domingo, 31 de maio de 2015

Ao Domingo Há Música

Aquela canção
Que o vento nos ensinou
Findou
E não a cantámos  juntos.
Aires de Almeida Santos , poeta angolano, de " Damba-Maria", in "Meu amor da Rua 11", Clássicos da Literatura Angola, Editora Grecima, 2014, Luanda

África é um imenso , belo e diverso continente. A grandiosidade da sua dimensão permite uma enorme riqueza de sons que muitos não conhecem. Há vozes que nos chegam ainda impregnadas da largueza das savanas e do  doce marulhar dos mares. 
Neste tempo em que se festeja África e para quem gosta ou deseja descobrir este continente, eis uma pequena amostra de algumas das suas muitas e magníficas composições, interpretadas  por essas talentosas vozes africanas. 
Rebecca Malope, África do Sul, gravou 32 Álbuns ao longo de  27 anos  de carreira. Em 2009,  gravou o 30º Álbum " My Hero" num duplo CD . A 14 Março de 2011, Malope registou o seu 32º Álbum,  sob o título Ukuthula,   traduzido para inglês com o título Peace ( Paz). Sobre este Álbum, Rebecca declarou : “In Ukuthula people must expect rejuvenating sounds and I love the whole album. I decided on that  name after thinking about the state the world is  in  today. People  have  no peace. There  is  war  everywhere, even  in churches. I want people  to come  together and  more  importantly  have  peace in their lives, so that we can have peace in the world".



Rebecca Malope, na celebração do 30º Álbum gravado ao vivo, no  Lyric Theatre em Johannesburg's Gold Reef City.

Mingas , uma das maiores vozes de Moçambique ,em Vuka Africa


Cesária Évora, a grande voz de Cabo Verde, em Lua nha testemunha.

Kafala Brothers, em  "África" , do Álbum "Ngola" de 1989, Música Popular Angolana.

Irmãos Kafala , em Kudizola Kuetu, música popular de Angola

Ismael Lo , uma  grande voz do Senegal, na canção  Africa.  Ismael  Lo,  filho  de pai senegalês e  mãe nigeriana, nasceu no  Níger em 1956, mas foi viver para o  Senegal Ainda  jovem,  forma  a  banda Super Diamono. Em 1988, começa a  sua  carreira a solo e, em 1996, com o Álbum  Jammu África é considerado o melhor cantor compositor de África.


Angelique Kidjo , em  Malaika,  no África Festival de  2012, canção que foi cantada pela célebre cantora da África do Sul, Miriam Makeba ( a Mama Africa). Angelique Kidjo nasceu numa pequena cidade portuária da costa de Benin (à época, Daomé).É uma famosa e talentosa cantora.

