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Federico Garcia Lorca |
Todas as coisas têm o seu mistério, e a poesia é o mistério de todas as coisas
Federico Garcia Lorca, in Conversa Sobre o Teatro
Às vezes
Às vezes fazemos coisas
Que não queremos fazer,
Talvez por existir
Um pingo de esperança
Esperança essa que nem sempre
Nos faz bem
Nos leva para o caminho certo
Às vezes amamos intensamente
Às vezes sonhamos os mais belos sonhos
Às vezes até odiamos
com a mesma intensidade que amamos
Mais o certo é que,
Nem sempre
“Às vezes” dura um só momento
Às vezes os “Às vezes” podem
Durar eternamente!!!
Nem sempre
Federico Garcia Lorca,
Federico García Lorca (1898-1936) foi poeta e dramaturgo espanhol, membro da chamada Geração de 27, autor de livros como o Romancero gitano (1928), Poeta em Nueva York (1940) e Llanto por Ignacio Sánchez Mejía (1935). Morreu fuzilado, em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola.
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Desenho de António Ramos Rosa |
Escrever é, sempre, a necessidade de respirar as palavras e de às palavras fornecer o frémito do ser, os pulmões do sonho, e, com elas criar a dádiva do poeta. António Ramos Rosa
DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO
Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra
escrevo cavo e escavo na cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente
uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo o corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras
Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto
Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto
As minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito
Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único do abismo branco
Sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total
Que tenho eu a dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que de mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada
António Ramos Rosa, in "A Nuvem sobre a Página", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978; "Antologia Poética", prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001 – pp. 160-162
Eu faço uns desenhos que são rostos e faço-os com uma grande espontaneidade: são automáticos e confluentes, quer dizer, não estou a pensar se faço uma linha, que vou fazer aquela linha: depois é que sai o meu trabalho - e por isso é que eu faço em segundos um desenho. António Ramos Rosa
Estou vivo e escrevo sol
Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol
A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida
Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde
António Ramos Rosa , in Estou Vivo E Escrevo Sol, 1966, Editora Ulisseia
António Ramos Rosa (1924-2013) produziu uma obra poética extensa e marcante da poesia portuguesa contemporânea. Morreu aos 88 anos. Poeta e ensaísta é autor de quase uma centena de títulos, de O Grito Claro (1958), a sua célebre obra de estreia, até Em Torno do Imponderável, um belo livro de poemas breves, publicado em 2012. Escreveu livros de ensaios que marcaram sucessivas gerações de leitores de poesia, como Poesia, Liberdade Livre (1962) ou A Poesia Moderna e a Interrogação do Real (1979), traduziu muitos poetas e prosadores estrangeiros, sobretudo de língua francesa, e organizou uma importante antologia de poetas portugueses contemporâneos (a quarta e última série das Líricas Portuguesas). Era ainda um dotado desenhador. R
ecebeu vários prémios de poesia, o primeiro dos quais pela obra Viagem Através de Uma Nebulosa, partilhado ex-aequo com Henrique Segurado. Em 1980, o Prémio do Centro Português da Associação de Críticos Literários, pelo livro O Incêndio dos Aspectos; em 1988, o Prémio Pessoa; em 1989, o Prémio APE/CTT, pela recolha Acordes; em 1990, o Grande Prémio Internacional de Poesia, no âmbito dos Encontros Internacionais de Poesia de Liège; em 2003, foi agraciado como título Doutor honoris Causa pela Universidade do Algarve e em 2005, foi-lhe atribuído o Grande Prémio Sophia de Mello Breyner pela Câmara Municipal de São João da Madeira.
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Julio Cortázar |
PARA LER EM FORMA INTERROGATIVA Viste
verdadeiramente viste
a neve, os astros, os passos aveludados da brisa…
Tocaste,
de verdade tocaste
o prato, o pão, a face dessa mulher que tanto amas…
Viveste
como um golpe frontal,
o instante, o arfar, a queda, a fuga…
Soubeste
com cada poro da pele, soubeste
que teus olhos, tuas mãos, teu sexo, teu brando coração,
teria que tirá-los
teria que chorá-los
teria que inventá-los outra vez.
