segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A propósito do novo livro de Eugénio Lisboa

                            Um bom livro é a mais pura essência da alma humana.
                                                                                   Thomas  Carlyle

Eugénio Lisboa acaba de publicar o V volume das suas Memórias, Acta Est Fabula - Memórias V - Regresso a Portugal: (1995-2015),   com  a chancela da Editora  Opera Omnia. 
Um livro que pretende encerrar a narração do percurso vivencial do autor, desde o dia em que nasceu, 25 de Maio de 1930, até 20 de Abril de 2015, data da última entrada do seu Diário que, juntamente com um belo poema, fecha este V volume. E ao fechá-lo, dá fim ao relato de  uma longa e extraordinária história verídica . Aconteceu . O narrador viveu-a intensamente: Acta est Fabula!
O volume V das minhas memórias aproxima-se do fim. E ocorre-me tudo quanto lá deveria ter posto e não pus. O que mostra como a nossa vida, na sua riqueza, não cabe nunca, no papel de um livro, mesmo avantajado, mas podemos pouco.(p.343)
Suspeitamos que muito ficou por contar, embora o autor se tenha socorrido frequentemente do seu precioso Diário (inédito) para completar e alternar com a narração e que, pela sua forma diarística, reproduz, com autenticidade colorida e  despretensiosa, os dias de uma intensa vida. Vida que nos surge como um romance. “Autobiography is the purest romance. Fiction is always close to reality than fact.” - assinala o autor de " The books in my life”,  Henry James.  
Eugénio Lisboa na casa de S. Pedro do Estoril
O grande Prémio da Literatura Biográfica APE foi atribuído ao primeiro volume de  "Acta est fabula". No Discurso da entrega do  Prémio,  (Castelo-Branco, 4 de Março de 2014), Eugénio Lisboa afirmou: “(…) o carinho e o investimento emocional que pus neste, em particular, quero dizer, neste primeiro volume das minhas sonhadas e arquitectadas memórias em cinco volumes, foi tão grande, que o reconhecimento a ele dado pelo júri me caiu fundo, no coração. É, para mim, um livro especial, como são e serão os restantes volumes da saga. Andei anos a magicá-lo, a sonhá-lo, a fruí-lo, antes de me meter a escrevê-lo. É que iria falar, nele – falar-vos, nele – de algo muito importante que me aconteceu, há muitos anos, em África: ter ali nascido e ter, para sempre, ficado espantado por isso me ter acontecido, a mim: ter nascido e ter nascido, ali. O meu livro – e os dois volumes que se lhe seguiram e os dois que se lhe hão-de seguir – falam o tempo todo – mesmo quando o não dizem claramente – desse espanto inaugural, que nunca mais me abandonou, ao longo do caminho da vida. O Alto Mahé, a Rua Norte, o Largo João Albasini, a Estrada do Zixaxa, o Cine-Variedades, onde se inventou o cinema, mesmo em frente à imponente Casa das Tias, a Rua Mendonça Barreto, no Alto Mahé, de onde eu via o mundo todo, nas páginas dos livros que devorava, o liceu, no outro extremo da 24 de Julho, o Cabo Submarino, as matinées do Scala – tudo marcas profundas que o espanto de as ter recebido, como dom dos deuses, sem bem saber porquê, gravou a fogo na minha memória. Ficaram cá, dentro de mim, e eu não gostaria de ficar egoistamente com elas, de as não partilhar convosco, antes de me ir embora para paragens de que não há nunca notícia.”