sábado, 30 de maio de 2015

Tenho medo do medo

A Verdade da Repressão
Por António Cândido de Mello e Souza*
"Balzac, que percebeu tanta coisa, percebeu também qual era o papel que a polícia estava começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha transformado num instrumento preciso e omnipotente, necessário para manter a ditadura de Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo paralelo, que se torna factor determinante e não apenas elemento determinado.
O romancista tinha mais ou menos dezasseis anos quando Napoleão caiu, e assim pôde ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade.
A polícia de um soberano absoluto é ostensiva e brutal, porque o soberano absoluto não se  preocupa em justificar demais os seus actos. Mas a de um Estado constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se misturando organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um modelo que se poderia chamar de “veneziano” ― ou seja, o que estabelece uma rede subtil de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo anonimato) como alicerce do Estado.
Para este fim, criam-se por toda a parte vínculos íntimos e profundos. A polícia se disfarça e assume uma organização dupla, bifurcando-se numa parte visível (com os seus distintivos e as suas siglas) e numa parte secreta, com o seu exército impressentido de espiões e alcagüetes, que em geral aparecem como exercendo ostensivamente outra actividade. Este funcionamento duplo permite satisfazer também a um requisito intransigente da burguesia, dominante desde os tempos de Balzac e dispensado só nos casos de salvação da classe: a tarefa policial deve ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais a sensibilidade dos bem-postos na vida. Para isso, é preciso esconder tanto quanto possível os aspectos mais desagradáveis da investigação e da repressão.
Para obter esse resultado, a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma convenientemente deformada. Assim como os “comprachicos” d’O homem que ri, de Victor Hugo, estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem aleijões para divertimento dos outros, a sociedade puxa para fora daqueles indivíduos a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara ― e os remete à função repressora.
Daí o interesse da literatura pela polícia, desde que Balzac viu a solidariedade orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus sectores ocultos e o aproveitamento do marginal, do degenerado, para o fortalecimento da ordem. Nos seus livros há um momento onde o transgressor não se distingue do repressor, mesmo porque este pode ter sido antes um transgressor, como é o caso de Vautrin, ao mesmo o seu maior criminoso e o seu maior policial.
Dostoievski percebeu uma coisa mais subtil: a função simbólica do policial como sucedâneo possível da consciência ― a sociedade entrando na de cada um através da pressão ou do desvendamento que ele efectua. Em Crime e Castigo, o juiz de instrução Porfírio Porfíriovitch vai-se tornando para Raskolnikof uma espécie de desdobramento dele mesmo.
Mas foi Kafka, n’O Processo, quem viu o aspecto por assim dizer essencial e ao mesmo tempo profundamente social. Viu a polícia como algo inseparável da justiça, e esta assumindo cada vez mais um aspecto da polícia. Viu de que maneira a função de reprimir (mostrada por Balzac como função normal da sociedade) adquire um sentido transcendente, ao ponto de acabar se tornando sua própria finalidade. Quando isso ocorre, ela desvenda aspectos básicos do homem, repressor e reprimido.
Para entrar em funcionamento, a polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de motivos, mas apenas de estímulos. E uma vez em funcionamento não pode mais parar, por que a sua finalidade é ela própria. Para isso, não hesita  em tirar qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou moralmente. Não hesita em -lo (seja por que meio for) à margem da acção, ou da suspeita de acção, ou da vaga possibilidade de acção que o Estado quer reprimir, sem se importar se o indivíduo visado está envolvido nela. Em face da importância ganha pelo processo punitivo (que acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura e simplesmente, mesmo sem motivo), a materialidade da culpa perde sentido.
A polícia aparece então como um agente que viola a personalidade, roubando ao homem os precários recursos de equilíbrio de que usualmente dispõe: pudor, controle emocional, lealdade, discrição ― dissolvidos com perícia ou brutalidade profissionais. Operando como poderosa força redutora, ela traz à superfície tudo o que tínhamos conseguido reprimir, e transforma o pudor em impudor, o controle em desmando, a lealdade em delação, a discrição em bisbilhotice trágica.
Daí uma espécie de monstruosa verdade suscitada pela polícia. Verdade oculta de um ser que ia penosamente se apresentando como outro, que de facto era outro, na medida em que não era obrigado a recair nas suas profundidades abissais. Aliás, seria mais correcto dizer que o outro é o suscitado pela polícia. O outro, com a sua verdade imposta ou desentranhada pelo processo repressor, extraída, contra a vontade, dos porões onde tinha sido mais ou menos trancada.
De facto, a polícia tem necessidade de construir a verdade do outro para poder manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao eu, até que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o outro por meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da fraqueza, a violência física e moral. No fim, se for preciso, poderá inclusive empregar a seu serviço este outro, que é um novo eu, manipulado pela dosagem de um ingrediente da mais alta eficácia: o medo ― em todos os seus graus e modalidades.
***
Um exemplo dessa redução degradante é o comportamento do delegado com o encanador, no filme Inquérito sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri. O delegado, que é também o criminoso, resolve brincar com o destino e como que provar o mecanismo autodeterminante da polícia, a sua finalidade em si mesma. Para isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao acaso, e confessa que é o matador procurado, dando como prova a gravata azul celeste que usa e fora vista nele.  Convence então o pobre transeunte a ir à polícia e relatar o facto, dando-lhe para levar como indício (e evidentemente como baralhamento do indício) diversas gravatas iguais, que mostrariam como era a do assassino.
Chegando à polícia, o transeunte, que é encanador, dá de cara com o assassino que se confessara na rua, e que ia delatar; mas que agora está no seu papel de delegado. Este o interroga com brutalidade e o pressiona física e moralmente para dizer quem era o assassino que se desvendara a ele na rua. Mas o pobre diabo, completamente desorganizado pela contradição inexplicável, não tem coragem para tanto. Com isso, vai ficando suspeito, vai-se caracterizando legalmente como possível criminoso, até desaparecer dos nossos olhos, trôpego, arrasado, por uns corredores sujos que levam aonde bem suspeitamos.
A força que o paralisa, e que nos paralisaria eventualmente, vem de uma ambiguidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é o eu).
Tudo nesse episódio é modelar: a gratuidade com que se escolhe o culpado; a imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com as gravatas azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não interessa); o baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem que se denunciara como assassino é também o delegado; a transformação do inocente em suspeito e do suspeito em delinquente, aceita pelo próprio inocente, do fundo da sua desorganização mental, forjada pela inquirição.
O fulcro desse processo talvez seja aquele momento do interrogatório em que o delegado pergunta ao pobre diabo, já zonzo, qual é a sua profissão.
“― Sou hidráulico”, responde ele.
O delegado esbraveja:
“― Qual hidráulico qual nada! Agora toda a gente quer ser alguma coisa bonita! O que você é é encanador, não é? En-ca-na-dor! Por que hi-dráu-li-co?!”
E o desgraçado, já sem fôlego nem prumo:
“― Sim, sou encanador.”
(Cito de memória porque não tenho o roteiro.)
Vê-se que o pobre homem, a exemplo de toda a sua categoria profissional, tinha adoptado uma designação de cunho técnico (idraulico, em italiano), que o afasta da velha designação artesanal encanador (stagnaro, em italiano), e assim lhe dá a ilusão de um nível aparentemente mais elevado, ou pelo menos mais científico e actualizado. Mas o policial o reduz ao nível anterior, desmascara a sua autopromoção, tira para fora a sua verdade indesejada. E no fim, é como se ele dissesse:
“―Sim, confesso, não sou um técnico de nome sonoro, que evoca inocentemente alguma coisa de engenharia; sou mesmo um pobre diabo, um encanador. Estou reduzido ao meu verdadeiro eu, libertado do outro”.
Mas na verdade, foi a polícia que lhe impôs o outro como eu. A polícia efectuou um desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de volta o que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que nos obriga a ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra como Alfred de Vigny tinha razão, quando anotou no seu diário:
“Não tenho medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenho medo do medo".António Cândido, em Opinião, publicada no  nº 11, 15-22 de Janeiro de 1972., Revista Discurso, São Paulo, nº 10, 1979


"Escritor, ensaista e professor universitário (24/7/1918-). É o mais importante crítico literário brasileiro. António Cândido de Mello e Souza nasce no Rio de Janeiro, mas vive desde a infância em Minas Gerais, estado de origem de sua família. Em 1937 inicia os cursos de Direito e de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP).

Antonio CandidoAbandona o primeiro logo depois e forma-se em Ciências Sociais em 1941. Torna-se livre-docente de Literatura Brasileira em 1945 e doutor em Ciências em 1954. Em 1974 passa a professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, cargo em que se aposenta em 1978. De 1964 a 1966 é professor associado da Universidade de Paris e, em 1968, professor visitante da Universidade de Yale. Aposenta-se pela USP, em 1978, mas permanece ligado à pós-graduação e à orientação de trabalhos académicos
Nos anos 40 funda a revista literária Clima, em que exerce o cargo de redactor chefe. Entre 1956 e 1960 escreve no Suplemento Literário do jornal O Estado de S.Paulo, que foi organizado por ele.
De suas obras de crítica literária, a mais importante é Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos), de 1959. Como ensaio sociológico, é considerado clássico seu estudo sobre o caipira paulista e sua transformação, Os Parceiros do Rio Bonito (1964).Recebe, em 1998, o Prémio Camões, dos governos do Brasil e de Portugal, em Lisboa e, em 2005, o Prémio Internacional Alfonso Reyes, no México."

