IV – A longa estrada
“ Não há talvez dia da nossa infância que
tenhamos tão intensamente vivido como aquele que julgámos passar sem tê-lo
vivido, aqueles que passámos com um livro preferido.”
Marcel Proust, O prazer da leitura, Ed.
Teorema
“ Pero aquello que vemos com los ojos de la
memoria no es idéntico a aquello que vivimos: la vida es irrecuperable”
Octavio Paz, Los pasos contados, Vaso Roto
Nesse ano
iniciático da minha longa aprendizagem, as aulas começaram em Outubro. Tinha
acabado de fazer seis anos, em Agosto. As férias tinham terminado há poucos
dias. A minha Mãe preparara a minha entrada para a Escola Primária.
Era uma Escola
branca , igual a tantas outras deste nosso Portugal. Escolas que tinham sido
edificadas segundo um projecto
nacional preparado pelo Estado. A traça
era a mesma de Norte a Sul. Aquele parque escolar tinha duas construções com as
mesmas dimensões. Estavam ambas viradas
para a estrada e resguardadas por muros
da mesma cor branca . A entrada fazia-se por um portão de ferro forjado, com
alguns arabescos burilados, e de uma renitente cor preta.
A minha escola era
aquela que ficava do lado direito de quem entrava. A minha irmã mais velha
estudava noutra sala. Tinha dois anos de avanço sobre mim. Frequentava a 3ª
classe.
Nesse dia, acordei
muito cedo, sem que alguém me tivesse chamado. Foi o meu pai que nos levou
à Escola num Citroën , que se designava
por Citroën Arrastadeira. Era um carro
grande e comprido, onde cabíamos todos.
O meu coração
batia forte. Tinha o livro da Primeira Classe e um caderno com linhas. Era uma
preciosidade que levava comigo. Além disso, estreara uma bata branquinha e um laçarote na cabeça a
condizer. Tudo era novo .
A sala tinha
quatro filas de carteiras. Cada uma era ocupada por dois alunos. Fiquei na fila junto à parede , do lado oposto da porta
e na terceira carteira. A meu lado, sentou-se uma menina que não conhecia. Era
mais alta do que eu. Loira e muito simpática.
Quase igual à menina de caracóis loiros que compunha a capa do livro da 1ª
classe. Tal como ela, tinha também um grande laçarote azul a prender-lhe os
cabelos. Estava tão à vontade que pensei
que ela já conhecia a escola. Afinal era
tão caloira quanto eu. Tinha, isso sim, um grande poder de descontracção
perante tudo o que não conhecia. Fui descobrindo essa peculiaridade ao longo do
tempo. Chamava-se Maria Rosa. Foi sempre
a minha colega de carteira, enquanto estudei naquela escola, ou seja, até acabar
a terceira classe. Iniciámos nesse dia uma grande cumplicidade que nos manteve
ligadas e amigas durante esses anos. (
Há tanta gente que se perde , que fica para trás sem que nada possamos fazer. A
Maria Rosa desapareceu da minha vida quando mudei de escola e de local de
residência. Como ela tantos outros bons amigos que preencheram a minha infância e juventude de momentos de grande generosidade, alegria e
aventura. Um tempo que nunca mais se repetiu: o tempo da descoberta.)
A minha professora
era a D. Isaura. Uma senhora doce e afável que nos saudou com uma voz que soava
a música. Gostei dela desde que nos deu as boas vindas. Disse-o clara e
assertivamente. Soube, nesse momento, que
estava em terra firme e amiga. Tudo seria agradável com aquela professora.
E se aprender a ler e a escrever era a
primeira prioridade da escola, assim o pensava eu, seria, pois, uma tarefa que
realizaria com gosto. Aliás, já o fazia nos livros que me liam. Apontava as
frases como se as soubesse ler. Ficavam-me nos ouvidos de tanto as escutar
e de tanto gostar de histórias. Os
livros eram já um dos meus objectos de culto. Tratava-os com carinho .
Afagava-os com imenso cuidado. Nunca estraguei um livro. Enamorei-me deles logo
que me leram a primeira história. E
havia muitos livros em nossa casa. Em “ Memória de Livros”, João Ubaldo Ribeiro refere
uma situação muito similar:
Nada, porém, era como os livros .(…) A maior casa onde
morámos ,mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala
reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai,mas os livros não cabiam nela
— na verdade,mal cabiam na casa.(…) A
circulação entre os livros era livre (tinha que ser, pensando bem, porque eles
estavam pela casa toda, inclusive na cozinha e no banheiro), de maneira que eu
convivia com eles todas as horas do dia,a ponto de passar tempos enormes com um
deles aberto no colo, fingindo que estava lendo e,na verdade,se não me trai a
vã memória, de certa forma lendo, porque quando havia figuras, eu inventava as
histórias que elas ilustravam e, ao olhar para as letras, tinha a sensação de
que entendia nelas o que inventara.
Nesse tempo, as
escolas não tinham livros. As bibliotecas escolares não existiam como agora, em
2017. No entanto, lia-se com prazer , folheando e sentindo o objecto precioso
que é o livro.
Nesse primeiro
dia, descobri que aprender seria um dos meus grandes assombros. Senti que ir à
escola era quase tão bom como brincar. E não me senti intimidada por ficar sem
os meus pais num lugar novo e desconhecido. A Escola era uma espécie de casa aberta às crianças ,
onde todos vinham aprender. Nessa altura
, ainda não tinha a percepção das assimetrias sociais que existiam.
Para mim , a descoberta da escola foi um acontecimento
maravilhoso. Havia tantos meninos e meninas de bata branca a chegar naquele
primeiro dia, que não me senti diferente de qualquer um deles. A Escola era o
lugar para onde iam as crianças a partir
dos seis anos. Era lá que se iniciava o longo caminho da aprendizagem para qualquer
um deles. Era esta a percepção que eu tinha nos meus poucos anos de vida :
aprender a ler e a escrever eram os primeiros passos de uma grande e jamais
acabada descoberta. E foram realmente. Esses
primeiros anos marcar-me-iam para sempre. (...)"
Maria José Vieira de Sousa, in "O livro que já escrevi", Maio de 2018, pp.107-113