E recebemo-las com  o mesmo  espanto.  Um espanto que cresce a cada página deste novo volume, onde  Eugénio Lisboa rememora vinte anos da sua vida.  Mas vinte anos repletos de actividade, de acontecimentos, de testemunhos  e de pungentes situações que, por vezes,  o marcaram dolorosamente. Páginas construídas numa linguagem clara , transparente e melodiosa.   Páginas  que  se iniciam com a viagem de regresso a Portugal ( Maio de 1995) , após dezassete anos de diplomacia cultural, como Conselheiro Cultural da Embaixada Portuguesa, em Londres.
Praia de S. Pedro do Estoril
Saímos do ferry, em Santander, com o carro pejado de livros e objectos. (…)Íamos regressar a casa. Mas, em boa verdade, o que significava, para nós, regressar, e o que significava, por outro lado, casa? O meu Portugal, de origem, fora Moçambique, onde nascera e vivera a maior parte da minha vida, e o da Antonieta fora também Moçambique, apesar de nascida em Lamego: em Lourenço Marques, assentara, muito nova, raízes, pelo menos tão fundas como as minhas. E, então, os dezassete anos passados, vividos e fruídos em Londres? Não tínhamos, ali, também deixado crescer fortes raízes? Este nosso retorno, o que estávamos agora a fazer, não seria, nesse caso, mais um novo exílio, antes de acharmos , eventualmente, uma “casa” (uma “pátria”)? Ulisses fora mesmo para sua casa, onde o aguardava Penélope. Tróia não lhe fora “casa”, fora só lugar de luta e astúcia. Nós íamos, igualmente, é certo, para uma casa que tínhamos, em S. Pedro do Estoril, com o mar em frente, o que não era pouco.
(…)Mas deixáramos para trás a “capital da memória” (Lourenço Marques) e também a outra capital de outra memória (Londres). Que “retorno” era então este, visto isso? Vínhamos, desta vez, para ficar: talvez isto desse alguma força e legitimidade ao conceito de “retorno”. Porém, nunca, antes, tinha firmado aqui raízes com intenções de para sempre. De 1947 a 1955, vivera aqui 8 anos, frequentando o curso de engenharia (com um ano de interrupção) e fazendo o serviço militar. Mas esses oito anos nunca tinham sido vistos, por mim, como uma implantação definitiva neste solo metropolitano: estava de passagem – uma passagem prolongada, mas passagem – sempre com o regresso às origens, na mira. Depois, em fins de 1976, passara por Lisboa, a caminho de Estocolmo. E, em fim de 1977, viera, de Estocolmo para Lisboa, a caminho de Londres. Portugal, resumindo, nunca fora poiso definitivo, embora com algumas raízes culturais e não só. Fora, sobretudo, lugar de trânsito, por vezes de duração prolongada. Só agora ia ser sítio de ficar. Mas, arrancados a uma Londres que nos fixara, nos ofuscara e nos seduzira, as feridas iam levar algum tempo a sarar. Voávamos, por assim dizer, com asas amarradas. Íamos para uma casa que teríamos que transformar em casa.
(Há, no entanto, uma correcção a fazer, ou antes, uma ênfase importante a indicar: se, materialmente, Portugal nunca fora, para mim, uma casa de se ficar nela, espiritual e culturalmente, não há dúvida de que nele profundamente me instalara: a língua portuguesa, a literatura portuguesa [Camões, Fernão Lopes, Fernão Mendes Pinto, António Vieira, Garrett, Camilo, Herculano, Eça de Queirós, Antero, António Nobre, Cesário, Pessoa, Sá-Carneiro, Pascoaes, Raul Brandão, Régio, Sérgio, Sena, Sophia, muitos outros] foram-me, desde muito cedo, casa de bom acolhimento e, mesmo, uma das minhas casas mais próximas e mais necessárias. Destes autores – e de outros, repito – me alimentei, com uma força de adesão, que mos tornou, para sempre, uma parte inalienável de mim próprio).(pp.15,16)

