Pergunta
singela
aos
que persistem em defender Putine
"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
sábado, 30 de abril de 2022
Pergunta singela
Imaginem Rosa Casaco
Réveillons-nous!
A primeira é um apelo à urgência de pensar séria e profundamente sobre o que está a acontecer. Com Réveillons-nous, Edgar Morin não quer simplesmente fazer eco, doze anos depois, ao livro de Stéphane Hessel, Indignez-vous (Indignai-vos): “Hessel dizia: Indignai-vos. Ele dirigia-se a pessoas já despertas. Eu, eu tenho a impressão de que vivenciamos os acontecimentos um pouco como sonâmbulos. Aliás, o que eu vivi, na minha juventude, nos dez anos que precederam a Guerra. Eu peço que se tente ver e compreender o que se passa. Caso contrário, sofreremos os acontecimentos como, infelizmente, sofremos a última Guerra mundial.” (Pessoalmente, chamo permanentemente a atenção para a necessidade de pensar. Pensar vem do latim, pensare, que sgnifica pesar razões; daí vem também o penso sanitário, pois pensar cura.
Como vê esta nova guerra na Europa, com a invasão da Ucrânia? Certamente, há “uma surpresa, mas não total”. De facto, num artigo no Le Monde em 2014, por ocasião da crise ucraniana, concretamente na Crimeia, escreveu: “Atenção, é um foco de infecção com o risco de ter consequências desastrosas. Durante anos, fechou-se os olhos a esta infecção…” O problema agora é que há “um desequilíbrio”: “estamos numa espécie de contradição, porque, por um lado, pensamos que a resistência ucraniana é justa — é uma guerra patriótica —, mas ao mesmo tempo pensamos que, se entrarmos no conflito, corremos o risco do que Dominique de Villepin chamava um ‘tsunami mundial’: passo a passo, chegar à explosão.” Não nos podemos enredar na lógica da guerra e “intervir militarmente. Por isso, sinto esta contradição que vivemos todos e que é preciso assumir”. “Por um lado, queremos apoiar um país que resiste e, por outro, não podemos fazê-lo de modo integral, isto é, entrar na guerra. Estamos no meio: fornecemos armas e reabastecimento”.
Os seus três escritores russos preferidos são: Dostoiévski, Tolstói, Tchekhov. “Eles ajudam-no a compreender a guerra hoje?” “Não, eles ajudam-me sobretudo porque transportam com eles um humanismo russo que, diferentemente do humanismo ocidental, que é sobretudo abstracto, é concreto. Está cheio de compaixão pelo sofrimento e a miséria humana. E o que estes autores me ensinaram de modo profundo foi este humanismo da compaixão pelo sofrimento.” Aqui, pessoalmente, pensei no meu íntimo: Nem Putin nem Kirill leram Dostoiévski, Tolstói, Tchekov, ou não entenderam… ou não querem entender.
E voltamos à necessidade urgente de pensar. Estamos mergulhados em crises gravíssimas, que podem colocar a Humanidade perante a possibilidade do seu fim. “Em todo o mundo há crise das democracias, uma crise do progresso. Acreditámos durante muito tempo que o progresso era certo, uma lei da História; ora, hoje percebemos que o futuro é cada vez mais incerto e inquietante. Há a crise do futuro, a angústia, as crises que aconteceram: a económica em 2008, depois a pandemia. As angústias que isso gera provocam um retraimento, um fechar-se sobre si mesmo.” E nota-se uma espécie de derrota dos intelectuais e políticos, que não conseguem fazer-se ouvir. Há uma questão que é “muito importante hoje. Porque estamos num mundo de experts (peritos) e especialistas em que cada um vê apenas uma pequena parte dos problemas, isolados uns dos outros. Existe hoje de facto essa deficiência.”
De novo o jornalista: “Conversámos sobre a guerra na Ucrânia, tendo como pano de fundo a ameaça nuclear. Também dedica um dos quatro capítulos do seu livro ao aquecimento global. Mestas condições, é possível pensar o futuro com serenidade?” Resposta: “Não podemos ficar serenos perante perspectivas tão preocupantes. O que eu quereria mostrar, mesmo antes da guerra na Ucrânia, é que, desde Hiroshima, uma espada de Dâmacles paira sobre a cabeça de todos, e ela agravou-se com a crise ecológica, que mostra que realmente a bioesfera, o mundo vivo e as nossas sociedades estão ameaçados. Não é só o clima. O clima é um elemento dessa crise geral e a pandemia também contribuiu para o carácter global da crise. Penso que entrámos num novo período. Pela primeira vez na História, a Humanidade corre o risco de aniquilação, talvez não total — haverá alguns sobreviventes —, mas uma espécie de ‘reinício’ a partir do zero em condições sanitárias sem dúvida terríveis. É esse perigo, que eu já tinha diagnosticado como potencial, que, de repente, se torna actual com esta história de guerra russa.”
Claro que “só podemos pensar o futuro, se estivermos conscientes do passado e do que se passa no presente. Não se pode pensar o futuro isolado. E hoje o futuro depende dessas grandes correntes que atravessam a Humanidade e que são ameaçadoras e regressivas. Portanto, eu penso que é urgente pensar o futuro. Porquê? Até agora pensava-se que o futuro era uma espécie de linha recta que ia continuar. Ora, é preciso imaginar os diferentes cenários. É preciso estar vigilante. É preciso esperar o inesperado para saber navegar na incerteza. Há toda uma série de reformas, o modo de pensar, de se comportar, que são hoje necessários.”»