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Maria Bethânia

Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo

Maria Bethânia está em Portugal para apresentar um espectáculo construído de melodiosas memórias que fizeram dela uma das  vozes eleitas do Brasil. Ouvir Maria Bethânia é perder-nos num mundo harmonioso de grandes poetas e de talentosos compositores. Esta voz inconfundível dá-lhes forma e sonoridade. 
Apresenta-se o  DVD Tempo, Tempo, Tempo, Tempo que regista a comemoração dos 40 anos de carreira da cantora. "Além de canções imortais de Vinícius de Moraes, Bethânia recria os compositores mais marcantes da sua trajectória, como Chico Buarque e Caetano Veloso, num repertório definitivo na voz da mais influente intérprete da música brasileira."


Maria Bethânia, um auto-retrato em ouro e cinza
Por Nuno Pacheco, Público, 28/05/2015 - 21:07
"Na primeira noite no Coliseu de Lisboa, 27 de Maio, Maria Bethânia trouxe do passado apenas o que lhe interessava para o futuro. Um espectáculo envolvente e exemplar.
Não foi, como ela avisara, uma sessão comemorativa. Mas Abraçar e Agradecer (título glosado de uma canção, Agradecer e Abraçar que ela gravou em 1999 nesse notável disco que é A Força que Nunca Seca) funciona como uma espécie de manifesto-espelho.
Bethânia no lugar de Alice entre um passado reconhecível, onde da memória já muito se fez cinza, e um presente que ela vai construindo a partir do que, de tudo isso, nela se sedimentou a ouro na teatralidade da sua voz. Uma voz que se mantém clara, robusta, expressiva, síntese de uma forma ímpar de cantar.
Não por acaso, as canções a que recorreu são, todas elas, pedaços reconhecíveis desse memorial de afirmação pessoal (pelo seu próprio percurso) e colectiva (pelo esteio familiar e pela força da matriz da Bahia): Eterno em mim, Dona do dom, Nossos momentos, Começaria tudo outra vez, Gostoso demais, Bela mocidade, Alegria (com que ela fecha, por vezes alguns espectáculos), Todos os lugares, podiam titular capítulos da sua própria vida. Assim como a presença de temas escolhidos de Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Jobim, Dorival Caymmi, Roberto Carlos e Gonzaga Jr. assinala e demonstra a teia de laços criativos que desde sempre lhe foi fundamental.
A primeira parte, que começou precisamente com Eterno em mim, foi mais fluída, talvez pela maior presença de temas reconhecíveis. Como se o passado se consumisse, breve. Ainda assim, da força imbatível de Gîtâ (Raul Seixas) à melancólica beleza de Dindi (de Jobim) o percurso foi modelar, encadeando-se as canções em continuidade lógica. O crescendo que uniu Voz de mágoa à festiva Alegria, tendo pelo meio a popularíssima Gostoso demais (uma justíssima lembrança de Dominguinhos) e Bela mocidade, é um dos melhores exemplos dessa notável teia. Outro é a sequência Tatuagem, Meu amor é marinheiro (com o poema de Manuel Alegre intacto no final: “Coração que nasce livre/ não se pode acorrentar”), Todos os lugares e Rosa-dos-ventos.
A segunda parte, depois de um breve interlúdio em que os músicos mesclaram em rapsódia temas de Chico ou Caetano, como Até ao fim e O quereres, foi mais intensa e visceral. Bethânia atirou-se aos elementos, água e terra em particular, e compôs um quadro actual, vivo e iridescente, com temas decantados da memória e outros de criação recente, assinados por compositores e músicos a quem ela recorreu agora, numa busca de novidade: Roque Ferreira (presença marcante no seu mais recente disco de estúdio, Meus Quintais), Leandro Fregonesi, Paulo Dafilim, Chico Lobo, Flávia Wenceslau. Sim, ouviram-se Viramundo (a abrir), Tudo de novo, Motriz ou Oração de mãe menininha de Dorival Caymmi, mas também criações mais recentes como Folia de reis, Eu a viola e Deus, Criação, Casa de caboclo, Alguma voz, Xavante ou Povos do Brasil. Pelo meio, fragmentos de textos, poemas. Clarice Lispector: “Recebe em teus braços o meu pecado de pensar”. Ou Pessoa na voz de Álvaro de Campos: “Quanto fui, quanto não fui, tudo isso eu sou.” Na sala, repleta, fez-se sentir o reflexo desta viagem plena de brasilidade e fulgor. Quando Bethânia cantou Eu te desejo amor foi aplaudida de pé, longamente, como se tivesse terminado ali o espectáculo. Tributo ou equívoco, depois do costumeiro (e emotivo) “obrigada, senhores”, ela cantou ainda, surpreendentemente, Non, je ne regrette rien (de Piaf) e Silêncio.
E voltou, por duas vezes mais, exausta e feliz, com Gonzaga Jr: O que é, o que é e Explode coração. Numa homenagem “espontaneamente” organizada, centenas de pessoas ergueram um dístico (distribuído antes) onde se lia: “Obrigado Bethânia”. Ela agradeceu, nós agradecemos. Ficámos quites. Ou não. Porque o muito que ela nos deu e dará, bem medido, não tem preço."
Alinhamento do espectáculo:
Eterno em mim / Dona do dom / Gîtâ / A tua presença morena / Nossos momentos / Começaria tudo outra vez / Voz de mágoa / Gostoso demais / Bela mocidade / Alegria / Você não sabe / Dindi / Tatuagem / Meu amor é marinheiro / Todos os lugares / Rosa-dos-ventos
Interlúdio musical
Viramundo / Tudo de novo / Doce / Oração de mãe menininha / Eu e água / Agradecer e abraçar / Vento de lá / Folia de reis / Mãe Maria / Eu a viola e Deus / Criação / Casa de caboclo / Alguma voz / Xavante / Povos do Brasil / Motriz / Viver na fazenda / Eu te desejo amor / Non, je ne regrette rien / Silêncio
BIS 1
O que é, o que é
BIS 2
Explode coração


Maria Bethânia, em O que é o que é ? (Noite LuziDia)

