
Era o ano de 1978, um momento de indefinição política no país, estávamos em processo de redemocratização, aos trancos e barrancos. A voz dos jovens, que sonhavam com um país livre da ditadura, voltava a ser ouvida. Era o prenúncio do fim da ditadura. Portanto, havia muito que reflectir.
Márcio Borges logo associou a expressão dita por Milton "de vera" com o antigo nome do Brasil, Vera Cruz. E não foi à toa que surgiram,  no primeiro parágrafo, os versos "(...) A tribo toda reunida/ ração dividida ao sol/ De nossa Vera Cruz (...)".
Quando Milton recebeu as letras, uma de Fernando e outra de Márcio, depois de um certo constrangimento, viu que de forma mágica, uma era continuação da outra "As duas letras, juntas, se casaram magnificamente, sinal de que os parceiros se entendiam muito bem", reconheceu Brant. 
Milton, contando essa história à jornalista Maria Dolores, autora de sua biografia TRAVESSIA*, disse: "Quando coloquei a letra do Marcinho em baixo da do Fernando, falei: não acredito, uma é continuação da outra!"
E sim, magicamente, uma música era realmente continuação da outra, como podem ver . Uma mais linda do que a outra. A música foi gravada no volume 1 do disco Clube da Esquina 2, nas vozes de Elis Regina e Milton Nascimento."
O QUE FOI FEITO DEVERA
(Milton Nascimento e Fernando Brant)

O que foi feito amigo
De tudo que a gente sonhou
O que foi feito da vida
O que foi feito do amor
Quisera encontrar
Aquele verso menino
Que escrevi há tantos anos atrás

Falo assim sem saudade
Falo assim por saber
Se muito vale o já feito
Mas vale o que será
E o que foi feito
É preciso conhecer
Para melhor prosseguir

Falo assim sem tristeza
Falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos
Que nós iremos crescer
Outros outubros virão
Outras manhãs plenas de sol e de luz

O QUE FOI FEITO DEVERA (DE VERA)
(Milton Nascimento e Márcio Borges)

Alertem todos alarmas
Que o homem que eu era voltou
A tribo toda reunida
Ração dividida ao sol
De nossa Vera Cruz
Quando o descanso era luta pelo pão
E aventura sem par

Quando o cansaço era rio
E rio qualquer dava pé
E a cabeça rodava
Num gira girar de amor
E até mesmo a fé
Não era cega nem nada
Era só nuvem no céu e raiz

Hoje essa vida só cabe
Na palma da minha paixão
De Vera nunca se acabe
Abelha fazendo o seu mel
No campo que criei
Nem vá dormir como pedra
E esquecer o que foi feito de nós

O Que Foi Feito Devera ( De Vera),nas vozes de Elis Regina e Milton Nascimento , em  1978. A música é de Milton Nascimento e  a letra de Márcio Borges e Fernando Brant.
Elis Regina e Milton Nascimento, em Caxangá. Elis Regina participa do especial de Milton Nascimento, na TV Bandeirantes, em 1977
Nana Caymmi, uma outra grande voz do Brasil, e Milton Nascimento em CAIS, composição de Milton Nascimento.
E , por fim, apenas a voz de Milton Nascimento, em "Canção da América" (Milton Nascimento - Fernando Brant) no Fantástico (TV Globo) de 1980.
Canção da América

Amigo é coisa para se guardar
debaixo de sete chaves, dentro do coração
assim falava a canção que na América ouvi
Mas quem cantava chorou, ao ver seu amigo partir

Mas quem ficou, no pensamento voou
Com seu canto que o outro lembrou
e quem voou, no pensamento ficou
com a lembrança que o outro cantou.

Amigo é coisa para se guardar
no lado esquerdo do peito
mesmo que o tempo e a distância
digam não, mesmo esquecendo a canção
o que importa é ouvir a voz que vem do coração

Pois seja o que vier, venha o que vier
qualquer dia amigo eu volto a te encontrar
qualquer dia amigo a gente vai se encontrar

