domingo, 31 de julho de 2022

Ao Domingo Há Música

Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros. Sentiram-se irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música.
                                                                                 Jorge Amado    

E há vozes que reforçam essa capacidade. Trazem a harmonia que fermenta a música.
Gregory Porter, em  I Will (Official Music Video), do álbum Still Rising – The Collection.
   
Gregory Porter , em  Revival, num grande Concerto para a Ucrânia .
  

A posteridade de alguns Prémios Nobel de Literatura

George Bernard Shaw
A posteridade de alguns Prémios Nobel de Literatura 
por Eugénio Lisboa
"Se alguma coisa Fernando Pessoa viu bem, nos portugueses com que veio encontrar-se, no seu regresso de Durban, foi o seu profundo e não radicável provincianismo. Somos provincianos a admirar e somo-lo a não sermos capazes de o fazer, quando disso seja caso. Um prémio dado lá fora, um elogio vindo de fora, criam um verdadeiro histerismo nacional, como se fôssemos, de repente, o povo eleito. Já muitas vezes comparei a sobriedade com que o galardão Nobel é anunciado, recebido e comentado, na grande imprensa inglesa. Entre nós, com Saramago, foi aquilo que se viu. Para quem seja minimamente adulto, do ponto de vista intelectual, e esteja razoavelmente informado dos bastidores e da durabilidade das reputações dos laureados, o espectáculo da fúria admirativa lusíada é realmente confrangedor. Nunca vi, em França ou na Inglaterra, falar-se no “nosso” Nobel André Gide ou T. s. Eliot. Até seria insultuoso pensar que fora o prémio que lhes dera prestígio e não o seu mérito. O grande dramaturgo George Bernard Shaw não precisava para nada do prémio, porque já era uma lenda viva, na altura em que lho deram: quem precisava do prestígio dele era o prémio. Visto isso, até se deu ao luxo de recusar o dinheiro, aceitando, só por cortesia, o diploma e a medalha. Por outro lado, se tivermos em conta os verdadeiros gigantes da literatura que o Nobel ignorou e as verdadeiras e esquecidas mediocridades que ele se tem fartado de galardoar, ficar-nos-á bem não andarmos com o Nobel permanentemente colado à figura de Saramago. Lembremo-nos de que foi a Teoria da Relatividade que deu fama ao grande Físico Einstein e que o Nobel que lhe conferiram só serviu para diminuir a estatura do prémio, visto que nem sequer foi atribuído à obra magna do cientista, mas sim a um seu trabalho secundário.
O mais triste, entre nós, é que nem sequer é só a massa ignara que se porta mal. O nosso muito estimável Presidente Sampaio inaugurou um protocolo patusco, ao ir a correr a Estocolmo assistir à cerimónia de entrega do galardão a Saramago. Confesso que não sei de nenhum outro chefe de Estado que o tenha feito. E o festejadíssimo ensaísta Eduardo Prado Coelho, exultando naquela glória só equiparável à dos descobrimentos, avisou a comunidade crítica de que, de ali em diante, quem se atrevesse a criticar Saramago, “levava”. Num Professor universitário veneradíssimo, numa jovem democracia que nos deu finalmente a liberdade, esta rejeição de qualquer crítica por causa de um prémio, explica muita coisa que aconteceu em Portugal, depois da queda da primeira república. Em vez de incentivarmos o saudável espírito crítico, promovemos a idolatria. Tem-se visto isso com os vários gurus de serviço, como foi, por exemplo, a vergonhosa figura feita pela nossa intelectualidade, durante toda a vida de Eduardo Lourenço e, particularmente, por ocasião da sua morte. Aquilo não era admiração, era pura adoração bacoca. Fazerem de um homem que nunca foi filósofo o mais genial deles, na história da nossa cultura, tem que se lhe diga. Mas poucos, em Portugal, apreciam o grito “o rei vai nu!”
Vou terminar, propondo um exercício interessante, a ver se nos tornamos um pouco mais sóbrios. Vou dar uma lista de laureados com o Nobel de Literatura, que estão hoje completamente esquecidos. Se algum dos meus leitores tiver lido um livro de algum deles, agradeço que mo diga.
 
1901- SULLY PRUDHOME (FRANCÊS)
1903 - BJORSTJERNE BJERNSEN (NORUEGUÊS)
1904 - JOSÉ ECHEGARAY (ESPANHOL)
1908 - RUDOLPH EUCKEN (ALEMÃO)
1910 - PAUL VON HEYSE (ALEMÃO)
1916 - WERNER VON HEIDENSTAM (SUECO) 
1917 - KARL ADOLPH GJELLERUP (DINAMARQUÊS)
1917 - HENRIK PONTOPPIDAN (DINAMARQUÊS )
1919 - CARL SPITTELER (SUÍÇO)
1924 - WLADISLAW REYMONT (POLACO) 
1928 - SIGRID UNDEST (NORUEGUESA) 
1931 - ERIK AXEL KARLFELDT (SUECO) 
1939 - FRANS EEMIL SILLANPAA (FINLANDÊS) 
1944 - JOHANNES VILHELM JENSEN (DINAMARQUÊS)
1966 - NELLY SACHS (ALEMÃ )
1974 - EYVIND JOHNSON (SUECO) 
2009 - HERTA MULLER (ALEMÃ)
 
DUAS NOTAS: ter dado o Nobel a BJERNSEN, passando por cima de IBSEN foi uma das enormes gaffes deste famigerado galardão. Hoje ninguém encena BJERNSEN e IBSEN faz parte do repertório de todas as grandes companhias. A segunda nota: quando presidia à Comissão Nacional da UNESCO, fui à Finlândia. Passando por Helsínquia, fui a livrarias procurar livros do nobelizado em 1939: ninguém sabia quem era."
Eugénio Lisboa, em 30.07.2022
Ao fazer esta lista, fui generoso: cabiam nela muitos mai
s. 

sexta-feira, 29 de julho de 2022

O Gato só tem qualidades

Até a lavar-se, o gato é airoso.
Tudo, mas tudo, no gato tem graça.
Ele é atrevido e ardiloso
e adora uma boa pirraça.
 
