O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo.
Machado de Assis
Em Junho de 2015, Leonel Brito Produções gravou, em vídeo, um depoimento de Eugénio Lisboa, com a duração de quatro horas. A ideia e a proposta foram lançadas pela Professora Teresa Martins Marques, investigadora e escritora.
Leonel Brito foi publicando excertos por temas escolhidos. A versão final seria entregue na Biblioteca Nacional.
Eugénio Lisboa é um dos mais ilustres escritores da actualidade. Nasceu em Moçambique e publicou as suas Memórias nos últimos cinco anos , em cinco volumes.
Recebeu, ao longo da sua vida, diversos Prémios Literários e foram-lhe prestadas algumas homenagens. Tem uma vasta e diversa obra publicada.
Na 18ª edição do Festival Literário Correntes d'Escritas é a figura de destaque, o escritor homenageado.
Eis dois excertos do longo e rico depoimento registado pelo cineasta Leonel Brito e uma interessante entrevista efectuada pelo escritor Júlio Conrado, em Abril/ Maio de 2015, que traçam um singular retrato deste homem maior das Letras.
Entrevista
Eugénio Lisboa:
memórias de uma vida cheia
Por Júlio Conrado
"Eugénio Lisboa tem vindo nos últimos anos a escrever e a publicar as suas memórias num notável esforço para contar uma história de cidadão do mundo que viveu as vicissitudes do seu tempo com grande intensidade, irreverência e sempre apaixonadamente. Natural de Lourenço Marques (hoje Maputo), aí decorreram as suas infância e adolescência no seio de uma família modesta mas muito solidária e daí partiu para a Metrópole com a finalidade de cursar engenharia e cumprir o serviço militar.
Em Lisboa, no Instituto Superior Técnico, completou a sua formatura em engenharia electrotécnica e, em Mafra, foi à tropa. Pelo meio, a devoção literária equiparável à paixão pelas ciências exactas, designadamente a matemática, estaria na origem dos altos voos realizados numa e noutra das especialidades (ensaísta, crítico, gestor, engenheiro, conselheiro cultural, professor de literatura, etc.) conjunto a que não faltou o reconhecimento académico (Doutor Honnoris Causa pelas Universidades de Nothingam e Aveiro), e diversas condecorações e prémios – o mais recente dos quais foi o Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores/ Município de Castelo Branco 2012/2013, pela edição de Acta Est Fabula – o seu livro de memórias, neste caso o I volume.
Julguei oportuno ouvir Eugénio Lisboa para o Triplov, colocando-lhe algumas questões cujas respostas, enriquecedoras, dão uma ideia da importância deste depoimento no qual a odisseia pessoal se cruza frequentemente com factos e “atmosferas” que caracterizam de maneira muito viva e informada o país que fomos num tempo histórico que também, em diferente contexto, partilhei.
JC - O Eugénio, como já referi, foi distinguido recentemente com o Grande Prémio de Literatura Biográfica pela sua obra Acta Est Fabula. Fale-me do que representa para si um prémio desta índole e do que pode significar num país onde “biografia” e “memórias” não são géneros particularmente cultivados e menos ainda venerados.
EL - Os prémios, como tudo, são controversos. Tolstoi recusou o Nobel que lhe iam dar, Shaw recebeu o diploma e a medalha, mas recusou o dinheiro e Sartre, diz-se, recusou o diploma e a medalha, mandando, no entanto, um recado subterrâneo, a informar que aceitaria o dinheiro. Il y en a de toutes les couleurs. Cocteau aconselhava-nos, não só, a não aceitarmos prémios, mas, até, a fazermos por não os merecer. Puro radicalismo, para épater le bourgeois: é ver se não aceitou a Academia, que também pode ser vista como um prémio. A verdade é que, ao ver-se a lista dos escritores que o Nobel ou o Goncourt deixaram de fora (verdadeiros gigantes), para, em vez deles, premiarem autênticas mediocridades, já esquecidas ou em vias de sê-lo, não se pode deixar de ficar céptico, em relação ao valor dos galardões, mesmo dos mais prestigiados.