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Saborear a bela e fresca prosa de Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa – escrita lúcida, límpida e luminosa
Onésimo Teotónio Almeida
Por Onésimo Teotónio Almeida
“Entrei no vol. V de Acta Esta Fabula, de Eugénio Lisboa (Memórias – V – Regresso a Portugal: 1995-2015, Opera Omnia, 2015) com ânsias de o devorar num ápice, embalado que vinha pelos três anteriores (não errei nas contas; o 2º volume ainda não foi publicado). Para um apreciador de memórias e diários, esperava-me ali de novo uma festa. Além do mais, este vinha anunciado como misturando os dois géneros.
Controlei a vontade de uma leitura a eito, sem interrupções, optando por fazê-la a conta-gotas, antes de adormecer. Em regra, tive mesmo que decidir fechar o livro e enfronhar-me entre lençóis porque ficar horas seguidas acordado a virar páginas era o que verdadeiramente apetecia.
Isto bastará para que o leitor conclua do prazer que foi ter por companhia as memórias de Eugénio Lisboa nuns quantos serões de inverno, refastelando-me regaladamente com uma escrita lúcida, límpida e lumi­nosa, ouvindo a voz do autor relatar-nos dias cheios, variados,  preenchidos frequentemente com prolonga­das e proveitosas leituras nos intervalos de agitadas ocupações por esse mundo.
Nos já quatro volumes publicados, a viagem pelas décadas da vida de Eugénio, desde os seus impe­nitentemente lembrados com saudade de uma infân­cia e adolescência na antiga Lourenço Marques, somos expostos a uma voz que recua no tempo a limpar o pó da recordação e a recuperar do arquivo das suas memórias o que de mais salvável contêm. Eugénio conseguiu sempre recriar ambientes nítidos, retratan­do cenas e personagens da sua vida com uma vitalida­de e acutilância só possíveis graças a uma memória espantosamente fresca.
A maior novidade neste V volume é a abertura de janelas com vista para o seu apetitoso diário inédito. Sugerindo levemente no volume IV, aqui o espaço concedido ao diário é significativamente alargado. Se na escrita memorialista Eugénio Lisboa não deixa nunca a distância derrapar em sentimentalismos ou nostalgias românticas, na escrita diarística, traçada sobre o acontecimento, ele revela o seu agudo, fulmi­nante olhar sobre o quotidiano. Na verdade, a prosa de Eugénio é vigorosa porque enxuta, limpa de toda a adiposidade pegajosa. Ela salta em cima dos dias acompanhando penetrantes relances sobre o quotidia­no, oferecendo-lhe uma expressividade que cativa o leitor e o faz testemunha de cada acontecimento.
São magníficos certos retratos desenhados por este artista do verbo, alguns deles elaborados em sucessivas revisitações, como é o caso de Eduardo Prado Coelho. José Saramago, António Lobo Antunes também, tal como José Rodrigues dos Santos (e, entre as figuras políticas, Santana Lopes). Vergílio Ferreira surge como uma éminence grise que Eugénio Lisboa trata quase como sua nemesis, pelo menos um símbolo daquilo que ele não gostaria de ser (o autor destas linhas, amigo e admirador de Vergílio, consegue apreciar a perspectiva de Eugénio e o modo como a expressa, sem necessariamente concordar com tudo o que ele diz acerca do nosso ensaísta-romancista). Sobre Eduardo Prado Coelho, são-nos servidas várias entra­das captando ângulos da personalidade e obra do crítico literário que durante duas décadas imperou na cena cultural portuguesa. Espreite-se esta: “[…] o EPC vive numa agitação, num saltar, numa “acumu­lação”, numa ausência de sossego (necessário à nu­trição de um pensamento) – que não são o leito fecundador de algo que tenha solidez. Quer mostrar que está em todas, que tudo o interessa com minúcia, que vai a todas as exposições, a todo o teatro, a todos os concertos, conhece todas as divas, todos os actores, leu todos os livros, viu todos os filmes, papou todos os almoços importantes, sabe tudo de ciência, de filosofia, de lingerie, de cosmética, de psiquiatria, de casas de alterne, de psicopatologia, de sexo (de todas as orientações e mais que houvesse, ETC!”) (págs. 309s).  Entre os seus altamente estimáveis autores, reemergem, como habitualmente acontece nos escritos do autor, Montherlant, Camus (não Sartre) e José Régio; mas também António Sérgio e Ferreira de Castro, este desinibidamente elogiado por obras injustamente esquecidas, como por exemplo A Selva (“Os intelectuais da nossa praça farão boquinhas […] [p]referem acreditar que o Lobo Antunes é um génio e o Saramago outro. Quanto a mim, prefiro, folgada­mente, A Selva, […] que é, fora de qualquer dúvida, um grande livro.” pág. 302)
Transparece ao longo de todas estas páginas uma coerência de pensamento e intervenção cívicas nortea­dos por uma ética sólida e interiorizada, uma hombri­dade desenvolta e livre, mas consciente e responsável pelas posições que toma e os pontos de vista que defende e pratica na vida real, como o demonstra a obra deixada na empresa petrolífera em Lourenço Marques; na Embaixada de Portugal em Londes, onde foi Conselheiro Cultural; na presidência da Comissão Nacional da Unesco; na Universidade de Aveiro, onde foi Professor Convidado.
Tudo o acima mencionado é servido ao leitor em páginas de um português escorreito e directo, exacto e firme, lúcido e transparente, porque Eugénio ama a língua como meio de expressão que deve ser elegantemente cultivada, não para ofuscar ideias nem, na ficção, atrapalhar uma boa narrativa. Por isso Eugénio não tem rebuço em confessar abertamente as suas preferências romanescas: “A leitura dos bons romances ingleses e americanos leva-me a ter alguma impaciência com quase toda a ficção lusíada. Pergunto aos meus botões: “Esta gente terá vivido? Terá alguma coisa a dizer? E não me venham com o sempiterno trabalho de linguagem. A linguagem serve para, não se serve a si própria, por mais que possa e deva ser trabalhada. Não vive nem deve viver no puro reino da masturbação.” (p. 262)
A linguagem de Eugénio Lisboa é um exímio exem­plo de como pôr em prática esse seu sentir sobre o que deve ser o lugar da língua e como devemos usá-la para fazer arte romanesca e expressar ideias, dialogar cívica e democraticamente com os nossos interlo­cutores.
O título geral destes volumes memorialistas - Acta Est Fabula – revela um sentimento de estar feito aquilo que o autor tinha de fazer. Todavia falta-lhe ainda escrever muito. Não apenas mais esse 2º volume sobre o seu intenso e rico passado; os leitores seus fãs espe­ram também que possa por muitos anos continuar a  intervir na cena cultural e cívica lusitana, ajudando-nos a pensar e a ver claro, saboreando a sua bela e fresca prosa.” Onésimo Teotónio Almeida, artigo publicado em Portuguese Times - Crónicas