A erudição de Eugénio Lisboa ressalta em toda esta obra memorialística. Transpira, com assertivo recato, nas reflexões que levanta sobre o panorama literário e cultural de Portugal e do mundo. É um erudito que, com alguma  displicência  mas em  náusea iminente , se insurge contra  a ascensão e a apologia da mediocridade. A obra literária é secundarizada para dar lugar aos ganhadores de vendas. Não importa o valor intrínseco da obra ,  a expressão de Arte que representa, mas sim os cifrões que a mediatização da obra fazem crescer. Embrutecem-se mentes pela manipulação de uma falsa e pífia literatura .
"O êxito passou a ser a Estrela Polar desta sociedade. Tudo se mede pelo “êxito”. O êxito de vendas (de livros, por exemplo) faz passes magnéticos até aos novos-ricos boçais que enchem as universidades. José Rodrigues dos Santos, o Dan Brown do Tejo, vai, por convite, a universidades respeitáveis, onde debita banalidades redondas e troça de autores que vendem menos do que ele. E é recebido como se o seu “produto” fosse coisa de levar a sério: não tarda muito, será alvo de uma dissertação de mestrado ou, mesmo, upa-upa!
Os clássicos vão sendo arredados das escolas e substituídos pela algaraviada chula dos jornais: sempre está mais à la page. É mais moderno, é “do nosso tempo”, meu! Mesmo homens inteligentes e de alguma qualidade, mesmo filósofos, mesmo gente que se supunha de algum “panache” não resistem ao canto da sereia das “Olás!” e das “Gentes”. Paga-se reverencioso tributo a quem é muito conhecido apenas por ser muito conhecido. Os bárbaros, afinal, não estão à porta para o saque previsto, porque foram apanhados pela globalização e fazem como toda a gente: abandalham-se e drenam a sua energia numa bacanal sem estilo nem propósito. Cercadores e cercados fazem parte do mesmo apocalipse. Os “chineses” invadem mas dissolvem-se no meio da chicana dos invadidos. As civilizações caem sem luta. E não há; à vista, civilização que substitua outra civilização.
Roger Martin du Gard – que Régio, muito injustamente “pretendia” não admirar – e André Gide, seu grande amigo, experimentaram -  e sobre isso escreveram -  isto mesmo, este sentir que o mundo em que, no final da vida, se encontravam a viver , já não era o deles. (Passo a traduzir:) “O meu tempo passou, estou a sobreviver-lhe. Assisto de longe à renovação, como espectador afastado e atento”, escrevia o autor de Les Thibault, no seu Journal, em 1944. Para eles (Martin du Gard e Gide) parte importante dos seus últimos anos passaram-nos no meio do grande e devastador conflito que foi a 2ª guerra mundial, com a França ocupada pelo inimigo. Depois deste sismo, nada ficaria na mesma. Num admirável artigo dedicado às duas obras-testamento de Gide e de Martin du Gard, respectivamente, Thésée e Maumort, André Alessandri escreve (eu traduzo): “Desmorona-se todo o mundo no qual eles acreditavam, no qual o seu gosto da independência e a sua paixão pelo individualismo se movimentavam à vontade.  A Segunda Guerra Mundial marca, para eles, o fim de todo um estado de coisas, de toda uma cultura, de que eles terão sido, de alguma maneira, os últimos representantes e que poderemos chamar humanista, no duplo sentido das humanidades da Renascença e do humanismo do século XIX. (…)  Ao ler Jean-Paul Sartre e os autores da nova geração, [Martin du Gard] experimenta, cada vez mais, a impressão de ser um anacronismo.”
De há um tempo a esta parte, tenho vindo a sentir o mesmo. E não foi preciso passar por uma guerra mundial. O que se passa por esse mundo fora, com a destruição de todo um tesouro arqueológico, por fanáticos religiosos de um certo “Islão”, sob a patética impotência de uma ONU-para-inglês-ver e de um mundo ocidental mais atento aos “mercados” do que aos verdadeiros valores – provoca, em mim, cada vez mais uma grande náusea de viver num mundo como este. A razão ou, antes, o uso dela é cada vez mais o apanágio de cada vez menos gente. Mesmo aqui, em Portugal, alguns “campeões” da desvalorização da razão – que qualificam estupidamente de “mito” – vão fazendo escola e afortunada clientela. No século XXI – no século XXI! – o fanático aderir a balelas coloridas e obviamente inverificáveis demonstra , de forma cristalina, que a humanidade, em média, progrediu, intelectualmente, muito pouco, da Idade Média para cá. (...)
Para que serviram, afinal, Sócrates, Descartes, Galileu, Newton, Voltaire, Goethe, Bertrand Russell e outros semelhantes? Para que serviu, ao longo dos séculos, o exercício esforçado da razão, que conseguiu, por um lado, colocar homens na Lua e sondar, de perto, outros planetas, mas não consegue, por outro, evitar o fanatismo, aquecido ao rubro, de religiões assassinas?
Com o aproximar da velhice, estas questões deixam de ser pura especulação sem dor e tornam-se carne dilacerada e espírito em agonia. A náusea, de que falava Sartre, instala-se, para ficar. O desconforto é enorme: o mundo à nossa volta torna-se intoleravelmente estranho, verdadeiramente, um reino estrangeiro. Sentimo-nos de saída."(pp190-192)
 