Como não sou ingrato nem radical e como o júri do prémio que me foi atribuído era constituído por gente séria e competente – com o ligeiro inconveniente de serem todos meus amigos – confesso que fiquei feliz. Sobretudo por o livro galardoado ser um dos meus livros que particularmente acarinho: o 1º volume das minhas memórias. Se o prémio ajudar a levar para mais longe os momentos mágicos da minha infância e adolescência, em Lourenço Marques, ninguém ficará mais contente do que eu.
JC - As suas memórias espraiam-se por cinco volumes (previstos) dos quais foram publicados três. Há mesmo um salto do I para o III, ficando por editar o II, “salto” que foi objecto de uma explicação do autor ao leitor. Apesar dessa justificação, gostaria que a replicasse sumariamente nesta entrevista para os leitores que a não conhecem mas que pode esclarecer uma questão, que lhe está ligada: a sua obra Acta Est Fábula foi um projecto longamente amadurecido e os materiais preparados durante anos para quando fossem precisos, a pensar na posteridade, ou materialização de um desejo recente de pôr cá fora a sua experiência de vida? Ou os textos de Indícios de Oiro, nos quais há basta matéria autobiográfica e que são apresentados como não “tendo tido um script que precedesse a sua redacção”, seriam já o embrião das memórias, ainda que projecto não explicitamente assumido?
EL - Escrever memórias, passados os oitenta, é um atrevimento. Planeá-las em cinco volumes é pura loucura. Ninguém me podia assegurar que viveria o tempo suficiente para os escrever todos. Por isso quis garantir que escreveria, pelo menos, sendo possível, os volumes I e III, que cobririam o total da minha vida em África: os anos de 1930 a 1947 e, depois, os anos de 1955 a 1976. Em África nasci e lá me fiz e ali gozei os melhores anos da minha vida. Estas dívidas devem ser pagas. Foi por isso – e só por isso – que saltei do 1º para o 3º. Depois, continuei em frente: publiquei, no ano passado, o 4º e estou agora mergulhado na redacção do 5º, a sair no final deste ano, se tudo me correr bem. O 2º será o último a escrever: é importante e será o mais difícil de fazer. Não tenho documentos (não sou grande guardador de papel e houve diásporas pelo meio), terei portanto de recorrer só à memória.
Quanto à posteridade, não gasto muito tempo a pensar nela e não fio dela fazer a justiça que me não façam os contemporâneos. Não vejo razão para pensar que a posteridade será mais justa e mais inteligente do que a contemporaneidade. Mas gostaria, é claro, que o registo dos meus momentos privilegiados durasse um pouco para além da minha vida na terra. Procurei torná-los vivos, dando-lhes tudo aquilo que tenho. O resto já não depende de mim.
Não, não guardei nada a pensar na posteridade. Não pertenço a essa paróquia. Sou um desarrumado e um despreocupado. Não consigo encontrar coisas que me são preciosas. Para escrever o 4º volume, tive que passar semanas nos Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a folhear as informações de serviço, que enviei da embaixada de Londres para Lisboa. Não guardara nada comigo. A correspondência que possuía (trocada com figurões) já não está cá em casa – mandei-a para a Biblioteca Nacional porque de lá ma pediram (Jorge Couto, quando era director). Se não, estaria para ali, na garagem, guardada em caixas. Faço questão de sublinhar que não a vendi – dei-a.
Há um tempo, já, que pensei em escrever as minhas memórias, pelas razões que assinalei. Ao fim e ao cabo as pessoas, cá, sabem pouco da vida em África, nas embaixadas e no polo norte… Como diz, há textos meus, publicados, que são de pura autobiografia. Mas quis agora fazer uma coisa mais abrangente, mais concertada, mais minuciosa, que desperdice menos pepitas… Aqueles outros textos podem, de facto, ser considerados, objectivamente, como embrião destes cinco volumes, mas não foram escritos com esse propósito: aconteceram apenas, ao abrigo das solicitações do momento.