Anselmo Borges, em Artigo publicado no DN | 23 de abril de 2022
Edgar Morin |
Sobre o livro Réveillons
Nous!, escreve Edgar Morin:
“Nous ne savons pas ce qui nous arrive et c’est précisément ce qui nous arrive », écrit José Ortega y Gasset.
Que nous arrive-t-il ?
Qu’arrive-t-il à la France ? Au monde ? Notre impéritie vient-elle d’une myopie
à l’égard de tout ce qui dépasse l’immédiat ? d’une perception inexacte ? d’une
crise de la pensée ? d’un somnambulisme généralisé ?
Tant de certitudes ont
été balayées !
Comment naviguer dans
un océan d’incertitude ? Comment comprendre l’histoire que nous vivons ?
Comment admettre enfin que, en dégradant l’écologie de notre planète, nous
dégradons nos vies et nos sociétés ? Comment appréhender le monde qui se
transforme de crise en crise ? Comment concevoir l’aventure inouïe de notre
humanité ? Est-ce une course à la mort ou à la métamorphose ?
Serait-ce à la fois
l’un et l’autre ?
Réveillons-nous !
E. M.
Reveillons-nous! , de Edgar Morin
80 pages, 120 x 180 mm
ISBN : 9782207165256 /
Gencode : 9782207165256
Code distributeur :
B27062
Catégorie >
Sous-catégories : Documents > Histoire - Philosophie, sciences cognitives
Collection Document
Parution : 02-03-2022
ÉDITIONS DENOËL
sexta-feira, 29 de abril de 2022
Como se faz um Putine
em noite assombrada de segredos,
feitiços e mezinhas, e previu,
naquele monstro, só medos e enredos.
Heil, Putine, aborto mal cheiroso,,
cozido no enxofre do inferno,
em frenético coito ardiloso,
fazendo do planeta longo inverno.
Heil, ó filho de coitas fedorentas,
lambido por demónio mal formado,
farejando ruínas com as ventas
sujas de beber o famigerado
sangue dos que à vida já roubou,
feliz por ter feito quanto almejou.
Eugénio Lisboa
Agnus Dei, uma oração para a Ucrânia
To Build A Home
Wooden floors, walls and window sills
Tables and chairs worn by all of the dust
This is a place where I don't feel alone
This is a place where I feel at home
'Cause, I built a home
For you
For me
Until it disappeared
From me
From you
And now, it's time to leave and turn to dust
Out in the garden where we planted the seeds
There is a tree as old as me
Branches were sewn by the color of green
Ground had arose and passed it's knees
By the cracks of the skin I climbed to the top
I climbed the tree to see the world
When the gusts came around to blow me down
I held on as tightly as you held onto me
I held on as tightly as you held onto me
And, I built a home
For you
For me
Until it disappeared
From me
From you
And now, it's time
To leave and turn
To dust
quinta-feira, 28 de abril de 2022
Putine revisitado
É defeito de fabrico?
Como eu aqui demonstro,
quando o monstro é também sádico,
é mesmo um senhor defeito:
se a crueldade é lúbrica
e muito grande o despeito,
tão alheio à natureza,
foi algo de muito mal feito
ou, de feia bruxa, proeza!
27.04.2022
Eugénio Lisboa
Isto é uma modesta tentativa de regressar ao combate, mesmo com um olho ao peito e com a testa ainda devastada pela herpes.
terça-feira, 26 de abril de 2022
O mito do império euro-asiático
Os euro-asiáticos não tiveram uma vida fácil até à chegada ao poder de Vladimir Putin, um oficial do KGB saudoso do poder soviético e desejoso de fazer voltar a Rússia ao seu destino histórico. Deram-lhe a justificação ideológica para exercer o poder e, sobretudo, para iniciar um novo processo de expansão a partir de Moscovo.
Pastoukhov e outro jornalista, Dmitri Bykov, publicaram artigos anunciando o nascimento duma forma de “fascismo neoestalinista” capaz de desencadear uma guerra civil contra os russos “europaisados” que não concordavam com a orientação putinista, ou seja, um novo terror. Na agência de informação oficial russa, a RIA Novosti, um artigo propõe que a Ucrânia seja “desnazificada e des-europeinisada” (a palavra não existe, mas percebe-se). Os dirigentes devem ser “liquidados” e uma grande parte da população, que é constituída por “nazis passivos”, desejosos de ser independentes e europeus, devem ser “castigados” para “expiar os seus pecados contra a Rússia”.
É verdade, estas coisas foram escritas, são ditas e publicadas diariamente.
Quanto à miséria em que vive a generalidade do povo russo, é porque decidiram sacrificar o seu bem-estar em nome do destino histórico do país. A verdade é que as sondagens mostram que a grande maioria dos russos está ao lado de Putin e a sua popularidade aumentou desde que começou a invasão da Ucrânia. Poderia dizer-se que é porque só têm acesso à propaganda oficial; contudo, há outro valor que os anima: o reconhecimento do seu país como uma potência capaz de subjugar os ingratos que ousaram sair da sua esfera de influência.
