sábado, 30 de abril de 2022

Pergunta singela

Pergunta singela
aos que persistem em defender Putine

Imaginem Rosa Casaco
eleito nosso presidente!
Rimaria um tal velhaco
com um cargo tão eminente?
 
Mas ver eleito presidente
de uma Rússia tão augusta
este KAPA GÊ BÊ doente
não perturba nem vos assusta?
                    30.04.2022
Eugénio Lisboa 

Esta pergunta é muito séria. Desde o tempo em que os nossos corajosos comunistas engoliam elefantes, para justificarem as maiores atrocidades do regime soviético, até aos dias de hoje, em que engolem hipopótamos, para “situarem correctamente” as acções de Putine, nunca deixou de me intrigar a dimensão dos seus esófagos e dos seus estômagos. Um verdadeiro caso de estudo.

Réveillons-nous!

Esperar o Inesperado
por Anselmo Borges 
« Edgar Morin, o pensador da complexidade, que fez 100 anos em Julho de 2021, continua a ser um dos filósofos e sociólogos mais atentos e merecedores de atenção. Acabou de publicar um novo livro, reflectindo sobre o mundo actual - Réveillons-nous (Despertemos). Sobre ele deu uma entrevista a Jules de Kiss, publicada em Março deste ano em “Franceinfo”.  As reflexões que se seguem acompanham a entrevista.
A primeira é um apelo à urgência de pensar séria e profundamente sobre o que está a acontecer. Com Réveillons-nous, Edgar Morin não quer simplesmente fazer eco, doze anos depois, ao livro de Stéphane Hessel, Indignez-vous (Indignai-vos): “Hessel dizia: Indignai-vos. Ele dirigia-se a pessoas já despertas. Eu, eu tenho a impressão de que vivenciamos os acontecimentos um pouco como sonâmbulos. Aliás, o que eu vivi, na minha juventude, nos dez anos que precederam a Guerra. Eu peço que se tente ver e compreender o que se passa. Caso contrário, sofreremos os acontecimentos como, infelizmente, sofremos a última Guerra mundial.” (Pessoalmente, chamo permanentemente a atenção para a necessidade de pensar. Pensar vem do latim, pensare, que sgnifica pesar razões; daí vem também o penso sanitário, pois pensar cura.
Como vê esta nova guerra na Europa, com a invasão da Ucrânia? Certamente, há “uma surpresa, mas não total”. De facto, num artigo no Le Monde em 2014, por ocasião da crise ucraniana, concretamente na Crimeia, escreveu: “Atenção, é um foco de infecção com o risco de ter consequências desastrosas. Durante anos, fechou-se os olhos a esta infecção…” O problema agora é que há “um desequilíbrio”:  “estamos numa espécie de contradição, porque, por um lado, pensamos que a resistência ucraniana é justa — é uma guerra patriótica —, mas ao mesmo tempo pensamos que, se entrarmos no conflito, corremos o risco do que Dominique de Villepin chamava um ‘tsunami mundial’: passo a passo, chegar à explosão.” Não nos podemos enredar na lógica da guerra e “intervir militarmente. Por isso, sinto esta contradição que vivemos todos e que é preciso assumir”. “Por um lado, queremos apoiar um país que resiste e, por  outro, não podemos fazê-lo de modo integral, isto é, entrar na guerra. Estamos no meio: fornecemos armas e reabastecimento”.
Os seus três escritores russos preferidos são: Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov. “Eles ajudam-no a compreender a guerra  hoje?” “Não, eles ajudam-me sobretudo porque transportam com eles um humanismo russo que, diferentemente do humanismo ocidental, que é sobretudo abstracto, é concreto. Está cheio de compaixão  pelo sofrimento e a miséria humana. E o que estes autores me ensinaram  de modo profundo foi este humanismo da compaixão pelo sofrimento.” Aqui, pessoalmente, pensei no meu íntimo: Nem Putin nem Kirill leram Dostoiévski, Tolstói, Tchekov, ou não entenderam… ou não querem entender.
E voltamos à necessidade urgente de pensar. Estamos mergulhados em crises gravíssimas, que podem colocar a Humanidade perante a possibilidade do seu fim. “Em todo o mundo há crise das democracias, uma crise do progresso. Acreditámos durante muito tempo que o progresso era certo, uma lei da História; ora, hoje percebemos que o futuro é cada vez mais incerto e inquietante. Há a crise do futuro, a angústia, as crises que aconteceram: a económica em 2008, depois a pandemia. As angústias que isso gera provocam um retraimento, um fechar-se sobre si mesmo.” E nota-se uma espécie de derrota dos intelectuais e políticos, que não conseguem fazer-se ouvir. Há uma questão que é “muito importante hoje. Porque estamos num mundo de experts (peritos) e especialistas em que cada um vê apenas uma pequena parte dos problemas, isolados uns dos outros. Existe hoje de facto essa deficiência.”
De novo o jornalista: “Conversámos sobre a guerra na Ucrânia, tendo como pano de fundo a ameaça nuclear. Também dedica um dos quatro capítulos do seu livro ao aquecimento global. Mestas condições, é possível pensar o futuro com serenidade?” Resposta: “Não podemos ficar serenos perante perspectivas tão preocupantes. O que eu quereria mostrar, mesmo antes da guerra na Ucrânia, é que, desde Hiroshima, uma espada de Dâmacles paira sobre a cabeça de todos, e ela agravou-se com a crise ecológica, que mostra que realmente a bioesfera, o mundo vivo e as nossas sociedades estão ameaçados. Não é só o clima. O clima é um elemento dessa crise geral e a pandemia também contribuiu para o carácter global da crise. Penso que entrámos num novo período. Pela primeira vez na História, a Humanidade corre o risco  de aniquilação, talvez não total — haverá alguns sobreviventes —, mas uma espécie de ‘reinício’ a partir do zero em condições sanitárias sem dúvida terríveis. É esse perigo, que eu já tinha diagnosticado como potencial, que, de repente, se torna actual com esta história de guerra russa.”
Claro que “só podemos pensar o futuro, se estivermos conscientes do passado e do que se passa no presente. Não se pode pensar o futuro isolado. E hoje o futuro depende dessas grandes correntes que atravessam a Humanidade e que são ameaçadoras e regressivas. Portanto, eu penso que é urgente pensar o futuro. Porquê? Até agora pensava-se que o futuro era uma espécie de linha recta que ia continuar. Ora, é preciso imaginar os diferentes cenários. É preciso estar vigilante. É preciso esperar o inesperado   para saber navegar  na incerteza. Há toda uma série de reformas, o modo de pensar, de se comportar, que são hoje necessários.”»
Anselmo Borges, em Artigo publicado no DN  | 23 de abril de 2022

Edgar Morin

Sobre o livro Réveillons Nous!, escreve Edgar Morin:

“Nous ne savons pas ce qui nous arrive et c’est précisément ce qui nous arrive », écrit José Ortega y Gasset.

Que nous arrive-t-il ? Qu’arrive-t-il à la France ? Au monde ? Notre impéritie vient-elle d’une myopie à l’égard de tout ce qui dépasse l’immédiat ? d’une perception inexacte ? d’une crise de la pensée ? d’un somnambulisme généralisé ?
Tant de certitudes ont été balayées !
Comment naviguer dans un océan d’incertitude ? Comment comprendre l’histoire que nous vivons ? Comment admettre enfin que, en dégradant l’écologie de notre planète, nous dégradons nos vies et nos sociétés ? Comment appréhender le monde qui se transforme de crise en crise ? Comment concevoir l’aventure inouïe de notre humanité ? Est-ce une course à la mort ou à la métamorphose ?
Serait-ce à la fois l’un et l’autre ?
Réveillons-nous !
E. M.
Reveillons-nous! , de Edgar Morin
80 pages, 120 x 180 mm
ISBN : 9782207165256 / Gencode : 9782207165256
Code distributeur : B27062
Catégorie > Sous-catégories : Documents > Histoire - Philosophie, sciences cognitives
Collection Document
Parution : 02-03-2022
ÉDITIONS DENOËL

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Como se faz um Putine

Heil, Putine, que uma bruxa pariu,
em noite assombrada de segredos,
feitiços e mezinhas, e previu,
naquele monstro, só medos e enredos.
 