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Os 19 de Laja: um crime hediondo no Chile de Pinochet

A reportagem, que vamos publicar da autoria do jornalista brasileiro FREDERICO FÜLLGRAF, foi premiada,  em 2015, no  III Concurso de Corresponsales Leonardo Henrichsen do Chile  para trabalhos escritos da Imprensa  estrangeira com uma Menção honrosa.

Os 19 de Laja: financiada pelo BNDES, chilena CMPC-Celulose Riograndense é acusada de crime de lesa-humanidade
Reportagem de FREDERICO FÜLLGRAF
CGN, SEX, 10/04/2015 - 07:58
Publicado originalmente pela revista ADUSP, edição Nº. 57 (Março 2015), gentilmente cedido por Pedro Pomar, Editor, ao Jornal GGN ( O Jornal de Todos os Brasis)
Nestes primeiros meses de 2015, no Chile, aguarda-se com ansiedade o acto de coragem de um magistrado. Quarenta anos após o fuzilamento pelas costas e enterro  numa vala comum, clandestina, de 19 simpatizantes da Unidade Popular – operários, ferroviários e estudantes-, em decisão inédita desde o fim da ditadura Pinochet, o juiz Carlos Aldana - ministro especial para causas de Direitos Humanos, da Corte de Apelações de Concepción – deverá formalizar a acusação de importante grupo de civis envolvidos com a violação de Direitos Humanos no Chile. A acusação atingirá em cheio a CMPC, maior conglomerado de papel e celulose da América Latina, pertencente ao Grupo Matte que, em 18 de Setembro de 1973, entregou uma “lista negra” com os nomes dos fuzilados à polícia militar chilena. Terceiro maior património empresarial e familiar do Chile, estimado em 17,5 biliões de dólares, em 2013, o Grupo Matte teve aprovado pelo BNDES um crédito de 1,2 bilião de um total de 2,1 biliões de dólares para a quadruplicação, em Guaíba, da antiga fábrica Borregaard, hoje conhecida como CMPC - Celulose Riograndense. Com a pretensão de consolidar-se como um dos maiores fornecedores mundiais de celulose branqueada, o investimento foi celebrado pelo então governador Tarso Genro devido à geração de mais de 7.000 postos de trabalho durante as obras, e os 2.500 empregos directos prometidos pela unidade, que deverá iniciar suas operações no segundo semestre de 2015. É muito improvável que o governador petista e a directoria do BNDES tivessem conhecimento da participação activa da CMPC no golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende, e das graves acusações que a apontam como protagonista do “Massacre de Laja”, como o crime hediondo é conhecido no Chile, que agora transborda para o Brasil.
“Realmente não tinha essa informação e acho que pode ser verdadeira. As grandes empresas no Brasil, no Chile, na Argentina, tiveram envolvimentos, directos ou indirectos, nos golpes que ocorreram nas décadas de 1960 e 1970, na América Latina”, declarou Tarso Genro à Revista Adusp. “Dizem que até uma grande empresa jornalística, aqui no Brasil, emprestava veículos para a Operação Bandeirante. Não me surpreende, também, se isso for verdadeiro, já que foram golpes para proteger os interesses do capital.”
O terror no Biobio
Em minhas andanças pelas paisagens do Biobio, belamente imortalizadas nos idos de 1840 pelo pintor-viajante Maurício Rugendas, volta e meia esbarro com memoriais e epitáfios – como o da ponte Quilaco, sobre o Rio Biobio, ou o Memorial de Laja-San Rosendo – cujas narrativas congelam o tempo e por momentos encharcam de sangue o pitoresco.
Uma dessas narrativas é o “Massacre de Laja”, ou “Caso Laja-Yumbel”, como está protocolado na Corte de Apelações de Concepción. Eu prefiro chamá-lo de “Os 19 de Laja”, um título épico, pois é de 19 homens que se trata, arrancados de seus locais de trabalho e do seio de suas famílias, espancados e presos numa cela imunda de uma delegacia de polícia do Chile profundo, de onde desapareceram em 18 de Setembro de 1973.
Um deles foi o maquinista Luis Alberto Araneda Reyes, pai de Mauricio Araneda Medina.
Esta é a sua crónica
Advogado, 52 anos de idade, Mauricio Araneda divide seu calvário com seus irmãos, Luis Emilio e Jorge Eduardo, e dezenas de outras famílias das localidades de Laja e San Rosendo, na província de Biobío, que há mais de 40 anos cobram justiça pelo brutal assassinato de seus entes queridos.