Pode acreditar-se no destino inevitável do império euro-asiático, ou pode achar-se que estão todos malucos; a verdade, real e evidente, é que a máquina da História está em andamento e não vai por um caminho jovial e bucólico. As teorias imperiais – há outras, como sabemos – são mirabolantes como teorias, mas quando começam a ser praticadas só trazem desgraça e sofrimento, tanto para as vítimas como para os agressores.
O Armagedão não é uma profecia aterradora; é a realidade perante os nossos olhos.”
segunda-feira, 25 de abril de 2022
Em Abril de 74 Lisboa converteu-se na capital da nossa alegria
domingo, 24 de abril de 2022
Ao Domingo Há Música
sábado, 23 de abril de 2022
NOTÍCIAS DA LILIPUTINELÂNDIA
vivia um rei de mau feitio, pior semblante;
constava que comia bifes de mamute
e cultivava um silêncio exorbitante.
Ele era frio e não tinha sentimentos
de ser humano ou animal corrente.
Vivia, devorado por ressentimentos,
que lhe afectavam a tortuosa mente.
Sonhava só com vinganças e com impérios,
com canhões, aviões, tanques e muitas guerras,
e outros muitos, idênticos despautérios
e tudo quanto uma mente sã emperra!
Não gostava de ninguém, nem de si gostava,
sentia repulsa por tudo o que pulsasse,
por isso, mandar matar não lhe custava,
e fazia-o se alguém o irritasse.
Vivia sozinho, não prezava mulheres,
gostava de cobras, de hienas, de chacais,
bebia o sangue de bichos, às colheres
e, nos actos sexuais, suprimia os ais.
Às vezes, a solidão é má conselheira
e o nosso Liliputine não foi excepção:
sempre que magicava uma baboseira,
apetecia-lhe uma grande transgressão..
Um dia, irritou-o que um vizinho,
de usos e costumes diferentes dos seus,
se recusasse a tê-lo como padrinho
e quisesse acesso a uns mares egeus.
Sendo o Liliputine baixo e não dançarino,
subiu-lhe a maldade toda ao miolo
e logo decidiu o grande bailarino
que o seu vizinho o não tomasse por tolo.
Tendo grande imaginação pra pretextos,
de que necessitava, para mais uma guerra,
enterrou-se num bunker, pondo-se a ler textos
que tanta gente matam e tão pouca enterram.
Invadiu, portanto, o país do seu vizinho,
matou, destruiu, violou e massacrou,
que a ordem era nada ficar inteirinho,
e os que cumpriram, grato, ele os honrou.
Mas o plano secreto do Liliputine
não era só apoderar-se do vizinho,
dando a esse país nova patine,
tornando-o, por outro lado, mais mansinho.
Não, Liliputine ambicionava bem mais:
não lhe chegava ser monstro muito temido:
soubera de Macbeth, Staline e outros tais,
monstros de um cardápio tão bem servido.
Tinha o seu grande e fantástico projecto:
ser pior do que Macbeth era o seu alvo
autorizar tudo quanto há de abjecto,
tudo esmagando, nada deixando a salvo!
Foi este o seu desejo: não uma conquista
de território ou de maior riqueza:
o que ele tinha era, de sempre, prevista
a ascensão ao título de rei da torpeza.
Isso, dizem os cronistas de Liliput,
ele o conseguiu, a pretexto de uma guerra:
nas crónicas do reino, não há filho da puta,
que, como ele, esteja na berra!
23.04.2022
Eugénio Lisboa
Dos Livros e do vício impune da Leitura
Por outro lado, a grande literatura é também boa e eficaz terapêutica para os nossos momentos de crise. No meio dos desarrumos e tumultos (e até injustiças) que os tempos revolucionários inevitavelmente trazem às nossas vidas, a leitura de um grande livro que nos relate tempos semelhantes, outrora vividos por outros, como, por exemplo, Les Dieux Ont Soif (Os Deuses Têm Sede), de Anatole France, conseguirá acalmar a nossa ansiedade, pondo-a em razoável perspectiva: porque nos mostra, com talento e engenho, como outros já passaram pelo mesmo, tendo depois a tempestade acabado por amainar. Mesmo à proximidade da morte, a leitura de um livro empolgante pode trazer inesperado prazer, distracção e consolo. Lembro-me do meu amigo, Dr. Fernando Ferreira, notável psiquiatra e homem cultíssimo, no seu leito de morte, em Lourenço Marques. Fui vê-lo, um dia, já perto do fim. Na sua mesa de cabeceira, como lenitivo prometido, um medicamento infalível: um romance de Camilo. À saída, perguntei-lhe se queria que lhe trouxesse algum livro. Respondeu-me sem hesitar: “Traga-me o último livro de Domingos Monteiro”. Óptima escolha, pensei eu: um dos nossos maiores contistas. Levei-lhe, um ou dos dias depois, Letícia e o Lobo Júpiter, que agradeceu efusivamente. Espero que o tenha lido antes do seu falecimento, que teve lugar não muito depois.
