Cartoon Rodrigo, Expresso |
Estamos no
último dia de 2012. Ao longo deste ano,fizemos referência a muitas obras
literárias. Muita prosa , imensa poesia, e muito mais. O romance “ O retorno”
foi uma dessas obras aqui mencionadas. O
Jornal Globo publicou, no dia 28 do corrente mês, a lista dos melhores livros de 2012 onde consta o livro "O Retorno", da portuguesa
Dulce Maria Cardoso, lançado este ano no Brasil.
Refere a
Agência Lusa que “A selecção anual, feita pela equipa do suplemento literário
de O Globo, apresenta 15 títulos, que
incluem obras de ficção e não-ficção de autores brasileiros e estrangeiros.
Entre os
brasileiros estão "Solidão Continental", de João Gilberto Noll,
"Formas do Nada", do poeta Paulo Henrique Britto, "Um útero é do
tamanho de um punho", de Angélica Freitas, e "Barba Ensopada de
Sangue", de Daniel Galera.
A
norte-americana Jennifer Egan, com "A visita cruel do tempo", o poeta
sírio Adonis, com a colectânea "Poemas", e o britânico Julian Barnes
com "O Sentido de um fim" são os outros autores estrangeiros
incluídos na selecção do jornal.
"O
Retorno", editado pela Tinta da China, foi lançado no Brasil em Julho passado, durante a participação de Dulce Maria Cardoso na Festa Literária
Internacional de Paraty (Flip).”
“ O retorno” foi considerado o Livro do ano pelos
jornais Público, Expresso e revista Ler. Recebeu o Prémio especial da Crítica
de 2011.
Sobre o livro:
"1975 Luanda.
A descolonização instiga ódios e guerras. Os brancos debandam e em poucos meses
chegam a Portugal mais de meio milhão de pessoas. O processo revolucionário
está no seu auge e os retornados são recebidos com desconfiança e hostilidade.
Muitos não têm para onde ir nem do que viver. Rui tem quinze anos e é um deles.
1975. Lisboa.
Durante mais de um ano, Rui e a família vivem num quarto de um hotel de 5
estrelas a abarrotar de retornados — um improvável purgatório sem salvação
garantida que se degrada de dia para dia. A adolescência torna-se uma espera
assustada pela idade adulta: aprender o desespero e a raiva, reaprender o amor,
inventar a esperança. África sempre presente mas cada vez mais longe."
E porque termina o ano de 2012 , transcreve-se um excerto desse romance relativo ao término do ano 1974 , em Luanda , na noite de passagem de ano.
“ Na mesma
noite em que o Sr. Manuel partiu com a família no Príncipe Perfeito, fomos à
farra da passagem de ano, a minha irmã vestiu uma maxi-saia e pintou-se a sério pela primeira vez, estava
bonita como nunca a tinha visto, o pai olhava para a multidão que dançava na
festa , o copo cheio de Ye Monks, o pai perguntava, como é que esta gente toda
pode lá ir embora, a mãe bebia gasosa por um copo de pé alto, parecia uma
actriz de cinema só que menos bonita. Aquela gente não pôde ter ido embora. O
conjunto desafinava mas ninguém deixava de dançar por causa disso, estava
à toa na vida , o meu amor me chamou, pra ver a banda passar cantando
coisas de amor, a minha gente sofrida, despedia-se da dor, pra ver a banda
passar cantando coisas de amor, as pessoas atreladas umas nas outras, as
filas cada vez maior e as voltas na sala do clube cada vez mais pequenas, nada
tinha mudado, a banda passava cantando coisas de amor e a gente sofrida
despedia-se da dor, o pai começou a beber Ye Monks da garrafa, a mãe nunca bebe
por causa dos comprimidos mas naquela noite bebeu e dançou para o pai, estava tanta
gente à roda a bater palmas enquanto a
mãe dançava para o pai, não se podem ter ido todos embora , ainda não tinham dado as badaladas da meia-noite e as rabanadas já tinham
azedado em cima das mesas, as broas secas como palha, toda a gente se queixava do
maldito calor que dá cabo de tudo Quando começaram os slows convidei a Paula
para dançar , as minhas mãos no pescoço da Paula, a pele da Paula tão macia,
1975 ia ser um ano bom, se calhar o melhor ano das nossas vidas, íamos deixar
de ser portugueses de segunda, o futuro era aqui, o pai estava certo apesar das
chaimites nas ruas e dos tiros que tinham começado (…), mas também dizia que
não havia mais nada na metrópole do que fome e piolhos , ou que as vizinhas
eram todas mal casadas, não é que o pai pensasse assim, a culpa era do Ye
Monks, a cidade estava em festa mas não interessava, a mãe cantava acompanhando
a desafinação do conjunto, mas para meu
desencanto, o que era doce acabou, tudo tomou o seu lugar, depois que a banda
passou, e cada qual no seu canto, em cada canto uma dor , depois de a banda
passar, cantando coisa de amor, é dançar minha gente como se não houvesse
amanhã, as serpentinas agarravam-se às costas nuas das raparigas suadas, os
confeitos não paravam de cair em todo o
lado, as lentes dos óculos da D. Magui
cheias de confeitos colados, não aproveites para olhar para as brasas de minissaia, o marido da D. Magui riu-se
mostrando o canino de ouro e fez a D. Magui rodopiar-lhe nos braços como se fossem um casal novo (…) A banda nunca
ia deixar de passar cantando coisas de amor, o futuro ia acontecer sem grandes
sobressaltos como os futuros devem
acontecer, a Paula ia aceitar o meu pedido de namoro e ia deixar-me desapertar-lhe
o sutiã, eu ia tirar a carta de condução e levá-la ao cinema Miramar, o pai ia
tirar letras no banco para comprar a Scania que estava em exposição no stand da
Baixa, a cabeça da mãe nunca mais teria
crises, a minha irmã ia terminar o sétimo ano e arranjar um namorado
melhor que o Roberto que estava apaixonado pela Lena indiana que gostava do
Carlos, a Pirata ia morrer de velha como o Bardino morreu e anos antes do
Bardino a Jane, as vizinhas iam
continuar a levar a mal à mãe o que não
podiam mesmo deixar de levar a mal, só ia mudar o que fosse necessário para a
nossa vida ficar ainda mais igual à vida que o pai tinha pensado quando
embarcou no Pátria.
Durante as
primeiras horas de 1975 todos tinham de concordar que o Sr. Manuel tinha sido
um profeta agoirento, não ia haver um mar de sangue, 61 estava enterrado como
os mortos que tinha feito.(…) Quando voltámos para o pé dos outros a festa estava
a acabar. Fomos para casa e o pai abriu mais uma garrafa de Ye Monks, quis que
brindássemos outra vez a 1975, a minha irmã brindou com água, a mãe aflita a
dizer que dava azar, crendices , deixa-te de crendices, mulher, brindámos a
1975 que ia ser o melhor ano das nossas vidas.” Dulce Maria Cardoso, in “ O
retorno”, Edições Tinta –da-China, 2011