JC - A anedota é conhecida mas o seu caso é exemplar. Nunca perguntes a um alemão quanto tempo leva a escrever um livro. Pergunta-lhe que quantidade de esforço foi preciso despender para o conseguir. Eugénio Lisboa não é alemão mas é um trabalhador incansável. Dobrada a casa dos oitenta a sua escrita tem a frescura, a lucidez e a acutilância de um “jovem” quarentão. Como o consegue?
EL - Tentando ser claro e verdadeiro. A mulher do grande pioneiro da imunologia – Sir Peter Medawar – perguntou-lhe um dia o que visava ele, no seu estilo, quando escrevia os seus admiráveis ensaios de cariz científico. Respondeu com uma só palavra: “Clarity.” A vivacidade translúcida de Voltaire, de Stendhal, dos grandes clássicos, em geral, que fui conhecendo e, um pouco mais tarde, de Russell, Sérgio, Schopenhauer e outros vacinaram-me, para sempre, contra a trapaça da opacidade deliberadamente procurada e vendida como “profundidade”. Gosto de conviver e de comunicar saudavelmente e um pouco de vivacidade e de honestidade ajudam. A leitura de bons filósofos e cientistas também. A falta que faz, nos cursos de letras, um pouco de filosofia! E uma saboreada introdução à ciência – lavaria tanta crosta pretensiosa e inútil na prosa dos nossos líteras…
JC - No primeiro volume da série, em que exprime uma visão feliz da Lourenço Marques colonial “respira-se” uma atmosfera de paz social; diria que quase de naturalização da presença do colonizador na colónia. Não havia tensões sociais sérias na capital e no interior que traduzissem mal-estar pela presença do colonizador?
EL - Claro que havia e, se no 1º volume mal o insinuo, no terceiro volume (das minhas memórias), falo nisso claramente. No 1º era um pouco cedo. Eu tinha nascido ali, aquilo fora sempre assim, a separação e a injustiça eram parte da paisagem quotidiana. Quase não dava por nada. Houve alguns sobressaltos, mas insuficientes para muito fundas cogitações. Vivia realmente num paraíso dentro de um não-paraíso. É possível isso acontecer? É. Quando voltei a Lourenço Marques, concluído o curso, em 1955, essa “inocência” já não era viável. Foi ainda possível ser feliz, mas era uma felicidade minada. Conto isso tudo no terceiro volume.
JC - Considerado o melhor aluno do Liceu (refiro-me a Indícios de Oiro, obra que precede Acta Est Fabula) sentiu-se, por isso, predestinado para um futuro de excepção? Se a resposta é sim, em que medida a literatura o ajudou a alcançar esse patamar, quando o destino começou por encaminhá-lo para a engenharia electrotécnica, em que se formou? Sendo a matemática uma das suas paixões, esteve ela na origem da sua opção académica inicial? Ou chegou a admitir não ser essa a sua verdadeira inclinação e partir para outra?
EL - Claro que sim. Não sonhamos todos com isso? Com termos um destino de excepção? Quis ser, sucessivamente, Voltaire, Stendhal, Eugene O’Neill, Roger Martin du Gard, Hemingway, Schopenhauer, Thomas Mann, Proust… A seguir à leitura de Le Rouge et le Noir, pus-me a escrever, com muito afinco e convicção, uma História de Julião, no estilo mais stendhaliano que pude congeminar e, depois, fui à Bíblia buscar assuntos escabrosos, para, no estilo mais “realista” e nada bíblico, imitar algumas tragédias de O’Neill: tudo muito “rough” e deliberadamente escandaloso (“agora é que eles vão ver como as coisas são”). A seguir pus-me a cultivar o estilo seco e declarativo do Hemingway e, para provocar, levei isso para a prova de exame final de Português, no sexto ano do liceu, na cadeira de Português-Latim. Ia-me lixando: o que me salvou foi um 18 a Latim, que me colocou a média, na disciplina, em 16 – o Português foi punido com um 14, por causa da secura do autor do A Farewell to Arms…
Claro que queria ser alguém, sabia que podia ser alguém, mas não falava nisso a ninguém. Era tímido e calado e arvorava uma grande indiferença em relação ao futuro. Mas sonhava…
Eu gostava muito de Matemática e de Física, mas não gostava menos de Literatura e Filosofia. Eu deveria, talvez, ter escolhido um curso de Matemática e não de Engenharia, mas poderia, igualmente, ter escolhido Letras ou Filosofia. Nunca vivi “dicotomias”: ou Letras ou Ciências. Gostava das duas.