Heil, Putine, aborto mal cheiroso,,
cozido no enxofre do inferno,
em frenético coito ardiloso,
fazendo do planeta longo inverno.
 
Heil, ó filho de coitas fedorentas,
lambido por demónio mal formado,
farejando ruínas com as ventas
 
sujas de beber o famigerado
sangue dos que à vida já roubou,
feliz por ter feito quanto almejou.
                         29.04.2022
Eugénio Lisboa
 

Agnus Dei, uma oração para a Ucrânia

O Slovenian Philharmonic Choir, em Agnus Dei de Samuel Barber, sob a direcção da Maestrina Jerica Bukovec.
"Esta composição  é uma Oração, música religiosa profunda, executada pelo Coro Filarmônico Esloveno para a Ucrânia.
Dedicamos esta oração ao nosso sofrido povo ucraniano sob as garras brutais de um  ataque primitivo e mortal. Todos nós rezamos por vós, queridos habitantes da Ucrânia, coração da Europa Oriental.
Agnus Dei (Cordeiro de Deus) é uma composição coral num só movimento,  de Samuel Barber, com o seu próprio arranjo do também  seu Adagio para Cordas (1936). Em 1967, ele definiu as palavras latinas do Agnus Dei litúrgico, uma parte da Missa, para coro misto com acompanhamento opcional de órgão ou piano. A música, em si bemol menor, tem duração de cerca de oito minutos. O Adágio para Cordas de Barber começou como o segundo movimento de seu Quarteto de Cordas, Op. 11, composta em 1936. A pedido de Arturo Toscanini, ele a arranjou para orquestra de cordas, e em Janeiro de 1938 enviou essa versão ao maestro, que a estreou em Nova York com a NBC Symphony Orchestra. Ao defini-lo para o Agnus Dei litúrgico, uma parte da Missa, Barber mudou apenas um pouco a música. Tal como acontece com os outros arranjos de Adagio for Strings, foi publicado por G. Schirmer."

To Build A Home

 
The Cinematic Orchestra, em  To Build A Home.

There is a house built out of stone
Wooden floors, walls and window sills
Tables and chairs worn by all of the dust
This is a place where I don't feel alone
This is a place where I feel at home
'Cause, I built a home
For you
For me
Until it disappeared
From me
From you
And now, it's time to leave and turn to dust
Out in the garden where we planted the seeds
There is a tree as old as me
Branches were sewn by the color of green
Ground had arose and passed it's knees
By the cracks of the skin I climbed to the top
I climbed the tree to see the world
When the gusts came around to blow me down
I held on as tightly as you held onto me
I held on as tightly as you held onto me
And, I built a home
For you
For me
Until it disappeared
From me
From you
And now, it's time
To leave and turn
To dust

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Putine revisitado

O que faz de um monstro um monstro?
É defeito de fabrico?
Como eu aqui demonstro,
quando o monstro é também sádico,
 
o defeito que há na fábrica
é mesmo um senhor defeito:
se a crueldade é lúbrica
e muito grande o despeito,
 
é porque aquele defeito
tão alheio à natureza,
foi algo de muito mal feito
ou, de feia bruxa, proeza!
                    27.04.2022
Eugénio Lisboa
Isto é uma modesta tentativa de regressar ao combate, mesmo com um olho ao peito e com a testa ainda devastada pela herpes.

terça-feira, 26 de abril de 2022

O mito do império euro-asiático

 
O mito do império euro-asiático que justifica a guerra
por José Couto Nogueira
“Os euro-asiáticos não tiveram uma vida fácil até à chegada ao poder de Vladimir Putin, um oficial do KGB saudoso do poder soviético e desejoso de fazer voltar a Rússia ao seu destino histórico. Deram-lhe a justificação ideológica para exercer o poder e, sobretudo, para iniciar um novo processo de expansão a partir de Moscovo.
Todos os opinadores, académicos, jornalísticos ou simplesmente espectadores, tentam responder à pergunta fundamental: o que se passa na cabeça de Putin? Será um narcisista, um nacionalista ressabiado, ou um louco? Mas Putin, seja qual for a sua persona, representa a actualidade de uma ideia secular, o euro-asianismo. 
Euro-asianismo? Quem ouviu falar deste conceito? No entanto, aberta ou sub-repticiamente, as teorias euro-asiáticas influenciaram toda a História da Rússia, subjacentes aos quatro regimes que o país conheceu, o czarismo, o comunismo, a (breve espécie de) democracia e, agora, a república ditatorial.
Putin pode ter motivações pessoais – o seu próprio poder e a reconstituição do poder da Rússia estalinista – e um perfil psicológico mórbido, mas representa a continuação de uma ideia imperial que vem do tempo dos czares.
Por detrás da vaidade, Putin tem ideias concretas sobre o seu papel na História da Rússia e, por extensão, do Mundo. Há quem lhe chame de “Kremlin centrismo” e, na actualidade, de “putinismo”; basicamente, o conceito é que Moscovo deve ter um papel central na política e na ideologia internacionais, contrariando a decadência civilizacional representada pela Europa e o domínio militar dos Estados Unidos.
Vários intelectuais teorizaram sobre este conceito, nomeadamente Lev Gumilyov (1912-1992), Alexander Prokhanov (n. 1938) e Aleksandr Dugin (n.1962), entre outros que seria entediante citar.
Em termos de leitura da História, esta corrente acredita, primeiro, que a situação geográfica de Moscovo a coloca no centro do continente euro-asiático e, segundo, que os russos e russófilos têm um papel fundamental a defender os valores autocráticos e deístas que são a única garantia de sobrevivência da Civilização.
(Pensei bem antes de usar o adjectivo “deísta”, porque a teoria ultrapassa o conceito de “cristão”, embora o inclua. Contudo, é uma corrente abertamente anti-semita e anti-muçulmana.)
Nesta ordem de ideias, o perigo principal vem da Europa, porque rejeita qualquer influência da Rússia e porque criou uma cultura liberal e construiu uma sociedade de abundância que são extremamente atraentes. É o diabo sedutor da decadência, que vive no luxo e permite todos os comportamentos.
Os Estados Unidos também são o inimigo, por várias razões; protegem a decadência europeia com o seu poderio militar, e impõem ao mundo o conceito degenerado da democracia, tentando cercar e conter a expansão das boas ideias civilizacionais centralizadas no Kremlin.
A realidade inevitável do Grande Império Euro-Asiático tem sido contrariada, ao longo dos séculos, pela formação de Estados independentes e, depois de 1789, imbuídos duma filosofia igualitária e permissiva que vê o euro-asianismo como uma selvajaria autoritária e regressiva.
Se pensa que estou a exagerar nesta visão apocalíptica, tente ver a televisão russa (o que é muito difícil actualmente, mas aparece irregularmente nas redes sociais) os debates entre os defensores da grande Rússia e da integração da Europa – a Ucrânia é apenas o começo – na ordem social “correcta”. Vivem num mundo paralelo mirabolante.
Se percebe francês, leia o artigo de Laure Mandeville, jornalista especializada no Leste europeu e que foi corresponde do jornal “Le Figaro” em Moscovo, entre 1997 e 2000. Ela relata em pormenor estes argumentos surreais e violentos a que os russos são expostos diariamente. Um exemplo: “O estalinismo não foi um acidente, mas antes um elemento orgânico do nosso destino de potência global”, escreveu o jornalista Pastoukhov na Novaia Gazeta.
Ou seja, esta filosofia ultrapassa as questões de regime. Estaline foi apenas um elo na cadeia de expansão do Império Euro-Asiático, não interessa se usou o comunismo como método. A Rússia estava no bom caminho, afirmando-se como potência de peso mundial e, através do Comintern, espalhando as boas ideias pelos países capitalistas decadentes. O facto de o regime soviético ser anti-capitalista não passava de um capítulo no percurso; na realidade o que interessava era a expansão do império. Em geral, os pensadores euro-asiáticos não são, ou não foram, comunistas. Gumilyov esteve preso décadas e sofreu todas as agruras de quem vivia sob o poder de Estaline e não pensava em conformidade.
Os euro-asiáticos não tiveram uma vida fácil até à chegada ao poder de Vladimir Putin, um oficial do KGB saudoso do poder soviético e desejoso de fazer voltar a Rússia ao seu destino histórico. Deram-lhe a justificação ideológica para exercer o poder e, sobretudo, para iniciar um novo processo de expansão a partir de Moscovo.
Pastoukhov e outro jornalista, Dmitri Bykov, publicaram artigos anunciando o nascimento duma forma de “fascismo neoestalinista” capaz de desencadear uma guerra civil contra os russos “europaisados” que não concordavam com a orientação putinista, ou seja, um novo terror. Na agência de informação oficial russa, a RIA Novosti, um artigo propõe que a Ucrânia seja “desnazificada e des-europeinisada” (a palavra não existe, mas percebe-se). Os dirigentes devem ser “liquidados” e uma grande parte da população, que é constituída por “nazis passivos”, desejosos de ser independentes e europeus, devem ser “castigados” para “expiar os seus pecados contra a Rússia”.
É verdade, estas coisas foram escritas, são ditas e publicadas diariamente.
Quanto à miséria em que vive a generalidade do povo russo, é porque decidiram sacrificar o seu bem-estar em nome do destino histórico do país. A verdade é que as sondagens mostram que a grande maioria dos russos está ao lado de Putin e a sua popularidade aumentou desde que começou a invasão da Ucrânia. Poderia dizer-se que é porque só têm acesso à propaganda oficial; contudo, há outro valor que os anima: o reconhecimento do seu país como uma potência capaz de subjugar os ingratos que ousaram sair da sua esfera de influência.
Pode acreditar-se no destino inevitável do império euro-asiático, ou pode achar-se que estão todos malucos; a verdade, real e evidente, é que a máquina da História está em andamento e não vai por um caminho jovial e bucólico. As teorias imperiais – há outras, como sabemos – são mirabolantes como teorias, mas quando começam a ser praticadas só trazem desgraça e sofrimento, tanto para as vítimas como para os agressores.
O Armagedão não é uma profecia aterradora; é a realidade perante os nossos olhos.”
Artigo publicado em  Sapo 24, 16.04.2022