Uma das mais sinistras histórias de terror da longa noite das ditaduras latino-americanas, “Os 19 de Laja” protagonizam o primeiro script das operações de extermínio da ditadura Pinochet – entre os quais figuram a famigerada “Caravana da Morte” no deserto de Atacama, os fornos de Leuquén e o lançamento de prisioneiros no mar e em crateras de vulcões - cujo modus operandi recorda os comandos de aniquilamento de Wehrmacht, Gestapo e do SD, durante a Segunda Guerra na União Soviética.
Berço do já então poderoso sector madeireiro e de produção de celulose, em 11 de Setembro de 1973, no Biobio era declarada aberta a temporada de caça aos simpatizantes da Unidade Popular, na qual bandos de civis armados - geralmente fazendeiros e conspiradores do movimento fascista “Patria y Libertad” - se juntaram à polícia militar e ao exército.
Método empregado no famigerado “Massacre de Ránquil”, de 1934 - no qual foram metralhados 300 garimperios, camponeses e índios Mapuche - entre Setembro e Outubro de 1973, nas comunidades rurais de Laja, Quilaco e Mulchén repetem-se fuzilamentos em massa, cujos mandantes e perpetradores desfrutaram a impunidade durante 40 anos, e só agora – senis ou doentes terminais, supostamente arrependidos - começam a ser condenados.
Os autos do ministro Aldana
De posse do número do celular de Mauricio Araneda, informado por um colega de Concepción, liguei-lhe e marcamos nosso primeiro encontro em Santa Bárbara, um arraial pré-cordilheirano erguido em 1756 como fortaleza contra os malones – arrastões para a captura de mulheres, dos índios montados, Pehuenche - que hoje não conta mais de 14 mil almas.
De Concepción por Los Ángeles até a pré-cordilheira, correm 160 quilómetros de estradas através de monoculturas de eucaliptos e pinus a perder de vista, salpicadas, aquí e acolá, por raríssimas manchas de floresta nativa remanescente. Estima-se que 45% do território do Biobio, com pouco mais de 30 mil km2, estão tomados pelo “deserto verde”, cuja simétrica monotonia machuca os olhos.
Vestindo impecáveis terno e gravata e irradiando a formalidade dos bacharéis, aprendida nos bancos da faculdade de Direito, ninguém suspeitaria da ascendência proletária de Araneda, cujo paí era maquinista e lider sindical
Confortavelmente abancados no escritório de seu pequeno tabelionato, instalado há apenas um ano, nossa primeira conversa é atabalhoada, com saltos temporais entre Setembro de 1973 e o final de 2014 - eu, curioso pelas circunstâncias da prisão de seu pai, ele, ansioso por saber dos negócios da empresa CMPC no Brasil.
Em 2011 e 2014, o advogado e seus irmãos foram testemunhas e depoentes em duas reconstituições do Massacre de Laja, ordenadas pelo juiz especial para causas de Direitos Humanos na Corte de Apelações de Concepción, Carlos Aldana. “Mas, há minudências”, ajunta Araneda, “filigranas que só um detective ou advogado, obsessivos, têm a pachorra de investigar”, apontando-me uma pilha de pastas na prateleira às suas costas.
A pilha mede meio metro. São fotocópias dos autos completos do processo, aberto em 1979, logo arquivado durante a ditadura Pinochet e reaberto em 2010, graças à obstinação da Associação de Familiares de Presos Políticos Executados de Laja e San Rosendo – autos copiosamente conferidos e repletos de destaques com marca-texto nos depoimentos de policiais, familiares e testemunhas, aos quais caberia fazer ainda algumas perguntas.
Por isso, depois de 30 anos de tramitação e revezes, após seu expediente, o advogado dublê de tabelião desembesta Biobio afora, com suas próprias investigações. Seu objectivo é subsidiar com novos testemunhos a acusação que o ministro Aldana prepara contra ex-directores de “La papelera”, como a CMPC dos Matte é conhecida na região.
Convidado por Araneda, entre o final de 2014 e o início de 2015, tive o privilégio de participar de algumas das expedições nocturnas, a primeira delas a Laja, diante de cujo Memorial aos fuzilados nos aguardavam seus irmãos Luis Emilio e Jorge Eduardo, vindos especialmente de Concepción para entrevistar Magallanes Acuña, um velho socialista e ex-operário aposentado da CMPC que, noite alta e 41 anos após o golpe militar, na sala de sua casa mobiliza sua lembrança e pelo túnel do tempo nos conduz de volta ao momento de sua prisão – assim, “contra a parede e mãos na cabeça!”, como lhe berrou o tenente dos carabineiros, Alberto Fernández Mitchell.