Quanto ao que consegui, na vida, não hesito em declarar que ficou muito aquém do sonho. Mas não fica sempre?
JC - A sua primeira grande viagem – Lourenço Marques / Lisboa – foi realizada por mar (I. de O.) sob o efeito vivificador dos feitos de Ulisses (personagem da literatura que só na literatura existiu) e de Camões, sob pressão, por conseguinte, do mito da viagem no seu imaginário. No regresso a Moçambique viajou de avião. Acha que se quebrou qualquer coisa no seu fascínio pela viagem romântica e conectável com o seu destino, nessa mudança de meio de transporte?
EL - Não há comparação possível entre uma viagem e outra. A viagem de avião suprime o prolongado contacto com o mar, a chegada aos portos, os enredos e revelações a bordo, a sensação de uma deslocação lenta mas inexorável, demorada e insinuante, os conhecimentos que se travam, as perfídias que se tecem, os D. Juans de pacotilha, que topam, naquele terreno de caça em concentrado, a sua oportunidade – matéria-prima de tantos contos inesquecíveis de Maugham. Não há comparação possível. Um dos meus sonhos é realizar, antes de morrer, mais uma longa viagem marítima, a bordo de um navio de carga, com poucos passageiros…
JC - Considera a sua experiência em Portugal, durante a primeira estadia, positiva. Decerto nalgumas situações mais do que em outras. De todas aquelas que relatou nos seus livros qual a ou as que considera mais determinantes na sua formação como pessoa? A adaptação foi traumática?
EL - Muito traumática de início (Lisboa não era Lourenço Marques – e no não sê-lo já estava o mal –, por outro lado, o ensino superior não era aquilo que eu sonhara: fiquei a respeitar e a admirar três ou quatro professores num curso de seis anos e dezenas de cadeiras), foi, no entanto, uma experiência rica, intensa e variada. Algumas disciplinas foram realmente inspiradoras, conheci colegas que ficaram amigos para a vida – alguns, como o António Brotas, o Manuel Graça Baptista e o Costinha ainda estão felizmente vivos, embora o Alves Marques já tenha falecido –, reatei contacto com velhas grandes amizades, como o Zeca (Tiago) Oliveira, descobri grandes autores, que passei a não ter medo de ler no original, descobri a grande literatura espanhola, fiz uma primeira e prolongada estadia em Paris (mesmo com pouco dinheiro) e, last but not least, o meu mau comportamento militar em Mafra atirou-me, como oficial miliciano, para Portalegre, onde tive a oportunidade de conhecer uma das maiores figuras da nossa literatura e cultura, de quem fiquei amigo até à sua morte: José Régio. Ao lado da sua estatura intelectual, artística, espiritual e moral, tantas glórias trombeteadas, laureadas e apaparicadas, de hoje, parecem-me pigmeus descartáveis e um pouco risíveis. Conheci também , pessoalmente, por intermédio do meu amigo Tiago Oliveira, um homem fascinante que havia muito admirava: António Sérgio, cuja influência sobre a juventude (e não só) tanto mau sangue fez a tanta gente que ambicionava lavrar o mesmo território. Vergílio Ferreira foi um exemplo. Mas não foi o único.
JC - Apesar de não ser um romance Acta Est Fabula conta uma história de amor. Paixão, companheirismo, lealdade, enfim, valores que se sedimentaram na sua união com Maria Antonieta. O facto de não terem feito um casamento religioso gerou anticorpos na sociedade local?
