domingo, 27 de dezembro de 2009

Maria Gabriela Llansol — "Os cantores de leitura"

Maria Gabriela LlansolOs cantores de leitura. Colecção Arrábido. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.

Maria Gabriela Llansol faleceu em Março de 2008. Os Cantores de Leitura surgem, numa leitura tingida pelo biografema, como um último livro, mesmo se a Associação de Estudos Llansolianos anuncia o tratamento e a edição, nos próximos anos, de textos inéditos, doados pela escritora. Último livro, e contudo, como sempre, primeiro livro, no sentido em que Llansol escreve uma iniciação à leitura. Impõe-se uma memória de topoi de outros livros: a morte, assinalada por vários testamentos (o inventário dos bens de Johann Sebastian Bach, desde Lisboaleipzig, de 1994, a este Os Cantores de Leitura, p. 44), a restante vida das figuras para lá da morte histórica, numa comunidade de diversos, mas também a aprendizagem da leitura, desde a estátua de Ana ensinando a ler a Myriam em Um Beijo Dado mais Tarde, de 1990, até este ensino de cantores. Ler Llansol implica lembrar leituras anteriores, se cada livro é parte de um todo maior que se revisita a si mesmo, por ordem cronológica inversa. Cada novo livro, último, implica um recomeço, tábua rasa, primeira, que inicie a obra. A questão da morte e da sobrevivência enquanto leitura, assim, não é um acidente biográfico, mas o graphos de uma vida necessária. Um livro de despedida começa por acolher.
Para descrever trivialmente Os Cantores de Leitura, lembraria que há uma comunidade numa casa. Como acontece desde Parasceve (2001), são raros os nomes historicamente reconhecíveis: há, claro, Hölderlin, Spinoza, Anna Magdalena Bach, Nietzsche; mas sobretudo Angelikos, Gratuita, Tual, Risse, Celso, Ciro, Cirilo, Oblívio, Trova, Rorante, muitos outros. Há o quotidiano destes cantores, entre o rigor monástico e o ensaio experimental do canto. O leitor não pode reconhecer simplesmente qualquer cartografia ou cronologia, linguagens prévias, identidades. Na ausência de referentes, só pode aceitar habitar um universo inicial, passando a reconhecer a singularidade dos nomes na casa. Mas os nomes não exigem peripécia, propriedades, confrontos; só uma existência, que os torna familiares. Como n’A Comunidade que Vem, de Giorgio Agamben, em que os homens podem «aderir [à] impropriedade como tal e fazer do seu ser-assim não uma identidade e uma propriedade individual mas uma singularidade sem identidade» (Lisboa, Presença, 1993, p. 52).
Uma «comunidade sem pressupostos e sem sujeitos», ainda na expressão de Agamben (ibid.), eis Os Cantores de Leitura. Mas «sem» não é retirada nem negação; é a troca da identidade do eu pela comunidade de muitos: «o Há coincide com um grande número» (p. 169); «Tual tem várias almas» (p. 246); «Gratuita tem sonhos que nem se revelam como seus» (p. 272). Recusa, pois, de um singular que confirmasse a identidade de cada qual, ou do duplo que reunisse na mera antinomia o que se deve traduzir no múltiplo. Por isso, só encontraremos o zero da despersonalização, ou a tríade do amor ímpar que, desde Contos do Mal Errante (1986), inventa pequenas comunidades sem a leitura do hermafrodita original, cindido, platónico. Daí a recusa, insistente em Os Cantores de Leitura, da autobiografia: não há ninguém de quem escrever o auto-, ou há muitos de quem escrever o hetero-.
As singularidades sem identidades não conduzem à aporia. Conduzem à aprendizagem do canto da leitura: técnica, arte, mestria, labor oficinal, experimental, regrado. Como nos trabalhos das comunidades religiosas há muito interrogados por Maria Gabriela Llansol, aqui o canto (que é também leitura e escrita) dá-se como disciplina física e tradição especulativa. Por um lado, esta certeza: «na prática, seremos artesãos de tarefas simples, realizadas de modo impecável» (p. 99); por outro, esta dúvida: «neste ler saudado pela Casa, eu identifico-me com a ansiedade amorosa da procura. O texto que leio ama-me? Ou não me ama? O que alcançarei quando atingir o seu sexo?» (p. 176.) Fazer artesanal, o canto da leitura é disciplina e pergunta, princípio categórico e especulação sem fundamento ou legitimação. «Meu Deus, que importa o fundamento?», pergunta a protagonista do diário Inquérito às Quatro Confidências (Lisboa, Relógio d’Água, 1996, p. 27), rasurando questões de Vergílio Ferreira. O fundamento, se houver, deve dissolver o sujeito: «Escrevi o que escrevi, porque a escrita me mandou escrever, e eu obedeço, com um princípio de confusão na mente», lê-se em Os Cantores de Leitura (p. 103).
Dissolve-se o sujeito, não a comunidade, não o outro. Os cantores esperam o outro: um textuador desconhecido, que «virá pela via normal de abrir e fechar a cancela» (p. 16). Como o Messias entra pela porta estreita do instante, no Walter Benjamin das «Teses sobre a Filosofia da História»? Talvez, mesmo se Benjamin é lido e, misteriosamente, afastado em Os Cantores de Leitura (p. 156). Certo é que a espera inventa a própria comunidade: «Haveria leitura sem o enigma da espera?» (p. 53); e ainda: «ela – a imagem – veio para salvar-me» (p. 219). Se as imagens salvam, se a escrita é o fundamento e a estética é a ética, lembro-me também da última frase de «O Narrador», de Benjamin: «O narrador é a forma na qual o justo se encontra a si próprio.» (in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d’Água, 1992, p. 57.) Cantar e aguardar o narrador (ou textuador) assemelham-se, como escrever se assemelha a ler, e a disciplina do eu se assemelha à fusão no plural.
Os livros de Maria Gabriela Llansol, desde O Livro das Comunidades, dizem que, na espera, o outro já chegou: «Eu te saúdo, Casa, que já recebeu, assim que ele vier, / o grande textuador desconhecido» (p. 44). A impossibilidade de contrapor simplesmente ausência e presença ou de definir o outro desfaz os fins da Casa: não coisa regrada, mas acontecimento de hospitalidade sem nome, não número de habitantes, mas infinidade de texto a ser escrito pelo outro, por vir e já vindo, porque já aceite, mas eternamente desconhecido, isto é, indefinível, isto é, avesso ao mero conhecimento, mas presente enquanto promessa.
Há contudo um acolhimento seminal: o de Spinoza, ou de Bento. A própria escrita de Os Cantores de Leitura procura uma ordem, more geometrico, que homenageia a Ética de Espinosa. Mas, em vez de Proposições, Demonstrações, Corolários, Escólios, há Partículas, seus duplos, seus contextos, substituindo-se a verticalidade inferencial da Ética por uma horizontalidade da deriva aberta ao acolhimento, ao fragmento que adia todo o sistema. Na partícula intitulada, precisamente, «Geometria», lê-se: «A minha voz não me pertence. É a diferença entre o débito e o crédito. / E dou de frente com a linha recta perpendicular ao meu amor» (p. 139), reduzindo-se o eu às trocas de afecto, ao débito-e-crédito que inventa os justos; não há fundamentos nem leis, mas um movimento de dádiva e aceitação. Quem escreve não escreve, mas obedece a um mandamento da escrita; e o mandamento é a espera do outro, hipotexto: «Enquanto eu lia a Ética, escreviam-se estes textos que projectavam a sua luz diurna [...] / a imagem servia de revelação e estar sob o tecto de Spinoza, melhor dito por mim, de Bento, / é uma experiência que me revela duplamente o meu próprio amor inconsciente pela leitura, ou / o meu próprio amor pelo inconsciente da leitura.» (p. 194.)
O duplo desta Partícula esclarece ainda, numa revisão da Ética: «experiência não é ensaio clínico» (p. 195). Experiência não é clínica, mas talvez seja clinamen, pequeno desvio imperceptível que diz o outro no mesmo, pela escrita desapossada, ou reescrita. Resta, pois, um sujeito que se sabe texto, flexão da palavra em primeiro lugar conferida pelo outro plural, um sujeito que assina e não é mais do que assinatura, livro, canto de leitura:

eu sou feliz na alegria não sentimental que se manifesta;
o que me fraccionava, partiu:
o que tende para um limite finito, desapareceu;
a mata espessa e o grande bosque florescem;
dobro-me conforme o número, género, grau, modo, tempo,
e pessoa que sou vossa.

E assino.