Dizer-se que um gato é de raça
não é muito mais que um bom pleonasmo,
porque, enfim, qual raça, qual cabaça,
qualquer gato é sábio como Erasmo!
 
O gato sabe tudo ou quase tudo,
mas o “quase” é só pra ser modesto,
porque foi à custa de muito estudo
 
e de manejar muito palimpsesto,
que o gato se fez grande Doutor,
sem favor, com distinção e louvor.
                                28.07.2022
Eugénio Lisboa
 
 
Soneto escrito segundo guião fornecido pela Ísis, com o pedido de o partilhar com os seus amigos de Aveiro, Lua e Lindo.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Estou tonto



O horror sórdido do que, a sós consigo
 
Estou tonto, 
Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar, 
Ou de ambas as coisas. 
O que sei é que estou tonto 
E não sei bem se me devo levantar da cadeira 
Ou como me levantar dela. 
Fiquemos nisto: estou tonto. 
 
Afinal 
Que vida fiz eu da vida? 
Nada. 
Tudo interstícios, 
Tudo aproximações, 
Tudo função do irregular e do absurdo, 
Tudo nada. 
É por isso que estou tonto ... 
 
Agora 
Todas as manhãs me levanto 
Tonto ... 
 
Sim, verdadeiramente tonto... 
Sem saber em mim e meu nome, 
Sem saber onde estou, 
Sem saber o que fui, 
Sem saber nada. 
 
Mas se isto é assim, é assim. 
Deixo-me estar na cadeira, 
Estou tonto. 
Bem, estou tonto. 
Fico sentado 
E tonto, 
Sim, tonto, 
Tonto... 
Tonto. 
12-9-1935
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993

Francisco no Canadá


FRANCISCO NO CANADÁ EM "PEREGRINAÇÃO DE PENITÊNCIA
por Anselmo Borges
"1. Não tenho dúvidas em afirmar que Jesus trouxe ao mundo por palavras e obras a melhor notícia que a Humanidade ouviu e viu. Por isso se chama Evangelho, que vem do grego (notícia boa e felicitante): Deus é bom, Pai/Mãe de todos. Jesus morreu para dar testemunho disso: da Verdade e do Amor.
Esta mensagem deu frutos através dos séculos. Cito Antonio Piñero, agnóstico, grande especialista em cristianismo primitivo. Depois de declarar que Jesus afirmou a igualdade de todos enquanto filhos de Deus, escreve que, a partir deste fermento, “se esperava que mais tarde chegasse a igualdade social. Se compararmos o cristianismo com todas as outras religiões do mundo, vemos que essa igualdade substancial de todos é o que tornou possível que com o tempo se chegasse ao Renascimento, à Revolução Francesa, ao Iluminismo e aos direitos humanos. Isto quer dizer: o Evangelho guarda, em potência, a semente dessa igualdade, que não podia ser realidade na sociedade do século I. O cristianismo está, à maneira de fermento, por trás de todos os movimentos igualitários e feministas que houve na História, embora agora não o vejamos claramente, porque o cristianismo evoluiu para humanismo. Mas esse humanismo não se vê em religiões que não sejam cristãs. Ou porventura o budismo, por si, chegou ao Iluminismo? O xintoísmo? O islão? Os poucos movimentos feministas que há nas religiões estão inspirados na cultura ocidental. E a cultura ocidental tem como sustento a cultura cristã. Embora se trate de uma cultura cristã descrida, desclericalizada e agnóstica, culturalmente cristã.” O mesmo dizem muitos outros filósofos e historiadores, incluindo agnósticos e ateus. Não se pode duvidar de que o cristianismo foi e é fermento de bondade, de alegria, de fraternidade, de tomada de consciênicia da dignidade infinita de se ser humano, de esperança e sentido, Sentido último.
Mas há aquela máxima: “corruptio optimi pessima”, que, infelizmente, também se aplica à Igreja: “a corrupção do melhor é o pior”. Isso acontece quando se esquece o serviço e se procura o poder enquanto domínio. É que o poder é o maior afrodisíaco, disse-o quem sabe: Henry Kissinger. Aí está o clericalismo, a peste da Igreja, como não se cansa de repetir o Papa Francisco. E, aqui, pode ajudar a bela síntese do teólogo José I. González Faus: é fundamental saber que a palavra grega kleros não significa clero, mas sorte, parte de uma herança. É assim que a usa o Novo Testamento referida a todos os cristãos. Quando a Igreja cresceu, precisou de estruturar-se; indo acriticamente ao Antigo Testamento, aplicou aos servidores ecclesiásticos a palavra sacerdote, que o Novo Testamento nunca lhes tinha aplicado, porque é título de grande dignidade que só pode dar-se a Cristo. Deste modo, o ministério ecclesiástico sacralizou-se, revestiu-se de grande dignidade e aplicou-se-lhe em exclusivo a palavra kleros, como se fossem os únicos participantes dessa herança divina. “O clericalismo designa assim uma situação de dignidade e de superioridade, merecedora de todos os privilégios. Boa parte dos dramas de abusos parece ter derivado daqui.”
Então, é preciso percorrer o círculo para voltar à fonte. E aí estão, por exemplo, os que o filósofo Paul Ricoeur chamou “os mestres da suspeita”:  Karl Marx, Nietzsche e Freud. Foi Nietzsche que se apercebeu do perigo de transformar o Evangelho em Disangelho, uma notícia desgraçada, contra o Evangelho, contra a vida.
2. O Papa Francisco estará de 24 a 30 de julho, no Canadá. Numa “peregrinação penitencial”, como ele próprio disse, pois o objectivo, ao percorrer 19.246 quilómetros, é manifestar “indignação e vergonha” e pedir perdão e reconciliação aos povos indígenas: Primeiras Nações, Métis (mestiços), Inuit, pelos horrores sofridos em 139 internatos, as chamadas “escolas residenciais”, ao longo de 150 anos (meados do século XIX até ao final do século XX). Por essas escolas, financiadas pelo governo canadiano, mas geridas pelas Igrejas cristãs, portanto, também por ordens religiosas católicas, passaram 150.000  crianças, que eram tiradas às famílias e  “educadas” e “instruídas” com duras disciplinas e dentro de um plano sistemático de autêntico “genocídio cultural” (não podiam falar a sua língua nem viver segundo a sua cultura e costumes), como mostra o relatório da Comissão para a Verdade e a Reconciliação, constituída pelo Governo e com a participação de indígenas, escutando mais de 7.000 testemunhos de sobreviventes, que relataram os maus tratos e abusos de vária ordem. Umas 6.000 crianças desapareceram e o seu destino poderá ter sido o de valas comuns.
O primeiro-ministro do Canadá, J. Trudeau, falou da situação como “dolorosa lembrança” de um “capítulo vergonhoso da história do nosso país”, e pediu que a Igreja Católica “assuma as suas responsabilidades”. É isso que Francisco quer fazer, correspondendo também à exigência que a citada Comissão fez em 2015: que fosse pessoalmente pedir desculpa.
Observação. O Papa Francisco é uma bênção para a Igreja e para o mundo. Um dos seus combates mais duros é contra o clericalismo e, para isso, voltou ao Concílio Vaticano II, que é preciso aprofundar, pois muitos dos seus adversários e inimigos “só se lembram do Concílio de Trento”. Em Outubro próximo, celebra-se o sexagésimo, e não o quadragésimo aniversário da sua abertura, como, numa desatenção imperdoável, escrevi no Sábado passado. Peço imensa desculpa."
Anselmo Borges, Padre e professor de Filosofia, em Artigo publicado no DN de23 de Julho de 2022