E eis que Magallanes Acuña confirma o que vários outros sobreviventes do terror reiteraram diante dos ouvidos moucos de policiais e juízes: que as prisões na CMPC foram realizadas dentro e não fora da fábrica; prova de flagrante cumplicidade da empresa com a repressão pinochetista.
Durante a segunda reconstituição do massacre, Eduardo Cuevas - antigo mecânico de manutenção da CMPC e activista do MIR (Movimento da Esquerda Revolucionária) – demonstrou ao juiz Aldana onde e como foi caçado dentro das instalações da fábrica,. debaixo de coronhadas de fuzil e conduzido ao Regimento de Infantaria de Los Ángeles. Preso político durante um ano, ali sofreu toda sorte de vexações e torturas sistemáticas, do pau-de-arara ao choque eléctrico, que marcaram com sequelas sua saúde. Libertado em 1974, foi ameaçado pela DINA com sequestro assassinato e desaparecimento. Salvo por um padre belga, com sua esposa foi colocado num avião, partindo para um exílio de 35 anos em Basileia, na Suíça.
Outro operário da CMPC que escapou do massacre, entrevistado por Araneda, conta uma aventura com lances cinematográficos, mas de filme de terror: acoitado dentro da fábrica, aguardou a noite cair, esgueirou-se até a margem do Rio Biobio, agarrou-se a uma tora de madeira, nadou até a margem oposta, viajou 100 quilómetros, apresentou-se à polícia do porto de Talcahuano, mas que, liberado, temeu por sua vida, em seguida marchando vários dias pelas matas, até a Cordilheira ainda nevada, que cruzou para a Argentina, onde se manteve exilado até o fim da ditadura.
No deserto verde
De volta da viagem no tempo, folheio a edição nº 84 (2011) da Revista Chilena de Historia
Natural, e um ensaio me explica que “a região do Chile central (entre os 29° e os 40° S) tem sido catalogada como um dos hotspots de biodiversidade em nível mundial, com 3.429 espécies vegetais e 335 espécies de vertebrados Contudo (…) os bosques (…) nas regiões VI, VII y VIII (Biobio) se encontram praticamente extintos e seus solos cobertos por monocultivos de Pinus radiata, Eucalyptus globulus e E. nitens”.
Entre 1870 e 1900, imperou a lei do machado, com a derrubada em grande escala da floresta nativa, em cujo solo expandiram o breve cultivo de trigo e, depois dele, os campos de pastagens. Em 1964, Francesco di Castri, naturalista italiano radicado no Chile, advertia que a erosão ameaçava a maior parte do território nacional, passível de se tornar enorme deserto.
Cinquenta anos depois do desastre anunciado, eis o cenário catastrófico: em sentido norte-sul, as areias do Atacama avançam 0,5 km ao ano, devendo alcançar Santiago por volta de 2040. Do Valle Central ao Biobio, a desertificação antrópica atinge 2/3 dos 184 de um total de 290 municípios afectados por erosão, de moderada a grave.
O sector florestal de berço pinochetista
No centro desse cataclismo, visceja a indústria de papel e celulose, cujas plantações com extensões obscenas são apontadas por agrónomos e geólogos como principais causas do ressecamento dos solos e da erosão.
Em 1970, o recém-eleito presidente Salvador Allende, em “visita de cortesia” a seu adversário conservador, Jorge Alessandri - candidato à reeleição derrotado por Allende com apenas 1,7% dos votos, e director-executivo da CMPC – advertiu que expropiaria “La Papelera”, cujo peso estratégico considerava de interesse do Estado.
A CMPC monopolizava o então mercado de papel e era fornecedora exclusiva de papel-jornal, fabricado por sua filial Inforsa, em Nacimiento, vantagem que beneficiava principalmente “El Mercurio” em sua feroz campanha mediática contra o governo Allende, financiada pela CIA (leia também: Especial: El Mercurio no banco dos réus).
A estatização não se concretizou, mas seu enquadramento ferira de morte a CMPC que, durante um ano inteiro, teve seus escritórios devassados por auditores do SEII-Servicio de Impuestos Internos, vistoriando suas contas e aplicando pesadas multas. Em 11 de Setembro de 1973, a CMPC foi salva pelo gongo.
Um ano mais tarde, a ditadura Pinochet baixou o decreto-lei 701, de fomento à actividade de “reflorestamento”, que subsidia de 75% a 100% dos custos das plantações (espalhadas em 2,1 milhões de hectares cultivados no Chile), com mão-de-obra sazonal e barata, manejo e administração, além de eliminar a tributação.