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Para lá do Tempo

"Nasci com um sorriso a aflorar nos lábios. A minha mãe nunca se cansava de o referir. Sorriso que passou a ser um traço identificativo  e talvez o mais sedutor da minha personalidade. Mantive-o ao longo da vida. Era um sorriso único, realçava a minha mãe. Cativei-a infindamente. Ela tinha, porém, um sorriso maior do que o meu. Era a luz que sempre se acendeu desde o meu primeiro dia. Iluminava tudo à sua volta. E que falta me faz essa luz.( As mães não deveriam partir. Deixar-nos órfãos.)
 A azáfama que causou o meu nascimento  obrigou à requisição de familiares. A minha avó espanhola, andaluza de Sevilha, deixou Lisboa e rumou ao Norte. Era a minha avó materna. Recém viúva de um gentleman alemão. Efusiva e decidida, passou a comandar, com mão forte, os empregados da casa e os netos.  Isolou  a minha mãe e com ela ,lá fui eu, também, para os aposentos mais recônditos da casa. Pretendia resguardar-nos da agitação de uma casa habitada por adultos e por crianças e dos intensos ruídos que campeavam pela rua devido à festa da cidade. Nos primeiros dias, a minha mãe aceitou as regras impostas com algum agrado e também pela conformidade que tinham com os preceitos, então, usuais e seguidos pelas  parturientes. Os partos  eram feitos em casa. No entanto, havia  uma terapia definida para uma boa convalescença que passava pelo repouso e por uma  alimentação específica. À minha mãe, apesar de ter uma mãe bem esclarecida e aberta, foi-lhe totalmente aplicado esse tratamento.  Ao fim de meia dúzia de dias, o isolamento tornou-se insuportável. Era uma fatalidade a que minha mãe não queria  entregar-se. De rebelião em rebelião, decidida e  doce, ora filha dedicada , ora mãe independente, conseguiu amaciar a relutância da  minha avó e mudar-se para o quarto que lhe pertencia.
 O calor e a confusão da casa em nada me perturbavam. Dormia feliz e cândida como compete a um recém- nascido. Estava na minha casa , no lugar que me haviam reservado. O quarto dos meus pais. Enorme, de tecto alto, mas acolhedor e confortável. Vivi nele os primeiros meses de vida  até completar um ano. Só lá voltei a dormir, quando a Escarlatina me tomou e foram obrigados a isolar-me por causa do contágio. Tinha eu cinco anos.
A minha avó era uma mulher lindíssima . De forte personalidade marcava a sua presença onde quer que estivesse. A minha mãe era a sua única filha. Regozijava-se por estar numa casa onde já existiam três crianças, ou seja, três netos  à sua guarda. Mulher de cultura , viajada por uma Europa diferente deste Portugal de então, não se coibia de adoptar os “ bons” costumes portugueses quando lhe serviam. A organização que impôs àquela casa, nesse tempo do meu nascimento , revolucionou-a  quer pela novidade , quer pela emergência de procedimentos antigos e bem portugueses. Enquanto exigia aos empregados, um rigor total no desempenho das respectivas funções, oferecia-lhes vestuário mais moderno e aumentos nas remunerações. À cozinheira alterou-lhe a programação. O menu teria de ser actualizado. Manteria o que de bom e saudável existia nele e introduziu novos pratos que fizeram dores de cabeça à pobre cozinheira. O meu pai , um genuíno nortenho, nunca aceitou estas alterações. Um bom cardápio era constituído apenas por pratos da cozinha tradicional portuguesa e predominantemente nortenha. As luzes vermelhas começaram a acender . Do   intermitente ao permanente foi um salto curto.  Até que, após uma quarentena de dias interminável , a minha avó , senhora inteligente e perspicaz, fez as malas e partiu.  A casa readquiriu  a sua  forma original. A minha mãe retomou as rédeas e tudo prosseguiu o seu curso próprio.
 Foi, nessa altura, que chegou a Fernanda. A minha mãe precisava de alguém que ajudasse nos cuidados com as crianças.
A Fernanda foi o pilar de uma infância protegida e acarinhada. Jovem, sorridente e infindamente meiga, ela conquistou-nos de imediato. A casa passou a ter mais uma residente indispensável: a nossa governanta, a imprevista preceptora, a suposta irmã mais velha a quem queríamos de olhos fechados. Nem ao meu irmão devotávamos tanto carinho. Ele era o primeiro filho desta  grande prole familiar. Excedia-nos em mais de uma década. Andava sempre lá por cima, no topo, enquanto nós , crianças ruidosas,  apenas tentávamos ser crianças longe de tudo  que nos permitisse confirmar a rejeição que evidenciava pelas nossas brincadeiras. Com ele, o temor superava qualquer terna tentativa de aproximação. Mas descobrimos a Fernanda.  E ao  ficar com a Fernanda a nossa infância teve ainda mais fulgor.
Recordo-a intensamente. Alta. Loira com uns olhos grandes , do tamanho do mundo e com  a cor do céu num dia luminoso. Os cabelos entrançados, longos e sedosos. De pele muito branca, era esbelta mas forte. Aquela solidez que têm as pessoas do campo. Não de qualquer campo. Dos campos que eram lavrados por gente simples, honrada e de coração aberto. Daqueles que compõem o norte deste país. País que se esqueceu ( agora) de que a liberdade se construiu ali também,  com ensaios seculares de preparação.
Tocá-la era uma bênção. Quando nos elevava, a  felicidade soltava-se. Ria-se ela e exultávamos nós. Um solfejo de cristalinas gargalhadas que não a cansavam, apesar da exigente e constante fila para a repetição do gesto. Que belos eram os dias com a Fernanda. A minha mãe tinha nela a outra que a completava. Descoberta a Fernanda, os dias, os meses, os anos voavam em harmoniosa sucessão.
E foi assim que cheguei aos quatro anos. Data memorável, porque pela primeira vez tive consciência de um nascimento. A minha mãe preparara-nos para a vinda de um outro irmão ou irmã. Sim. Um menino ou uma menina? Naquele tempo, ninguém sabia o sexo da criança antes do nascimento. O dia estava a aproximar-se, dizia-nos a Fernanda quando a data estava em acelerado processo decrescente. Os dedos das mãos ajudavam-nos a eliminar os dias. Sem ter muito a consciência do que era o tempo e ainda menos de todo o processo de parto, rejubilava sempre que a contagem diminuía.
Naquele dia, a Fernanda fechou-se connosco no quarto dos brinquedos. Era no tempo das cerejas. Brincáramos pela quinta durante a manhã. As cerejeiras olhavam-nos em apetitosos cumprimentos. Havia cestos  com cerejas de um vermelho tão intenso que fugir-lhes era quase criminoso. Creio que começou muito cedo esta minha paixão por aquele fruto. Os subtis tons de carmim eram um apelo para a visão e um perfume para o olfacto. Acrescia a ingénua vaidade infantil de tentar  converter um galho de cerejas em brinco. Habilidade e gozo que se estabeleceram em desafio rotineiro. As cerejas deram-me dores intensas de overdose. Ficou-me quase como uma doce compulsão que prezo em manter.
Ora, voltemos ao dia do parto. O quarto dos brinquedos era uma divisão espaçosa, de grande área, uma antiga sala, que fora convertida para nos albergar em tempo de frio e de chuva. Era aí que passávamos inúmeros  momentos de brincadeira. Os brinquedos estavam arrumados em prateleiras e o chão coberto por uma enorme carpete. Num armário, numerosos livros compunham o espólio.
O quarto de brinquedos situava-se na zona próxima da cozinha e da copa, bastante afastado dos quartos. Longe da zona onde o parto ia acontecer. Qualquer ruído era abafado pelos sons mais próximos. E alguns, quase em surdina, aportavam ali,  vindos da cozinha . O alegre cantarolar da cozinheira, os sons roucos  das panelas, o barulho concertado dos utensílios culinários,  a risada de quem por lá entrava e os apelos de um melodioso vozear  vindo do campo. Todos se congregavam num ambiente que dava à casa a sua personalidade viva. Era a minha casa. Uma casa que me amava e que , todos os dias , me surpreendia. Como era feliz nela.
Estávamos nós em grande brincadeira, com a Fernanda  a orientar e a determinar o ritmo apropriado, quando o meu pai apareceu de sorriso aberto. O meu irmão, um menino, acabara de nascer. Podíamos ir conhecê-lo. Dóceis e silenciosos, entrámos no quarto dos meus pais. A minha mãe sorria-nos. Estava sentada na cama, com um minúsculo menino ao colo. Embrulhado em mantas brancas de pura lã, mal se via o reduzido rosto. Estava a dormir e nem sequer deu por nós. Em bicos de pé, tentei esquadrinhar bem aquela pequena criatura à procura de um aceno, de um olhar que denotasse a nossa presença. Mas nada. O meu irmão viera para dormir. Não estava  interessado em conhecer-nos ou  apresentar-se.
Quando a minha irmã mais nova nasceu , eu tinha apenas um ano. Não me preparara para o seu nascimento. Recordo que, de repente, é esse o termo exacto, havia mais alguém em casa. Um ser que não largava a minha mãe e merecia dormir no berço que fora meu.  Por essa altura, a minha mãe já deixara de me amamentar e eu passara a dormir   no quarto das raparigas (das meninas), onde estava a minha irmã mais velha.  Nascer para mim, nessa idade,  era qualquer coisa estranhíssima. Nem sequer tivera ainda tempo de entender esse processo na natureza.
As minhas memórias desse tempo não existem. Creio que absorvi algumas recordações por tanto terem sido reproduzidas por outros ao longo da minha vida. Apropriamo-nos delas com se nossas fossem. “A melhor parte da nossa memória está deste modo fora de nós”, dizia Proust.
A memória de um nascimento começa para mim  aos quatro anos, com o nascimento do meu irmão. Com o tempo e no decurso pacífico dos dias, todos fomos envolvidos por este novo irmão.  Era o menino de todos nós que a mãe, com imenso desvelo,  partilhava para que todos nos sentíssemos importantes." Maria José Vieira de Sousa, in " O livro que já escrevi"