EL - Claro que gerou. Antes de nos casarmos, algumas pessoas avisaram a Maria Antonieta de que o não casarmos pela Igreja levaria a que certas famílias se recusassem a ter relações sociais connosco. Só há relativamente pouco tempo, a Maria Antonieta mo contou: na altura poupou-me a isso. Acho que respondeu que era para o lado em que dormiria melhor. Naquele contexto socialmente estreito e paroquial, ser “pessoa de bem” era ser católico apostólico romano, ir à missa, mesmo que com alguma irregularidade, casar pela igreja, baptizar os filhos e ser facialmente temente a Deus, à Pátria e à Família, ainda que, de caminho, se praticasse uma ou outra patifaria (nada de exorbitante).
As minhas filhas nunca foram baptizadas (nem eu o fui). Note-se que tive e tenho bons amigos religiosos (nihil obstat) mas, para cá deste Marão, mandam os que cá estão. A minha admiração e amizade pelo Régio nunca tiveram nada a ver com religião.
JC - Censura e pide. Episódios tão ridículos como a interpretação da polícia de que as capulanas verde rubras das moçambicanas constituíam um ultraje à bandeira nacional levou à barra dos tribunais o poeta Virgílio de Lemos, que as evocou num poema. Secundando o seu amigo e advogado Carlos Adrião Rodrigues, o Eugénio lá esteve no tribunal como testemunha de defesa. O processo chegou ao Supremo após recursos do Ministério Público, do qual obteve igual sentença: a absolvição. A pide não devolveu os livros mas pagou ao poeta uma quantia em dinheiro. A forma como Eugénio Lisboa descreve a peripécia é deliciosa e hoje faz-nos sorrir. Mas naquele tempo era preciso levar esse tipo de situações muito a sério…
EL - Era. Fui mais do que uma vez incomodado pela PIDE e o meu Director-Geral da Total, em Joanesburgo, que tutelava Moçambique, disse-me um dia que tinha muita admiração pelo meu trabalho, em Lourenço Marques, mas que, se o Jorge Jardim lhe pedisse a minha cabeça, teria que lha dar. Confesso que nunca me passou pela cabeça que o Jorge Jardim fizesse uma coisa dessas. E não fez.
JC - Depreendo da leitura do seu livro de memórias que pelo poder em Moçambique passaram salazaristas “bons” e salazaristas “maus”: Baltasar Rebelo de Sousa, Sarmento Rodrigues, Jorge Jardim, Veiga Simão, entre outros, seriam os “bons”. Havia a noção, nessas alturas em que o poder era mais inteligente, de que a pide e a censura afrouxavam na repressão?
EL - Havia, claro, gente séria que acreditava, com convicção, no salazarismo. Como havia gente não muito séria que era da oposição. O problema é sempre de carácter e não de ideologia. Nunca escolhi os meus amigos por critérios ideológicos – e não me arrependo. Eu hesito em classificar o Jorge Jardim como “salazarista bom”. Era um homem com um espírito aventureiro muito acentuado, inteligentíssimo, dotado para o trabalho de gabinete e para a acção, com uma inesgotável capacidade de trabalho, mas fez coisas – com convicção, diga-se, e não por oportunismo – que eu estava longe de subscrever. Tinha, sem dúvida, “panache”, mas não era bicho da minha capoeira, mesmo se excluirmos as divergências ideológicas. Hoje, não estou muito certo de que, pelo menos nos últimos anos do império, ele ainda se revisse nas políticas do Estado Novo.
Quando analiso os meus adversários políticos, procuro fazê-lo com “fair-play”, mas não devem tresler-se as minhas palavras. Quanto a Baltasar Rebelo de Sousa, Sarmento Rodrigues e Veiga Simão, não lhes recuso o meu apreço, a despeito de tudo (que era muito) que nos pudesse separar (muito menos, pelo que toca a Veiga Simão).
JC - O Eugénio “especializou-se” em demolir os textos medíocres de um tal Rodrigues Júnior, que ameaçou agredi-lo e de um tal Orlando Mendes que tentou em vão aliciá-lo para dar parecer favorável a um livro de sua autoria e que considerou “mau como romance”, mau “como história” e de um “humanitarismo de trazer por casa”. A reprodução integral do texto com que zurziu o Rodrigues Júnior é, quanto a mim, um dos momentos mais altos destas suas “memórias”, não tanto pelo tom humorístico-corrosivo do seu discurso como sobretudo pela implacável análise literária com que, a brincar, a brincar, arrasa tecnicamente o presunçoso escriba do sistema. Imagina possível uma crítica literária desse calibre no Portugal de hoje, sem que caiam em cima do autor uma data de processos?