Por Pedro Eiras, publicado em 19.9.2008 na secção Recensões Críticas da Revista Colóquio Letras

sábado, 26 de dezembro de 2009

A interminável pouca-vergonha


Baptista Bastos
A interminável pouca-vergonha
Assisti, entre o bocejo e o espanto, à última sessão deste ano da Assembleia da República. Gosto muito de escrever Assembleia da República. Esta coisa de ser antigo é uma chatice mas traz vantagens. Como também escrevi sobre outro tempo, escrevi, logicamente, sobre a Assembleia Nacional do salazarismo. E perguntava-me como era possível que homens como Mário de Figueiredo e conselheiro Albino dos Reis, entre outros, que se diziam republicanos, colaborassem naquela farsa monstruosa. Feitas as comparações, apesar de tudo, esta Assembleia, com amolgadelas morais e de carácter, é muito diferente da outra.
Na outra, ninguém insultava ninguém, a não ser quando nasceu, no marcelismo, a "ala liberal", e um grupo de gente nova acreditou que podiam modificar o regime "por dentro." É impossível. Na democracia também foi tentado alterar, do "interior", este e aquele partido. Em vão. A História está aí para nos ensinar. Mas parece que ninguém deseja aprender. O que, em tempos recuados, foi uma espécie de espírito de missão (tanto nos começos da República como nos anos imediatos ao 25 de Abril), transformou-se numa batalha pelas regalias individuais.
Olho a cara destes deputados e, com a excepção de dois ou três, nenhum me convence. Está-lhes no rosto a marca do oportunismo, o sinal de que se encontram ali para tratar da vidinha. As coisas terão de ser fatalmente assim? Vejo e ouço um rapaz velho, que foi da Jota, trepou a deputado europeu, e, agora, na primeira linha da bancada "socialista", solta vitupérios a fim de obedecer à estratégia partidária.
Nada daquilo é sério, nada daquilo é decente. O moço, vestido como um ancião dos tempos da Assembleia Nacional, grave, soturno e inquietante, é um ressurrecto, um ser de lonjuras, cheio de mofo e de ranço. Não está ali para dizer nem sequer uma frase importante; está ali para "fazer número", para ser o eco do que lhe sussurraram. Sinto vergonha por aquele rapaz velho, sem sal e sem pimenta, as faces entorpecidas por um tédio que já se lhe acumulou. Que faz este tipo na vida? Acho que "dialogou" com Mário Soares num livro aborrecido e inútil, cujas primeiras páginas folheei, atraído pelo registo memorialístico que Soares lhe poderia conferir. Nada. Sobretudo quando o moço fala.
Tudo isto está ligado. O que diz Paulo Portas, o sorriso irritante e provocador de José Sócrates, as bojardas de Manuela Ferreira Leite, como se estivesse a declamar um discurso de Séneca, tudo isto são filmes de "réprise", sem grandeza, sem generosidade. Insultam-se e injuriam-se. O primeiro-ministro é acusado de chantagista, de mentiroso e de incumprimento de promessas.
O idioma utilizado não é bom, nem isso, e soa como o fraseado de um eguariço. Claro que a senhora do PSD, quando insulta, não pode esperar outra coisa que não outro insulto. Falam, falam, falam e não estão a dizer nada. O Parlamento português ausentou-se das suas funções e converteu-se numa arena suja, medíocre, sórdida. Ali, o verniz dos salamaleques estilhaça-se. E os deputados não servem de paradigma a ninguém.
Pode crer, meu Dilecto, bem gostaria eu de que o panorama fosse outro, outras as pessoas, outros os encargos, outras as actividades. Não há nada a fazer: esta gente, que se diz nossa representante, apenas se representa a ela própria. Os negócios, as trocas de favores, os jogos malabares, as súbitas ascensões a ricos de muitos daqueles que não tinham dinheiro nem sequer para mandar tocar um cego - eis um amontoado de aldrabices, conexões ilícitas, cumplicidades abjectas.
A Assembleia da República não é o que deveria ser. Entre os gritos de curral, as histerias sem direcção nem sentido, as tácticas de momento e as estratégias desacreditantes, assistimos a um desfile desavergonhado e ininterrupto.
Vamos continuar assim?

APOSTILA - Olhe, Dilecto, procure ser feliz. Para o caso, recomendo-lhe um livro admirável organizado por um homem sério, que tem carreado, para o bragal da nossa cultura, um trabalho intelectual valiosíssimo. Falo de José Viale Moutinho, escritor, jornalista, investigador, que publicou uma fotobiografia de Camilo. O volume, "Camilo Castelo Branco - Memórias Fotobiográficas (1825-1890)" é uma tarefa magistral, cheio de fotos, iconografias, registos e comentários escritos por alguns dos nossos maiores. Viale Moutinho recuperou documentos extraordinários, textos formidáveis e esquecidos, como, por exemplo, o de João Chagas, grande jornalista e político, que deveria ser lido (aliás, todo o João Chagas, inclusive o "Diário"), que nos propõe a modernidade de um idioma, habitualmente mal tratado. Recomendo aos meus Dilectos este volume fora-de-série dos estudos camilianos. E que tenham Boas Festas.

Artigo de Opinião de Baptista Bastos publicado no Jornal de Negócios de 24/12/2009

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Eternidade


Vens a mim
pequeno como um deus,
frágil como a terra,
morto como o amor,
falso como a luz,
e eu recebo-te
para a invenção da minha grandeza,
para rodeio da minha esperança
e pálpebras de astros nus.

Nasceste agora mesmo. Vem comigo.

Jorge de Sena, in 'Perseguição'


A Palavra

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivessemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.

Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida'

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

We Will Remember Them

Michael Bolton, Robin Gibb, Paul Rodgers, Hayley Westenra, Mica Paris e tantos outros artistas prestaram uma homenagem, entoando maravilhosamente esta canção - "We Will Remember Them" ,(Copyright 2009, Remember Them Ltd.) .

domingo, 20 de dezembro de 2009

Portugal e os portugueses


Pela excepcional e premente actualidade que encerram, transcrevem-se excertos do Discurso de António Barreto proferido no dia 10 de Junho de 2009, em Santarém.

(...)As comemorações nacionais têm a frequente tentação de sublinhar ou inventar o excepcional. O carácter único de um povo. A sua glória. Mas todos sentimos, hoje, os limites dessa receita nacionalista. Na verdade, comemorar Portugal e festejar os Portugueses pode ser acto de lucidez e consciência. No nosso passado, personificado em Camões, o que mais impressiona é a desproporção entre o povo e os feitos, entre a dimensão e a obra. Assim como esta extraordinária capacidade de resistir, base da “persistência da nacionalidade”, como disse Orlando Ribeiro. Mas que isso não apague ou esbata o resto. Festejar Camões não é partilhar o sentido épico que ele soube dar à sua obra maior, mas é perceber o homem, a sua liberdade e a sua criatividade. Como também é perceber o que fizemos de bem e o que fizemos de mal. Descobrimos mundos, mas fizemos a guerra, por vezes injusta. Civilizámos, mas também colonizámos sem humanidade. Soubemos encontrar a liberdade, mas perdemos anos com guerras e ditaduras.
Fizemos a democracia, mas não somos capazes de organizar a justiça. Alargámos a educação, mas ainda não soubemos dar uma boa instrução. Fizemos bem e mal. Soubemos abandonar a mitologia absurda do país excepcional, único, a fim de nos transformarmos num país como os outros. Mas que é o nosso. Por isso, temos de nos ocupar dele. Para que não sejam outros a fazê-lo.
Há mais de trinta anos, neste dia, Jorge de Sena deixou palavras que ecoam. Trouxe-nos um Camões humano, sabedor, contraditório, irreverente, subversivo mesmo.
Desde então, muito mudou. O regime democrático consolidou-se. Recheado de defeitos, é certo.
Ainda a viver com muita crispação, com certeza. Mas com regras de vida em liberdade.
Evoluiu a situação das mulheres, a sua presença na sociedade. Invisíveis durante tanto tempo, submissas ainda há pouco, as mulheres já fizeram um país diferente.
Mudou até a constituição do povo. A sociedade plural em que vivemos hoje, com vários deuses e credos, com dois sexos iguais, com diversas línguas e muitos costumes, com os partidos e as associações que se queira, seria irreconhecível aos nossos próximos antepassados.
A sociedade e o país abriram-se ao mundo. No emprego, no comércio, no estudo, nas viagens, nas relações individuais e até no casamento, a sociedade aberta é uma novidade recente.
A pertença à União Europeia, timidamente desejada há três décadas, nem sequer por todos, é um facto consumado.
A estes trinta anos pertence também o Estado de protecção social, com especial relevo para o Serviço Nacional de Saúde, a segurança social universal e a escolarização da população jovem. É certamente uma das realizações maiores.
Estas transformações são motivo de regozijo. Mas este não deve iludir o que ainda precisa de mudança. O que não foi possível fazer progredir. E a mudança que correu mal.
A Sociedade e o Estado são ainda excessivamente centralizados. As desigualdades sociais persistem para além do aceitável. A injustiça é perene. A falta de justiça também. 0 favor ainda vence vezes de mais o mérito. O endividamento de todos, país, Estado, empresas e famílias é excessivo e hipoteca a próxima geração. A nossa pertença à União Europeia não é claramente discutida e não provoca um pensamento sério sobre o nosso futuro como nacionalidade independente.
(...)A cidadania europeia é uma noção vaga e incerta. É um conceito inventado por políticos e juristas, não é uma realidade vivida e percebida pelos povos. É um pretexto de Estado, não um sentimento dos povos. A pertença à Europa é, para os cidadãos, uma metafísica sem tradição cultural, espiritual ou política. Os Estados e os povos europeus deveriam pensar de novo, uma, duas, três vezes, antes de prosseguir caminhos sem saída ou falsos percursos que terminam mal. E nós fazemos parte desse número de Estados e povos que têm a obrigação de pensar melhor o seu futuro, o futuro dos Portugueses que vêm a seguir.
É a pensar nessas gerações que devemos aproveitar uma comemoração e um herói para melhor ligar o passado com o futuro.
Não usemos os nossos heróis para nos desculpar. Usemo-los como exemplos. Porque o exemplo tem efeitos mais duráveis do que qualquer ensino voluntarista.
Pela justiça e pela tolerância, os portugueses precisam mais de exemplo do que de lições morais.
Pela honestidade e contra a corrupção, os portugueses necessitam de exemplo, bem mais do que de sermões.
Pela eficácia, pela pontualidade, pelo atendimento público e pela civilidade dos costumes, os portugueses serão mais sensíveis ao exemplo do que à ameaça ou ao desprezo.
Pela liberdade e pelo respeito devido aos outros, os portugueses aprenderão mais com o exemplo do que com declarações solenes.
Contra a decadência moral e cívica, os portugueses terão mais a ganhar com o exemplo do que com discursos pomposos.
Pela recompensa ao mérito e a punição do favoritismo, os portugueses seguirão o exemplo com mais elevado sentido de justiça.
Mais do que tudo, os portugueses precisam de exemplo. Exemplo dos seus maiores e dos seus melhores. O exemplo dos seus heróis, mas também dos seus dirigentes. Dos afortunados, cujas responsabilidades deveriam ultrapassar os limites da sua fortuna. Dos sabedores, cuja primeira preocupação deveria ser a de divulgar o seu saber. Dos poderosos, que deveriam olhar mais para quem lhes deu o poder. Dos que têm mais responsabilidades, cujo “ethos” deveria ser o de servir.
Dê-se o exemplo e esse gesto será fértil! Não vale a pena, para usar uma frase feita, dar “sinais de esperança” ou “mensagens de confiança”. Quem assim age, tem apenas a fórmula e a retórica. Dê-se o exemplo de um poder firme, mas flexível, e a democracia melhorará. Dê-se o exemplo de honestidade e verdade, e a corrupção diminuirá. Dê-se o exemplo de tratamento humano e justo e a crispação reduzir-se-á. Dê-se o exemplo de trabalho, de poupança e de investimento e a economia sentirá os seus efeitos.
Políticos, empresários, sindicalistas e funcionários: tenham consciência de que, em tempos de excesso de informação e de propaganda, as vossas palavras são cada vez mais vazias e inúteis e de que o vosso exemplo é cada vez mais decisivo. Se tiverem consideração por quem trabalha, poderão melhor atravessar as crises. Se forem verdadeiros, serão respeitados, mesmo em tempos difíceis.
Em momentos de crise económica, de abaixamento dos critérios morais no exercício de funções empresariais ou políticas, o bom exemplo pode ser a chave, não para as soluções milagrosas, mas para o esforço de recuperação do país.