terça-feira, 26 de julho de 2022

O SONETO DE FAZER UM SONETO

Fazer um soneto é saber contar,
mas seria bom que fosse só isso:
o saber contar permite o voar
e o submisso promove o insubmisso.
 
Todas as regras que o soneto tem
são todo o contrário de uma prisão:
a fúria solta que a regra detém
multiplica o poder da emoção.
 
O ar que resiste permite o voar:
a regra que amarra o soneto
é que lhe permite um novo explorar.
 
O preso que obedece a um decreto
sabe usá-lo pra melhor contornar
a cela onde o querem confinar.
                                26.07.2022
Eugénio Lisboa

domingo, 24 de julho de 2022

Ao Domingo Há Música

           

                     A boa música nunca se engana e vai direita buscar ao fundo da alma o                            desgosto que nunca devora.
                                                                                    Stendhal


Mad Men , numa excepcional interpretação de Ain't No Sunshine, gravada a 19 de Setembro de 2020 @ Club Smederij, Tilburg, NL.
"Ain't No Sunshine' é uma canção de  Bill Withers, do Álbum Just As I Am de 1971
 
Irma van Pamelen - Lead Vocals; Erik Moonen - Lead Vocals; Chivy Kuhles - Guitars;Ron Cuijpers - Keys;Christian Martens - Saxes Tommy van Peij - Trombones;Jacques Cuijpers - Trumpets;Roland Smeets - Trumpets/Flügelhorn;   Roman Korolik - Bass and Martijn Soeterbroek - Drums.

Perder um amigo

Ziggy

PERDER UM AMIGO
                    
                                  À memória do Ziggy
 
Quando nos morre um velho amigo,
seja ele um ser humano ou um bicho,
é como sairmos de um bom abrigo,
entregues apenas a um capricho.
 
Homem ou bicho, havia um postigo,
pelo qual nos visitava a luz,
mas a súbita perda desse amigo
traz à nossa vida uma amarga cruz.
 
Um bom amigo que nos deixa
é um buraco no nosso caminho:
em vez de um amparo, uma queixa,
 
em vez de um veludo, um espinho.
Um amigo perdido não tem preço
e, se para isso há cura, desconheço.
                                   24.07.2022
Eugénio Lisboa

sábado, 23 de julho de 2022

Sobre a saudade

                              Quem inventou a distância nunca sofreu a dor da saudade.
                                            François de La Rochefoucault
 
                                        Eu sem você sou só desamor.
                                            Vinicius de Moraes
                                       
                                       Saudade é ser, depois de ter.
                                            Guimarães Rosa
 
Explicação da Ausência
 
Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
não rodou mais para a festa não irrompeu
em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
e o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
nem se cumpriu
e a espera é não acontecer — fosse abertura —
e a saudade é tudo ser igual.
Daniel Faria, in "Explicação das Árvores e de Outros Animais",
Fundação Manuel Leão.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

O Gato em soneto

O GATO EM SONETO     

                           Para a Lua, a Ísis e o Lindo
 
Um gato debaixo de um tapete
é muito mais gato do que em cima:
debaixo do tapete há um palacete
que muito lhe aumenta a autoestima.
 
Para o gato, nada é demais:
se muito tem, muito mais quer ele ter.
Não lhe bastam as coisas essenciais,
há outros tesouros a apetecer!
 
O gato é um bicho bizantino,
com uma autoestima infinita:
se lhe dá um desejo repentino
 
ou o satisfaz, ou faz uma fita.
O melhor é a gente entendê-lo,
para que se lhe não erice o pêlo!
                           20.07.2022
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Ziggy

 
Não sei como foi possível  a tua partida tão repentina. Não sei. Ficaste doente e em dias eras a imagem de um outro em ti. Estavas a desaparecer e nós a tentar reter-te com todos os meios que a medicina proporciona.  Não resististe. E tudo desabou em nós. E agora, sem ti, ficou um vazio . A memória ainda não sabe afagar-te. A tua ausência é a constante presença de uma saudade que teima no teu regresso. 
A todos davas atenção. Eras um cão amado. E amava-nos de um jeito que te distinguia de todos.
Sei que muito agradeces a todos aqueles que expressaram a sua  solidariedade e te amavam.
Adeus, meu querido amigo . Ficarás em todos nós como uma dádiva singular e preciosa.