Júlio Cortázar, in “De Presencia (1938) “.Tradução: Elson Fróes, em Torre de Babel 6
Júlio Cortázar (1914-1984), escritor argentino, conhecido sobretudo por seus romances, contos e novelas, entre os quais se destacam Bestiário (1951), Histórias de cronópios e famas (1962) e O jogo da amarelinha (1963).
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Maputo, Moçambique |
KARINGANA UA KARINGANA
Este jeito
de contar as nossas coisas
à maneira simples das profecias
- Karingana ua Karingana ! –
é que faz o poeta sentir-se
gente.
E nem
de outra forma se inventa
o que é propriedade dos poetas
e em plena vida se transforma
a visão do que parece impossível
em sonho do que vai ser.
– Karingana !
José João Craveirinha , in Karingana ua Karingana (1974),
José João Craveirinha (Lourenço Marques, 1922 — Maputo, 2003), poeta e activista político moçambicano. Na juventude, engajou-se no movimento de libertação nacional contra o colonialismo português, sendo preso em 1965 e libertado em 1969. Publicou os livros de poesia, entre eles Xigubo (1964), Cantico a un dio di Catrame (1966, em italiano), Karingana ua Karingana (1974), Maria (1988) e Izbranoe (1984, em russo). Foi o primeiro autor africano a receber o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa, em 1991.
Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.
Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos
contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda
que se fecha no espaço deste sol às estrelas
e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.
Alberto da Costa e Silva, in 'A Roupa no Estendal, o Muro, as Pombas'
Alberto da Costa e Silva nasceu em São Paulo em 1931. É poeta, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Um dos mais importantes intelectuais brasileiros e especialista na cultura e na história da África. Tem uma volumosa e diversa obra publicada. Entre os prémios e distinções que recebeu estão os títulos de doutor honoris causa pela Universidade Obafemi Awolowo (ex-Universidade de Ifé, Nigéria, 1986) e pela Universidade Federal Fluminense (2009) , o prémio Juca Pato de Intelectual do Ano (2003) da União Brasileira de Escritores e foi distinguido por unanimidade com o prémio mais importante da criação literária em língua portuguesa, o Prémio Camões 2014.
Está esquecido Juro que nem de seu nome me lembro,
Mas vou morrer chamando-a Maria,
Não por simples capricho de poeta:
Pela sua aparência de praça de interior.
Que tempos, aqueles! Eu, um espantalho,
Ela, uma jovem pálida e sombria.
Ao voltar uma tarde do colégio
Soube de sua morte imerecida,
Notícia que provocou tal desilusão
Que derramei uma lágrima ao ouvi-la.
Uma lágrima, sim, quem imaginaria!
E olhem que sou pessoa de energia.
Se devo conceder crédito ao que foi dito
Pela gente que me trouxe a notícia
Devo crer, sem vacilar por um momento,
Que morreu com meu nome nas pupilas,
Fato que me surpreende, porque nunca
Foi para mim senão uma amiga.
Nunca tive com ela mais do que simples
Relações de pura cortesia,
Nada mais que palavras e palavras
E alguma rara menção às andorinhas.
Conheci-a no vilarejo (dele não resta
Mais do que um punhado de cinzas),
Porém jamais vi nela outro destino
Que aquele de uma jovem triste e pensativa.
Tanto foi assim que cheguei a tratá-la
Pelo celeste nome de Maria,
Circunstância que prova claramente
A exactidão central da minha doutrina.
É possível que alguma vez a tenha beijado,
Quem é que não beija as suas amigas!
Mas considerem que o fiz
Sem saber direito o que fazia.
Não vou negar, de qualquer jeito, que gostava
Da sua imaterial e vaga companhia
Que era como o espírito sereno
Que as flores domésticas anima.