Discurso de António Barreto nas Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades,em 10 de Junho de 2009.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Estamos de novo cercados pelo medo


Quase seiscentos mil portugueses estão desempregados, informa o Governo. Os sindicatos dizem que são muitos mais. Tenham uns e outros as razões dos números, a verdade é que estes são extremamente elevados. Já passei por angústias semelhantes. Duas ou três vezes fui posto na rua, simplesmente por não estar de acordo e manifestar, subversivamente, o meu profundo desagrado. Não fiz mais do que devia fazer. Falo no facto para dizer aos meus Dilectos que sofro com dor de peito quando, nas televisões, e isto é diário, assisto a esse desfile de homens e mulheres despedidos de fábricas e empresas que todos os dias encerram.
Claro que os encerramentos se devem a "empresários" iletrados, a "patrões" irresponsáveis, a fraudulentas manigâncias. O "Jornal de Negócios" inclui, amiúde, nas suas páginas, o rol da infâmia. Pode viver-se assim num País cujos governantes não sabem acautelar as mais rudimentares normas de cidadania? Há anos. Nos tempos do fascismo, um grande jornalista português, Mário Ventura, já infelizmente desaparecido, fez o levantamento das nossas desgraças, assinando uma longa reportagem, "Viver e Morrer em Portugal", que, na época, causou grande sobressalto emocional. Em suma: Mário Ventura dizia-nos que gerações inteiras fugiam para o estrangeiro, por impossibilidade de existirem, aqui, com um mínimo de dignidade. Atribuíamos ao regime grande fatia dessa tragédia. E era verdade. Agora, porém, a quem assacar as culpas?
Vamos escrevendo sobre o assunto, alguns jornais (não todos, não todos) publicam reportagens dessa miserável condição de ser, mas parece que ninguém ouve, que ninguém está interessado em resolver o problema, que ninguém demonstra o mínimo interesse. Uma questão a esquecer. Porém, fazendo ilações aritméticas simples, verificamos que, pelo menos, há um milhão e meio de portugueses que sofrem, directa e indirectamente, este infortúnio.
Banalizámos a dor dos outros, ignorando que, mais tarde ou mais cedo, a dor tocará no batente da nossa porta.
Saúde-se o "Público" por ter alargado a primeira página (não se diz "capa", "capa" é de revista; diz-se "primeira página", a montra do jornal) a este magno acontecimento e, por uma vez, ter colocado em outro degrau as escutas, as corrupções, a cobiça e a cupidez daqueles que foram educados para isso.
Não é que estes problemas sejam desimportantes. Não. Mas eles são decorrentes uns dos outros, e há uma parcela deles que explica e determina o desemprego, o fechamento de fábricas e empresas. A impunidade com que sobrevivem parasitas, corruptos e corruptores, "patrões" sem qualificação mas qualificados para a prática das mais vis malandrices - chega a ser inquietante. E ninguém vai parar à cadeia.
Escrevi, em outro jornal, que a nossa sociedade está a desmoronar-se e ninguém lhe acode. Os laços sociais estão a desaparecer, substituídos por um sistema de valores em que impera a vacuidade, o poder da "competitividade" como força motriz - e não é. Há tempo para tudo, diz o Eclesiastes. Mas a verdade é que os "tempos" foram pulverizados pela urgência de não se sabe bem o quê. A frase mais comum que ouvimos é: "Não tenho tempo para"; para quê? A correria mina as relações de civismo e de civilidade; está a roer os alicerces da família; a família deixou de ser o núcleo das nossas próprias defesas; e vamos perdendo o rasto dos nossos filhos, dos nossos amigos, dos nossos camaradas, dos nossos companheiros. A azáfama nos locais de trabalho é o sinal das nossas fragilidades e dos nossos medos. Estamos com medo de tudo, inclusive de confiar em quem, ainda não há muito, seríamos capazes de confidenciar o impensável.
O medo instalou-se na sociedade portuguesa. Era atávico: a Inquisição tratou de nos emascular e o salazarismo continuou a tarefa. Mas, enfim, veio Abril e nós a pensar, como diz o outro, que mandávamos "nisto." A festa durou pouco. Estamos, de novo, cercados; e, desta vez, o cerco é "democrático." Temos medo de constituir família, medo de ter filhos, medo de ir para o emprego e o emprego já lá não estar. Isto não tem nada a ver com essa patetice da "asfixia democrática", da dr.ª Ferreira Leite, onzenada pelo Pacheco Pereira. Ou, se tem, nasceu com os dez anos de cavaquismo e com o culto criptofascista da juventude pela juventude, que conduziu ao saneamento dos melhores quadros nas empresas e à remoção de grandes jornalistas substituídos por gente "de confiança."
É cada vez mais necessário analisar as razões fundas do estado a que Portugal chegou. E não há inocentes. O rancor e o ressentimento não são, apenas, produtos das injustiças sociais. São-no, também, resultados do medo.


Artigo de opinião de Baptista-Bastos, publicado no Jornal de Negócios, em 20 de Novembro de 2009

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

What a wonderful world - Louis Armstrong (1967)

I see trees of green, red roses too
I see them bloom for me and you
And I think to myself, what a wonderful world

I see skies of blue and clouds of white
The bright blessed day, the dark sacred night
And I think to myself, what a wonderful world

The colours of the rainbow, so pretty in the sky
Are also on the faces of people going by
I see friends shakin' hands, sayin' How do you do?
They're really saying I love you

I hear babies cryin', I watch them grow
They'll learn much more than I'll ever know
And I think to myself, what a wonderful world
Yes, I think to myself, what a wonderful world

Oh yeah


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

O último poema


Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.


Poema extraído do livro " Manuel Bandeira — 50 poemas escolhidos pelo autor", Ed. Cosac Naify – São Paulo, 2006, pág. 35.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Dio come ti amo

Gigliola Cinquetti, a sonoridade de uma límpida voz italiana em 1966.