EL - Eu nunca pus Orlando Mendes ao mesmo nível de Rodrigues Júnior: seria uma injustiça. As obras de Orlando Mendes, até à independência, se não eram alta poesia, também não eram propriamente medíocres. Depois, com o advento da FRELIMO, tornou-se um “situacionista” primário, isto é acrítico e lambe-botas da espécie mais desprezível, e passou a escrever poesia muito popular e muito má. E passou a não conhecer os antigos amigos brancos, que, na véspera, adulava…O seu comportamento comigo atingiu as raias da ignomínia: literalmente, “apagou-me” da literatura moçambicana, como se costuma fazer nas ditaduras muito duras. Quero ser justo: acredito que ninguém lhe pediu esse frete. Fê-lo de livre iniciativa, para “mostrar serviço”.
Quanto ao que escrevi sobre o Rodrigues Júnior – era muito capaz de o fazer no contexto dos dias de hoje. Mas, como diz, talvez os tribunais substituíssem actualmente os censores e os PIDEs daquele tempo. Julgo que o meu texto só escapou ao lápis da censura porque esta não percebeu que eu estava a gozar o Rodrigues Júnior – tomaram provavelmente a sério os meus elogios enviesados…
JC - Uma sua carta aberta ao primeiro-ministro Passos Coelho no jornal Negócios e que se tornou viral na Internet é uma reminiscência desses tempos de polémica acesa na Lourenço Marques pré-independência? É que a polémica chegava a ser inter-pares: Alfredo Margarido, Rui Knopfli, o próprio Eugénio Lisboa…
EL - É possível que tenha havido também um pouco disso: ter querido matar saudades. Mas não foi só isso ou não foi sobretudo isso: o que este governo, com a cobertura desta incrível “Europa” neoliberal e descarada, andava a fazer causou-me a maior indignação. Nunca fomos governados por gente assim – inepta, inculta, com uma visão ideológica de fugir, insensível, inescrupulosa, sem princípios e gulosa de enriquecer ainda mais os já muito ricos. Como é possível que um país pequeno e pobre tenha “senhores administradores” de empresas a ganharem duas a três vezes o salário do Presidente dos Estados Unidos! É simplesmente obsceno. O que se passou no BES, por exemplo, merecia ser contado pela pena de um Swift ou de um Voltaire. Os salários de alguns senhores e senhoras da televisão metem medo.
JC - A sua carta aberta teve imitadores: Miguel Real, Alexandra Lucas Coelho… Faltou-lhes serem pioneiros. Teve um sujeito de mais de oitenta anos de os preceder, de lhes dizer como era…
EL - Quantos mais, melhor. Fico muito grato ao Miguel Real e à Alexandra Lucas Coelho, a qual disse umas coisas bonitas a meu respeito. Daqui lho agradeço.
JC - Voltando ao que interessa: Veio a independência de Moçambique e a Frelimo nacionalizou-lhe a casa, desagregou-lhe o núcleo familiar, “enxotou-o” para o estrangeiro. Tinham chegado os tempos difíceis. Depois disso esteve várias vezes em Moçambique mas jamais esqueceu nem perdoou. Foi alguma vez instado/convidado a regressar definitivamente à terra onde nasceu?
EL - A FRELIMO nunca me “enxotou”. Saí pelo meu pé e até me disseram que tinham muita pena de que eu me viesse embora. Diz que nunca esqueci nem perdoei. Esquecer, claro que não esqueci. O perdão não é para aqui chamado. O que tive foi sincera pena de que certas coisas tivessem sido feitas de modo tão atabalhoado e tão agarrado a uma ideologia em pastilhas, em vez de se prosseguir um planeamento mais bem pensado e com mais respeito pelas boas estruturas existentes. No início dos anos 80, a população pagou a tontice ideológica com língua de palmo.