quarta-feira, 27 de maio de 2015

No teatro anatómico

A Lição de Anatomia
Por António Lobo Antunes
"A pouco e pouco, eu que não queria muito ser médico, queria escrever apenas, interessei-me pelo barro de que aqueles corpos eram feitos, pelo barro de que eu era feito, barro, mau cheiro, repugnância
Eu tinha dezasseis anos quando me matriculei em Medicina, as aulas começavam mais ou menos um mês depois de completar dezassete e nunca havia posto o olho em cima de um cadáver quando o ensino prático, no teatro anatómico, começou. Depois de esperar com os colegas, de bata e luvas, arrepiadinho de medo, num compartimento que dava para uma sala enorme, cheia de pias compridas, de pedra, os mortos começaram a entrar numa espécie de macas metálicas, com rodas que chiavam, nus, de dedo grande do pé munido de um cartão com o nome, amarelos, direitos como paus. Uns empregados, com uma espécie de guarda-pó, também de luvas, transferiam-nos para as pias num pivete de formol. O que parecia o chefe dos empregados, o senhor Joaquim, gordo e bexigoso, veio anunciar

- Está a sopa na mesa

e nós lá fomos, acanhadíssimos, tentando não olhar

(pelo menos eu tentava não olhar, numa vontade louca de fugir a sete pés)

à medida que nos iam distribuindo pelas pias, em redor daqueles corpos amarelos, com o formol a encher-nos de lágrimas. Lembro-me do senhor Joaquim perguntar

- Que tal a sopinha meus senhores?

a um rebanho de miúdos mais ou menos apavorados, a quem ele vendia os esqueletos que era necessário comprar para estudar os ossos. Não comprei nenhum: o meu pai conservava em casa, numa mala de vime, os ossos que arranjara em estudante, recordo-me do maxilar inferior ainda com dentes, da caveira, dos ossos mais delicados da cabeça, embrulhados em papel de seda para não se quebrarem, de um monte de costelas e de tíbias, perónios, fémures, destinados a uma aprendizagem decente, consoante me recordo da desilusão do senhor Joaquim comigo, porque tinha um negócio de venda daquelas coisas aos estudantes, que lhe arredondava os fins de mês. Um sócio dele, coveiro, entregava-lhos no cemitério, à percentagem, o senhor Joaquim, que morava numas águas furtadas, punha a mercadoria a secar no telhado, até perder os fiapos de tendões e músculos que sobravam, limpava-os, lavava-os, secava-os, juntava-os em sacos que nos vendia e lá se apanhava o autocarro a chocalhar aquilo. Perguntei-lhe como fazia para separar os ossos da cabeça e o senhor Joaquim, engenhoso, explicou-me que, pelo buraco occipital, enchia os crânios de favas, despejava-lhes água dentro, tapava o buraco com uma espécie de rolha e os ossos iam-se afastando uns dos outros à medida que as favas inchavam. Continuo sem entender a razão pela qual os vizinhos não protestavam com o fedor: se calhar todo o Campo de Santana, onde ele habitava, colaborava nos esqueletos, não sei, a realidade era que o senhor Joaquim não parecia viver em conflito com ninguém. Tinha um filho que o visitava às vezes, todo torcido, e ele nos apresentava com orgulho

- O meu rapaz, parkinsonista

dava ideia que contente com a doença:

- Não é para qualquer um.