Adeus


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

domingo, 13 de dezembro de 2009

sábado, 12 de dezembro de 2009

Miriam Makeba - Mbube


Miriam Makeba, "The Lion Sleeps Tonight"

Miriam Makeba ou a "Mama Africa", a cantora Sul Africana que maravilhou o mundo com a sua espantosa e prodigiosa voz, nasceu em Joanesburgo a 4 de Março de 1932 e morreu em Itália, Castel Volturno, a 10 de Novembro de 2008, com 76 anos. Deixou um imenso legado musical, mas também um exemplo de coragem na luta pelos direitos humanos e contra o Apartheid na África do Sul. Em 1963, após ter proferido um discurso no Comité das Nações Unidas foi impedida de regressar ao seu país. Nos anos 80, Makeba foi Delegada da Guiné, junto da ONU, que lhe atribuiu o Prémio da Paz Dag Hammarskjöld, país onde residiu durante alguns anos com o activista Stokely Carmichael com quem havia casado em 1968.
Com o fim do Apartheid regressa à sua pátria, em 1990, a pedido de Nelson Mandela que a recebeu com honras e gratidão.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

BIOÉTICA, MEIO AMBIENTE E VIDA HUMANA


Inicio este texto com as palavras de Engelhardt Jr. “O desafio da futura bioética é que possuímos mais do que nunca conhecimentos tecnológicos e não temos, entretanto, o menor sentido de como utilizá-los, sendo que a crise de nossa era é que adquirimos um poder inesperado e devemos usá-lo no caos de um mundo pós-tradicional, pós-cristão e pós-moderno” (ENGELHARDT JR., 1996).
Também Philipe Roqueplo fala de distintos momentos no relacionamento tecnologia-natureza. O primeiro, chamado “arcaico”, em que a natureza era investida de um verdadeiro poder normativo. A liberdade humana encontrava-se então inteiramente submetida a um horizonte natural. Em oposição, vivemos actualmente a pós-modernidade, mencionada por Engelhardt, em que a tecnociência é dotada de um poder quase ilimitado de exploração da natureza. Hoje, portanto, a tecnologia assumiu o carácter de um poder quase incontrolável, estando o Homo sapiens inteiramente subjugado ao homo faber. A relação entre ciência e técnica passou a ser dominante e o produto dessa união - a tecnociência - é dotado de poderes extraordinários. A pesquisa, por sua vez, é orientada por instituições tecno-burocráticas. A tecnociência vai produzindo conhecimentos que, sem quaisquer reflexões éticas, transformam-se em regras impostas à sociedade que, obediente a essa máquina cega de saber, projecta-se trôpega por um longo e escuro túnel. Husserl, numa famosa conferência sobre a crise da ciência europeia, já identificara um buraco cego no objectivismo científico: o vazio da consciência sobre si mesma. A partir do momento em que, de um lado, ocorreu o divórcio da subjectividade humana, reservada à filosofia, e a objectividade do saber, que é própria à ciência, o conhecimento científico desenvolveu tecnologias refinadas para conhecer todos os objectivos possíveis, mas tornou-se completamente alheio aos valores essenciais da humanidade. É o que Morin denomina “ignorância da ecologia da acção”, ou seja, a partir do momento em que é iniciada, a acção humana escapa das mãos do agente, entrando em jogo as múltiplas interacções próprias da sociedade de mercado que a desviam de seu objectivo e, às vezes, lhe dão destino oposto ao inicialmente planeado. Nesse processo, a ideia de homem desintegra-se.(…)
Esse divórcio entre os avanços científicos e a reflexão ética foi que levou Jonas a propor novos parâmetros para avaliar a responsabilidade sobre os impactos das acções, pois “a técnica moderna introduziu acções de magnitudes tão diferentes, com objectivo e consequências tão imprevisíveis, que os marcos da ética anterior já não mais podem contê-los” (JONAS, 1995). É certo que os marcos da ciência moderna se encontram em Descartes e Bacon que concediam valorização extrema à experimentação. Ambos desprezavam o saber especulativo e privilegiavam o poder operativo da ciência. O ser humano para eles converte-se em mestre e dono da natureza. Em “Avancements des Sciences” Bacon concita os homens a unirem forças para dominar a natureza “para tomar de assalto e ocupar seus castelos e suas praças” (RUSSEL, 1957). De facto, frente a tal invectiva, os homens de ciência fizeram todo possível para responder à altura ao que Bacon propusera. E, tanto foi feito, que se produziu um novo modelo de entrelaçamento entre a técnica e a ciência, de tal modo que toda a investigação contemporânea se realiza através do íntimo diálogo entre o conceito e a aplicação, a teoria e a prática. Em relação a isso Popper afirmou que: “A história das ciências, como a de todas as ideias humanas, é uma história de sonhos irresponsáveis, de teimosia e de erros. Porém, a ciência é uma das raras actividades humanas, talvez a única, na qual os erros são sistematicamente assinalados e, com o tempo, constantemente corrigidos” (POPPER, 1975).
Diante dessa constatação é fundamental que cada um de nós, na condição de cientista ou cidadão, se indague sobre como considerar as vítimas fatais da tecnociência. O que falar, por exemplo, sobre todos aqueles que sucumbiram em Hiroshima e Nagasaki? Diante dessas atrocidades não se pode conceber que a ciência não esteja alicerçada numa sólida consciência ética do pesquisador, principalmente quando se leva em conta que ele não mais detém o poder absoluto sobre os processos de trabalho, mas sim, está ao serviço de gestores do poder, que nem sempre cultivam preocupações dessa natureza. Se, indiscutivelmente, houve um avanço extraordinário quando a ciência, no século XVII, se tornou independente da religião e do Estado e, se desde então, criou seu próprio imperativo “conhecer por conhecer”, gozando de total liberdade para tanto, é imprescindível que a ética, pautada nos valores humanos, oriente a acção. A bioética, hoje, propõe a reflexão crítica da prática científica. Amparada em autores como Beecher que, em depoimento prestado à Comissão do Congresso dos Estados Unidos sobre procedimentos antiéticos identificados em pesquisas médicas, considerou que “a ciência não é o valor maior, ao qual todos os outros devam se submeter”. Beecher argumentou que “... a ciência sempre deveria estar subordinada a uma ordem de valores estabelecidos pela própria sociedade”.
(…)Se, na Antiguidade, a cultura grega dispunha de um saber de grande alcance, mas que não produzia grandes transformações, actualmente, ao contrário, o saber tem forte acento técnico e faz-se acompanhar de um extraordinário poder de mudar a realidade social e o ambiente natural. Porém, como o saber moderno produzido pela ciência está desamparado da reflexão ética, que pode moderar e, principalmente, ponderar sobre o desmedido poder da tecnociência, tem-se a impressão que podemos estar – todos – num mesmo barco desgovernado sob a tempestade.
Ao considerar- se a responsabilidade das acções humanas, deve-se enfatizar que somente o ser humano é capaz de mudar o curso da história da vida com suas intervenções. Numa estrada que se bifurca, ele é o caminhante que detém a opção da escolha. Os rumos são diversos, assim como o destino final. Uma vereda pode terminar num precipício, enquanto outra numa fonte de águas puras.
Os mesmos impasses são apresentados pela biotecnociência, que nos coloca frente a frente com bifurcações cada vez mais angustiantes. E justamente nesses pontos de bifurcação é que se impõe a questão da escolha. Uma escolha que somente ganha contornos apropriados por um processo de deliberação conjunta, que envolva toda a sociedade humana, tal como propõe Habermas. A responsabilidade de cada ser humano consigo mesmo é indissociável da responsabilidade que se tem para com todos os homens. Trata-se de uma solidariedade que nos liga a todos, os homens e a natureza que nos cerca. É obrigatório reconhecer que, presentemente, a reflexão ética é levada a intervir num contexto novo de conhecimento, pois a tecnociência transformou profundamente não apenas o conceito de natureza, mas a própria natureza. A antiga ideia de natureza acomodava-se à inatingível ordem natural que definia os contornos das normas éticas. Hoje, trabalhamos com uma concepção inteiramente distinta. O curso da existência não é mais dependente de uma lei superior que reserva ao ser humano a condição de espectador. Muito pelo contrário, ele tornou-se hoje o agente das transformações e tem à sua mercê toda a existência, intervindo nela como bem lhe apraz. A natureza, portanto, passou a ser considerada apenas como propriedade, como domínio do homem. Seguramente, nem mesmo Bacon poderia conceber um poder tão extraordinário, um domínio tão absoluto sobre a natureza. Diante dessa realidade, é impossível não submeter as acções da ciência a exigências de uma nova responsabilidade ética. Eco faz apreciação bastante apropriada sobre uma nova percepção de responsabilidade: “O progresso material do mundo agudizou a minha sensibilidade moral, ampliou a minha responsabilidade, aumentou as minhas possibilidades, dramatizou a minha impotência. Ao fazer-me mais difícil ser moral, faz com que eu, mais responsável que meus antepassados e mais consciente, seja mais imoral que eles e a minha moralidade consiste precisamente na consciência de minha incapacidade” (ECO, 1973). Esta responsabilidade que nos é imposta pede que se preserve a condição de existência da humanidade, mostra a vulnerabilidade que o agir humano suscita a partir do momento em que ele se apresenta ante a fragilidade natural da vida. A obrigação torna-se incomparavelmente maior em função de nosso poder de transformação e a consciência que temos de todos os possíveis danos oriundos de nossas acções. A manutenção da natureza é a condição de sobrevivência do ser humano e é no âmbito desse destino solidário que Jonas fala de dignidade própria da natureza. Preservar a natureza significa preservar a vida. Eis por que, se tornou uma obrigação do ser humano o mais absoluto respeito à natureza. Outrossim é elementar o conhecimento das repercussões sobre a saúde humana, decorrentes da deterioração do meio ambiente e os possíveis desequilíbrios que ocorrerão em consequência do super aquecimento do planeta, ou da progressiva destruição da camada de ozono ou, ainda, do incontrolável desbastamento das já escassas reservas florestais. Assim, no momento actual, representa-se um futuro que talvez não se realize, mas que, no entanto, apresenta seu testemunho no presente, enquanto caracterização de um infortúnio, enquanto imagem do não querido, mas, sobretudo mostrando eloquentemente a necessidade de se instituir um novo estatuto de responsabilidade que vise a manutenção da vida humana e extra-humana. Prigogine aponta a necessidade da ciência dialogar com a natureza, alertando que compreender não pode significar controlar, pois: “Seria cego o senhor que acreditasse conhecer seus escravos pelo simples facto dos mesmos obedecerem às suas ordens (...) Nenhuma especulação, nenhum saber jamais afirmou a equivalência entre o que se faz e o que se desfaz, entre uma planta que nasce, floresce e morre, e uma planta que ressuscita, rejuvenesce e retorna para sua semente primitiva, entre um homem que amadurece e aprende e um homem que se torna progressivamente criança, depois embrião, depois célula”(PRIGOGINE, 1996).
As inquietações com o desequilíbrio ecológico derivam também do quase inexistente sistema de contabilidade ambiental. O sistema internacionalmente aceite para apresentar o progresso económico de um país, o chamado Produto Interno Bruto (PIB), não considera a depreciação do capital natural, como é o caso da perda do solo por erosão, da destruição das florestas pela chuva ácida ou da redução da camada de ozono. O resultado é que a contabilidade económica sobrestima o progresso técnico e desconsidera a degradação ambiental. O sistema de avaliação do equilíbrio do meio ambiente é bastante precário e nem sequer temos ideia do número de espécies de plantas e animais que desaparecem a cada ano.A consequência natural de uma economia baseada em apreciações tão precárias é a de que, pouco a pouco, se esvai a vida do planeta. As práticas danosas à natureza que foram implantadas nas últimas décadas traduzem-se agora por uma redução de terras cultiváveis, de bosques e pastagens e da vida marinha, além das drásticas alterações climáticas e dos fenómenos directa ou indirectamente a estas relacionados, como os cada vez mais frequentes furacões e terramotos. Em decorrência disso, são crescentes os gastos com projectos de descontaminação ambiental, com o tratamento de enfermidades como o câncer de pele, patologias congénitas, diferentes formas de alergias, enfisema pulmonar, asma brônquica e outras doenças respiratórias. Ainda com relação à contaminação ambiental, particularmente da água, do ar e do solo por produtos tóxicos, os gastos com agravos à saúde humana estão crescendo expressivamente. Acima de tudo, porém, é impressionante o aumento dos custos humanos decorrentes da expansão do fenómeno da fome, que se amplia nesse processo vertiginoso.
Uma das publicações mais reconhecidas sobre o equilíbrio ecológico é oriunda da Comissão Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento que recebeu o título de Nosso futuro comum. (…)Nas palavras da presidente da Comissão, Gro Harlem Brundtland: “...era a esperança de que o meio ambiente iria deixar de ser uma questão secundária na tomada de decisões políticas. (...) Seria o caminho de salvaguardar o futuro preservando os interesses das gerações futuras” (COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DESARROLLO, 1992).
Pretendia-se, assim, resgatar a interacção homem - natureza que a visão baconiana descartara. O título da publicação já exprimia a intenção de busca de soluções multilaterais que contemplassem um sistema de políticas económicas internacionais fundadas na cooperação mútua. Desta obra extraímos um breve e significativo trecho dirigido aos membros dos inúmeros países representados na Comissão: “Se não conseguirmos que nossa urgente mensagem chegue aos países e às pessoas que tomam decisões na actualidade, corremos o risco de solapar o direito essencial que têm nossos filhos a um meio ambiente são e que privilegie a vida” (COMISIÓN MUNDIAL DEL MEDIO AMBIENTE Y DESARROLLO, Op. cit.).
Concluo estas reflexões com breves citações de pensadores contemporâneos que bem resumem a preocupação da bioética com o meio ambiente e a vida humana. Em relação ao avanço incontrolado da biotecnociência, assim se expressou Berlinguer: “A velocidade com que se passa da pesquisa pura para a aplicada é, hoje, tão alta que a permanência, mesmo que por breve tempo, de erros ou fraudes, pode provocar catástrofes” (BERLINGUER, 1993). E, finalmente, as palavras sensatas de Potter: “Peço-lhes que pensem a bioética como uma nova ética da ciência que combine humildade, responsabilidade e competência, que seja interdisciplinar e intercultural e que faça prevalecer o verdadeiro sentido de humanidade” (POTTER, 1998).(…) Considero a bioética uma ferramenta indispensável para a construção de uma ciência pautada na ética, que responda aos dilemas humanos, dos indivíduos e das populações, respeitando as formas de vida e o ambiente. Para tanto, a bioética deve ter como meta trazer para a pauta de discussão temas que possam constituir-se em marcos que orientem reflexões pertinentes à realidade contemporânea, capazes de tornar o planeta de facto a nossa casa: o local onde se fortalecem os laços de amizade e se cuida amorosamente das gerações futuras.
Bioethics, environment and human life *
José Eduardo de Siqueira, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paraná, Brasil
* Conferência apresentada no VI Congresso Brasileiro de Bioética e I Congresso de Bioética do Mercosul, in RBB