terça-feira, 19 de julho de 2022

Carta ao meu cão

Ziggy
Sei que não sabes ler. Sei que não conheces as letras. Mas sei que sabes tudo sem elas. Por isso te escrevo para te dizer aquilo que não lês. Que te espero incessantemente nesta casa que é tua. Tudo está tão só sem ti. Aqueles latidos que nos dirigias , quando chegávamos sem te ter levado connosco, como lhes sinto a falta.  Detestavas ficar em casa sozinho. E nem sempre era possível levar-te. Tu sabia-lo , mas também sabias que estarmos juntos era muito melhor. Somos uma família. E és um elemento importante que de todos necessita. São os mimos que recebes  e que retribuis com essa mansa solicitude que nos enche o coração. Estás para todos em constante bonomia. 
Nem sei se sabes quanto me delicias, quando te aninhas aos meus pés,  sempre que me sento para escrever . O tempo tem outra dimensão. E a leveza do teu respirar dá às palavras a fluidez  certa. E, sem ti , tudo se torna pesado. As palavras engasgam-se para se soltarem  em redondo movimento, quase  estranha e errática litania.
Tudo aqui reflecte a tua ausência. Não há um único espaço da casa que não fale de ti. De tudo sabes, de tudo relatas, de tudo te ocupas. Nunca deixaste de guardar este nosso território. É o  nosso lar. E como o conheces bem. 
E agora, meu amigo, como estar aqui sem ti?! Há tantos dias que estás a lutar pela vida, nessa casa com tantos tubos na pele. Não é esse o teu espaço. Todos nós o sabemos. Ver-te  assim é uma dor que magoa. E magoa mais ainda ter de te deixar aí , sem nós, para regressar aqui , sem ti.
Que Deus te ajude, meu querido Ziggy. Esperamos por ti.

Descoberto soneto inédito de Luís de Camões

Luís Vaz de Camões
O Poeta e investigador Nuno Júdice descobriu soneto inédito de Luís de Camões
O soneto "Cristo Atado à Coluna" foi encontrado num manuscrito datado de 1666.
“O poeta, professor e investigador Nuno Júdice disse  quarta-feira, 13 de Julho,  à agência Lusa ter descoberto um soneto de Luís de Camões, "Cristo Atado à Coluna", num manuscrito datado de 1666, editado por Manuel de Faria, no século XVIII.
Nuno Júdice afirmou que o poema é atribuído a Camões e a autoria não lhe suscita dúvidas, apesar de uma possível edição implicar "o trabalho de especialistas".
O manuscrito foi encontrado pelo investigador na Biblioteca Digital Hispânica, onde se encontram vários outros poetas "do barroco, que merecem ser melhor estudados".
Nuno Júdice salientou que esta sua descoberta demonstra "que há ainda muito por revelar nas bibliotecas e por estudar e dar o devido valor", na área da literatura.
"É uma esperança para os investigadores", disse o também diretor da revista Colóquio Letras da Fundação Calouste Gulbenkian, referindo que "não está tudo estudado ou descoberto", profetizando que há território literário por desvendar.
Referindo-se ao poema, Júdice disse que Manuel de Faria "foi o primeiro editor a sério de Camões", no século XVII, e não seria este soneto que tornaria Camões um poeta maior e tão conhecido.
Esta poema, segundo Nuno Júdice, "desenvolve uma ideia nada ortodoxa", com o catolicismo vigente na época, já que Camões argumenta que o amor liberta.
Segundo o investigador, neste soneto, Camões afirma que "Cristo é torturado e chicoteado, mas liberta-se pelo amor à humanidade".
Camões recupera a ideia do "cárcere por amor", que tinha sido já desenvolvida pelo poeta Diego San Pedro (1437-1498), autor de "Cárcel de Amor".
O soneto foi escrito em língua portuguesa.
Refira-se que Camões escreveu também em castelhano e, neste período, dois países ibéricos estavam unidos sob a mesma coroa, o que facilitou a circulação de ideias.
A denominada "monarquia dual" vigorou de 1581 até 1640.
Luís de Camões, de vida incerta, terá nascido em Lisboa, em 1524, cidade onde morreu em 1579 ou 1580, tendo recebido uma reduzida tença do Rei Sebastião pela escrita do poema épico "Os Lusíadas", publicado em 1572.
Camões é ainda autor de vários poemas, como redondilhas, rimas e sonetos, e de teatro, como "Auto d'El Rei Seleuco", "Filodemo" e "Anfitriões".
A sua poesia foi cantada por Amália e José Afonso, entre outros.
O poeta encontra-se sepultado no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, apesar de suscitar algumas dúvidas aos académicos que seja o seu corpo que se encontra na urna de pedra.
Não é a primeira vez que Nuno Júdice 'se encontra' com Camões.
O investigador contou à Lusa, que, há uns anos, descobriu um poema atribuído ao épico, "Leite da Virgem", que entregou aos cuidados da especialista camoniana Fiama Hasse Pais Brandão, que, entretanto morreu em 2007.
Poeta, ensaísta e ficcionista, Nuno Júdice, 73 anos, foi, até 2015, professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Júdice desempenhou o cargo de diretor da revista literária Tabacaria (1996-2009), foi comissário para a área da Literatura da representação portuguesa na 49.ª Feira do Livro de Frankfurt.
Desempenhou funções como conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em França (1997-2004) e diretor do Instituto Camões em Paris.
Organizou a Semana Europeia da Poesia, no âmbito da Lisboa'94 - Capital Europeia da Cultura.
Atualmente, dirige a Revista Colóquio-Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian.
Literariamente, estreou-se em 1972 com o livro de poesia "A Noção de Poema".
Ao longo da carreira literária, Nuno Júdice tem sido distinguido com diversos prémios, os quais o Prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana, em 2013, o Prémio Pen Clube, o Prémio D. Dinis da Casa de Mateus.
Recebeu o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, por "Meditação sobre Ruínas", finalista do Prémio Europeu de Literatura.”
DN/Lusa, 13.07.2022