Duas empresas, a CMPC-Mininco, do Grupo Matte (dono de 1.136.574 há), e a Arauco do Grupo Angelini, controlam o mercado. Em 2013, o sector vendeu 5,7 biliões de dólares (7,5% das exportações chilenas) ao mercado mundial de madeira, papel e celulose. Seu principal problema é a falta de solos para manter o ritmo da expansão, motivo pelo qual deseja prorrogar por mais 20 anos o Decreto Ley 701, simultaneamente avançando sobre terras alheias, como ilustram os 100 mil ha da CMPC comprados no Río Grande do Sul.
O maquinista Araneda Reyes e a lista negra da CMPC
Um ano antes de conhecer Araneda, Juan Macaya, funcionário da secretaria de Agricultura, convidara-me a um passeio aos morros de Yumbel, onde cria abelhas  numa das poucas chácaras que sobreviveram ao cerco das “forestales”.
A meio caminho, enveredamos pelas localidades de Laja e San Rosendo, separadas por uma belíssima ponte ferroviária.
Como os Araneda, Macaya fora criado em San Rosendo, vilarejo ao qual aderem a ferrugem e o pó, mas também o glamour, pois foi popularizado na década de 1960 pelo musical "La Pérgola de las Flores", de Isadora Aguirre e Francisco Flores del Campo, cuja personagem-título, Carmela, abandona San Rosendo para ganhar sua vida como florista na distante Santiago. O que fez a bordo de um dos 15 trens que partiam diariamente de San Rosendo, grande entroncamento dos outrora gloriosos Ferrocarriles del Estado, privatizados por Pinochet e depois esquartejada pelos concessionários particulares.
Amante de ferrovias, desde a tenra infância, contemplei as ruínas da velha estação, já bosquejando um roteiro sobre a morte dos trens, mas incapaz de imaginar que meu storyline nostálgico logo seria ensombrecido por um enredo de terror.
Ao retornar do passeio, estranhamente, o nome Yumbel insistia em martelar minha lembrança. Então caiu a ficha: claro, a revista “Nos”, na qual tinha topado a primeira vez com a estória de Araneda! E refolheando-a, gelei!
Na manhã de 15 de Setembro de 1973, quatro dias após o golpe militar, o maquinista Luis Araneda Reyes, de 43 años de idade, saiu de casa, caminhando até a estação de San Rosendo. Lá chegando, examinou a planilha das escalas de serviço, mas seu nome não constava na lista. Coçou a cabeça e voltou para casa, o jeito era esperar um novo turno.
Dirigente sindical da Federação Santiago Watt de Ferrovias do Estado, Araneda Reyes era filiado ao Partido Socialista do presidente Allende. No dia do golpe, obedecera à ordem de apresentar-se na delegacia de carabineros de San Rosendo, depois do que foi liberado. Apesar de tantas vezes prenunciado, o golpe o surpreendera e não havia plano de resistência e o desespero recomendava prudência.
Contudo, no dia 15 de Setembro, por volta das 16h, um pelotão de 13 carabineiros cercou sua casa, na Quinta Ferroviária. Com armas apontadas à porta, o tenente Alberto Fernández Mitchel ordenou que Araneda Reyes saísse com as mãos em cima da cabeça. O maquinista obedeceu piamente e recebeu ordem de prisão. As mãos já atadas às costa, pediu à esposa e aos filhos, em prantos, que retirassem e guardassem o pouco dinheiro e o relógio que guardava no bolso da calça.
Mauricio Araneda Medina tinha 10 anos quando, garoto indignado, saiu caminhando atrás da patrulha que conduzia seu pai à subdelegacia de Laja. Diz que em sua mente infantil alimentou o plano de resgatar o pai e voltar abraçado com ele para casa, em San Rosendo.
O maquinista foi o último dos 19 simpatizantes da Unidade Popular presos naquele sábado e enjaulados em uma cela imunda da delegacia de Laja.
Mas se em San Rosendo havia uma subdelegacia, por que Araneda Reyes fora preso pelos carabineiros de Laja, do outro lado do rio?
“Seu nome estava na lista da CMPC!”, responde, seco, Mauricio Araneda.
Informação que circulou durante 35 anos na região, insistentemente reverberada pelos familiares dos presos, com sua primeira reconstituição da cena do crime e o retratamento dos policiais sobreviventes, em Agosto de 2011, o ministro Aldana obteve a confirmação: os nomes dos “19 de Laja” compunham uma “lista negra de activistas”, preparada e entregue à polícia por Carlos Ferrer e Humberto Garrido, respectivamente superintendente e chefe da sessão de pessoal da fábrica de papel e celulose CMPC, em Laja. Mais: apenas metade dos nomes da lista era de operários da empresa: a ordem era perseguir a liderança allendista nos dois municípios.