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Recado para Copenhaga a propósito do nosso mundo ambiental


“Eis a péssima notícia: estamos perdidos, irremediavelmente perdidos.
Estamos perdidos, mas temos um tecto, uma casa, uma pátria. É a nossa
pátria, o lugar de nossa comunidade de destino de vida e morte. O
evangelho dos homens perdidos diz-nos que devemos ser irmãos, não
porque seremos salvos, mas porque estamos perdidos”

Edgar Morin, in "Terra-pátria",1995

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Natal

Estes natais sinistros
por Gabriel García Márquez

Já ninguém se recorda de Deus no Natal. Há tanto estrondo de corneta e fogos de artifício, tantas guirlandas de focos de cores, tantos perus inocentes degolados e tantas angústias de dinheiro que ultrapassam nossos recursos reais que podemos nos perguntar se a alguém resta um instante para perceber que semelhante alvoroço é para celebrar o aniversário de uma criança que nasceu há 2000 anos numa estrebaria de miséria, a pouca distância de onde havia nascido, uns mil anos antes, o rei David. Novecentos e cinquenta e quatro milhões de cristãos crêem que essa criança era Deus encarnado, mas muitos celebram-no como se na realidade não o acreditassem. Celembram-no além disso muitos milhões que nunca o acreditaram, mas agrada-lhes a pândega, e muitos outros estariam dispostos a virar o mundo do avesso para que ninguém continuasse a acreditar. Seria interessante averiguar quantos deles crêem também, no fundo da sua alma, que o Natal de agora é uma festa abominável, e não se atrevem a dizê-lo por um preconceito que já não é religioso e sim social.
O mais grave de tudo é o desastre cultural que estes Natais pervertidos estão a causar na América Latina. Antes, quando só tínhamos costumes herdados da Espanha, os presépios domésticos eram prodígios de imaginação familiar. A criança Deus era maior que o boi, as casinhas encarrapitadas nas colinas eram maiores que a virgem, e ninguém dava atenção a anacronismos: a paisagem de Belém era completada com um comboio de corda, com um pato de pelúcia maior que um leão que nadava no espelho da sala, ou com um agente de trânsito que dirigia um rebanho de cordeiros numa esquina de Jerusalém. Acima de tudo punha-se uma estrela de papel dourado com uma lâmpada no centro, e um raio de seda amarela que deveria indicar aos Reis Magos o caminho da salvação. O resultado era antes feio, mas parecia connosco, e naturalmente era melhor do que tantos quadros primitivos mal copiados do aduaneiro Rousseau.
A mistificação começou com o costume de que os brinquedos não fossem trazidos pelos Reis Magos – como sucede em Espanha com toda a razão – e sim pela criança Deus. Nós, crianças, deitávamo-nos mais cedo para que as prendas chegassem logo, e éramos felizes ouvindo as mentiras poéticas dos adultos. Entretanto, eu não tinha mais de cinco anos quando alguém na minha casa decidiu que já era tempo de revelar-me a verdade. Foi uma desilusão não só porque eu acreditava deveras que era a criança Deus que trazia os brinquedos, como também porque teria querido continuar a acreditar. Além disso, por pura lógica de adulto, pensei então que os outros mistérios católicos também eram inventados pelos pais para entreter as crianças, e fiquei-me no limbo. Naquele dia – como diziam os mestres jesuítas na escola primária – perdi a inocência, pois descobri que tão pouco as crianças eram trazidas de Paris pelas cegonhas, o que é algo que ainda gostaria de continuar a acreditar para pensar mais no amor e menos na pílula.
Tudo isto mudou nos últimos trinta anos, mediante uma operação comercial de proporções mundiais que é ao mesmo tempo uma devastadora agressão cultural. A criança Deus foi destronada pelo Santa Claus dos gringos e dos ingleses, que é o mesmo Papá Noel dos franceses, aos quais todos conhecemos demasiado. Chegou-nos com tudo: o trenó puxado por um alce, e o abeto carregado de brinquedos sob uma fantástica tempestade de neve. Na realidade, este usurpador com nariz de cervejeiro não é outro senão o bom São Nicolau, um santo ao qual quero muito é o do meu avô coronel, mas que nada tem a ver com o Natal, e muito menos com Noite Boa tropical da América Latina. Segundo a lenda nórdica, São Nicolau reconstruiu e reviveu vários escolares que um urso havia despedaçado na neve, e por isso proclamaram-no patrono das crianças. Mas a sua festa celebra-se em 6 de Dezembro e não a 25. A lenda tornou-se institucional nas províncias germânicas do norte em final do século XVIII, junto à árvore dos brinquedos, e há pouco mais de cem anos passou à Grã-Bretanha e à França. A seguir passou aos Estados Unidos, e estes enviaram-na para a América Latina, com toda uma cultura de contrabando: a neve artificial, as velas de cores, o peru recheado e estes quinze dias de consumismo frenético ao qual poucos de nós se atrevem a escapar. Contudo, talvez o mais sinistro destes Natais de consumo seja a estética miserável que trouxeram consigo: esses cartões postais indigentes, esses cordões de luzinhas de cores, esses sininhos de vidro, essas coroas de visco penduradas no umbral, essas canções de atrasados mentais que são os cânticos traduzidos do inglês; e tantas outras estupidezes gloriosas para as quais nem sequer valia a pena haver inventado a electricidade.
Tudo isso, em torno da festa mais espantosa do ano. Uma noite infernal em que as crianças não podem dormir com a casa cheia de bêbados que se enganam de porta à procura de onde desaguar, ou a perseguir a esposa de outro que por acaso teve a boa sorte de cair adormecido na sala. Mentira: não é uma noite de paz e amor, e sim todo o contrário. É a ocasião solene da gente que não se quer. A oportunidade providencial de cumprir os compromissos adiados por indesejáveis: o convite ao pobre cego que ninguém convida, à prima Isabel que ficou viúva há quinze anos, à avó paralítica que ninguém se atreve a mostrar. É a alegria por decreto, o carinho por lástima, o momento de presentear porque nos presenteiam, e de chorar em público sem dar explicações. É a hora feliz de os convidados beberem tudo o que sobrou do Natal anterior: o creme de menta, o licor de chocolate, o vinho de banana. Não é raro, como sucede amiúde, que a festa termine a tiros. Nem é raro tão pouco que as crianças – ao verem tantas coisas atrozes – acabem por crer realmente que o menino Jesus não nasceu em Belém e sim nos Estados Unidos.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Sobre a Palavra



Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece

Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama

Assim se morre dizias tu
Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura

Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada

Interminavelmente

Eugénio de Andrade, in "Véspera da Água"

sábado, 5 de dezembro de 2009

O SILÊNCIO



O Silêncio

Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.

Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

domingo, 29 de novembro de 2009

Felicidade


O filósofo grego Aristóteles afirmava, há mais de 2 mil anos, que a felicidade se atinge pelo exercício da virtude e não da posse.
Para Roberto Shinyashiki, Felicidade não é o que acontece na nossa vida, mas como nós elaboramos esses acontecimentos. A diferença entre o sábio e o ignorante é que o primeiro sabe aproveitar suas dificuldades para evoluir, enquanto o segundo se sente vítima de seus problemas.
E um Provérbio chinês conclui que "Mesmo que tenhas dez mil plantações, só podes comer uma tigela de arroz por dia; ainda que a tua casa tenha mil quartos, nem de dois metros quadrados precisas para passar a noite."

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A ILHA


A Ilha
Autor: Giani Stuparich
Título original: L’Isola
Tradutora: Margarida Periquito
Editora: Ahab
N.º de páginas: 79
ISBN: 978-989-96340-2-2
Ano de publicação: 2009

Com um perfil semelhante à Cavalo de Ferro dos primeiros tempos, a novíssima editora Ahab, implantada no Porto, promete apostar em autores inéditos em Portugal (ou pouco divulgados). Uma intenção que se confirma nos três primeiros títulos: Pergunta ao Pó, de John Fante; Pudor e Dignidade, do norueguês Dag Solstad; e A Ilha, de Giani Stuparich.
Comecemos por este último. Não se alongando por mais de cinquenta páginas, breves mas de uma intensidade quase sufocante, A Ilha é considerada a obra-prima de Gianni Stuparich (1891-1961), talvez menos conhecido do que outros grandes escritores de Trieste (Italo Svevo, Umberto Saba, Scipio Slataper ou Claudio Magris) por ter sobreposto os seus compromissos morais à expressão estética. Nas palavras de Magris, ele era «um mestre de rectidão civil e de empenhamento democrático», tendo de resto pago caro a recusa do fascismo, com uma passagem pelo campo de concentração de San Sabba (1945).
Em A Ilha (1942), Stuparich narra uma viagem final. Consciente do declínio físico, um homem convida o filho a viajar com ele até à ilha onde nasceu, para o que talvez sejam os seus últimos dias. Vindo das montanhas, o filho acede ao pedido e enfrenta a «luz crua» do mar, a «implacável cintilação do azul», procurando reaproximar-se desse pai que lhe abriu de vez os horizontes, aos dez anos, durante um périplo pela Dalmácia («onde antes imaginara apenas abismos ignotos e temerosos, descobrira chão firme e a alegria de por ele caminhar, desenvolto»), viagem iniciática cuja memória lhe provoca agora uma «sensação obscura, fisiológica; talvez idêntica à que deve sentir uma borboleta quando sai da crisálida».
O progenitor, que já foi como um deus para ele, «com o rosto luminoso, a voz sonora, modos de conquistador», envelheceu e tem um cancro no esófago, ameaça mortal que ergue, entre os dois, um silêncio em que o não-dito (a doença) apenas torna mais desesperado o afecto que os une. Na ilha há calor, mosquitos, insónias, uma paisagem deslumbrante e agreste. O pai vai à pesca, fuma, lê a Bíblia (O Livro de Job), recorda a «ilhota do amor» onde «os cachos oscilavam entre os lábios dos amantes», apagando-se numa espécie de resignação satisfeita. O filho mergulha no mar agitado, tortura-se com o sofrimento paterno (a tosse, os engasgos, os sinais da «fria lividez da morte») e tenta controlar as emoções. Ambos sabem que não há regresso depois do regresso. E é nesta matéria tão frágil – o amor indizível, a consciência do fim – que Stuparich esculpe a sua história. Uma história de uma simplicidade e beleza avassaladoras.

Avaliação: 9/10

[Texto publicado no suplemento Actual, do semanário Expresso]

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Paul Simon, Concerto em África, 1987

Paul Simon: Diamonds on the soles of her shoes, South Africa.
Concert in Zimbabwe 1987 with ladysmith, black mambazo, joseph shabalala, ray phiri, miriam makeba


terça-feira, 17 de novembro de 2009

Amo devagar...


Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Herberto Helder

domingo, 15 de novembro de 2009

Informe sobre o País recalcado

Desagrada-me ter de molhar a caneta na tinta do desalento e da mágoa. Não me sinto bem a dizer mal. Mas o mal aí está, numa sociedade decrépita, cujos dirigentes demonstram uma felicidade tão intensa quanto leviana, e a elite, averiguadamente, não se...

Desagrada-me ter de molhar a caneta na tinta do desalento e da mágoa. Não me sinto bem a dizer mal. Mas o mal aí está, numa sociedade decrépita, cujos dirigentes demonstram uma felicidade tão intensa quanto leviana, e a elite, averiguadamente, não se interessa pelos destinos do País. Numa entrevista a Ana Lourenço, na SIC, terça-feira, António Barreto fez uma análise demolidora da situação. Barreto demonstrou, com números e dados de facto, que Portugal parece condenado a não se sabe bem o quê. Avisou: "Nos próximos anos, pode haver um movimento de emergência nacional." Como, "emergência nacional"? Intervenção militar? Ruptura absoluta na economia e nas finanças? Surgimento de um poder baseado nos bancos e nos juízes? Nada é de pôr de lado. Tudo é admissível. Qualquer destas hipóteses tem acontecido, a espaços mais ou menos curtos, um pouco por todo o lado dito "ocidental."

Na verdade, de que forma se pode organizar um país, o nosso, com 600 mil desempregados, 20 mil compatriotas a viver na faixa da miséria, 40 mil idosos com fome, milhares de grandes, pequenas e média empresas a fechar, e uma mocidade sem perspectivas, não só aqui como em outros países?

A precariedade instalou-se na vida, nos costumes, nos hábitos e na resignação portugueses. Não vale a pena estruturar as coisas nem a longa nem a curta distância. Os salários estão cada vez mais baixos, e os gentis senhores Van Zeller e Vítor Constâncio propõem: nada de aumentos! O jornalismo português existe numa baixeza moral e profissional nunca vista, nem mesmo nos tempos da Censura, da PIDE, das guerras coloniais. Sei muito bem que há gente incomodada quando escrevo e digo isto. E digo isto nos jornais, nas televisões, nas rádios e em debates para que, frequentemente, sou convidado.