Momentos de intensa afectividade recheiam algumas das páginas deste V volume. Eugénio Lisboa fala da amizade. Evoca, com dor e carinho , os familiares e os amigos que foram desaparecendo:

Nalguns dos anos, sobre que passo sem aqui os registar, fui tendo mais perdas de amigos e familiares (…)“Da minha casa paterna e materna, já não resta ninguém: a tia Maria faleceu em Setembro de 1977.O meu pai faleceu em Joanesburgo, em 1976. A minha mãe foi-se, há seis anos. O meu irmão foi hoje. Estou eu agora, na primeira linha, sem ninguém a servir de escudo. Ça arrivera quand ça arrivera.(p.333)

E continua. Num discurso despido, límpido, mas fortemente emotivo e comovido, enumera, um a um , os amigos  que deram sabor aos dias.
Mas o melhor de tudo foi o convívio reatado com amigos de longa data. (p.333)
A todos convoca e requisita  para os expor  numa imensa galeria, organizada em torno da data do encontro, da data do conhecimento quando a soberana e gostosa  amizade se foi compondo. São os amigos dos tempos de Lourenço Marques e os novos amigos do regresso a Portugal, sem esquecer os que ficaram em Inglaterra e espalhados pelo mundo.

A amizade afaga-nos vários territórios: o sentido de segurança e de pertença, o grão e o gosto da conversa, o dar e receber, sei lá! De tudo isto até talvez não fosse o menos importante o prazer que nos traz a conversa que recheia o convívio. Dizia Somerset Maugham, esse encantador de serpentes, por via das suas inesquecíveis “short stories”, tão bem observadas, arquitectadas e contadas: “A conversa é um dos maiores prazeres da vida. Mas precisa de lazer.” (p.335)

Num balanço modesto, Eugénio Lisboa recorda a sua produção literária durante a época abarcada por este tomo das suas memórias. Um balanço impreciso porque não inclui as diferentes e ricas intervenções em eventos literários ou culturais; as  clarividentes recensões críticas; os preciosos prefácios a obras literárias; o raciocínio claro , a informação ímpar e esclarecedora, o carinho e o investimento emocional  em muita produção escrita de cariz diverso, nomeadamente epistolar; e também  o pensamento,  as ideias, vertidas em entrevistas que compõem documentos valiosos para compreensão futura do sec. XX e XXI.
Durante estes 20 anos, desde a minha saída de Londres, publiquei onze livros de que me não envergonho e centenas de artigos, dos quais, bem mais de uma centena e meia ainda não foi recolhida em livro. Dos onze livros, um foi de poesia científico-filosófica, outros foram de ensaios e três, de memórias. As memórias, como se pode ver pelas páginas do meu diário, que nelas transcrevo, foram longamente sonhadas, meditadas e estão a ser, finalmente, consumadas.
Assim se foram escoando os anos, cujos sobressaltos fui registando, com alguma irregularidade e não poucas lacunas, no meu diário, que um dia será publicado na íntegra. Vou agora fechar este quinto volume com mais algumas transcrições, colhidas um pouco ao acaso do meu apetite, no meu errático mas encorpado “jornal”.
Penso publicar, no próximo ano, se ainda por cá andar, o registo das minhas muitas e variadas viagens feitas durante este período ente 1995 e 2015, as quais não encontraram aqui espaço onde se encaixassem. (p.343)