O massacre
Naquela reconstituição com traços macabros, 10 carabineiros envolvidos confessaram que na madrugada do dia 18 de Setembro, Dia da Pátria, os presos foram colocados  num micro-ónibus que deveria levá-los ao quartel do Regimento de Infantaria de Los Ángeles, seguido por jipes lotados de policiais. Porém, logo à saída de Laja, a caravana deteve-se na fazenda San Juan, onde foi recebida pelo agricultor Peter Wilkens – de descendência alemã e anti-comunista feroz – que serviu de batedor até uma clareira de um bosque de pinus. Ali, os presos foram baixados do ónibus e colocados de joelhos às bordas de uma cova com metro e meio de profundidade.
Entre os carabineiros, que haviam bebido Pisco, desata-se uma violenta discussão, que o tenente Fernández Mitchell interrompe aos berros e a ordem de “fuego!”.
Todos os 10 carabineiros atiraram.
Acto contínuo, cobriram com terra os corpos ensanguentados e empilhados, disfarçaram a cova com galhos e ramagens, retornaram a Laja e atravessaram o resto da noite bebendo.
Os carabineiros de Laja não possuíam viatura própria, nem dinheiro para comprar cachaça. A aguardente, o micro-ónibus, seu chofer e os jipes - tudo fora gentilmente oferecido por “La Papelera”, a CMPC de Laja.
Quarenta anos depois, na reconstituição do crime nas instalações da CMPC, o ministro Aldana se convence de que os executivos de “La Papelera” alentaram e proporcionaram meios para a consumação do desígnio criminoso dos carabineiros.
“Foi mais!”, adverte Mauricio Araneda: “Aqueles directores da fábrica sabiam do desenlace das detenções, entre outros, porque a chacina e o enterro das vítimas foram realizados  numa fazenda com plantações exploradas pela empresa”.
Em Outubro de 1973, os cães de um peão de fazenda vizinha, que passava inadvertido pela clareira, fizeram um surpreendente achado. Afugentando-os do que mordiscavam, constatou, horrorizado, tratar-se de um braço que pendia para fora de uma cova improvisada. Não pensou duas vezes e alarmou a polícia de Yumbel. Na madrugada daquele dia, os carabineiros assassinos transladaram os cadáveres em decomposição dos 19 de Laja para uma cova clandestina do cemitério de Yumbel, onde só foram descobertos em 1979 – estava elucidado o desaparecimento dos 19 de Laja, que jamais tinham alcançado o Regimento de Infantaria de Los Ángeles, que foram identificados e sepultados por seus familiares.
Então caiu minha ficha, por que, depois daquele passeio às colmeias de Juan Macaya, o nome Yumbel insistia em martelar minha cabeça.
Janeiro de 2015.
Mauricio Araneda retorna abatido de uma inesperada entrevista com um antigo peão da fazenda San Juan, que resolvera falar pela primeira vez depois de 41 anos de silêncio e medo: “Me disse que, dias após o massacre, encontrou paus e varas ensaguentadas, espalhados pelas capoeiras...”.
Isso queria dizer que, apesar de metralhados pelas costas, nem todos os 19 de Laja estavam mortos, Feridos de bala , foi necessário espancá-los até a morte.
Nos olhamos nos olhos. Araneda desvia o olhar. Pela primeira vez, em meses, percebo um esgar em suas pálpebras, com o prenúncio de lágrimas, rapidamente represadas."  FREDERICO FÜLLGRAF
Frederico Füllgraf
Sobre o Prémio atribuido a esta reportagem
El jurado del III Concurso de Corresponsales Leonardo Henrichsen, compuesto por los/las periodistas Juan Pablo Cárdenas, Premio Nacional de Periodismo; Juanita Rojas, decana de la Facultad de Comunicaciones de la Universidad Central de Chile; Pía Moya, coordinadora de Prensa Internacional de la Fundación Imagen de Chile, y los representantes honorarios de la Asociación de Corresponsales de la Prensa Internacional en Chile, Gustavo González y Eduardo Gallardo, ha determinado premiar a los siguientes trabajos:
Categoría Trabajos Escritos:
(...)
MENCIÓN HONROSA: "Os 19 de Laja: fábrica de celulose financiada pelo BNDES acusada de crime hediondo durante a ditadura Pinochet", escrito por el corresponsal Frederico Füllgraf para la revista brasilera ADUSP.
(...)
Frederico Füllgraf é jornalista, escritor, roteirista , tradutor. Vive no Chile.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Gente nova, música nova