segunda-feira, 25 de abril de 2022

Em Abril de 74 Lisboa converteu-se na capital da nossa alegria


A revolução portuguesa de Abril de 1974 não foi apenas um marco importante na história de Portugal.  Teve, sobre ela,  o olhar do mundo. 
Hoje recordamos, através da introdução a um pequeno romance, o olhar de um notável  escritor espanhol da actualidade, nascido em 1956.

Carta aos leitores portugueses
por Antonio Muñoz Molina
" Por vezes precisamos de escrever para nos darmos conta de como certas coisas na vida foram importantes para nós . Se eu não tivesse escrito este livro não saberia agora,  ou não me recordaria, da importância que teve para mim. , há mais de vinte anos, a notícia  da Revolução de Abril, e do modo como as ideias mais sentimentais  da minha adolescência  sobre a liberdade perduram em mim associadas, e para sempre, a Portugal,  às fotografias  de carros de combate  rodeados por multidões fervorosas , de soldados jovens com os punhos erguidos e cravos nas bocas das espingardas.
Desde o 25 de Abril de 1974 que muitos de nós, espanhóis , vivíamos  imaginariamente e à distância  uma parte da nossa vida, e enquanto  o regime franquista perdurava  numa imobilidade mineral nós já vivíamos as peripécias , os  sobressaltos, os entusiasmos diários de uma revolução mais pacífica e mais bela não só que as revoluções da História mas também que as dos sonhos. Em Setembro de 1973 Santiago do Chile tinha sido a nossa capital da dor; em Abril de 74, Lisboa converteu-se na capital da nossa alegria.
Mas em nada disso pensava eu , quando me pus a escrever "O Dono do Segredo". (...)
Escrevi umas primeiras linhas , sem inventar nada , sem saber para onde dirigir-me.  E o acto de escrever, como me acontece com frequência , fez disparar os mecanismos da memória: recordei-me , enquanto escrevia , da tarde de Abril de 1974 em que recebi a notícia da revolução portuguesa, e precisamente nesse momento produziu-se, creio, a cristalização de imagens e recordações de que surgiu " O Dono do Segredo", a mescla de confissão  pessoal, autobiografia fictícia e tristeza política que depois se foram desenvolvendo  ao longo da história. Para o seu protagonista, o 25 de Abril é uma festa ausente , uma data  de ilusões futuras que nunca chegou  a acontecer nos calendários espanhóis. Nós , os democratas da minha geração, os que naqueles  anos misturávamos os sonhos sentimentais  da adolescência  com imaginações  temerárias de revolução social , não temos nenhum 25 de Abril de que nos recordar , porque seria demasiado sinistro comemorar o dia em que morreu um ditador  que ninguém expulsou do Poder. Não tivemos hinos nem heroísmos , nem despertares de alegria, nem manifestações  gozosas nas praças  públicas: mas todas essas coisas as vivemos vicariamente  através dos acontecimentos portugueses, e já não queríamos  ir a Cuba, nem a Paris, nem a Moscovo, mas aqui ao lado , a Lisboa, a uma cidade de que até então nunca tínhamos sabido nada, a um país que para nós tinha sido invisível.
(...) Nessa altura os espanhóis de esquerda iam a Lisboa em peregrinação revolucionária, para participar nas manifestações do 1º de Maio, desfraldar bandeiras vermelhas e comprar livros e cartazes proibidos em Espanha. Eu não tinha dinheiro para empreender essa viagem, e por isso cheguei a Lisboa muitos anos depois, procurando os lugares onde iria decorrer o final do romance. Mas é agora , ao publicar em Portugal este livro, que tenho a sensação de que restituo em parte  a minha dívida de sedução com aqueles tempos com o entusiasmo e a melancolia do 25 de Abril, do seu futuro e das suas comemorações. Gostaria que o leitor português  encontrasse  em algumas passagens de " O Dono do Segredo" um testemunho de gratidão, e mesmo de fraternidade. O mais lírico de todos os nossos sonhos de então foi sem dúvida o da revolução dos cravos: e também o mais perdurável, apesar dos anos e do esquecimento.  
                                                    António Muñoz Molina
António Muñoz Molina, in "O Dono do Segredo", Editorial Caminho, Setembro 1995, pp. 7,8,9,10

domingo, 24 de abril de 2022

Ao Domingo Há Música

"Um pedante que viu Sólon chorar  a morte de um filho, disse-lhe: « Para que choras assim,  se isso de nada serve?» E o sábio respondeu-lhe: « Por isso precisamente, porque de nada serve.»
Claro está que o chorar serve para alguma coisa, nem que seja só como desabafo; mas bem se vê o sentido profundo da resposta de Sólon ao impertinente.  E estou convencido de que resolveríamos muitas coisas se, saindo todos à rua , e trazendo ao de cima as nossas penas, que talvez resultassem numa única pena comum, nos puséssemos a chorá-las em coro e a lançar gritos ao céu e a chamar por Deus. Mesmo que não nos ouvisse , ouvir-nos-ia sim. O mais sagrado de um templo é ele ser o lugar aonde se vai chorar em comum.  Um Miserere, cantado em uníssono por uma multidão, açoitada pelo destino , vale tanto como uma filosofia. Não basta curar a peste, há que sabê-la chorar. Sim, há que saber chorar! E é , porventura, esta a sabedoria suprema. Para quê? Perguntai-o a Sólon."
Miguel de Unamuno, em Do Sentimento Trágico da Vida, Círculo de Leitores, Setembro de 1989, p 18