Autorretrato inédito de Van Gogh

"A obra foi encontrada graças a um estudo radiográfico de uma tela que data do ano de 1885. Nela, podemos ver a orelha esquerda que o pintor cortou em 1888. Segundo a Galeria Nacional da Escócia, em Edimburgo, um autorretrato inédito do pintor Vincent Van Gogh, com a orelha esquerda intacta, foi encontrado atrás de uma outra tela do pintor holandês. A obra foi descoberta graças a um estudo de raios-X da tela Retrato de uma Mulher Camponesa, feita em 1885 por Van Gogh, antes de uma exposição sobre o Impressionismo no Museu Escocês. De acordo com o El Mundo, o retrato foi encontrado no verso da tela, “coberto por camadas de cola e papelão”, que parecia ter sido colocado “diante de uma exposição no início do século XX”. "Quando vimos o raio-X pela primeira vez , é claro que ficamos muito animados!", contou Lesley Stevenson, curador sénior da Galeria Nacional da Escócia. "Momentos como estes são incrivelmente raros!", revelou Frances Fowle, curadora da Galeria. 
Van Gogh é conhecido por ter reutilizado tecidos para economizar dinheiro. O autorretrato em questão mostra um homem barbudo sentado que usa um chapéu e um lenço ao pescoço. A sua orelha esquerda, que o pintor cortou em 1888, é perfeitamente visível. Na exposição em Edimburgo, aberta de 30 de Julho a 13 de Novembro, os visitantes poderão ver a obra, reproduzida por radiografia. Agora, de acordo com o jornal espanhol, os conservadores de obras terão de estudar a melhor forma de remover a cola para separar as duas pinturas sem danificá-las. "Jornal I ,14.07.2022

domingo, 17 de julho de 2022

Ao Domingo Há Música

              La musique chasse la haine chez ceux qui sont sans amour. Elle donne la paix                        à ceux qui sont sans repos, elle console ceux qui pleurent.
               Pablo Casals, Artiste, Compositeur, Musicien, Violoncelliste (1876 - 1973 )

Da Música espera-se tudo. Dá o que não se  tem,  o que se  quer e o que se sonha. Por vezes, até  traz a esperança de  dias felizes. 
Lang Lang , em Suite bergamasque, L.75: III. Clair de Lune, de Claude Debussy.
 
Lang Lang impressionou os turistas naquela que é designada como a 'Cidade do Amor', ou seja,  Paris,  no Dia dos Namorados de 2019, com  um concerto único ,  num barco cruzando o Sena, à noite. O passeio tinha como finalidade, apresentar peças de seu novo álbum, Piano Book, como o clássico francês 'Clair de Lune' de Claude Debussy. Com 'Piano Book', Lang Lang volta ao seu primeiro amor , às peças que lhe despertaram o desejo de  querer ser músico,  acima de qualquer outra profissão. “Dedico este álbum aos meus maravilhosos alunos de piano e a todos os meus amigos de todo o mundo que amam o piano tanto quanto eu.” Redescobrindo as peças mais populares e acessíveis, escritas para aprendizes e amantes do piano, este álbum é uma jornada de inspiração, descoberta, fantasia e aprendizagem. ‘Piano Book’ reúne muitas das peças com as quais gerações de pianistas amadores cresceram. Lang Lang  tem-nas  na mais alta consideração, acreditando que são clássicos por direito próprio. Ele quer encorajar estudantes de piano de todo o mundo a apreciá-los plenamente.  
O vídeo desta famosa peça  foi produzido por Christopher Alder  , tendo como produtor de vídeo  Phillippe Schirer e  directores de vídeo Anthony Forestier e  Donat Lefebvre

sábado, 16 de julho de 2022

Meditação, perguntando

Terá sido bom o ter-se vivido?
Ou tê-lo-á sido estar-se a viver?
Aquilo que já foi acontecido
só foi bom enquanto estava a ser?
 
O ter sido não é bom nem é mau
e tão só um algo que passou?
É, nesta vida, apenas um degrau
que se deixou, depois que se pisou?
 
De qualquer modo, lembrar sabe bem
e o passado também nos aconchega.
Cada um de nós guarda o que tem
 
se a mais nada ou a mais longe não chega.
Se ter tido não chega a ser poder,
é modo bom de estar a fenecer.
                             16.07.2022
Eugénio Lisboa

Os poderes da Literatura

OS PODERES DA LITERATURA
por Eugénio Lisboa
 
                                             
                                   Há livros escritos para evitar espaços vazios nas estantes.
                                                                  Carlos Drummond de Andrade
 
« A literatura tem grandes poderes e grandes fastios. Não vou enumerar aqui todos os seus poderes nem todos os seus fastios. Estaríamos aqui até chegarem aí os chineses.
Um dos seus mais admiráveis, estimáveis e quase nunca alardeados poderes é o de, mais do que tornar o leitor um admirador do escritor, ser capaz de fazer dele um amigo. Há escritores de quem ficamos gratos amigos, depois de os lermos, mesmo sem os termos pessoalmente conhecido, mesmo não tendo vivido no mesmo século que eles. Para dar só alguns exemplos, repito: só alguns exemplos, Camões, o Padre António Vieira, Garrett, Camilo, Eça, Pessoa, Régio (há meninos que, para efeito curricular académico, gostam de definir a presença, suprimindo Régio e dando como suas balizas Nemésio e Torga, o que, além de ser estúpida afronta, é, eruditamente falando, um ciclópico disparate, porque Nemésio e Torga pouco tiveram que ver com a presença. Mas, ocultar Régio afaga o ego de certos docentes que, fazendo também versos, desconhecem a mais elementar arte poética, e os candidatos a docentes sabem bem para que lado o vento sopra), Domingos Monteiro, Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, Sophia (a sua poesia, não ela), Montaigne, Voltaire, Vauvenargues, Stendhal, Baudelaire, Gide, Roger Martin du Gard, Edgar Poe, Mark Twain, Dickens, Charlotte Brontë, Tolstoi, Tcheckov, Turguenev e outros. Repito que falo de amizades e não de admirações: há escritores que admiramos mas que não consideramos necessariamente nossos amigos. Seja como for, quer haja só admiração, quer haja também amizade, a literatura ajuda-nos a viver, protege-nos e torna-nos a vida viável, mais rica e aprazível.
Dizia o ficcionista americano Charles Bukowski que, sem a literatura, a vida seria um inferno. Isto é bem verdade, mas a literatura que impede que a nossa vida se torne num inferno é só uma certa literatura. Há, julgo eu, mais duas espécies de literatura: aquela que nos deixa completamente indiferentes e que, quando a lemos, não altera nada dentro de nós, e aquela que torna a nossa vida num inferno. A primeira, a que nos deixa exactamente como éramos antes de a lermos, é aquela que Carlos Drummond de Andrade dizia só servir “para evitar espaços vazios na estante”. É uma literatura constituída por livros que não nos incomodam, mas também nos não exaltam, que não nos arreliam mas também não nos modificam. Digamos que são livros neutros, assexuados, desnecessários, mas não necessariamente malignos.
Porém, há outra categoria de literatura, a dos livros que fazem da nossa vida um inferno, que nos fazem mau sangue e nos produzem enxaquecas intratáveis. Livros que interferem com o normal funcionamento do nosso organismo e com a nossa saúde mental. Infelizmente, a nossa literatura portuguesa contemporânea, com a bênção de tantas das nossas vestais universitárias & outras, abunda nesta espécie de literatura infernal. Ainda há pouco, tive ocasião de identificar uma dessas espécies – para o caso, um romance – cujo contacto me abalou a saúde para sempre. Para estes malfeitores devia congeminar-se legislação adequada. Que diabo, um crime é um crime!
A única vantagem destes livros sulfurosos é esta: se duas pessoas que se encontram pela primeira vez verificam que ambos acham infernal um mesmo livro, há grande probabilidade de essas duas pessoas se tornarem grandes amigas para o resto dos seus dias. Inversamente, como observava o maravilhoso P. G. Wodehouse, “não há base mais segura para uma bonita amizade do que um gosto mútuo na literatura.” Por outras palavras, o inferno une mas o céu também.
Seja como for, a literatura tem admiráveis poderes: abre-nos mundos novos, é, como dizia Kafka, “uma expedição em direcção à verdade”, consola-nos, desafia-nos, provoca-nos, ensina-nos, obriga-nos a desaprendermos conceitos falsos mas muito enraizados, ilumina as dificuldades com que, na vida, deparamos, e enriquece-nos das maneiras mais diversas.
Talvez possamos resumir os poderes benévolos da literatura, por estas palavras singelas e sábias do filósofo, linguista e ensaísta literário búlgaro, radicado em Paris, Tzvetan Todorov: “Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é porque ela me ajuda a viver”.»
Eugénio Lisboa, 07.07.2022