As pessoas que nunca adquiriram o gosto de ler não fazem ideia do prazer incomensurável que desperdiçam. O gosto da leitura é um dos mais valiosos presentes que a vida nos pode oferecer. Os que têm esse gosto olham, com alguma pena e mesmo com um toque de desprezo, para aqueles que nunca o adquiriram.(...)
A escritora inglesa Virginia Woolf tem uma inesquecível passagem, num dos seus livros, que sublinha de modo pitoresco o valor egrégio do gosto de ler. Nestes termos:
(...)
Outro exemplo clássico de como a leitura pode absorver, não apenas um leitor, mas dezenas de milhares de leitores, simultaneamente, é a história da publicação, em fascículos, de Abril de 1840 a Novembro de 1841, do famoso romance de Dickens, The Old Curiosity Shop (A Loja de Antiguidades). O livro ia sendo devorado por milhares de leitores ingleses e americanos, à medida que os fascículos iam sendo publicados. Quanto mais o romance se aproximava do fim, mais a ansiedade dos leitores aumentava: iria a pequena Nell morrer ou não? Vários leitores tinham mesmo escrito ao romancista, suplicando-lhe que não “matasse” a menina. Conta-se que, em Nova Iorque, quando o barco que trazia os últimos fascículos, de Londres, se preparava para acostar no porto, centenas de leitores de Dickens começaram a gritar, do cais, para os oficiais do navio, não contendo a sua impaciência: “A pequena Nell morreu ou não morreu?” Hélas!, ela tinha morrido, para grande desgosto dos leitores seus amigos…
Induzir nas pessoas esta capacidade de se deixarem absorver por um bom livro ou por um grande livro é uma arte delicada e necessária. O psicólogo e filósofo B. F. Skinner observava, a este respeito: “Não se deve ensinar os grandes livros, deve-se ensinar a amar a leitura.” Eis uma verdadeira medalha a nunca esquecer. Os livros complicados, sugeria Camus, são feitos para serem “estudados”, os bons livros são feitos para serem lidos e amados. No fundo, a fórmula, para se chegar à leitura e ao prazer dela é simples: para aprendermos a nadar, basta lançarmo-nos à água; para aprendermos a gostar de ler, basta pegarmos num livro atraente e iniciarmos a sua leitura. Tome-se um conto qualquer da dúzia de belos livros que nos deixou Domingos Monteiro (1903 – 1980), ou um volume de contos e novelas, por exemplo, Léah e Outras Histórias, de José Rodrigues Miguéis (1901 – 1980) ou os Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga (1907 – 1995) ou as delicadas, profundas e pungentes Histórias de Mulheres, de José Régio (1901 – 1969) e prometo ao leitor que se deixará absorver, sem remédio, por qualquer destas histórias exemplares. Os grandes contadores de histórias fazem duas coisas capitais: entretêm-nos e enriquecem-nos. Clifton Fadiman, conhecido jornalista e escritor, encarregado, durante dez anos, da secção de crítica da prestigiosa revista New Yorker, observava com inexcedível agudeza: “Quando lemos um clássico, não vemos mais, no livro, do que víramos antes, vemos mais, em nós, do que víramos antes.” Isto é, a leitura dos bons livros instrui-nos sobre o mundo fora de nós e sobre o mundo dentro de nós. Ou, ainda, por outras palavras, do autor de uma vasta obra ensaística, Holbrook Jackson: “A finalidade de ler não é mais livros, mas sim mais vida.”
sexta-feira, 22 de abril de 2022
BUNKER
tantos homens na sua solidão:
a megalomania funciona
com eficácia e perfeição.
aguardava que russos o prendessem
mas matou-se, fugindo à execução,
rogando que, em seguida, o queimassem.
totalmente Isolado e , num sinistro
palácio, sem direito a soluço,
que possa dar afago ou conselho:
olha e vê um monstro no espelho.
Eugénio Lisboa
No dia Mundial da Terra
Como será o amanhã...!?
um itinerário sem destino?
um calendário de incertezas?
O que restará dessa anêmica biosfera...!?
do fluxo agonizante das nascentes...
das bandeiras hasteadas pela vida!?
Dia a dia e esse palco inquietante...!
esse escasso oxigênio,
essa delgada água,
esse termômetro assustador.
Ano a ano e a ampulheta do caos escorrendo lentamente nossas vidas...!
nessa paisagem devorada,
nesse carbono letal,
nesse mapa pontilhado pela morte.
Um mar sem arquipélagos?
um oceano de migrantes?
uma praia de naufrágios?
Falo de uma temperatura cruel,
de paisagens derretidas,
de uma frota de icebergs navegando os sete mares.
um campo calcinado?
uma lavoura sinistra?
Que sabor terão os frutos na próxima estação?
que surpresas nos escondem os segredos da ciência?
o que colheremos da alquimia da ganância?
Falo de patentes criminosas,
de sementes suicidas,
dessa dinastia de flores virulentas polinizando a vida
e desse bizarro contrabando germinando sobre a terra.
um teclado de emoções?
um híbrido palpitar?
Com que apetite digitarás as tuas ânsias
degustando essa cultura cibernética?
digerido pelos circuitos virtuais,
pelo marketing neurológico das partículas,
por esse “chip” instalado no teu cérebro,
processando uma ordem dogmática: conecte, “navegue”, consuma...
Com que senha abrirás teu coração?
haverá um ícone para a solidariedade?
um link para a compaixão?