No meio disto apareciam os assistentes, que nos distribuíam bisturis a fim de começarmos a familiarizar-nos, numa pestilência de formol, com corpos com séculos de frigorífico em que tudo se confundia num lodo castanho, ao pé do qual o parkinsonista me parecia muito mais elegante que o Apolo Musageta ou a Madona da Caldeirinha. O teatro anatómico durava das duas às seis da tarde

(seis ou sete?)

até eu o trocar por um cinema de sessões contínuas na Praça do Chile

(numa rua por trás da Praça do Chile)

com um colega que conhecia a senhora que vendia os bilhetes. Pedia à senhora

- Dê-me dois lugares bons

a senhora, com um piscar de olhos entendido, colocava-nos ao lado de espectadoras solitárias, da idade da minha mãe, que encostavam docemente os joelhos aos nossos no escuro e nos davam a mão durante os filmes. Habitavam nas redondezas e convidavam-nos a acompanhá-las até casa para um chazinho, onde nos faziam festas na cara, nos davam beijos e introduziam dedos sábios nos intervalos dos botões da camisa, a suspirarem

- Ai menino, menino

e a experimentarem-nos a pele da barriga

- Que suave

enquanto a maior parte dos meus colegas se debatiam com os cadáveres no teatro anatómico, procurando a artéria radial numa lama confusa. A pouco e pouco, eu que não queria muito ser médico, queria escrever apenas, interessei-me pelo barro de que aqueles corpos eram feitos, pelo barro de que eu era feito, barro, mau cheiro, repugnância, e custava-me admitir que tudo aquilo tivesse vivido da maneira que eu vivia, até um dia me metamorfosear numa criatura de nudez horrível, cujos olhos abertos escutavam o vazio, não observavam o vazio, escutavam o vazio em que se tornaram, cortados pelos bisturis dos assistentes. A evidência da minha morte arrepiava-me: apenas uma questão de algum tempo e ossos, músculos, articulações, nada. Não um defunto: nada. Ficariam os livros que eu imaginava ir escrever, não ficaria, se calhar livro nenhum. Nem um dedo de senhora

- Que suave

a explorar-me a pele da barriga numa altura em que já não teria pele: apenas o que fora um corpo, com um cartão com o meu nome amarrado ao dedo do pé. Um nome que não dizia fosse o que fosse a ninguém, retalhado, inútil, explicando aos alunos o absurdo que eu era, deitado no telhado do senhor Joaquim, de ossos brancos ao léu e, no interior do meu crânio, favas a rebentarem com os pombos de Lisboa em torno."
António Lobo Antunes, em Crónica publicada na VISÃO 1157, de 7 de Maio

terça-feira, 26 de maio de 2015

Cinema: os filmes de Maio

Em Cartaz
A Última Carta de Galípoli
O capitão Salih Ekrem é um jovem piloto de aviação, um dos primeiros a integrar a força aérea otomana. Ficou viúvo quando a sua mulher morreu em trabalho de parto, para dar à luz a pequena Gülmelek. Em Fevereiro de 1915, perante os primeiros ataques da frota britânica, Salih Ekrem é destacado para Galípoli, deixando Gülmelek entregue aos cuidados da sua avó em Istambul. Um dia, durante um voo de reconhecimento, Salih tem de acudir um grupo de médicos turcos que são atacados por aviões ingleses. Apesar de ferido durante a escaramuça, com a ajuda da enfermeira Nihal , Salih consegue salvar Fuat, um rapazinho órfão que é protegido pelo grupo. Sob o calor dos dias mais violentos e terríveis da guerra, Fuat passa a ser uma inspiração de força e resistência para todos, mas também uma forma de aproximação entre Salih e Nihal. Quando Nihal é chamado a regressar a Istambul, a ligação entre ambos transforma-se num grande amor por correspondência.
Ficha Técnica
Realização- Özhan Eren  Actor / Atcriz -Asuman Bora Bulut Akkale Engin Benli Hüseyin Avni Danyal Kerem Arslanoglu Yilmaz Bayraktar


O Rapto de Freddy Heineken
Kidnapping Mr. Heineken
Em 1983, um grupo de amigos de infância cometeram o crime do século: raptaram Freddy Heineken, um dos homens mais ricos do mundo e o herdeiro do império da cerveja Heineken.Este audacioso e chocante crime, cometido em flagrante à mão armada nas ruas de Amesterdão, resultou no maior resgate alguma vez pago por uma pessoa. Foi o crime perfeito. Até ao exacto momento em que o grupo de amigos conseguiu escapar…
Ficha Técnica
Realização-Daniel Alfredson Actor / Actriz-Anthony Hopkins Jemima West Jim Sturgess Rob Fuller Sam Worthington


Estreias a 28 de Maio
Terra do Amanhã
Tomorrowland 
Ligados por um destino comum, Frank, um antigo menino prodígio, agora cansado de desilusões, e Casey, uma adolescente optimista e brilhante, cheia de curiosidade científica, embarcam numa missão perigosa para descobrir os segredos de um enigmático local, num tempo e lugar conhecidos como “Tomorrowland”. O que eles vão fazer vai mudar o mundo, e a eles, para sempre.
Ficha Técnica
Realização-Brad Bird, Actor / Actriz- Britt Robertson George Clooney Hugh Laurie Judy Greer Kathryn Hahn Tim McGraw

Timbuktu
Timbuktu,Drama/ França
Não muito longe de Timbuktu, agora governada por fundamentalistas religiosos, Kidane vive no deserto com a mulher Satima, a filha Toya e Issan, o pastor de doze anos. Na cidade, as pessoas sofrem com o regime de terror imposto pelos fundamentalistas. A música, o riso, os cigarros e o futebol foram banidos. As mulheres tornam-se sombras mas resistem com dignidade. Todos os dias, os tribunais improvisados decretam leis e sentenças absurdas e trágicas. Kidane e a família têm sido poupados ao caos que reina em Timbuktu. Mas o seu destino muda quando Kidane mata acidentalmente Amadou, o pescador que matou GPS, a vaca preferida da sua manada. Kidane terá então de enfrentar as leis dos ocupantes fundamentalistas.
Ficha Técnica:
Realização- Abderrahmane Sissako,Actor / Actriz - Abel Jafri Hichem Yacoubi Kettly Noël Pino Desperado Toulou Kiki