Há épocas, anos ou momentos da vida que  são ou  foram dolorosos. As circunstâncias são várias  e as razões diferenciam-se  porque tiveram  como origem uma trágica  fatalidade  ou porque qualquer acontecimento, que nos ultrapassava, ocorreu.  É, talvez para todos nós, aquilo que se passa na Ucrânia, há dois meses, sessenta dias ininterruptos de horror. Uma guerra que dizima e nos magoa apenas de a ver nos écrans televisivos. Não sei imaginar o que será estar a vivê-la, in loco. Presumo, porém, que não nos é  alheia a compaixão que cada um de nós sente  e quantas lágrimas já teimaram em saltar . Não faremos a pergunta do impertinente a Sólon. Todos sabemos a resposta. Choramos  pela Ucrânia.
E se a força da música nos pode unir, ouçamos,  em uníssono , as vozes de quem sabe dar forma e sentido aos sons. 

Zucchero  e Pavarotti ,  em Miserere.
"Miserere é o sexto álbum de estúdio do cantor e compositor italiano de blues rock Zucchero Fornaciari, lançado em 1992 pela Polydor Records . O álbum Miserere (Have Mercy) é um álbum muito mais sombrio do que os trabalhos anteriores de Zucchero. Reflecte a  sua vida pessoal íntima,  a partir do momento em que vivia em solidão e depressão, após o divórcio."
 
Andrea Bocelli e Katherine Jenkins , em  I Believe,  num espectáculo no  Kodak Theatre, USA , 2009.
  
I believe

One day I'll hear
The laugh of children 
In a world where war has been banned (...)

sábado, 23 de abril de 2022

NOTÍCIAS DA LILIPUTINELÂNDIA


 
Há muito tempo, numa terra, Liliput,
vivia um rei de mau feitio, pior semblante;
constava que comia bifes de mamute
e cultivava um silêncio exorbitante.
Ele era frio e não tinha sentimentos
de ser humano ou animal corrente.
Vivia, devorado por ressentimentos,
que lhe afectavam a tortuosa mente.
Sonhava só com vinganças e com impérios,
com canhões, aviões, tanques e muitas guerras,
e outros muitos, idênticos despautérios
e tudo quanto uma mente sã emperra!
Não gostava de ninguém, nem de si gostava,
sentia repulsa por tudo o que pulsasse,
por isso, mandar matar não lhe custava,
e fazia-o se alguém o irritasse.
Vivia sozinho, não prezava mulheres,
gostava de cobras, de hienas, de chacais,
bebia o sangue de bichos, às colheres
e, nos actos sexuais, suprimia os ais.
Às vezes, a solidão é má conselheira
e o nosso Liliputine não foi excepção:
sempre que magicava uma baboseira,
apetecia-lhe uma grande transgressão..
Um dia, irritou-o que um vizinho,
de usos e costumes diferentes dos seus,
se recusasse a tê-lo como padrinho
e quisesse acesso a uns mares egeus.
Sendo o Liliputine baixo e não dançarino,
subiu-lhe a maldade toda ao miolo
e logo decidiu o grande bailarino
que o seu vizinho o não tomasse por tolo.
Tendo grande imaginação pra pretextos,
de que necessitava, para mais uma guerra,
enterrou-se num bunker, pondo-se a ler textos
que tanta gente matam  e tão pouca enterram.
Invadiu, portanto, o país do seu vizinho,
matou, destruiu, violou e massacrou,
que a ordem era  nada ficar inteirinho,
e os que cumpriram, grato, ele os honrou.
Mas o plano secreto do Liliputine
não era só apoderar-se do vizinho,
dando a esse país nova patine,
tornando-o, por outro lado, mais mansinho.
Não, Liliputine ambicionava bem mais:
não lhe chegava ser monstro muito temido:
soubera de Macbeth, Staline e outros tais,
monstros de um cardápio tão bem servido.
Tinha o seu grande e fantástico projecto:
ser pior do que Macbeth era o seu alvo
autorizar tudo quanto há de abjecto,
tudo esmagando, nada deixando a salvo!
Foi este o seu desejo: não uma conquista
de território ou de maior riqueza:
o que ele tinha era, de sempre, prevista
a ascensão ao título de rei da torpeza.
Isso, dizem os cronistas de Liliput,
ele o conseguiu, a pretexto de uma guerra:
nas crónicas do reino, não há filho da puta,
que, como ele, esteja na berra!
                                  23.04.2022
Eugénio Lisboa