Qual a fronteira entre tu mesmo e a máquina?
quem são essas moléculas engenhosas?
esses átomos amestrados
a devassar teu íntimo recanto de criatura?
Como será nosso amanhã!?
Uma bússola sem norte?
um insulto à liberdade?
com que farol iluminaremos nosso rumo
acuados pela ousadia da violência
e sitiados pelo próprio livre-arbítrio?
Aqui e acolá as estreitas fronteiras do pânico...
esse semáforo que não abre...
esse alguém que te observa...
esse olhar engatilhado...
uma abordagem indigesta
e o cronômetro do pavor computando teu destino.
No roteiro dantesco da sobrevivência
reabres dia a dia tua agenda...,
é o teu cotidiano decomposto,
essa incerteza diária de chegar...
essas balas que assobiam no perímetro dos teus passos.
Um mundo sem idioma?
um cântaro de fel?
Falo de um território dominado por estranhas hierarquias,
por facções tatuadas com os signos da maldade,
pelos mercenários do vício
enriquecidos pelos lucros homicidas.
Falo de uma legião de vítimas,
de uma síndrome cruel e invencível,
de criaturas e sonhos em farrapos.
Falo dos “juízes” da vida e da morte,
de sentenças e chacinas,
de um comando sinistro e impassível.
Falo da cidadania encurralada pelas milícias do ódio
e de um mercado inexorável do extermínio.
um shopping de entretenimentos?
uma oficina de vaidades?
um imenso bazar de grifes e mesmices?
Quem sabe..., uma alameda “fashion”...
onde desfilam as esbeltas silhuetas da ilusão,
estampadas, dia a dia, nas páginas coloridas do glamour.
Ou, talvez, um teatro de incautos “marionetes”...
encenando a sensualidade e o acinte
na pública ribalta do hedonismo!
Como será o amanhã?
Um santuário virtual do “encanto”?
uma cidadela da luxúria?
Falo da explícita pedagogia do erotismo,
seus ícones, seus balcões,
suas vitrines pontocom.
De suas telas insinuantes,
seu varejo literário,
e sua indigesta ditadura musical.
Falo da sodomia on-line,
de devassadas alcovas eletrônicas
e desse promíscuo ritual de fantasias.
e falo das paisagens sedutoras do poder,
desse cheiro putrefato que chega do planalto.
Falo de uma oficial voracidade...
dessa doméstica fauna de homens públicos,
...essa nossa biodiversidade insustentável.
Falo da ascensão vertiginosa da esperteza,
dessa inumerável galeria de “celebridades”,
trajadas com as fisiológicas legendas do poder.
Falo do escândalo nosso de cada dia,
da nação envergonhada por quadrilhas palacianas,
por dossiês sonegados e pelos crimes arquivados.
Falo dessa insultante presunção de inocência,
dessa triste balada da alma humana,
dançando pela culpa absolvida
e gargalhando com escárnio da justiça.
para onde caminha essa infantil humanidade...
embriagada pelo licor das ilusões
e indiferente à dor dos desgraçados?
Quem sabe reste um naco qualquer de fraternidade
para ser digerido com um gole de esperança...
um “cardápio” para os filhos da miséria,
uma migalha perene...
para saciar essa fome que janta, na calçada, o nosso lixo remexido.
de uma favela planetária
de uma legião mundial de parias.
Falo de criaturas açoitadas pela vida
de um mundo que “não dorme e que não come”
que “não lê e não escreve”...
Como saciar tanta sede de justiça?
como conter essa fome parindo seus herdeiros?
Ó Senhores...é tão triste ironizar a esperança
mas diante dessa insólita passarela
nós nos perguntamos: o que se espera dessa sórdida assembleia ???
Um projeto político para a solidariedade humana?
ou emendas com intenções inconfessáveis,
retórica ambiental e ongs humanitárias?
E o que se pode esperar desse desfile de beldades...
novas “tendências” para a fraternidade
um “estilo de vida” para os excluídos,
finos “tecidos” para cobrir o pudor dos maltrapilhos!!!???
Ou, talvez, “padrões” mais “chiques” de caridade,
“estampas” coloridas para a compaixão,
melhores “ângulos” para fotografar a beneficência!!!???
quem são essas almas extraviadas,
essas tribos debochadas?
Quem comanda essas falanges
essa alcatéia de homo sapiens,
de corruptos e deslumbrados,
de perversos e pervertidos?
Que poder é esse...
esse paradigma sombrio que invadiu nossa decência?
potencial, subliminar, imprevisível...
É uma corporação, uma egrégora ???
Falo de um império global com seus invisíveis tentáculos,
seu discurso sedutor,
suas catilinárias e suas litanias,
suas metáforas globalizadas,
seus descarados silogismos e seus slogans mentirosos.
Quem são eles?
nossos irmãos bastardos,
nossa herança cármica,
nosso “presente de grego” ?
Digo que é um sinistro “cavalo de Tróia”
há meio século parindo suas satânicas criaturas
invadindo todos os caminhos
disputando os espaços da ilusão
conquistando todas as trincheiras
mascarando a liberdade
ironizando os códigos da verdade
silenciando a voz do coração.
São os negociantes do poder
os mercadores do sexo
as falanges do vício.