sexta-feira, 15 de julho de 2022

O Humor , o Riso e o Divino

O Humor , o Riso e o Divino

por Anselmo Borges
“Pediram-me uma vez uma reflexão precisamente sobre o tema em epígrafe. Aí fica uma tentativa.
Sobre Deus que sabemos nós? Ele é infinito e está para lá de tudo o que possamos pensar ou dizer. O que sabemos dEle sabemo-lo através de Jesus, a sua revelação no mundo.
Através de Jesus, sabemos que Deus é, como se lê na Primeira Carta de São João, Agapê: Amor incondicional. Mas o Evangelho segundo São João também diz que Deus é Logos: Razão,  Inteligência e que tudo foi criado pelo Logos. Por isso, Deus tem sentido de humor, pois o humor é sinal de inteligência. Não é o humor fino revelador de uma inteligência fina?
Logo no primeiro livro da Bíblia, o Génesis, há um passo belíssimo em conexão com o riso. “O Senhor apareceu a Abraão quando ele estava sentado à porta da sua tenda”, sob a figura de três homens. ‘Onde está Sara, tua  mulher?’ Ele respondeu: ‘Está aqui na tenda. Um deles disse: Passarei novamente pela tua casa dentro de um ano, nesta mesma época, e Sara, tua mulher, terá já um filho’. Ora, Sara estava a escutar à entrada da tenda. Abraão e Sara eram já velhos, e Sara já não estava em idade de ter filhos. Sara riu-se consigo mesma e pensou: ‘Velha como estou, poderei ainda ter esta alegria, sendo também velho o meu senhor?’.” O que é facto é que “o Senhor visitou Sara, como lhe tinha dito, e realizou nela o que lhe prometera. Sara concebeu e, na data marcada por Deus, deu um filho a Abraão, quando este era já velho. Ao filho que lhe nasceu de Sara deu Abraão o nome de Isaac. Abraão tinha cem anos quando nasceu Isaac, seu filho. Sara disse: Deus concedeu-me uma alegria, e todos quantos o souberem alegrar-se-ão comigo.”
Há aqui dois tipos de riso: Sara ri-se para dentro: como é possível, velha, ter um filho? Mas ao filho é dado o nome de Isaac, que, em hebraico, quer dizer “riso”, sendo aqui o riso um riso intenso de alegria: Isaac também quer dizer “aquele que traz alegria”. 
De Jesus diz-nos o Evangelho que chorou: chorou pela morte do seu amigo Lázaro, também sobre Jerusalém. Não se diz que riu. O nome da rosa, de Umberto Eco, anda também à volta dessa questão. Mas já Santo Tomás de Aquino observou  que é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é homem e rir é característica essencial do ser humano. Jesus participou em festas de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos, sem piadas festivas? O Evangelho testemunha que Jesus experienciou o melhor sentimento face à vida e ao seu milagre: o do maravilhamento e do contentamento.
O humor e o riso, repito, são um sinal evidente de inteligência, desdramatizam a vida, permitem viver de modo sadio consigo próprio, fazem bem à saúde, abrem transcendências. A Igreja está atravessada pelo bom humor, porque “um santo triste é um triste santo”. E há piadas fatais. Lá está o dito famoso: “ridendo castigat mores”: a rir castiga-se e corrige-se os costumes. Gil Vicente foi exemplar nisso. Digo: ai da Igreja e dos crentes sem a crítica mordaz, ácida, pela palavra e pela caricatura! O que não se pode é cair na boçalidade, pois esta apenas significa falta de inteligência. O riso também cura a vaidade oca: “Mesmo no mais alto trono do mundo, está-se sentado sobre o cu”, escreveu Montaigne.
Na Idade Média, realizava-se a chamada Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Pegava-se num subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de bispo, colocado em cima de um burro, entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em momentos fundamentais da liturgia, o celebrante e o povo zurravam. Na transmissão simbólica do báculo episcopal, rezava-se o Magnificat naquele passo: “e Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes.” Chamada a pronunciar-se, a Faculdade de Teologia de Paris, justificou-a com a necessidade de dar expansão à crítica, voltando depois a ordem.
A propósito da força crítica da piada e da caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e todo aquele luxo, que blasfema do Evangelho de Jesus, no fausto de uma procissão com cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores... Veio São Pedro à janela do Céu e viu aquilo e, estarrecido, chamou Jesus, que olhou e apenas comentou: “E pensarmos nós, Pedro, que começámos aquilo, entrando de burro em Jerusalém onde fui crucificado... Lembras-te?” Por isso, respondi uma vez a uma jornalista: “Não. Jesus não entraria no Vaticano, porque não o deixariam entrar.”
Francisco socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a Oração do bom humor, oração atribuída a São Tomás Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que não se esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos membros da Cúria Romana, onde tem tantos adversários e até inimigos, a quem falta o bom humor divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/ e que não se amedronta facilmente diante do mal, /mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-me, Senhor, uma alma/ que não conhece o tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as lamentações,/ nem os excessos de stress por causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá-me, Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-me a graça de ser capaz de uma boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria/ e poder partilhá-la com os outros./ 
Ámen.”
Anselmo Borges, Padre e Professor de Filosofia, em Artigo publicado no DN de 9 de Julho de 2022.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