Raramente notícias com a importância daquelas que referi vão para as primeiras páginas, abrem os telejornais, são comentadas e esclarecidas. A rotina dos que interpretam os factos escapa destes casos, recusa a sua análise. Os comentadores são muito independentes, muito imparciais, muito limpos, muito "distanciados" e não têm por objectivo incomodar quem manda.

As doses maciças de futebol com que nos anestesiam as capacidades críticas atingem os territórios do obsceno. O País está em declive acentuado, e não sou só eu que o digo, e a música que nos tocam é maviosa.

Os vencimentos são tão baixos que não chegam para sustentar famílias com um e dois filhos. Recorrem aos bancos da fome, à Caritas, e a outras organizações cristãs e a movimentos de solidariedade social. Há dias, o "Correio da Manhã" informava dos criminosos (não há outro termo: criminosos) ordenados e reformas obtidos por cavalheiros que talvez se julguem acima do bem e do mal. É uma notícia aterradora pela pouca-vergonha que comporta. Uma casta de privilegiados sobreleva todas as ideias de justiça e de equilíbrio social, por mais minguadas que sejam. Aqueles de nós, cada vez mais reduzidos, por medo ou por compromisso, aqueles de nós que manifestam indignação e repulsa por este estado de coisas são apodados de comunistas. Alguns, até, perseguidos, pelo singelo desejo de uma pátria solidária e fraterna. Como devem calcular, sei muito bem do que falo.

No entanto, creio que a função social da Imprensa corresponde, cada vez mais, à necessidade de se criar novos laços sociais. De contrário, corremos o risco de uma explosão generalizada, com consequências imprevisíveis. As pessoas mais novas pouco ou nada sabem do nosso passado próximo recente. Poucos filmes "políticos", pouca investigação histórica, poucos resultados de ordem pedagógica. Os escritores portugueses parecem ter-se demitido da sua exemplaridade. Abandonaram os testamentos legados por uma literatura que forneceu o retrato moral, estético, ético e intelectual do Portugal sequestrado. A ausência de debate e de polémica resulta desse abandono trágico.

O retrato de António Barreto ao País foi terrível, por perturbador. Com uma secura implacável e a voz serena e calma que se lhe conhece, o sociólogo não escamoteou nem ocultou as novas figuras de autoridade, como o medo, que nos limitam e constrangem. E Ana Lourenço, muito bem preparada, formulava as perguntas apropriadas àquilo que Barreto ia dizendo. E Barreto não esqueceu os tropeções por que tem passado o jornalismo português, cada vez mais medíocre, mais apressado, mais levezinho e ligeirinho. Uma grande entrevista, que devia servir de exemplo a muitos e muitas preopinantes das televisões, que apenas procuram o sobressalto, a surpresa e o pequeno escândalo.

O retorno do recalcado aí está. O recalcado não encontra motivação em coisa alguma. Depois, é informado da miséria, do desespero e da angústia que o rodeiam; dos ordenados (diz-se "vencimentos", é mais civilizado) dos "gestores" que foram, que são e que estão para vir. Tudo o recalca. Tudo o abate. Tudo o conduz à frustração.

Artigo de Opinião de Baptista Bastos, publicado no "Jornal de Negócios", em 30 de Outubro de 2009

sábado, 14 de novembro de 2009

Reflexão


"Cada um só tem verdadeiramente a pátria que se inventa, quer dizer, a casa ideal onde o que é e o que faz se lhe volve transparente e fora da qual se sente, por assim dizer, perdido."
Eduardo Lourenço, 1999

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Crying Time

Oh, it's cryin' time again
You're gonna leave me
I can see that faraway look
In your eyes
I can tell by the way
You hold me, darlin'
That it won't be long
Before it's cryin' time
(...)
Barbra Streisand and Ray Charles, a inconfundível sonoridade destas vozes ímpares.

A MARGEM DO PÂNTANO




Para Jorge de Sena


Tudo me dói como se fora medo
ou ânsia de ficar aquém da morte
brincando na ilusão de estar vivendo
medos perdidos, pélagos selados.
Sonhos não chegam para tamanha sorte
ou chegam, mas são fúria lá no centro
de um mundo onde não vivo, iluminado
por mão intemerata já sem norte.
Acaso quebro lages, desço fundo,
laços desfaço de invisível corda.
Ao centro que me foge e que não quero
logo deslizo como quem se avilta
no lixo temporal muro fechado.
Enquanto o dia não chega a febre aumenta.
Vozes insistem pela madrugada.
Lanço de mim o grito inesperado:
eu vivo, sou, e sonho, ou desespero!
realidade és medo, a dor é nada!

RUY CINATTI, in "Conversa de Rotina ", 1973

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Vai-te, Poesia!


Vai-te, Poesia!

Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.

Vai-te, Poesia!

Não quero cantar.
Quero gritar!

Poesia - José Gomes Ferreira

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O Muro da vergonha

Este muro caiu ao fim de vinte e oito longos e infames anos. E os outros que se ergueram sem memória deste ultraje? E as paredes que nos vão separando, cerradas sem janelas, cavando miséria, divisão e ostracismo?
Que mundo o nosso de tantos muros e de tanto esquecimento.

domingo, 8 de novembro de 2009

Canto...

Orfeu Rebelde

(...)Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.


Letreiro

Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim - meu principal motivo
de insatisfação -,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

Miguel Torga, in "Orfeu Rebelde", 1958

sábado, 7 de novembro de 2009

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A relação ética de Alteridade em Lévinas

A partir da constatação de que a compreensão de metafísica, que emergiu com os
pré-socráticos e se efectivou no desenvolvimento histórico do pensamento ocidental teve como preocupação fundamental constituir um saber sobre o ser, procuramos, na nossa tese, afirmar a possibilidade da ética como metafísica da alteridade. Na contemporaneidade, Husserl preocupa -se em incluir a alteridade na constituição do sentido da objectividade. Na sua tentativa de constituir o sentido do outro, emerge um nós constituinte. A intencionalidade egológica e solitária transforma-se em intencionalidade intersubjectiva. Heidegger fez uma crítica veemente à metafísica, acusando-a de ter esquecido de considerar o ser como a questão mais fundamental. Enunciou que a possibilidade do pensar ético seria viável à medida que se tornasse o agir na procura da verdade do ser, que garantiria ao homem, na sua existência, realizar sua essência. Levinas percebe que a prioridade do pensamento na procura de estabelecer a verdade como o ser resultou na configuração de uma ontologia, uma gnosiologia e uma forma de racionalidade, que se identificaram com os próprios temas investigados, a coerência das relações lógicas e as formas objectivas abstractas. Esse modelo de pensamento não ignorou a dimensão antropológica, mas, na obsessão pela síntese e pela objectividade, terminou nivelando as coisas e a interioridade subjectiva das pessoas, igualando e diluindo suas particularidades numa generalização neutra e abstracta. O humano tornou-se um ente entre outros entes, um ser anónimo, impessoal, apreendido pelo sujeito pensante e expresso num conceito. A corporeidade, a sensibilidade, os desejos, a dinâmica de relação com os outros, o nascer, o viver, o sofrer, o morrer do humano transformaram-se em conteúdo objectivo, sintetizado e representado num sentido puramente racional. Em vez da relação teórica abstracta na determinação inteligível do ser, Levinas prioriza a busca do sentido do humano, onde se verifica a possibilidade da relação metafísica do mesmo com o outro, sem que o outro se reduza ao mesmo, nem o mesmo se absorva na identidade do outro, mantendo, cada um, a condição de separação e a verdadeira relação de alteridade. A relação ética de alteridade torna-se lugar originário da construção do sentido e provocação eminente à racionalidade. O rosto do outro apresenta-se como apelo irrecusável de responsabilidade para com ele, que tem como medida, a des-medida do infinito. O rosto não é um ente objectivo que possa ser abordado de modo especulativo. O rosto fala e, ao proferir sua palavra, invoca o interlocutor a sair de si e entrar na relação do discurso. A linguagem tem a excelência de assegurar a relação entre o mesmo e o outro, que é transcendente em absoluto respeito à sua alteridade. O infinito se mostra na subjectividade vivente na história, que pode desejar outrem para além do sentido racional, objectivo e abstracto. Na relação com o outro, efectiva-se a possibilidade do infinito dar-se sem padecer os horrores da violência do modo de pensar entificante e totalizador. Ela faz reluzir o seu brilho como verdadeira alteridade metafísica, que nos convoca a desejar aquilo que sabemos nunca poder saciar, o desejo.

JOSÉ TADEU BATISTA DE SOUZA, in "ÉTICA COMO METAFÍSICA DA ALTERIDADE EM LÉVINAS ", UCRGS, 3 de Agosto de 2007

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Claude Lévi-Strauss (1908-2009)


O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss morreu sábado, 31 de Outubro, aos 100 anos.