Big Game - Instinto Caçador
Big Game
Aterrorizado, Oskari vagueia pela vasta e implacável floresta, quando de repente ouve um estrondo. Correndo na direcção do barulho para investigar, descobre uma cápsula de escape e salvação … da Air Force One. E o homem apeado e ferido mesmo à sua frente é nada mais, nada menos, do que o Presidente dos Estados Unidos da América! … entretanto, nos céus sobranceiros, um grupo de terroristas dirige-se para o local de embate - vão no seu encalço, na expectativa de raptar o Presidente.Assim, o destino de um dos homens mais poderosos do mundo está agora nas mãos de um rapaz de 13 anos. Mergulhados num jogo mortal de gato e rato e com poucas horas à frente, Oskari e o Presidente precisam de agir em equipa para sobreviver à noite mais extraordinária das suas vidas.
Ficha Técnica
Realização- Jalmari Helander, Actor / Actriz-Felicity Huffman Ray Stevenson Samuel L. Jackson Ted Levine Victor Garber



Há Sempre Uma Primeira Vez
Toute première fois
Jérémie, de 34 anos, acorda num apartamento estranho ao lado de Adna, uma arrebatadora sueca tão divertida quanto cativante. Será este o início de um conto de fadas? Hipótese pouco provável, dado que Jérémie está prestes a casar-se... com Antoine.
Ficha Técnica
Realização-Maxime Govare Noémie Saglio Actor / Actriz -Adrianna Gradziel Camille Cottin Franck Gastambide Frédéric Pierrot Pio Marmaï

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Celebrar Eugénio Lisboa no dia do 85º aniversário

Os sons de África são toda a tua infância
ou quase.

E. Bettencourt Pinto
                                               Usamos os espelhos para ver o rosto e a arte para
                                               ver a alma.

                                              G. Bernard Shaw

Eugénio Lisboa faz 85 anos. Celebrar essa data é lembrar quão grande tem sido o contributo deste notável escritor para a Literatura Portuguesa. A singularidade da sua escrita, nos mais diversos géneros literários,  eleva-o ao patamar cimeiro daqueles que atingiram a universalidade.
Não é pura retórica afirmar que enriqueceu a Literatura ao rasgar  a opacidade estabelecida por muitos académicos na  produção literária. Engenheiro de formação permitiu ao saber científico impregnar o dizer literário convertendo-o no pioneiro de um estilo novo, transparente, vivo, pujante e sumptuosamente claro que faz de cada obra um manual de aprendizagem e de intensa fruição intelectual.  
Celebrar Eugénio Lisboa  não é apenas destacar o escritor  , mas evidenciar  o homem culto e sensível que decidiu escrever as memórias de uma vida farta, rica e diversa. 
Hugo  von Hofmannnsthat dizia  que " o narrador comum  narra como qualquer coisa mais ou menos podia acontecer. O bom narrador  faz acontecer  qualquer coisa diante dos nossos olhos como se estivesse presente. O mestre  narra como se qualquer coisa acontecida há muito tempo acontecesse  de novo."
Eugénio Lisboa prepara o V volume das suas Memórias. Descobri-lo ao longo das suas palavras é um exercício de extrema riqueza. Da criança de um bairro humilde de Lourenço Marques, o Alto -Mahé, ao escritor  de relevo dos nossos dias, tudo acontece de novo como um registo filmíco de extraordinária  qualidade.
A estranha coincidência de o dia do seu aniversário  ser também, a partir de 1972,  o Dia de África , faz-nos olhar com mais acuidade para as páginas que dedicou a esse continente. Homem de várias pátrias, tem uma alma africana. É desse tempo africano que fomos à procura.
E porque homenagear um escritor é divulgar a sua obra ,  construímos com as palavras de Eugénio Lisboa  a fantástica história (abreviada) da sua vida.