Dos Livros e do vício impune da Leitura

Eugénio Lisboa é um dos mais talentosos e insignes  intelectuais da actualidade. Escritor,  ensaísta, cronista, memorialista, crítico literário, poeta tem uma  vasta e variada obra. Detentor de uma apurada e prodigiosa oficina poética, além da valiosa obra publicada, tem produzido, diariamente,  um ou mais poemas, nestes dias da infame e cruel invasão da Ucrânia pela Rússia, que muito nos tem honrado publicar.  
Como prosador, tem dezenas de obras publicadas . É difícil resistir ao fascínio da sua escrita. Sendo um leitor omnívoro,  conhece, em profundidade,  a literatura universal. Muito estudo e crítica literária lhe tem dedicado. 
Celebrando-se, hoje, o Dia Mundial do Livro, não resistimos a transcrever algumas passagens do seu tentador convite à leitura, lançado no pequeno e rico breviário de leitura , "Vamos Ler", publicado em Março de 2021.
Ao Eugénio Lisboa e a todos os grandes fazedores de bons livros, o nosso agradecimento profundo.
"A leitura é, para os grandes leitores, um prazer, uma instrução e uma terapêutica. Prazer, já vimos como pode sê-lo – e de que maneira absorvente! Quanto a instrução, não há dúvida de que a grande literatura nos abre grandes e novas perspectivas sobre o mundo em que vivemos: fala-nos de lugares e de pessoas, de ideias e de emoções, de conflitos humanos e de aventuras que nos enriquecem. A falta de leitura pode ser a causa de certos impedimentos aparentemente inexplicáveis. Contava o proprietário de uma grande empresa americana, que dependia fundamentalmente do espírito inventivo dos seus engenheiros, para o êxito comercial da firma, que, a certa altura, começou a sentir-se desconfortável com o facto de nunca dar aos seus indispensáveis técnicos uma hipótese de chegarem ao topo da hierarquia da empresa. Mantinha-os a investigar, num nível mais baixo do organograma, embora com salários elevados, ficando os lugares de topo para gente do direito e da economia. Bem pagos, sim, promovidos, não. Permaneciam lá em baixo, a produzir os “gadgets” que a empresa vendia… Por fim, o proprietário, para aliviar a sua consciência, decidiu que era injusto não dar aos seus engenheiros, a quem a empresa tanto devia, a mesma oportunidade de promoção que dava aos juristas e aos economistas. E começou a promovê-los, empurrando-os suavemente pelo organograma acima. Mas acabou a verificar que, a partir de um certo nível da hierarquia, nem eles se sentiam confortáveis com as tarefas de pura gestão, nem os lugares pareciam ajustar-se-lhes. Intrigado, tentou arduamente, durante algum tempo, perceber a razão disto, uma vez que não queria que a injustiça se perpetuasse. O tempo foi passando, sem que ele chegasse a uma conclusão. Até que, um dia, para seu grande espanto, deu com a resposta: o que aos seus engenheiros faltava, para se sentirem mais confortáveis no topo da hierarquia, era um bom bocado de leitura e de cultura geral. A leitura abre-nos portas e ilumina realidades, idiossincrasias, conflitos, emoções, preconceitos, ambições, etc., que um chefe de empresa não pode ignorar. A leitura não fornece um apêndice decorativo ao grande empresário – é simplesmente uma necessidade. Um dos grandes engenheiros electrotécnicos do nosso país, que foi um grande Professor do Instituto Superior Técnico e um notável Ministro da Economia – Ferreira Dias – era também um homem de grande cultura, com a qual muito enriqueceu o seu magistério, do qual, nós, alunos, aproveitámos, gulosamente: durante as viagens de fim de curso, com ele, como cicerone, ou sempre que uma oportunidade surgia. O grande matemático, Mira Fernandes, era um homem cultíssimo, como o era Bento de Jesus Caraça, fundador da legendária Biblioteca Cosmos, e também o Professor de Física do Instituto Superior Técnico, António da Silveira (que escrevia admiravelmente). Os grandes profissionais, os verdadeiramente de topo, não rejeitam a leitura, até ao fim das suas vidas. Aprender até morrer – é o lema. O mítico empresário Henry Ford disse-o de forma categórica: “Quem quer que cesse de aprender é velho, quer tenha vinte, quer tenha cinquenta anos. Quem quer que continue a aprender mantém-se eternamente jovem.” Só os profissionais e empresários medíocres se confinam no universo estreito e fechado da sua “especialidade”. Egas Moniz foi um grande médico, um grande Professor, um notável investigador e um espírito aberto à cultura e à literatura.
Por outro lado, a grande literatura é também boa e eficaz terapêutica para os nossos momentos de crise. No meio dos desarrumos e tumultos (e até injustiças) que os tempos revolucionários inevitavelmente trazem às nossas vidas, a leitura de um grande livro que nos relate tempos semelhantes, outrora vividos por outros, como, por exemplo, Les Dieux Ont Soif (Os Deuses Têm Sede), de Anatole France, conseguirá acalmar a nossa ansiedade, pondo-a em razoável perspectiva: porque nos mostra, com talento e engenho, como outros já passaram pelo mesmo, tendo depois a tempestade acabado por amainar. Mesmo à proximidade da morte, a leitura de um livro empolgante pode trazer inesperado prazer, distracção e consolo. Lembro-me do meu amigo, Dr. Fernando Ferreira, notável psiquiatra e homem cultíssimo, no seu leito de morte, em Lourenço Marques. Fui vê-lo, um dia, já perto do fim. Na sua mesa de cabeceira, como lenitivo prometido, um medicamento infalível: um romance de Camilo. À saída, perguntei-lhe se queria que lhe trouxesse algum livro. Respondeu-me sem hesitar: “Traga-me o último livro de Domingos Monteiro”. Óptima escolha, pensei eu: um dos nossos maiores contistas. Levei-lhe, um ou dos dias depois, Letícia e o Lobo Júpiter, que agradeceu efusivamente. Espero que o tenha lido antes do seu falecimento, que teve lugar não muito depois.  
As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam. O gosto da leitura é um dos mais valiosos presentes que a vida nos pode oferecer. Os que têm esse gosto olham, com alguma pena e mesmo com um toque de desprezo, para aqueles que nunca o adquiriram.(...)
A escritora inglesa Virginia Woolf tem uma inesquecível passagem, num dos seus livros, que sublinha de modo pitoresco o valor egrégio do gosto de ler. Nestes termos: 
“Tenho algumas vezes sonhado que, no dia em que o Dia do Juízo amanhecer e os grandes conquistadores e juristas vierem receber as suas recompensas – as suas coroas, os seus louros, os seus nomes gravados indelevelmente no mármore imperecível – o Altíssimo se virará para S. Pedro e dir-lhe-á, não sem uma certa inveja, quando nos vir a nós aproximar-nos, com os nossos livros debaixo dos braços: ‘Olha, estes não precisam de recompensa. Não há nada que possamos dar-lhes. Eles já gostam de ler!’” 
(...)
Outro exemplo clássico de como a leitura pode absorver, não apenas um leitor, mas dezenas de milhares de leitores, simultaneamente, é a história da publicação, em fascículos, de Abril de 1840 a Novembro de 1841, do famoso romance de Dickens, The Old Curiosity Shop (A Loja de Antiguidades). O livro ia sendo devorado por milhares de leitores ingleses e americanos, à medida que os fascículos iam sendo publicados. Quanto mais o romance se aproximava do fim, mais a ansiedade dos leitores aumentava: iria a pequena Nell morrer ou não? Vários leitores tinham mesmo escrito ao romancista, suplicando-lhe que não “matasse” a menina. Conta-se que, em Nova Iorque, quando o barco que trazia os últimos fascículos, de Londres, se preparava para acostar no porto, centenas de leitores de Dickens começaram a gritar, do cais, para os oficiais do navio, não contendo a sua impaciência: “A pequena Nell morreu ou não morreu?” Hélas!, ela tinha morrido, para grande desgosto dos leitores seus amigos…
Induzir nas pessoas esta capacidade de se deixarem absorver por um bom livro ou por um grande livro é uma arte delicada e necessária. O psicólogo e filósofo B. F. Skinner observava, a este respeito: “Não se deve ensinar os grandes livros, deve-se ensinar a amar a leitura.” Eis uma verdadeira medalha a nunca esquecer. Os livros complicados, sugeria Camus, são feitos para serem “estudados”, os bons livros são feitos para serem lidos e amados. No fundo, a fórmula, para se chegar à leitura e ao prazer dela é simples: para aprendermos a nadar, basta lançarmo-nos à água; para aprendermos a gostar de ler, basta pegarmos num livro atraente e iniciarmos a sua leitura. Tome-se um conto qualquer da dúzia de belos livros que nos deixou Domingos Monteiro (1903 – 1980), ou um volume de contos e novelas, por exemplo, Léah e Outras Histórias, de José Rodrigues Miguéis (1901 – 1980) ou os Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga (1907 – 1995) ou as delicadas, profundas e pungentes Histórias de Mulheres, de José Régio (1901 – 1969) e prometo ao leitor que se deixará absorver, sem remédio, por qualquer destas histórias exemplares. Os grandes contadores de histórias fazem duas coisas capitais: entretêm-nos e enriquecem-nos. Clifton Fadiman, conhecido jornalista e escritor, encarregado, durante dez anos, da secção de crítica da prestigiosa revista New Yorker, observava com inexcedível agudeza: “Quando lemos um clássico, não vemos mais, no livro, do que víramos antes, vemos mais, em nós, do que víramos antes.” Isto é, a leitura dos bons livros instrui-nos sobre o mundo fora de nós e sobre o mundo dentro de nós. Ou, ainda, por outras palavras, do autor de uma vasta obra ensaística, Holbrook Jackson: “A finalidade de ler não é mais livros, mas sim mais vida.”
Eugénio Lisboa, in Vamos Ler, um cânone para o leitor relutante, Guerra & Paz Editores Lda, Março de 2021, pp. 42,43, 45,46, 48, 57,58,59

sexta-feira, 22 de abril de 2022

BUNKER


Nem só a pandemia aprisiona
tantos homens na sua solidão:
a megalomania funciona
com eficácia e perfeição.
 
Fechado num bunker, um alemão
aguardava que russos o prendessem
mas matou-se, fugindo à execução,
rogando que, em seguida, o queimassem.
 
É por ironia que agora, um russo,
totalmente Isolado e , num sinistro
palácio, sem direito a soluço,
 
apodrece, sem amigo ou ministro
que possa dar afago ou conselho:
olha e vê um monstro no espelho.
                                  22.04.2022
Eugénio Lisboa

No dia Mundial da Terra


Neste dia Mundial da Terra, abrimos o belíssimo livro  "Cantares ", do poeta brasileiro Manoel de Andrade para assinalar esta data. A selecção recaiu no poema , que se transcreve,  por ser além de um magnífico poema , apresentar um largo e profundo olhar sobre este nosso mundo , residente de um planeta castigado por todos nós. 
Ao Manoel de Andrade, poeta, escritor , ensaísta de Curitiba, apresentamos os nossos agradecimentos.