São os falsos profetas,
os tribunos celestes da intolerância
franqueados pela simonia
inaugurando um templo em cada esquina.
São os senhores do mundo e do impasse
manchados com as cores da discórdia.
São os fabricantes da bomba,
os que gargalham sobre o sangue dos caídos.
Seus nomes se escrevem em todos os idiomas,
se escrevem sob o signo de uma águia poderosa,
com os mortos e os órfãos das nações vencidas.
Se escrevem com as siglas planetárias da ganância
e com os filhos planetários da miséria
em que galeria serão expostas nossas ‘artes’...?
o que revelarão amanhã nossos retratos de Dorian Gray”,
pincelados com as cores da cobiça e da luxúria.
Falo da alma humana adoecida por chagas milenares
e pergunto como surgirá nossa face no espelho do amanhã...
maquiada com as sombras do orgulho e do egoísmo
e tatuada com tantos desatinos.
Falo dessa estesia emasculada,
dessa irreverente cadência de vaidades.
Falo dessa máscara hilariante da “felicidade”,
de criaturas tombadas do abismo da ilusão.
E diante de “triunfo de tantas nulidades”
Todos afinal nos perguntamos: como descrever o enredo do futuro???
Será um show permanente de aparências
ou uma trincheira de gangues e facções?
Será uma ilha oficial da fantasia
ou o gueto planetário da miséria?
Será ainda um vale semeado de ambição
ou já um planeta inteiramente saqueado?
essa convivência pari passu com a maldade...
esse estresse à flor da pele...
esse desencanto, essa impotência...
esse presente sem sentido do amanhã...)
das Bastilhas e dos muros derrubados
das bandeiras hasteadas sobre o sangue dos tiranos
o que restará do Sermão da Montanha e das chagas do Calvário
da revolução de outubro e do sonho de Ernesto
quem manterá acesa a memória luminosa dos heróis
quem defenderá a trincheira da decência
quem ousará dizer não
o que acontecerá com os últimos rebeldes
por este lirismo sombrio,
pelos meus versos perplexos,
por esse indigesto cantar.
Senhor, nós te pedimos perdão...
por tantas balas perdidas,
por tantas pérolas aos porcos
e pelos dossiês da vergonha.
Perdão Senhor
pela pedofilia online
e pela inocência ultrajada.
Perdão pelas cartilhas da vaidade
e as dietas assassinas.
Nós te pedimos perdão
por esses ninhos queimando,
por essa relva secando,
por essa floresta no chão.
Perdão, Senhor, por esses cardumes boiando
pelos rios asfixiados
por essas águas morrendo
Perdão pelas chaminés borbulhantes,
por essas folhas exaustas,
pela agonia do ozônio,
por essa Gaia ferida.
E contudo...senhores, é imprescindível sonhar...
juntar os cacos da utopia
e crer, incondicionalmente, num amanhã...
É imprescindível sustentar a vida
para que os filhos da esperança possam respirar sua beleza.
Senhores... é também imprescindível indignar-se
não se acovardar ante a maldade,
porque é imprescindível virar o jogo
saber que só o que é justo faz sentido
e empunhar com paixão essa bandeira.
É sobretudo imprescindível unir nossas mãos em prece,
falar consigo mesmo e com as estrelas
e acreditar..., que sobre esse vale de lágrimas,
um olhar compassivo nos ampara.
Curitiba, 12 de dezembro de 2006
quinta-feira, 21 de abril de 2022
Os bárbaros estão à porta
quando os bárbaros estavam à porta,
faziam-se contas aos desenganos,
o esplendor imperial, letra morta.
o esplendor da queda é grandioso,
mesmo se todo o lixo vem à tona,
em sinistro desastre aparatoso.
e, no meio, vivem, tenebrosos:
os impérios, sem vergonha, percorrem
Há, neles, uma luz bela e trágica
que antevê uma ruína mágica!