O soneto maroto


O SONETO MAROTO
(Útil em dias de muito calor)
 
Não há como um soneto maroto,
que faz titilar a imaginação,
mesmo com um verso muito canhoto,
porém cheiíssimo de combustão!
 
O soneto maroto, à Bocage,
mas, no entanto, bem mais educado,
diverte à grande, a sacanage
e é bom pra esquecer um mau bocado.
 
O Antero não fez soneto maroto
e teve por isso o fim que se sabe.
Só há vantagem em ser boquirroto:
 
rimo-nos antes que o mundo desabe!
Em suma, não é em vão que maroto
rima – e bem – com heterozigoto!
                                   14.07.2022
Eugénio Lisboa 

O calor é um preservativo


O calor é um preservativo
(O soneto que o calor permite)
 
Não é possível amor com calor:
o calor torna a pele escorregadia
e tira ao amor todo o valor.
O calor, como tudo, o amor adia.
 
Uma pele que escorrega noutra pele
não produz o atrito necessário
pra que um corpo ao outro interpele
e se produza o grito-corolário!
 
O calor, em suma, nega o amor,
porque põe os corpos todos em sumo
e o sumo pode ter bom sabor
 
mas não é bom para amoroso consumo.
O calor serve para derreter
mas não se presta para… conceber(1)
                                     13.07.2022
Eugénio Lisboa
 
(1) Sim, eu escrevi “conceber” e não isso em que está a pensar. Até porque isso em que estava a pensar tem uma sílaba a menos e estragava o soneto!

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Bibliotecas, campos férteis da aprendizagem

Convento de São Marcos, Florença, Itália 

“No Egipto, as bibliotecas eram chamadas ‘Tesouro dos remédios da alma’. De facto é nelas que se cura a ignorância, a mais perigosa das enfermidades e a origem de todas as outras.”
Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704)

A primeira biblioteca moderna nasceu num espaço entre duas celas do Convento de São Marcos , em Florença . O humanista Niccolò Niccoli legou os seus livros à cidade "para o bem comum , para o serviço público , para que permaneçam num lugar aberto a todos , onde as pessoas esfomeadas de educação possam colher nelas , como em campos férteis, o rico fruto da aprendizagem.".
Irene Vallejo

É sempre tempo de visitar , de descobrir , de desfrutar estas magníficas  bibliotecas   que Lisboa oferece. Silenciosas, mas cheias de desafios, podem ser, em qualquer momento, belos locais de aprendizagem. 


1 - Biblioteca da Academia das Ciências, em Lisboa, Portugal

Começamos pela Biblioteca da Academia das Ciências, que fica situada no antigo Convento de Jesus, no Bairro Alto.
Esta biblioteca ocupa o imponente Salão Nobre da Academia das Ciências, e aqui vai ficar deslumbrado com as pinturas do tecto e com as estantes em talha dourada que revestem as suas paredes.
Além das obras da própria Academia, fundada em 1779, também integra boa parte da antiga Livraria do Convento de Jesus, contando com cerca de três mil manuscritos e uma valiosa colecção de obras dos séculos XIV, XV, XVI e XVII.

2 - Biblioteca Palácio Galveias
Construído no final do século XVII, este palácio nobre foi casa de campo dos Távora e residência dos condes de Galveias (daí o seu nome) antes de passar a funcionar como biblioteca, no ano de 1931.
Em 2017, reabriu de cara lavada, depois de uma renovação que lhe devolveu o brilho original e ainda aumentou o espaço destinado aos leitores. Actualmente, guarda mais de 120.000 documentos.
No exterior, saltam à vista o portão maneirista, e o escudo heráldico de Lisboa. Já lá dentro, destacam-se as madeiras, os mármores e os tectos trabalhados, bem como os azulejos de Leopoldo Batistini (1931) e os bustos dos reis D. Pedro V e D. Luís.
Morada: Campo Pequeno

3 – Biblioteca de São Lázaro
Aberta desde 1883, a biblioteca mais antiga de Lisboa é um segredo bem guardado na Rua do Saco (entre o Martim Moniz e o Campo Santana) que tem  de conhecer.
O principal ex-líbris deste espaço é o Salão Nobre. Com uma disposição hexagonal e forrado a madeiras nobres, é um local austero e com uma aura quase mágica, que não ficaria mal num filme de Harry Potter. O cenário está lá todo: um enorme candelabro ao centro, as estantes cheias de livros e até uma curiosa escada em caracol que dá acesso à mezzanine que envolve a sala.
No total, as várias salas da biblioteca guardam mais de 20 mil documentos em diferentes suportes, como livros infantis, literatura diversa, manuais técnicos, revistas, jornais, CD’s e DVD’s.
Morada: Rua do Saco 1

4 – Biblioteca Passos Manuel
A Biblioteca da Assembleia da República, baptizada em 2017 com o nome Biblioteca Passos Manuel, fica situada nos antigos dormitórios do mosteiro beneditino que deu lugar ao palácio São Bento, hoje sede do Parlamento.
A sua origem remonta à antiga Biblioteca das Cortes, criada em 1836.
No total, guarda mais de 180 mil volumes. Embora seja utilizada, sobretudo, pelos deputados e outros funcionários da Assembleia da República, também está aberta ao público em geral que procure informação sobre assuntos parlamentares.
Morada: Rua de São Bento