Eugénio Lisboa é a referência do saber , do engenho , do labor. A sua obra  tem a incondicional e ilimitada  dimensão de uma genialidade que se mantém criativa, operante  apesar do fluir  imparável do tempo.
Em 25.5.2011 , dia do seu aniversário , registava no Diário: Oitenta e um anos. Nunca, mas nunca, imaginei viver tanto tempo. Mas, por outro lado, nunca, em época alguma, pensei – acreditei – estar a aproximar-me do fim. Mesmo agora, a cabeça diz-me que não posso ter, à minha frente, muitos anos de vida. O resto de mim não sente o mesmo. On va voir ce qu’on va voir. (p.328)
Eugénio Lisboa
Em 2015, aos 85 anos,  mantém a disciplina de um sábio que não espera os aplausos para continuar a erigir um assombroso  legado , feito de espanto em espanto, para  nosso desassombro e fascínio. Um legado que desafia quem tenta resistir às teias  asfixiantes  e castradoras   lançadas pelos grandes porteiros  da futilidade, da mediocridade.
Eugénio Lisboa escreve as páginas mais belas   de uma  vida que qualquer cidadão do mundo poderia ter vivido. Mas ninguém a viveu como ele. Apenas ele, Eugénio Lisboa, a viveu de um modo singular. Todavia, permite a qualquer um experimentar um dos maiores prazeres literários  na leitura dessas páginas escrevividas.
Desvendá- las. Lê-las é o desafio que se propõe a cada um.  Aceitá-lo é ter a certeza de se ficar mais rico.
“Usamos os livros  como espelhos , olhando para dentro deles,  apenas para nos  descobrirmo-nos  a nós mesmos “- afirmou o perspicaz  ensaísta norte-americano, Joseph Epstein.
Com a leitura destas Memórias , descobre-se  quão importante é dar sentido a uma vida para que ela tenha um  significado perene  e aferível por qualquer geração. É a melhor lição de vida que se pode oferecer. Assim o  fez Eugénio Lisboa.
Acta est Fabula!

domingo, 29 de novembro de 2015

Ao Domingo Há Música

Insensatez
Ah, insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado

Ah, por que você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração, quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade

Vai, meu coração, pede perdão
Perdão apaixonado
Vai, porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado
Composição: Vinicius de Moraes / António Carlos Jobim

O nome de Rosa Passos tem lugar cativo no grupo daqueles que  por talento e por obra se distinguem.  Rosa Passos é uma cantora, violonista e compositora brasileira.
Quem a conhece e escuta  é capaz de reconhecer o que sobre ela escreveu a Gazeta de Alagoas, Brasil : " Do samba ao bolero, da bossa nova ao mais rasgado samba-canção, a cantora, compositora e violonista Rosa Passos transita com desenvoltura por qualquer género musical, imprimindo em seu estilo personalíssimo um expressivo acento jazzístico. Considerada uma das maiores artistas brasileiras em actividade, a baiana radicada em Brasília há mais de três décadas se notabilizou por uma brilhante trajectória nos palcos internacionais, nos quais consolidou o seu nome com um prestígio que lhe permitiu se apresentar e gravar ao lado de ícones do jazz como o baixista Ron Carter e conquistar a admiração de figuras legendárias como o trompetista Wynton Marsalis e o violoncelista Yo-Yo Ma. 
Com interpretações onde o apuro técnico se soma ao bom gosto e ao fraseado musical que lhe rendeu admiradores exigentes, Rosa conquistou plateias nos Estados Unidos, Europa e Japão."
Eis como a perícia do contrabaixista Ron Carter permite descobrir a limpidez e a suavidade da voz de Rosa Passos  interpretando a canção Insensatez do Álbum Entre Amigos.

Rosa Passos e Ron Carter , em Por Causa de Você ,  de Antonio Carlos Jobim e  Dolores Duran, composição extraída do mesmo Álbum  Entre Amigos.
Sentado à beira do caminho é uma canção de Roberto Carlos e Erasmo Carlos lançada em Maio de 1969. 
Vem a chuva, molha o meu rosto e então eu choro tanto
minhas lágrimas e os pingos dessa chuva
se confundem com o meu pranto
Olho pra mim mesmo, me procuro e não encontro nada
sou um pobre resto de esperança à beira de uma
estrada

Preciso acabar logo com isso 

Preciso lembrar que eu existo


E , em Madrid (2005), Rosa Passos interpreta Jardim, canção de  Karen Ann Zeidel & Benjamin Biolay,  com letra  de  Silvano Michelino.

sábado, 28 de novembro de 2015

A clandestina esperança

A vida bate 

Não se trata do poema e sim do homem
 e sua vida
– a mentida, a ferida, a consentida
 vida já ganha e já perdida e ganha
 outra vez.
 Não se trata do poema e sim da fome
 de vida,
 o sôfrego pulsar entre constelações
 e embrulhos, entre engulhos.
 Alguns viajam, vão
 a Nova York, a Santiago
 do Chile. Outros ficam
 mesmo na Rua da Alfândega, detrás
 de balcões e de guichês.
 Todos te buscam, facho
 de vida, escuro e claro,
 que é mais que a água na grama
 que o banho no mar, que o beijo
 na boca, mais
 que a paixão na cama.
 Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
 te acham e te perdem.
 Outros te acham e não te reconhecem
 e há os que se perdem por te achar,
 ó desatino
 ó verdade, ó fome
 de vida!