21.04.2022
Eugénio Lisboa
Uma história verdadeiramente estranha
"O homem não pode aspirar a maior bênção no decurso dos seus dias. A história que tenho para contar é verdadeiramente estranha, e se nos fosse inteiramente tatuada no canto do olho, a maravilha desse trabalho não excederia a dos acontecimentos nela narrados, pois constitui um aviso para quem quiser ouvir e uma lição para quem quiser aprender. O meu nome é Fuwaad ibn Abbas, e nasci aqui em Bagdade, Cidade da Paz. O meu pai era mercador de cereais, mas eu trabalhei durante grande parte da minha vida como fornecedor de tecidos finos, negociando em sedas de Damasco, linho do Egipto e lenços de Marrocos, bordados a ouro. Era um comerciante próspero, mas sentia uma inquietude no coração, e nem a aquisição de bens de luxo ou a oferta de esmolas o conseguia apaziguar. Agora estou perante ti sem um único dirham na minha bolsa, mas sinto‑me em paz. Alá é o princípio de todas as coisas, mas, com a permissão de Vossa Majestade, vou começar a minha história pelo dia em que fui dar uma volta pelo bairro dos ferreiros. Precisava de comprar um presente para um homem com quem tinha negócios, e alguém me havia dito que ele seria capaz de gostar duma bandeja de prata. Depois de procurar durante meia hora, reparei que uma das maiores lojas do mercado mudara de dono. Ficava num local muito procurado, e o trespasse não devia ter sido barato, de modo que entrei para examinar os artigos. Nunca tinha visto um sortido de mercadoria tão maravilhoso. Junto à entrada havia um astrolábio equipado com sete discos incrustados a prata, uma clepsidra que sinalizava a hora certa e um rouxinol de bronze que trinava quando soprava o vento. No interior da loja havia mecanismos ainda mais engenhosos, e eu estava a olhar para eles como uma criança para um malabarista, quando um velho saiu de uma porta ao fundo. “Senhor, bem‑vindo ao meu humilde estabelecimento”, disse ele. “Chamo‑me Bashaarat. Em que posso ajudar‑te?” “Tens aqui artigos notáveis. Eu trato com negociantes de todas as partes do mundo, e nunca tinha visto nada igual. Se me permites a pergunta, onde é que adquiriste a tua mercadoria?” “Agradeço a gentileza das tuas palavras”, disse ele. “Tudo o que aqui vês foi fabricado na minha oficina, por mim mesmo ou pelos meus assistentes, supervisionados por mim.” Impressionou‑me que aquele homem pudesse ser tão versado em tantas artes. Interroguei‑o a respeito dos vários instrumentos à venda na loja e ouvi‑o discorrer com erudição sobre astrologia, matemática, geomancia e medicina. Falámos durante mais de uma hora, e o meu respeito e fascinação desabrocharam como uma flor acalentada pela aurora, até que ele mencionou as suas experiências de alquimia. “Alquimia?, perguntei. Isto surpreendeu‑me, pois ele não dava ares de ser pessoa que prometesse algo tão duvidoso. “Estás‑me a dizer que consegue transformar metais vis em ouro?” “Consigo, caro senhor, mas na verdade não é isso que a maioria dos alquimistas procura.” “Então o que procuram?” “Procuram uma fonte de ouro mais acessível do que a mineração dos solos. A alquimia descreve um método para fabricar ouro, mas o procedimento é tão árduo que, comparativamente, escavar o interior duma montanha parece mais fácil do que colher pêssegos da árvore.” Eu sorri. “Uma resposta inteligente. És claramente um homem instruído, mas eu tenho como certo que não se deve dar crédito à alquimia.” Bashaarat olhou para mim e reflectiu. “Construí recentemente uma coisa que poderá alterar essa tua opinião. Serás a primeira pessoa a quem a mostro. Queres vê‑la?” “Com todo o prazer.” “Acompanha‑me, por favor.” Conduziu‑me por uma porta ao fundo da loja. O quarto seguinte era uma oficina, ataviada com aparelhos cujas funções eu ignorava por completo — barras de metal envoltas em fio de cobre que, estendido, chegaria ao horizonte, espelhos instalados sob uma laje de granito circular que flutuava sobre mercúrio — mas Bashaarat passou por eles sem um olhar sequer. Em vez disso, conduziu‑me até um robusto pedestal, que me dava pelo peito, sobre o qual estava aprumado um sólido arco de metal. A abertura do arco tinha uma largura de dois palmos, e o aro era tão grosso que até o mais forte dos homens teria dificuldade em transportá‑lo. O metal era negro, mas tão polido e macio que, se fosse doutra cor, poderia ser usado como espelho. Bashaarat pediu‑me que me colocasse de maneira a ver o arco de lado, enquanto ele se postava diante da sua abertura. “Por favor, observa”, disse ele. Introduziu o braço pelo lado direito do arco, mas não o vi sair pelo outro lado. Era como se o braço tivesse sido cortado pelo cotovelo, e Bashaarat abanou com o coto para cima e para baixo, e depois retirou o braço intacto. Eu não esperara ver um homem tão instruído executar um truque de ilusionista, mas estava bem feito, e aplaudi educadamente. “Agora, espera um momento”, disse ele, dando um passo atrás. Eu esperei, e eis que um braço saiu pelo lado esquerdo do arco, sem um corpo a sustê‑lo. A manga coincidia com a da túnica de Bashaarat. O braço abanou para cima e para baixo e depois retirou‑se até desaparecer dentro do arco. O primeiro truque tinha‑me parecido uma simulação engenhosa, mas este era bastante superior, já que o pedestal e o arco eram claramente demasiado estreitos para esconderem uma pessoa. “Muito engenhoso!”, exclamei. “Obrigado, mas isto não é um mero truque de prestidigitação. O lado direito do arco precede em alguns segundos o lado esquerdo. Atravessar o arco é atravessar essa duração de forma instantânea.” “Não estou a perceber”, disse eu. “Deixa‑me repetir a demonstração.” Uma vez mais, enfiou o braço através do arco, e o braço desapareceu. Com um sorriso, empurrou‑o para a frente e para trás como se estivesse a jogar o jogo da corda. Depois puxou de novo o braço para fora e mostrou‑me a palma da mão aberta. Nela vi um anel que reconheci. “É o meu anel!” Olhei para a minha mão e verifiquei que o anel continuava no meu dedo. “Fizeste aparecer uma réplica.” “Não, na realidade, trata‑se do teu anel. Espera.”