DISTOPIA
              Para Mussa José Assis

Como será  o amanhã...!?
um itinerário sem destino?
um calendário de incertezas?
O que restará dessa anêmica biosfera...!?
do fluxo agonizante das nascentes...
das bandeiras hasteadas pela vida!?
Dia a dia e esse palco inquietante...!
esse escasso oxigênio,
essa delgada água,
esse termômetro assustador.
Ano a ano e a ampulheta  do  caos escorrendo lentamente  nossas  vidas...!
nessa paisagem devorada,
nesse carbono letal,
nesse mapa pontilhado pela morte.
 
Como será o planeta do amanhã...!?
Um mar sem arquipélagos?
um oceano de migrantes?
uma praia de naufrágios?
Falo de uma temperatura cruel,
de paisagens derretidas,
de uma frota de icebergs navegando os sete mares.
 
Como será a terra do amanhã!?
um campo  calcinado?
uma lavoura sinistra?
Que sabor terão os frutos na próxima estação?
que surpresas nos escondem os segredos da ciência?
o que colheremos da alquimia da ganância?
Falo de patentes  criminosas,
de sementes suicidas,
dessa dinastia de flores virulentas polinizando a vida
e desse bizarro contrabando germinando sobre a terra.
 
Como será  teu  amanhã!?  
um teclado de emoções?
um híbrido palpitar?
Com que apetite digitarás as tuas ânsias
degustando essa cultura cibernética?
digerido  pelos circuitos  virtuais,
pelo marketing neurológico das partículas,
por esse “chip” instalado no teu cérebro,
processando uma ordem dogmática: conecte, “navegue”, consuma...
Com que senha  abrirás teu coração?
haverá um ícone para a solidariedade?
um link  para a compaixão?
Qual a fronteira entre tu mesmo e a máquina?
quem são essas moléculas engenhosas?
esses átomos amestrados
a devassar teu íntimo recanto de criatura?
 

Como será nosso amanhã!?
Uma bússola sem norte?
um insulto à liberdade?
com que farol iluminaremos nosso rumo
acuados pela ousadia da violência
e sitiados pelo próprio livre-arbítrio?
Aqui e acolá as estreitas fronteiras do pânico...
esse semáforo que não abre...
esse alguém que te observa...
esse olhar engatilhado...
uma abordagem indigesta
e o cronômetro do pavor computando teu destino.
No roteiro dantesco da sobrevivência
reabres dia a dia tua agenda...,
é o teu cotidiano decomposto,
essa incerteza diária de chegar...
essas balas que assobiam no perímetro dos teus passos.
 
Como será nosso amanhã!?
Um mundo sem idioma?
um cântaro de fel?
Falo de um território  dominado por estranhas hierarquias,
por facções tatuadas com os signos da maldade,
pelos  mercenários do vício
enriquecidos  pelos lucros homicidas.
Falo de uma legião de vítimas,
de uma síndrome cruel e invencível,
de criaturas e sonhos em farrapos.
Falo dos “juízes” da vida e da morte,
de sentenças e chacinas,
de um comando sinistro e impassível.
Falo da cidadania encurralada pelas milícias do ódio
e de um mercado inexorável do extermínio.
 
Como será o amanhã!?
um shopping de entretenimentos?
uma oficina de vaidades?
um imenso bazar de grifes e mesmices?               
Quem sabe...,  uma alameda  “fashion”...
onde desfilam as esbeltas silhuetas da ilusão,
estampadas, dia a dia, nas páginas coloridas do glamour. 
Ou, talvez, um teatro de incautos “marionetes”...
encenando  a sensualidade e  o acinte
na  pública ribalta do hedonismo!
 

Como será o amanhã?
Um santuário virtual do “encanto”?
uma cidadela da luxúria?
Falo da explícita pedagogia do erotismo,
 seus ícones, seus balcões,
suas vitrines pontocom.
De suas telas insinuantes,
seu varejo literário,
e sua indigesta ditadura musical.
Falo da sodomia on-line,
de devassadas alcovas eletrônicas
e desse promíscuo ritual de fantasias.
 
E pergunto, perplexo, pela pátria do amanhã...
e falo das paisagens sedutoras do poder,
desse cheiro putrefato que chega do planalto.
Falo de uma oficial  voracidade...
dessa doméstica fauna de homens públicos,
...essa nossa biodiversidade insustentável.
Falo da ascensão vertiginosa da esperteza,
dessa inumerável galeria de “celebridades”,
trajadas com as fisiológicas legendas do poder.
Falo do escândalo nosso de cada dia,
da nação envergonhada por quadrilhas palacianas,
por dossiês sonegados e pelos crimes arquivados.
Falo dessa insultante presunção de inocência,
dessa triste balada da alma humana,
dançando pela culpa absolvida
e gargalhando com escárnio da justiça.
 
O que sobrará enfim desse perene banquete...!?
para onde caminha essa infantil humanidade...
embriagada pelo licor das ilusões
e indiferente à dor dos desgraçados?
Quem sabe reste um naco qualquer de fraternidade
para ser digerido com um gole de esperança...
um “cardápio” para os filhos da miséria,
uma migalha perene...
para saciar essa fome que janta, na calçada,  o nosso lixo remexido.
 
E eis porque falo de uma alarmante geografia de lágrimas,
de uma favela planetária
de uma legião mundial de parias.
Falo de criaturas açoitadas pela vida
de um mundo que  “não dorme e que não come”
que “não lê e não escreve”...
Como saciar tanta  sede de justiça?
como conter essa fome parindo seus herdeiros?
 

Ó Senhores...é tão triste ironizar a esperança
mas diante dessa insólita passarela
nós nos perguntamos: o que se espera dessa sórdida assembleia ???
Um projeto político para a solidariedade humana?
ou  emendas com  intenções inconfessáveis,
retórica ambiental e ongs humanitárias?
E o que se pode esperar  desse desfile de beldades...
novas “tendências” para a fraternidade
um  “estilo de vida” para os excluídos,
finos “tecidos” para cobrir o pudor dos maltrapilhos!!!???
Ou, talvez, “padrões” mais “chiques” de caridade,
“estampas” coloridas para a compaixão,
melhores “ângulos” para fotografar a beneficência!!!???
 
Mas afinal quem ousa desfilar nessa excêntrica avenida!?
quem  são essas almas extraviadas,
essas tribos debochadas?
Quem comanda essas falanges
essa alcatéia  de homo sapiens,
de corruptos e deslumbrados,
de perversos e pervertidos?
Que poder é esse...
esse paradigma sombrio que invadiu nossa decência?
 
Que poder é esse?
potencial, subliminar, imprevisível...
É uma corporação, uma egrégora ???
Falo de um império global com seus invisíveis tentáculos,
seu discurso sedutor,
suas catilinárias e suas litanias,
suas metáforas globalizadas,
seus descarados silogismos e seus slogans mentirosos.
Quem  são eles?
nossos irmãos bastardos,
nossa herança cármica,
nosso “presente de grego” ?
Digo que é um sinistro “cavalo de Tróia”
há meio século parindo suas satânicas criaturas
invadindo  todos os caminhos
disputando os espaços da ilusão
conquistando todas as trincheiras
mascarando a liberdade
ironizando os códigos da verdade
silenciando a voz do coração.
São os negociantes do poder
os mercadores do sexo
as falanges do vício.
São os falsos profetas,
os tribunos celestes da intolerância
franqueados pela simonia
inaugurando um templo em cada esquina.
São os senhores do mundo e do impasse
manchados com as cores da discórdia.
São os fabricantes da bomba,
os que gargalham sobre o sangue dos caídos.
Seus nomes  se escrevem em todos os idiomas,
se escrevem  sob o signo de uma águia poderosa,
com os mortos e os órfãos das nações vencidas.
Se escrevem  com as siglas planetárias da ganância
e com os filhos planetários da miséria
 
Senhores...para onde caminhamos...?
em que galeria serão expostas nossas ‘artes’...?
o que revelarão amanhã nossos retratos de Dorian Gray”,
pincelados com as cores da cobiça e da luxúria.
Falo da alma humana adoecida por chagas milenares
e pergunto como surgirá nossa face no espelho do amanhã...
maquiada com as sombras do orgulho e do egoísmo
e tatuada com tantos desatinos.
Falo dessa estesia emasculada,
dessa irreverente cadência de vaidades.
Falo dessa máscara hilariante da “felicidade”,  
de criaturas tombadas do abismo da ilusão.
 