«Estamos num mundo a que já não pertenço. Aquele que conheci, aquele de que gostei, tinha 1500 milhões de habitantes. O mundo actual tem seis mil milhões de humanos. Já não é o meu.»

domingo, 1 de novembro de 2009

DESENCANTO DOS DIAS


DESENCANTO DOS DIAS

Não era afinal isto que esperávamos
Não era este o dia
Que movimentos nos consente?
Ah ninguém sabe
como ainda és possível poesia
neste país onde nunca ninguém viu
aquele grande dia diferente

Ruy Belo

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Herberto Helder — A Faca não Corta o Fogo: súmula & inédita


Herberto Helder — A Faca não Corta o Fogo: súmula & inédita, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.
Talvez a poesia de Herberto Helder possa ser definida assim: a única que não aceita ser estudada transversalmente, a única que pede interlocução directa, aquela que, por excesso de obliquidade, só aceita ser abordada de frente. Ninguém entra nela para estudar alguma coisa que estivesse também noutra poesia ou na poesia em geral (se isso existisse). Alguma impossibilidade nesta definição? Não poderá uma escrita poética demarcar-se, acima de tudo, pelo modo de ler que acolhe ou selecciona, pelas manobras interpretativas que rechaça ou neutraliza? Um livro como A Faca não Corta o Fogo suscita questões desta ordem, quer se considere a sua primeira parte — a «súmula», que altera a súmula proposta pelo poeta, em 2001, sob o título Ou o Poema Contínuo —, quer se pense na segunda, isto é, nas setenta e cinco páginas que formam a parte «inédita» do volume agora editado. E mais ainda as suscita quando procuramos pensar este gesto de pôr dois livros na linha (contínua) de um livro só. Mas de que ordem são afinal tais questões? Parece conveniente falar aqui do que se pode, então, designar como uma axiologia da obra. Porque se uma obra vai ao ponto de fazer a «súmula» de si mesma (e recorde-se que a «súmula», em 2001, pretendia «estabelecer apenas as notas impreteríveis» do «poema contínuo pelo autor chamado poesia toda»), isso significa que adquiriu a faculdade de se julgar a si mesma, de separar no seu próprio corpus o preterível do impreterível, de destrinçar tão claramente o que lhe convém e o que lhe é pernicioso ou simplesmente supérfluo, que este poder se torna equivalente ao de quem não confunde os traços do seu rosto com os de qualquer outro, por muito grande que seja o parentesco, a afinidade ou a semelhança. É esse rosto da obra que não cessa de nos interpelar, tão fortemente talhado ou esculpido ele surge de cada vez que um novo texto subscrito por Herberto Helder nos chega às mãos. É com esse rosto que sentimos (falta melhor verbo para descrever o que se passa) a inderrogável necessidade de abrir diálogo, mesmo sabendo, como sabemos e como bem sabemos que Herberto sabe, que nenhuma leitura se confunde jamais com o que seria, na sua forma ideal, um autêntico diálogo. A inusual agitação mundana à volta desta publicação transmitiu a esse respeito sinais inequívocos: nos circuitos literários da web houve insistências várias na figura do poeta, no seu nome, vida e obra, por vezes mencionadas extensivamente. Eis o que se pode interpretar de múltiplas formas, nenhuma, porém, capaz de evitar este facto evidente: um livro novo de Herberto Helder é um acontecimento que se recusa a remeter-nos para o que quer que seja, salvo para a obra assinada «Herberto Helder». E mais: é um acontecimento que não acontece sem essa remissão absolutamente preponderante e exclusiva. Como leitores, somos interpelados pela força da obra que se reitera para de novo traçar o perfil da sua assinatura ou do seu rosto como se o traçasse agora de uma vez por todas, sem termos maneira alguma de escapar a esse efeito de sorvedouro que nos arrasta para o todo da obra, seja qual for a parte dela em que estejamos momentaneamente ocupados. Não é preciso pensar muito para intuir que é também nesse sentido que «a faca não corta o fogo» ou, por outras palavras, que nunca a continuidade do fogo se vê ou se quer ver posta em causa pelo desejo de aplicar a lâmina para separar partes de obra e, com esse gesto retalhador, procurar mais acessível inteligibilidade. Isto é: A Faca não Corta o Fogo é um título a que, afinal, se poderia acrescentar — como quem o explicasse — Ou o Poema Contínuo. Daí que não haja separação formal, nenhum separador graficamente desenhado entre a «súmula» e a «inédita», daí portanto que o título de uma parte (A Faca não Corta o Fogo intitula o material inédito enquanto conjunto formando um livro novo) seja também o novo título da outra parte, e ainda o título da junção das duas partes num livro único. Essa junção é uma junção sem juntura, pretende formar um tecido sem a marca de qualquer costura. E forma. Com um lucro inesperado: a designação mais intensa, menos abstracta (por via de um provérbio grego: não se pode cortar o fogo com uma faca), da poética da continuidade — essa poética cuja enunciação e prática consagra Herberto Helder como o grande antimoderno dos poetas modernos portugueses.
Nesse sentido, é também de explícita inspiração grega o poema que, da série dos inéditos, melhor propaga o magnífico anacronismo do «fogo» posto em título. Começa assim: «li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, / quando alguém morria perguntavam apenas: / tinha paixão?» (p. 205.) Não admira que os comentadores de Herberto se sintam hoje praticamente constrangidos a falar de «romantismo» quando tentam decifrar a inscrição de metáforas como a do «fogo», no seu perfeito acordo com uma axiologia poética que põe a «paixão» no topo de todos os critérios para aquilatar o sentido de uma vida: «quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão: / […] paixão pela paixão, / tinha? / e então indago se eu próprio tenho paixão, / se posso morrer gregamente, / que paixão?» (id.) A memória dos «gregos antigos», porém, bastaria para desaconselhar vivamente a redução da antimodernidade de Herberto a um tímido anacronismo de dois séculos. Este «fogo» é, não só mais remoto, como sobretudo de uma qualidade que nos é mais estranha, porque nem sequer acredita nessa espécie de metafísica temporal (na essência, de invenção romântica) que abre clivagem e rivalidade entre antigos e modernos: à história, ao império do modo histórico (quer dizer: cortado, partido) de pensar, de escrever e de viver, a poética da continuidade opõe o desejo de existir sob o signo da fluidez e da paixão musical:

afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna
(p. 206.)
Esta poética tem na morte uma das suas fontes primeiras de inspiração. Mas não a única e, desse ponto de vista, este volume é de uma coesão desconcertante: a verdade é que, entre a «súmula» e a «inédita», as linhas de contacto directo são tão sensíveis quanto são notórias as surpresas que marcam a energia criativa em acção nos poemas até agora desconhecidos. Tanto Manuel Gusmão como Rosa Maria Martelo, em artigos editados no Público (suplemento «Ípsilon» de 10 e 17 de Outubro, respectivamente), sublinharam a importância do tema da escrita, das figurações do acto poético que vão ao ponto de mencionar a concreta «bic preta» (p. 198), a «bic cristal preta doendo nas falangetas» com que começa um magnífico poema (p. 199) onde se ouvem ecos de um dos grandes textos em prosa de O Aprendiz de Feiticeiro, de Carlos de Oliveira. Essa micropaisagem tem, todavia, em Herberto Helder, o poder de se desdobrar de imediato em macropaisagem ilimitada, absoluta, e o poeta sentado — «por baixo / a cadeira eléctrica que vibra» (id.) — não se representa no instante de escrever sem marcar, do mesmo passo e com ênfase, toda a amplitude da escrita: «electrocutado, luz sacudida no cabelo, / a beleza do corpo no centro da beleza do mundo» (id.). Outro modo de afirmar a impossibilidade de cortar a luz e a intensidade do «fogo», vital e mortífero, sem cujo afluxo não haveria poema. Nada menos contemporâneo, claro, do que esta «beleza do corpo no centro da beleza do mundo», mas A Faca não Corta o Fogo, na sua enfática apologia da beleza — com o verso isolado «até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza» (p. 133) abre o novo livro —, está a léguas de qualquer redoma esteticista. Ao invés, a força de demarcação crítica em relação a poéticas contemporâneas atinge aqui extremos de grande violência. Basta ler certo poema que arranca com uma autocitação do livro Photomaton & Vox, onde é muito menos o mundo académico em si mesmo do que, sobretudo, o academismo poético (com ou sem cátedra) que é invectivado em termos como estes:

não um dr. mas mil drs. de um só reino,
e não se tem paciência para mandar tantas vezes à merda,
oh afastem de mim o reino,
[…] ó stôr não me foda com essa de história literária,
o stôr passou-se da puta da mona,
a terra extravasa do real feito à imagem da merda

(p. 172-3.)
O «fogo» que a língua poética de Herberto Helder transporta consigo já há muito que deixou claro como não há fogo sem incêndio. É uma questão, diz o extraordinário curto poema escrito «na morte de Mário Cesariny», de «ter um inferno à mão seja qual for a língua» (p. 206). O que é ou em que se tornou a língua portuguesa, depois de por ela passar um poeta como este, é ainda cedo para dizer. Enquanto não o dizemos, o poeta encarrega-se de insinuá-lo no corpo da sua própria «súmula»: ao acrescentar-lhe agora os poemas de Os Brancos Arquipélagos, lembra-nos uma radical experiência de invenção, delírio e extravagância idiomática como bem pode ser que não se tenha vivido outra em qualquer língua do mundo.


Por Gustavo Rubim, publicado em 23.10.2008 na secção Recensões Críticas , Revista Colóquio / Letras da Fundação Calouste Gulbenkian