Aos  jovens aniversariantes deste dia , 25 de Fevereiro, lança-se, em eufónica tentativa de celebração ,   novos sons  e diferentes louvores por gente jovem que canta bem. A música pode ser festejada em muitos acordes que se  constroem  em múltiplos estilos para nosso constante   gáudio.
Eis uma panóplia de canções  para se  ir descobrindo à la carte.
Parabéns








quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Se no céu há estrelas...

Experiência

Nas noites negras para roubos, chuvas, ventos,
E nas noites quentes em que o luar abafava estrelas,
À hora de os sonhos baixarem vagarosos do céu,
Alguém dobrava com uma ordem doce os meus joelhos,
Juntava as minhas mãos inocentes e fracas,
E eu rezava como se repetisse uma canção.
E o meu sono era sempre sob a guarda de estrelas...


É a vida, agora, quem dobra os meus joelhos cansados
Que guardam a marca das pedras mais rugosas.
É a angústia da vida quem junta as minhas mãos,
As minhas mãos mais fracas e incertas.
Soltam-se da minha alma orações desesperadas,
Orações que as tristezas e os dias compõem.
Se no céu há estrelas, estão lá em cima e só brilham....

Alberto de Serpa (1906 - 1992), in Presença, II s., n.º 2, 1940

Do Amor de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz

Carta de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz ( 1.03.1920)
Ofelinha
"Para me mostrar o seu desprezo, ou, pelo menos, a sua indiferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da série de "razões"  tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-mo. Assim, entendo da mesma maneira, mas dói-me mais.
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal?  A Ofelinha pode preferir quem quiser: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente, necessidade ( a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as coisas, nem trata os outros como réus que é preciso " entalar".
Por que não é franca para comigo? Que empenho tem em fazer sofrer quem não lhe fez mal - nem a si , nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a própria vida isolada e triste, e não precisa de que lha venham acrescentar criando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe afeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.
Reconheço que tudo isto é cómico, e que a parte  mais cómica disto tudo sou eu. Eu próprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra coisa que não fosse no sofrimento que tem prazer em causar-me sem que eu , a não ser por amá-la,  o tenha merecido , e creio bem que amá-la não é razão bastante para o merecer. Enfim...
Aí fica o " documento escrito" que me pede. Reconhece a minha assinatura o tabelião Eugénio Silva.
Fernando Pessoa
No dia de S. Valentim, dia dos namorados , os restos mortais  de Ofélia Queiroz, a namorada de Fernando Pessoa ,  foram trasladados para junto da família do poeta, no âmbito de uma homenagem promovida pela Câmara Municipal de Lisboa.
Eis a reportagem publicada no Diário de Notícias, no dia 15.02.2016 assinada por  Mariana Pereira.
"Sabia de cor todas as cartas que o poeta lhe escreveu. Os restos mortais de Ofélia Queiroz foram trasladados para junto da família dele.
Ainda que Ofélia Queiroz não tivesse feito mais nada com a sua vida, seria, ainda assim, aquela que fez um dos maiores poetas da língua portuguesa referir-se a si mesmo como "Nininho" - que "é pequinininho!" - ou a ela como "Bébézinho". Foi aquela que arrancou ao autor da Mensagem ou do Livro do Desassossego "Jinhos, jinhos e mais jinhos". E por isso - e porque era Dia de São Valentim -, os restos mortais dessa eterna namorada de Fernando Pessoa foram trasladados nesta semana para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde ontem( 14 de Fevereiro de 2016) foram celebrados. É ali também que jazem os familiares do poeta e onde o seu corpo esteve, antes de ser transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, em 1985.
Na intenção de a pôr a ela, que morreu em 1991 aos 91 anos, próxima de Pessoa - e perante a impossibilidade de a fazer entrar nos Jerónimos -, aquele era o sítio. Os seus restos mortais foram trasladados nesta semana - exumados no cemitério do Alto de São João em 2014 - para os Prazeres. Às 14.00 de 14 de Fevereiro de 2016, quando o sacerdote José Tolentino Mendonça celebrava a missa evocando "uma das mais belas histórias de namorados", Ofélia e Fernando, "duas pessoas que parecem não ser deste mundo", começava a homenagem, promovida pela Câmara Municipal de Lisboa, à rapariga que, aos 19 anos respondeu a um anúncio de emprego no jornal. Aquele que a levaria ao escritório onde conheceu Fernando Pessoa, de quem se sonhou noiva e com quem trocou uma das correspondências mais lembradas quando de cartas de amor se trata.
"Falava de Fernando como se ele tivesse ido ali ao lado comprar um maço de tabaco"
Namoraram, acabaram, tornaram a namorar e a acabar. Três anos depois da morte do poeta, Ofélia casou com Augusto Eduardo Soares. "Penso que a Ofélia amava mesmo Fernando Pessoa. Ele queria amar. Tentou duas vezes. Mas não conseguia entregar-se", diz Richard Zenith, editor e tradutor do poeta português, debaixo de um guarda-chuva. Visitávamos a sepultura do avô paterno de Pessoa e o jazigo dos seus avós maternos. Já a actriz e deputada Inês de Medeiros lera um texto de Eduardo Lourenço; já Manuela Parreira, autora de Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz lembrava as memórias de quem dizia que Ofélia falava "de Fernando como se ele tivesse ido ali ao lado comprar um maço de tabaco".
31 de Maio de 1920. De Fernando. "Venho só quevê pâ dizê ó Bébézinho que gostei muito da catinha d"ella. Oh! E tambem tive munta pena de não tá ó pé do Bébé pâ le dá jinhos." Foram cartas como estas que os actores Inês de Medeiros e Pedro Górgia leram, ainda na Capela dos Prazeres. Uma amostra de uma correspondência que conta, entre cartas, postais e bilhetes, 348 documentos.
A sobrinha de Ofélia e o sobrinho de Fernando estavam sentados lado a lado. Graça Queiroz e Luís Miguel Rosa Dias. A sobrinha-neta da eterna namorada de Pessoa, e filha de Carlos Queiroz, de quem o poeta foi muito amigo, conta que a "tia Ofélia", "quando já tinha 90 anos, dizia de cor as cartas todas que recebeu dele, [que eram] 50 e tal. Sabia de cor todos os poemas que ele lhe dedicou. Tinha uma cabeça extraordinária..."
Quando lhe perguntamos pela possível estranheza de, tendo sido casada, ser agora transladada para o sítio associado à família de Pessoa, Graça Queiroz responde: "Faz imenso sentido que fique aqui, acho que ela ia adorar. Viveu até morrer como se ainda houvesse uma possibilidade de casarem". Ainda que, no fundo, "ela soube sempre, mesmo muito cedo, que ele era feito para outras coisas. Conta que "ela estava sempre a falar nele, estava sempre a contar a história. Sei-a de cor e salteado." E até Soares, com quem casou, "um homem fantástico que a adorava", "encarregava-se de a informar de tudo o que saia no jornal do Fernando Pessoa".Mariana Pereira, DN