E diante de “triunfo de tantas nulidades”
Todos afinal nos perguntamos: como  descrever o enredo do futuro???
Será um show permanente de aparências
ou uma trincheira de gangues e facções?
Será uma ilha oficial da fantasia
ou o gueto planetário da miséria?
Será ainda um vale semeado de ambição
ou já um planeta inteiramente saqueado?
 
(Ah! esse mundo  sitiado...
essa convivência pari passu  com a maldade...
esse estresse à flor da pele...
esse desencanto, essa impotência...
esse presente sem sentido do amanhã...)
 
O que restará do estado de direito
das Bastilhas e dos muros derrubados
das bandeiras hasteadas sobre o sangue dos tiranos
o que restará do Sermão da Montanha e  das chagas do Calvário
da revolução de outubro e do sonho de Ernesto
quem manterá acesa a memória luminosa dos heróis
quem defenderá a trincheira da decência
quem ousará dizer não
o que acontecerá com os últimos rebeldes
 
Senhores..eu vos peço perdão...
por este lirismo sombrio,
pelos meus versos perplexos,
por esse indigesto cantar.
                                                                         
Senhor, nós te pedimos perdão...
por tantas balas perdidas,
por tantas pérolas aos porcos
e pelos dossiês da vergonha.
Perdão Senhor
pela pedofilia online
e pela inocência ultrajada.
Perdão pelas cartilhas da vaidade
e as dietas assassinas.
Nós te pedimos perdão
por esses ninhos queimando,
por essa relva secando,
por essa floresta no chão.
Perdão, Senhor, por esses cardumes boiando
pelos rios asfixiados
por essas águas morrendo
Perdão pelas  chaminés borbulhantes,
por essas folhas exaustas,
pela agonia do ozônio,
por essa Gaia ferida.
 

E contudo...senhores, é imprescindível sonhar...
juntar os cacos da utopia
e crer, incondicionalmente, num amanhã...
É imprescindível sustentar a vida
para que os filhos da esperança possam respirar sua beleza.
Senhores... é também imprescindível indignar-se
não se acovardar ante a maldade,
porque é imprescindível virar o jogo
saber que só o que é justo faz sentido
e empunhar com paixão essa bandeira.
É  sobretudo  imprescindível unir nossas mãos em prece,
falar  consigo mesmo e com as estrelas
e acreditar..., que sobre esse vale de lágrimas,
um olhar compassivo nos ampara.
                                        Curitiba, 12 de dezembro de 2006
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2007, pp.103-111

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Os bárbaros estão à porta

No antigo império dos romanos,
quando os bárbaros estavam à porta,
faziam-se contas aos desenganos,
o esplendor imperial, letra morta.
 
Quando um grande império se desmorona,
o esplendor da queda é grandioso,
mesmo se todo o lixo vem à tona,
em sinistro desastre aparatoso.
 
Os impérios nascem e também morrem
e, no meio, vivem, tenebrosos:
os impérios, sem vergonha, percorrem
 
cursos ardilosos e criminosos.
Há, neles, uma luz bela e trágica
que antevê uma ruína mágica!
                            21.04.2022
Eugénio Lisboa

A vergonha destes dias

O mundo pode e deve parar Putin.