 O amor é difícil
 mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
 E estamos na cidade
 sob as nuvens e entre as águas azuis.
 A cidade. Vista do alto
 ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
 como se estivesse pronta.
 Vista do alto,
 com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
 é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
 Mas vista
 de perto,
 revela o seu túrbido presente, sua
 carnadura de pânico: as
 pessoas que vão e vêm
 que entram e saem, que passam
 sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
 sangue urbano
 movido a juros.
 São pessoas que passam sem falar
 e estão cheias de vozes
 e ruínas . És Antônio?
 És Francisco? És Mariana?
 Onde escondeste o verde
 clarão dos dias? Onde
 escondeste a vida
 que em teu olhar se apaga mal se acende?
 E passamos
 carregados de flores sufocadas.
 Mas, dentro, no coração,
 eu sei,
 a vida bate. Subterraneamente,
 a vida bate.

Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
 sob as penas da lei,
 em teu pulso,
 a vida bate.
 E é essa clandestina esperança
 misturada ao sal do mar
 que me sustenta
 esta tarde
 debruçado à janela de meu quarto em Ipanema


na América Latina.
Ferreira Gullar , in " A Vida Bate" ,Buenos Aires: IMPSAT, 1999.


Sobre Ferreira Gullar :


"No centro do  programa "Roda Viva", o poeta e escritor Ferreira Gullar, dono de um "poema sujo" e de uma incessante capacidade de criar e de acreditar na criação. Gullar completou a 10 de Setembro de 2010, oitenta anos de vida e vai recitar no "Roda Viva"  trechos de suas vivências, de São Luiz do Maranhão, do exílio, do Rio de Janeiro, das artes plásticas que circundaram a sua poesia dos amigos artistas, dos que foram e dos que virão."

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Parabéns, Mãe

O mês de Novembro foi sempre um mês importante. Um mês de muita celebração familiar. Um mês que sempre me falou de afectos. 
Proveniente de uma família numerosa , havia muitos dias em que se festejavam nascimentos. Mas a celebração maior acontecia a fechar o mês. Era o dia. Dia que todos ambicionávamos. O dia do aniversário da Mãe. O dia 27 de Novembro.
Chega-me todos os anos. E por muitos que passem,  continua a ser o Dia. Um dia diferente daquele em que corria, manhã cedinho, para os braços de uma Mãe que sorria e me abraçava. Um abraço doce,  longo e desejado. Um abraço  do tamanho de um mundo que eu, ainda, não enxergava. 
Um dia seguido de tantos outros em que a surpresa era sempre o saldo de muita ternura partilhada e abundantemente  festejada. Um dia que se transformou nos  dias  de muitos encontros  quando todos, adultos e independentes, acorríamos para a saudar. Um dia em que a família se acrescentara de risos e sorrisos de muitos novos membros. Um dia que já não tem a cumplicidade  pródiga do tempo que a fazia estar entre nós, mas o dia que continua a ser o Dia. 
O dia em que a saudade afaga o coração porque a saudade é o dia das coisas que se amam.
Parabéns, Mãe.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Tentar saber reconhecer

"O Grande Khan já estava folheando no seu atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilónia, Yahoo, Butur, Brave New World.
Disse:
- É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.
E Pólo:
- O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, os que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até ao ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”
Ítalo Calvino, in As cidades invisíveisColecção Estórias, Editorial Teorema,pág. 166 