Uma vez mais, um braço surgiu do lado esquerdo. Ansioso por descobrir o mecanismo do truque, apressei‑me a agarrar‑lhe a mão. Não era falsa, era uma mão perfeitamente cálida e viva como a minha. Dei‑lhe um puxão, e ela puxou‑me a mim. Depois, com uma destreza de carteirista, a mão tirou‑me do dedo o anel e o braço recuou para dentro do arco, desaparecendo completamente. “O meu anel desapareceu!”, exclamei. “Não, caro senhor”, disse ele. “O teu anel é este.” E deu‑me o anel que tinha na palma da mão. “Peço desculpa por este joguinho.” Voltei a colocá‑lo no meu dedo. “Mas já o tinhas na mão antes de ele me ter sido tirado.” Nesse momento, um braço emergiu do arco, desta feita pelo lado direito. “O que é isto?”, exclamei. Uma vez mais, reconheci o braço pela manga, antes de ele se retirar de novo, mas sem que tivesse visto Bashaarat introduzi‑lo pelo lado contrário. “Lembra‑te”, disse ele, “que o lado do direito do arco precede o esquerdo.” Dito isto, dirigiu‑se para o lado esquerdo do arco e introduziu por esse lado o braço, que mais uma vez desapareceu. Vossa Majestade já compreendeu por certo, mas eu só nesse instante é que percebi: o que quer que acontecesse no lado direito do arco era complementado, segundos depois, por um acontecimento no lado esquerdo. “Isto é feitiçaria?”, perguntei. “Não, meu senhor, nunca encontrei nenhum djin, e mesmo que encontrasse, não acredito que ele obedecesse às minhas ordens. Isto é uma forma de alquimia.” Tratou então de me explicar. Falou‑me da sua busca por minúsculos poros na pele da realidade, como os buracos que o caruncho escava na madeira, e que depois de ter encontrado um conseguiu expandi‑lo e alargá‑lo, da mesma forma que um vidreiro converte um pedaço de vidro fundido num tubo alongado, de maneira a que o tempo pudesse fluir como água por um dos lados enquanto do outro a abertura se solidificava como xarope. Confesso que não compreendi verdadeiramente a explicação, e portanto não posso atestar a sua veracidade. Tudo o que pude dizer em resposta foi, “Criaste algo verdadeiramente espantoso.” “Obrigado”, disse ele, “mas isto é apenas um prelúdio àquilo que eu pretendia mostrar‑te.” Convidou‑me a segui‑lo até outra sala, mais ao fundo. Ali deparei com um enorme portal circular, feito no mesmo metal preto e polido, instalado no centro da sala. “O que te mostrei ali atrás era um Portal de Segundos”, disse ele. “Este é um Portal de Anos. Os dois lados do portal estão separados por um intervalo de vinte anos.” Confesso que não compreendi de imediato esta observação. Imaginei‑o a enfiar o braço pelo lado direito e a esperar vinte anos que ele emergisse pelo outro lado, e pareceu‑me que seria um truque de magia muito confuso. Disse‑lhe isto, e ele riu‑se. “Pode ser usado dessa forma”, disse ele, “mas pensa antes no que aconteceria se o atravessasses.” Colocando‑se do lado direito do portal, fez‑me sinal para me aproximar, depois apontou para a abertura. “Espreita.” Espreitei e vi que no outro lado da sala os tapetes e as almofadas pareciam ser diferentes dos que havia visto ao entrar. Desloquei a cabeça de um lado para o outro e percebi que quando espreitava pelo portal via uma sala diferente daquela onde me encontrava. “Estás a ver esta sala tal como será daqui a vinte anos”, disse Bashaarat. Pisquei os olhos, como se estivesse perante uma miragem no deserto, mas aquilo que vi não se alterou. “E dizes que eu podia atravessá‑lo?”, perguntei. “Podias. E se o fizesses verias Bagdade tal como será daqui a vinte anos. Podias procurar o teu eu mais velho e conversar com ele. Depois podias atravessar de novo o Portal de Anos e regressar ao presente.” Estas palavras de Bashaarat causaram‑me uma espécie de vertigem. “Alguma vez fizeste isso?, perguntei‑lhe. “Alguma vez atravessaste o portal?” “Sim, tal como muitos dos meus clientes.” “Há bocado disseste‑me que eu era o primeiro a quem mostravas isto.” “E é verdade em relação a este Portal em particular. Mas durante muitos anos tive uma loja no Cairo, e foi lá que construí pela primeira vez um Portal de Anos. Mostrei‑o a muitas pessoas, que o experimentaram.” “O que é que elas aprenderam ao falarem com os seus eus mais velhos?” “Isso depende de cada pessoa. Se desejares, posso contar‑te a história de uma dessas pessoas.” Bashaarat narrou‑me então essa história, e se agradar a Vossa Majestade ouvi‑la, conto‑a aqui.”
Ted Chiang, in Exalação, Relógio D’Água Editores, pp.11-15
Ted Chiang é um escritor norte-americano de ficção científica, nascido em 1967, em Port Jefferson, Nova Iorque. Foi galardoado com quatro Prémios Nebula, quatro Prémios Hugo, quatro Prémios Locus e o Prémio John W. Campbell para Melhor Novo Escritor. O seu conto “História da Tua Vida” serviu de base ao filme O Primeiro Encontro (2016). É artista residente na Universidade de Notre Dame.