Uma história verdadeiramente estranha

O Mercador e o Portal do Alquimista
por Ted Chiang,
"O  homem não pode aspirar a maior bênção no decurso dos seus dias. A história que tenho para contar é verdadeiramente estranha, e se nos fosse inteiramente tatuada no canto do olho, a maravilha desse trabalho não excederia a dos acontecimentos nela narrados, pois constitui um aviso para quem quiser ouvir e uma lição para quem quiser aprender. O meu nome é Fuwaad ibn Abbas, e nasci aqui em Bagdade, Cidade da Paz. O meu pai era mercador de cereais, mas eu trabalhei durante grande parte da minha vida como fornecedor de tecidos finos, negociando em sedas de Damasco, linho do Egipto e lenços de Marrocos, bordados a ouro. Era um comerciante próspero, mas sentia uma inquietude no coração, e nem a aquisição de bens de luxo ou a oferta de esmolas o conseguia apaziguar. Agora estou perante ti sem um único dirham na minha bolsa, mas sinto‑me em paz. Alá é o princípio de todas as coisas, mas, com a permissão de Vossa Majestade, vou começar a minha história pelo dia em que fui dar uma volta pelo bairro dos ferreiros. Precisava de comprar um presente para um homem com quem tinha negócios, e alguém me havia dito que ele seria capaz de gostar duma bandeja de prata. Depois de procurar durante meia hora, reparei que uma das maiores lojas do mercado mudara de dono. Ficava num local muito procurado, e o trespasse não devia ter sido barato, de modo que entrei para examinar os artigos. Nunca tinha visto um sortido de mercadoria tão maravilhoso. Junto à entrada havia um astrolábio equipado com sete discos incrustados a prata, uma clepsidra que sinalizava a hora certa e um rouxinol de bronze que trinava quando soprava o vento. No interior da loja havia mecanismos ainda mais engenhosos, e eu estava a olhar para eles como uma criança para um malabarista, quando um velho saiu de uma porta ao fundo. “Senhor, bem‑vindo ao meu humilde estabelecimento”, disse ele. “Chamo‑me Bashaarat. Em que posso ajudar‑te?” “Tens aqui artigos notáveis. Eu trato com negociantes de todas as partes do mundo, e nunca tinha visto nada igual. Se me permites a pergunta, onde é que adquiriste a tua mercadoria?” “Agradeço a gentileza das tuas palavras”, disse ele. “Tudo o que aqui vês foi fabricado na minha oficina, por mim mesmo ou pelos meus assistentes, supervisionados por mim.” Impressionou‑me que aquele homem pudesse ser tão versado em tantas artes. Interroguei‑o a respeito dos vários instrumentos à venda na loja e ouvi‑o discorrer com erudição sobre astrologia, matemática, geomancia e medicina. Falámos durante mais de uma hora, e o meu respeito e fascinação desabrocharam como uma flor acalentada pela aurora, até que ele mencionou as suas experiências de alquimia. “Alquimia?, perguntei. Isto surpreendeu‑me, pois ele não dava ares de ser pessoa que prometesse algo tão duvidoso. “Estás‑me a dizer que consegue transformar metais vis em ouro?” “Consigo, caro senhor, mas na verdade não é isso que a maioria dos alquimistas procura.” “Então o que procuram?” “Procuram uma fonte de ouro mais acessível do que a mineração dos solos. A alquimia descreve um método para fabricar ouro, mas o procedimento é tão árduo que, comparativamente, escavar o interior duma montanha parece mais fácil do que colher pêssegos da árvore.” Eu sorri. “Uma resposta inteligente. És claramente um homem instruído, mas eu tenho como certo que não se deve dar crédito à alquimia.” Bashaarat olhou para mim e reflectiu. “Construí recentemente uma coisa que poderá alterar essa tua opinião. Serás a primeira pessoa a quem a mostro. Queres vê‑la?” “Com todo o prazer.” “Acompanha‑me, por favor.” Conduziu‑me por uma porta ao fundo da loja. O quarto seguinte era uma oficina, ataviada com aparelhos cujas funções eu ignorava por completo — barras de metal envoltas em fio de cobre que, estendido, chegaria ao horizonte, espelhos instalados sob uma laje de granito circular que flutuava sobre mercúrio — mas Bashaarat passou por eles sem um olhar sequer. Em vez disso, conduziu‑me até um robusto pedestal, que me dava pelo peito, sobre o qual estava aprumado um sólido arco de metal. A abertura do arco tinha uma largura de dois palmos, e o aro era tão grosso que até o mais forte dos homens teria dificuldade em transportá‑lo. O metal era negro, mas tão polido e macio que, se fosse doutra cor, poderia ser usado como espelho. Bashaarat pediu‑me que me colocasse de maneira a ver o arco de lado, enquanto ele se postava diante da sua abertura. “Por favor, observa”, disse ele. Introduziu o braço pelo lado direito do arco, mas não o vi sair pelo outro lado. Era como se o braço tivesse sido cortado pelo cotovelo, e Bashaarat abanou com o coto para cima e para baixo, e depois retirou o braço intacto. Eu não esperara ver um homem tão instruído executar um truque de ilusionista, mas estava bem feito, e aplaudi educadamente. “Agora, espera um momento”, disse ele, dando um passo atrás. Eu esperei, e eis que um braço saiu pelo lado esquerdo do arco, sem um corpo a sustê‑lo. A manga coincidia com a da túnica de Bashaarat. O braço abanou para cima e para baixo e depois retirou‑se até desaparecer dentro do arco. O primeiro truque tinha‑me parecido uma simulação engenhosa, mas este era bastante superior, já que o pedestal e o arco eram claramente demasiado estreitos para esconderem uma pessoa. “Muito engenhoso!”, exclamei. “Obrigado, mas isto não é um mero truque de prestidigitação. O lado direito do arco precede em alguns segundos o lado esquerdo. Atravessar o arco é atravessar essa duração de forma instantânea.” “Não estou a perceber”, disse eu. “Deixa‑me repetir a demonstração.” Uma vez mais, enfiou o braço através do arco, e o braço desapareceu. Com um sorriso, empurrou‑o para a frente e para trás como se estivesse a jogar o jogo da corda. Depois puxou de novo o braço para fora e mostrou‑me a palma da mão aberta. Nela vi um anel que reconheci. “É o meu anel!” Olhei para a minha mão e verifiquei que o anel continuava no meu dedo. “Fizeste aparecer uma réplica.” “Não, na realidade, trata‑se do teu anel. Espera.”
Uma vez mais, um braço surgiu do lado esquerdo. Ansioso por descobrir o mecanismo do truque, apressei‑me a agarrar‑lhe a mão. Não era falsa, era uma mão perfeitamente cálida e viva como a minha. Dei‑lhe um puxão, e ela puxou‑me a mim. Depois, com uma destreza de carteirista, a mão tirou‑me do dedo o anel e o braço recuou para dentro do arco, desaparecendo completamente. “O meu anel desapareceu!”, exclamei. “Não, caro senhor”, disse ele. “O teu anel é este.” E deu‑me o anel que tinha na palma da mão. “Peço desculpa por este joguinho.” Voltei a colocá‑lo no meu dedo. “Mas já o tinhas na mão antes de ele me ter sido tirado.” Nesse momento, um braço emergiu do arco, desta feita pelo lado direito. “O que é isto?”, exclamei. Uma vez mais, reconheci o braço pela manga, antes de ele se retirar de novo, mas sem que tivesse visto Bashaarat introduzi‑lo pelo lado contrário. “Lembra‑te”, disse ele, “que o lado do direito do arco precede o esquerdo.” Dito isto, dirigiu‑se para o lado esquerdo do arco e introduziu por esse lado o braço, que mais uma vez desapareceu. Vossa Majestade já compreendeu por certo, mas eu só nesse instante é que percebi: o que quer que acontecesse no lado direito do arco era complementado, segundos depois, por um acontecimento no lado esquerdo. “Isto é feitiçaria?”, perguntei. “Não, meu senhor, nunca encontrei nenhum djin, e mesmo que encontrasse, não acredito que ele obedecesse às minhas ordens. Isto é uma forma de alquimia.” Tratou então de me explicar. Falou‑me da sua busca por minúsculos poros na pele da realidade, como os buracos que o caruncho escava na madeira, e que depois de ter encontrado um conseguiu expandi‑lo e alargá‑lo, da mesma forma que um vidreiro converte um pedaço de vidro fundido num tubo alongado, de maneira a que o tempo pudesse fluir como água por um dos lados enquanto do outro a abertura se solidificava como xarope. Confesso que não compreendi verdadeiramente a explicação, e portanto não posso atestar a sua veracidade. Tudo o que pude dizer em resposta foi, “Criaste algo verdadeiramente espantoso.” “Obrigado”, disse ele, “mas isto é apenas um prelúdio àquilo que eu pretendia mostrar‑te.” Convidou‑me a segui‑lo até outra sala, mais ao fundo. Ali deparei com um enorme portal circular, feito no mesmo metal preto e polido, instalado no centro da sala. “O que te mostrei ali atrás era um Portal de Segundos”, disse ele. “Este é um Portal de Anos. Os dois lados do portal estão separados por um intervalo de vinte anos.” Confesso que não compreendi de imediato esta observação. Imaginei‑o a enfiar o braço pelo lado direito e a esperar vinte anos que ele emergisse pelo outro lado, e pareceu‑me que seria um truque de magia muito confuso. Disse‑lhe isto, e ele riu‑se. “Pode ser usado dessa forma”, disse ele, “mas pensa antes no que aconteceria se o atravessasses.” Colocando‑se do lado direito do portal, fez‑me sinal para me aproximar, depois apontou para a abertura. “Espreita.” Espreitei e vi que no outro lado da sala os tapetes e as almofadas pareciam ser diferentes dos que havia visto ao entrar. Desloquei a cabeça de um lado para o outro e percebi que quando espreitava pelo portal via uma sala diferente daquela onde me encontrava. “Estás a ver esta sala tal como será daqui a vinte anos”, disse Bashaarat. Pisquei os olhos, como se estivesse perante uma miragem no deserto, mas aquilo que vi não se alterou. “E dizes que eu podia atravessá‑lo?”, perguntei. “Podias. E se o fizesses verias Bagdade tal como será daqui a vinte anos. Podias procurar o teu eu mais velho e conversar com ele. Depois podias atravessar de novo o Portal de Anos e regressar ao presente.” Estas palavras de Bashaarat causaram‑me uma espécie de vertigem. “Alguma vez fizeste isso?, perguntei‑lhe. “Alguma vez atravessaste o portal?” “Sim, tal como muitos dos meus clientes.” “Há bocado disseste‑me que eu era o primeiro a quem mostravas isto.” “E é verdade em relação a este Portal em particular. Mas durante muitos anos tive uma loja no Cairo, e foi lá que construí pela primeira vez um Portal de Anos. Mostrei‑o a muitas pessoas, que o experimentaram.” “O que é que elas aprenderam ao falarem com os seus eus mais velhos?” “Isso depende de cada pessoa. Se desejares, posso contar‑te a história de uma dessas pessoas.” Bashaarat narrou‑me então essa história, e se agradar a Vossa Majestade ouvi‑la, conto‑a aqui.”
Ted Chiang, in Exalação, Relógio D’Água Editores,  pp.11-15
 
SOBRE O AUTOR:
Ted Chiang é um escritor norte-americano de ficção científica, nascido em 1967, em Port Jefferson, Nova Iorque. Foi galardoado com quatro Prémios Nebula, quatro Prémios Hugo, quatro Prémios Locus e o Prémio John W. Campbell para Melhor Novo Escritor. O seu conto “História da Tua Vida” serviu de base ao filme O Primeiro Encontro (2016). É artista residente na Universidade de Notre Dame.