Eu não posso ocultar de modo algum
A importância que teve o seu sorriso
Nem desvirtuar o favorável influxo
Que até mesmo nas pedras ela exercia.
Acrescento ainda que, de noite,
Foram seus olhos fonte fidedigna.
Mas, apesar de tudo, é necessário
Que compreendam que dela eu gostava
Com aquele vago sentimento
Que a algum familiar doente se destina.
Acontece, porém, acontece
O que até hoje ainda me maravilha,
Esse inaudito e singular exemplo
De morrer com meu nome nas pupilas,
Ela, múltipla rosa imaculada,
Ela que era uma verdadeira lamparina.
Tem razão o povo, tem razão
Em passar a se queixar noite e dia
Que o mundo traiçoeiro em que vivemos
Vale menos que a roda que não gira:
Muito mais honrosa é uma tumba,
Vale mais uma mofada folha,
Nada é verdade, aqui nada perdura,
Nem a cor da lente com que se olha.
Hoje é um dia azul de primavera,
Acho que morrerei de poesia,
Daquela famosa jovem melancólica
Não lembro nem que nome tinha.
Eu só sei que passou por este mundo
Como uma pomba fugidia:
Sem querer me esqueci dela, lentamente,
Como todas as coisas desta vida.
Nicanor Parra. Tradução: Leila Guenther e Marcelo Donoso
Nicanor Parra (1914), poeta, físico e matemático chileno, publicou, entre outros títulos, Hojas de parra (1985), Poemas Pará combatir la calvicie (1993), Páginas en blanco (2001), Lear, Rey & Mendigo (2004), Obras Completas I & algo + (2006), Discursos de Sobremesa (2006), Obras Completas II & algo + (2011) e Así hablo Parra en El Mercurio, Entrevistas Dadas al diario chileno Entre 1968 y 2007 (2012). Recebeu o Prémio Cervantes do Ministério da Cultura Espanhola, o mais importante do país, e o Prémio Iberoamericano de Poesia Pablo Neruda.
Já não fugia a bela Ninfa, tanto
Por se dar cara ao triste que a seguia,
Como por ir ouvindo o doce canto,
As namoradas mágoas que dizia.
Volvendo o rosto, já sereno e santo,
Toda banhada em riso e alegria,
Cair se deixa aos pés do vencedor,
Que todo se desfaz em puro amor.
Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
Nota:
Julgá-lo – imaginá-lo
Luís de Camões (estrofes 82 e 83 do Canto IX d' "Os Lusíadas", Lisboa, 1572)
Música: Carlos Gonçalves, Intérprete: Cristina Branco* (in CD "Sensus", Emarcy/Universal Classics France, 2003)
Gravado e masterizado por Fernando Nunes, nos Estúdios Pé-de-Vento, Salvaterra de Magos, entre Setembro e Dezembro de 2002.
Endechas a ũa cativa
com quem andava d'amores na Índia,
chamada Bárbara.
Aquela cativa,
que me tem cativo,
porque nela vivo
já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
em suaves molhos,
que para meus olhos
fosse mais formosa.
Nem no campo flores,
nem no céu estrelas,
me parecem belas
como os meus amores.
Rosto singular,
olhos sossegados,
pretos e cansados,
mas não de matar.
Uma graça viva,
que neles lhe mora,
para ser senhora
de quem é cativa.
Pretos os cabelos,
onde o povo vão
perde opinião
que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
tão doce a figura,
que a neve lhe jura
que trocara a cor.
Leda mansidão,
que o siso acompanha;
bem parece estranha,
mas bárbara não.
Presença serena
que a tormenta amansa;
nela enfim descansa
toda a minha pena.
Esta é a cativa
que me tem cativo;
e, pois nela vivo,
é força que viva.
Luis de Camões , in "Rimas", edição de 1595
Música: José Afonso. Intérprete: José Afonso* (in LP "Cantares do Andarilho", Orfeu, 1968; reed. Movieplay, 1987, 1996, Art'Orfeu Media, 2012)
* Rui Pato – viola