JC - Joanesburgo, Lisboa, Estocolmo, Londres, cidades de um périplo de “deslocado” que estabilizou em Londres, onde viveu dezassete anos na qualidade de conselheiro cultural. Nas suas memórias fala dos magníficos tempos londrinos mas desvenda também alguns segredos de chancelaria que no geral não chegam ao conhecimento do público. O funcionamento das embaixadas é um “mistério” que escapa ao olhar e à sensibilidade da opinião pública. Quis dar uma amostra desse universo mais ou menos secreto, corporativo, diga-se?
EL- O meu objectivo, ao falar de certos aspectos da vida na embaixada foi apenas mostrar o trabalho que eu ali fazia, para que se ficasse com a ideia de que nunca concebi o meu posto como uma sinecura. Mas não visei, de modo nenhum, fazer um relato minucioso da vida diplomática. Em Londres, havia mais vida, para além da embaixada… Por outro lado, esse trabalho – contar o que é a vida nas embaixadas - está feito, admiravelmente, na célebre trilogia impagável de Lawrence Durrell (Esprit de Corps, Stiff Upper Lip e Sauve Qui Peut). Em todo o caso, sempre fui contando umas coisas…
JC - Em Londres fazia parte das suas obrigações receber as primas donas das Letras portuguesas que lhe chegavam de Lisboa. Houve mais algum dissabor “tipo Saramago”, de que não tenha falado no seu livro?
EL - Tive muita sorte: felizmente, não há muitos Saramagos…
JC - Em Aveiro, já depois do ciclo londrino, marcado pela tradução, no Reino Unido, de autores portugueses contemporâneos e clássicos, e da presidência nacional da UNESCO, foi-lhe finalmente proporcionado ensinar literatura numa universidade portuguesa. Ainda que este período esteja “guardado” muito provavelmente para o volume V, parece-me que com a sua ligação à Universidade de Aveiro se consumou um dos seus sonhos. No belo texto que a professora daquela Universidade Otília Martins leu na apresentação do seu volume IV no Centro Nacional de Cultura, em Lisboa, mais uma vez ficou patente o legado de admiração e simpatia que Eugénio Lisboa deixou em Aveiro. Sente-se feliz por ter sido reconhecido pela Universidade de Aveiro como um dos seus?
EL - Como falo abundantemente disto no V das minhas memórias, que ando a escrever, permita-me que me não alargue. Mas sempre lhe posso dizer que foi, para mim, um período muito agradável e frutuoso: o contacto com alunos e alunas, o que se dá e o que se recebe, o fazer novos amigos, como, por exemplo, a Otília Martins, que logo se sagrou minha amiga para a vida, a linda cidade de Aveiro, a Costa Nova… Concretizei, realmente um sonho: estive seis anos a fazer aquilo de que mais gosto: ensinar e aprender. Estudar. Ler. Conhecer. E ser estudado. E ser lido. E ser conhecido.
JC - Projectos. A sua poesia, certamente menos conhecida do que a sua ensaística, merece, a meu ver, a reunião em livro. E um romance, por ora no segredo dos deuses, parece estar na forja. Continua a manter a decisão de que o seu diário só venha a ser publicado integralmente a título póstumo?
EL - O romance existe, foi começado, está em curso (devagar…) e chama-se O Espanto. Qualquer dia, dá-me uma coceira formidável e escrevo uma abada de poemas ou um só poema devastador. E vou escrevendo o meu diário, de que transcrevo abundantes passagens, no V das memórias. Com cortes, é claro: é muito cedo para certas impertinências. Vou também exercitando a mão, com crónicas para o JL e textos pequeninos para a LER. Para quem já está na “sala de espera”, não é mau." Júlio Conrado, em Entrevista publicada na Revista Triplov, nº 25, de Abril/ Maio de 2015
Obras consultadas:
Acta Est Fabula: I Vol.2012, III Vol. 2013, IV Vol. 2014, Ed. Opera Omnia.
Indícios de Oiro, I e II Vol. 2009, Imprensa Nacional.
Júlio Conrado (Olhão, 26.11.1936, Portugal)
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009).
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português