5 – Biblioteca da Cruz Vermelha
O Palácio da Rocha do Conde d`Óbidos, junto ao Museu Nacional de Arte Antiga, serve de morada à sede da Cruz Vermelha Portuguesa, onde está instalada esta bonita (e desconhecida) biblioteca.
O seu acervo conta com cerca de 16 mil títulos, desde monografias a publicações periódicas nacionais e estrangeiras.
Do espaço, destacam-se as pinturas do tecto, as estantes em madeira e a balaustrada em redor, além de um imponente lustre de cristal, no centro da sala, produzido pela Fábrica da Marinha Grande.
As visitas necessitam de marcação prévia.
Morada: Jardim 9 de Abril 1

terça-feira, 12 de julho de 2022

Para a Ucrânia

“Eis a péssima notícia: estamos perdidos, irremediavelmente perdidos.
Estamos perdidos, mas temos um tecto, uma casa, uma pátria. É a nossa pátria, o lugar de nossa comunidade de destino de vida e morte. 
O evangelho dos homens perdidos diz-nos que devemos ser irmãos, não porque seremos  salvos, mas porque estamos perdidos”
Edgar Morin,  "Terra-pátria",1995


Better Day por  Natalia Klitschko , acompanhada por  Lisa Klitschko & Daniel Léon.
Quando Putin invadiu  a Ucrânia e a guerra começou  em  24 de Fevereiro, Natalia Klitschko decidiu escrever uma canção  de esperança para o seu povo ucraniano. Juntamente com o cantor e compositor Daniel Léon de Hamburgo, um bom amigo da família,  compôs ,  no dia seguinte,  „Better Day“ . O produtor Henrik Menzel (Udo Lindenberg etc.) e Daniel Léon assumiram a produção da música. A 20 de Março, no grande concerto de apoio à Ucrânia, "Sound of Peace",  no Portão de Brandemburgo em Berlim, " Better Day" foi apresentado pela primeira vez na TV nacional. No  dia 1 de Abril,  a Universal Music lançou a música com Natalia Klitschko a cantar os versos ucranianos e Lisa Klitschko & Daniel Léon  a cantar os refrões ingleses. Todos os lucros da música serão doados à fundação #WeAreAllUkrainians para ajudar as pessoas ucranianas necessitadas e a reconstrução da Ucrânia.

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Saudades do romance com história dentro

Estátua de Camilo Castelo Branco , na cidade do Porto, da
autoria do Mestre Francisco Simões


SAUDADES DO ROMANCE
COM HISTÓRIA DENTRO

 
Mas que saudades tenho dos romances
de Camilo, cheios de bacamartes,
de amores proibidos e de transes,
de pais tiranos e de malasartes,
 
romances em que tudo acontecia,
que não tinham vergonha de contar
histórias com imensa gritaria,
intrigas a nunca mais acabar!
 
O romance, agora, não tem pistolas,
é uma chatice e nada acontece!
Os romances já não são estarolas
 
e o que não contam só aborrece.
Falta-lhes não temer o bumerangue
nem as páginas cheiinhas de sangue!
                                    08.07.2022
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Os bichos

Ziggy


    É, eu me acostumo, mas não amanso, por Deus! Eu me dou melhor com os bichos do que com gente [...] e quando acaricio a cabeça do meu cão sei que ele não exige que eu faça sentido ou me explique.
                                                        Clarice Lispector

Desde que me conheço que me habituei à companhia de bichos. Não para escrever sobre eles  como  Torga o fez , mas porque habitavam o meu espaço. Nasci no Norte. Numa cidade ancestral em que muitas das habitações eram quintas . Tinham , além de grandes casas , terrenos frondosos a rodeá-las. Nesse tempo, havia espaço , tempo e afeição pelos bichos, que carinhosamente eram assim  designados nessas terras nortenhas. Muitas das nossas brincadeiras infantis estão pejadas de lembranças com animais. Desde o galo a lançar o grito matinal, ao cortejo colorido das galinhas que nos  ofereciam, em  desafio aliciante,  a descoberta  dos ovos, escondidos num circuito labiríntico. Mas o animal, que nunca me deixou,  foi o cão. Ao conhecê-lo, uma afeição imediata eclodiu. Nem sei nomear todos os que fizeram parte da minha já longa vida. Sei que nasci e que  já lá estavam à minha espera. Eram vários. O meu pai era caçador. Juntava matilhas de lindos e elegantes exemplares. Comecei a conhecê-los e eles a mim. E iniciámos uma parceria que perdura. Não sei viver sem um cão. Faz parte integrante do meu agregado familiar. Não é mais um. É apenas um: ele, o meu cão. Também não sei quantas lágrimas verti pela morte de alguns. É tamanha a dor que me toma um pesado luto prolongado. Sair desse torpor doloroso é sempre violento. Por mais que tente, a dor permanece e a lembrança  está por todo o lado.  A morte é a ausência que não cessa de se evidenciar, de reclamar.
Quando a mágoa abranda , há sempre alguém que me traz um cachorro. Vê-lo, faceiro,  a sorrir , liberta qualquer resistência ao possível retorno a uma nova perda. A parceria é reatada de imediato. E começa aquele enlevo que rodeia um novo amor. Um animal  pequenino que depende de nós e se entrega sem reservas. Tem sido sempre assim. 
Vive-se com algum sobressalto. Há dias de indisposições, de leves doenças, de alguns sustos por precárias fugas. Mas há a certeza de um sentimento único que afaga o coração. 
Hoje , o dia é de muita incerteza . Ziggy, o meu doce cão, adoeceu. Está internado , numa luta pela vida. A casa ficou vazia. Não sei  como suprir esta dor porque nunca  é a mesma .  A espera pesa e alonga-se. No entanto, e apesar de todos os receios, acredito que se restabelecerá e regressará ao lugar onde sempre pode  ser feliz. 
Que Deus o proteja, pois também é dele o reino dos céus.
MJVS