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres


25 Novembro | Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres
No Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres, 25 de Novembro, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima realiza as I Jornadas Contra a Violência Doméstica, na Escola de Direito da Universidade do Minho, em Braga.
Este evento é organizado pela APAV com o Mestrado em Direitos Humanos da Escola de Direito da Universidade do Minho e a ELSA - European Law Students' Association - Universidade do Minho.
Esta primeira edição das Jornadas reúne várias perspectivas e olhares sobre a violência doméstica, quer de experientes profissionais que apoiam directamente estas vítimas, quer dos académicos que estudam a temática, quer das próprias vítimas.
No mesmo dia, em Lisboa, a APAV promove uma acção de sensibilização, que terá lugar na Rua Augusta.
A APAV recorda que o fenómeno da violência doméstica contra as mulheres abrange vítimas de todas as condições e estratos sociais e económicos; e que os seus agressores também são de diferentes condições e estratos sociais e económicos.
De acordo com os dados da Associação, as mulheres representam mais de 81% das pessoas atendidas na sua rede nacional de 15 Gabinetes de Apoio à Vítima®.
Numa altura em que a crise económica e as medidas de austeridade aumentam em Portugal, receia-se que a situação destas mulheres se agrave bastante, quer pela intensidade da violência sofrida diariamente, quer por que as vítimas encontrarão maiores dificuldades em reformular ou reconstruir as suas vidas.
Combater a violência contra as mulheres é um dever de todos.” APAV
 “Vinte e sete mulheres foram assassinadas este ano, a maioria com armas brancas e de fogo, utilizadas pelos maridos ou companheiros, menos 14 face ao período homólogo de 2014, revelam dados do Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA), hoje divulgados.
Houve ainda 33 mulheres que foram vítimas de tentativa de homicídio, de 01 de Janeiro a 20 de Novembro, adianta o relatório da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), divulgado no Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres.
Apesar de haver "um menor número de homicídios consumados e tentados" em 2015, comparativamente ao mesmo período de 2014, não se pode afirmar que "o femicídio está em tendência decrescente", tendo em conta os últimos 11 anos em que foram assassinadas 426 mulheres e 497 foram vítimas de tentativa de homicídio, refere o OMA no documento.” Lusa

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Tudo é incerto e derradeiro


NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!
                                 Valete, Fratres.
Fernando  Pessoa, in  Mensagem - (III - Os tempos), Edições Ática,Lisboa, Junho de 1959

A  voz de Amélia Muge enche de sonoridade o poema Nevoeiro de Fernando Pessoa. 


Entre o deserto e o deserto

Entre o deserto e o deserto
numa viagem sem destino
procuras a água e o vinho
nenhuma pista nenhum signo

vivo de pouco ou de nada
sem nunca ter um lugar
sempre a insónia mais branca
e a sede de um novo ar

escurece já o olvido
e é noite quando amanhece
nenhum barco traz aquela
por quem a escrita se tece

talvez esteja perdido
como um náufrago na areia
talvez me reste a canção
e o vento que desenleia

Entre o deserto e o deserto
Entre o deserto e o deserto
António Ramos Rosa, in "A Nuvem sobre a Página", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001

Amélia Muge,  em Entre o deserto e o deserto, canção  do Álbum  "Não Sou Daqui", Vachier & Associados, 2006. 

Daqui deste deserto em que persisto

Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
                                       uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto

As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único do abismo branco

Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada
António Ramos Rosa, in "A Nuvem sobre a Página", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – págs. 160-162
  
 

Um dia e outro dia                                                  
         
                Um dia e outro dia
                          A surpresa perdura
Raiada cada vez mais
De negro

As águas prosseguem
                              indiferentes dir-se-ia
A uma e outra margem
Que não se encontrarão
Nunca

É tudo cada vez menos
Compreensível
Os olhos permanecem
Inteiramente abertos
Ao assombro

Segundo tudo indica
O rio não tem princípio
Nem fim

Nem depende do ser

Londres, 20 de Setembro 98
Alberto Lacerda, in "Horizonte”, 
Editor: INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda

QUERIA DE TI UM PAÍS DE BONDADE E DE BRUMA
queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma
I

Quando aqueles que chegavam
olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam
 .........................
VII

Queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma
........................
XIX

A noite como um prego a noite louca
A noite com árvores na boca
 .......................
XX

Arrumaram-se à luz de um candeeiro
           a recolher esmolas.
Mas quem passa, passa. Nem sempre há dinheiro.
           É assim mesmo!... — Bolas!

Não fazem pena. Não fazem coisa alguma.
           Estão ali.
Ela, tem a boca cheia de espuma
           e ele, cego, sorri.
 

Mário Cesariny de Vasconcelos, iDiscurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano,  Manual de Prestidigitação, (Antologia Poética),Ed. Assírio&Alvim, Lisboa