"Escrever memórias, passados os oitenta, é um atrevimento. Planeá-las em cinco volumes é pura loucura. Ninguém me podia assegurar que viveria o tempo suficiente para os escrever todos. "
"A razão de saltar do primeiro para o terceiro volume ( sem redigir o segundo) é simples: tenho 83 anos e nada me garante que terei vida para redigir os ambiciosamente sonhados 5 volumes. Gostaria em todo o caso, de poder deixar escritos os tomos que dizem respeito à minha vida em  África. Foi lá que comecei, mesmo que não vá ser lá que acabo. Esses dois livros, eu devo-os à cidade de Lourenço Marques e ao espaço africano e ao mar africano e à luz africana. Faço questão de pagar essa dívida. O resto será feito se os deuses deixarem." Eugénio Lisboa, in " Acta Est Fabula, Memórias -III - Lourenço Marques Revisited ", Ed. Opera Omnia
 Nascer em Lourenço Marques
“Não há razão nenhuma para que , no dia 25 de Maio de 1930,  “ eu “ tenha nascido num canto improvável da África Austral. O privilégio, o luxo ou o acaso  miraculoso (para mim) de estar vivo é algo que me ficará, para sempre, incompreensível.(…)
Estar vivo não é insignificante.  Nenhum milagre é coisa de somenos. Vou, pois, tentar arquivar aqui, com palavras incompetentes, milagres que ultrapassaram a minha capacidade de os exprimir. A Lourenço Marques da minha infância e adolescência, com a praia ali ao lado e o mato muito perto, foi um desses milagres. Foi lá que nasci e foi lá que o mundo começou: o sol descomunal, a chuva grande, as trovoadas de estarrecer, o mar , a noite, o amor, a leitura, o futuro a haver – começaram lá. Vou falar-vos de Lourenço Marques, isto é, vou falar-vos da vida. Falando dela, irei viver algum tempo mais. Só ela, a capital da memória, é capaz de me dar este modesto suplemento de vida. “ Eugénio Lisboa, in "Acta Est Fabula, Memórias I,Lourenço Marques ( 1930-1947)", Editora Opera Omnia, 2012
 O tempo da descoberta 
" Em África , tudo se dilata com o calor, inclusivamente a dimensão do tempo e do espaço, isto é, há muito espaço e muito tempo. A África é enorme, nunca mais acaba, e os dias vão durando por ali fora e dão tempo para tudo e ainda sobra tempo. Trabalha-se devagar, mexemo-nos devagar, amamos devagar ( nem sempre). A vida, ali, dura mais, mesmo quando dura pouco.
Quando as férias grandes começavam, tínhamos, à nossa frente, uma vasta planície de tempo a preencher, mesmo que fosse a não fazer nada. A partir do 5º ano do liceu, eu possuía já uma pequena biblioteca e ia  comprando um outro livro que namorava longamente, antes de o poder comprar. Mas, até ao terceiro e mesmo ao 4º ano, a leitura não era muito variada. Lera alguma coisa, mas não encontrara ainda nenhum dos meus grandes amores literários. O Garrett  o Herculano e o Júlio Dinis tinham-me cativado muito, mas não lhes chamaria "grandes amores literários". 
(…)
Julgo que foi , por esta altura, que meu pai me trouxe, completamente amarfanhado pela água que apanhara no porão do navio, entre Lisboa e Lourenço Marques, na edição da " Inquérito", em belíssima tradução de José Marinho, o romance de Stendhal ,  Vermelho e Negro ( Le Rouge  et le Noir , no original).  Foi, em mim, um autêntico terramoto! Apaixonei-me perdidamente pela Senhora de Rênal e foi um amor que nunca me abandonou : a Senhora de Rênal ficou sempre a pertencer ao meu mundo mais privado. Cá fora, na arena, eu andava com fumaças de dominar e meter na ordem as Matildes de la Mole que inundavam o mercado...Mas as Matildes eram só para o toureio; a Senhora de Rênal era para o amor de facto. Nada de confusões! Li, reli, tresli o livro de Stendhal, com uma paixão nunca saciada. Nenhum outro livro me pareceu viável , imediatamente depois daquele.. Eu bem pegava neles, bem tentava lê-los: tinham todos o horrível defeito de não serem o Vermelho e Negro. Como se podia ser outra coisa? Algo de semelhante se passaria, pouco depois, quando li, pela primeira vez, em tradução portuguesa, todo o teatro de Oscar Wilde. Foi um fascínio deparar, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, com a arte da conversação. Como se poderia não falar assim? Como era possível continuar a viver, sem se possuir,  pelo menos, o brilho dos lordes conversadores do teatro de Wilde? Valia a pena viver, se não se podia ter tal brilho, na conversa de todos os dias ? Ser menos do que Oscar Wilde era programa de vida que se visse? O brilho, àquele nível, seduz mas também angustia. É um valor que se não absorve pacificamente ou que eu, pelo menos, não absorvia pacificamente. Nas conversas com colegas e familiares, apetecia-me ensaiar o paradoxo faiscante. Demolir tudo, desassossegar aquela sociedade amolengada e conformista, sob o calor subtropical..." Eugénio Lisboa, in " Acta Est Fabula, Memórias - I -Lourenço Marques ( 1930-1947)" Ed. Opera Omnia, Novembro de 2012
Em Lourenço Marques, a capital da memória
“Lourenço Marques ficou sendo, para sempre, a minha capital da memória. O termo deu-mo a Maria de Lourdes Cortez, que o pilhou, por sua vez, ao Lawrence Durrell.
Era uma cidadezinha muito bela e ajardinada, onde tudo ficava à mão, para efeitos de convívio, amizade e amor. Crescia-se ali como no paraíso.
Para os pouco abastados, como eu, uma parte da vida (a casa) ficava num extremo da 24 de Julho (a avenida mais comprida lá do burgo), e a outra parte (o liceu) quase no outro extremo, a desembocar na “rampa” que se atirava por ali abaixo até ao Pavilhão da Praia. Mesmo, mesmo no extremo, logo a seguir ao liceu, ficava um caramanchão e a casa do Reis Costa. O Reis Costa, para quem não saiba, era um personagem: homem cultíssimo, de olhar penetrante e caminheiro infatigável (nunca teve carro), fora amigo e companheiro de habitação do Hernâni Cidade e ensinava francês e português como quem trata por tu o Camões, o Anatole, o Oliveira Martins, o Gide, o Pessoa, o Proust ou o Régio. Esfuracava, com os olhos imensamente acesos, os nossos mistérios adolescentes e metia-nos nas mãos a Karenina e as Encruzilhadas de Deus. Amava instantaneamente uns e detestava, figadalmente e de modo igualmente abrupto, outros. Mas, se lhe pedíamos clemência para os colegas em desgraça, cedia com gesto magnânimo de imperador caprichoso mas dialogante.
No liceu, as aulas cheiravam deliciadamente a amendoim torrado. Tudo quanto ali aprendi ficou saborosamente contaminado por aquele bom cheiro e por aquele sabor que o mundo teve quando foi feito. Amendoim, o Júlio Verne, amendoim, o Salgari, amendoim, o Alexandre Herculano.
Aquele liceu era fora de série, e acho que nunca paguei publicamente a dívida que fiquei a ter para com ele. Foi ali que nasci um pouco e foi ali que fiz a minha segunda grande guerra. “ Eugénio Lisboa, em Crónica publicada na Revista LER
A partida para Lisboa em 1947
“O dia era de sol, de luz límpida. Arrumadas as coisas nos camarotes, viemos despedir-nos do meu pai e dos amigos, que tinham ido desejar-nos boa viagem. Ao toque de campainha, desceram para o cais e nós ficámos em cima, no deck, debruçados na amurada. Eu olhava para a cidade, por detrás do cais, num desespero bem amarrado. (…) Eu estava a separar-me de tudo aquilo que eu fora. Estava a ir-me embora de mim mesmo. (…) O barco começou a mover-se e eu comecei a morrer aos bocadinhos." Eugénio Lisboa, in" Acta Est Fabula, Memórias - I -Lourenço Marques ( 1930-1947)" Ed. Opera Omnia, Novembro de 2012  (pp.194-195)
Em Lisboa, o IST e o encontro com José Régio, em Portalegre
"(...)Lisboa não era Lourenço Marques – e no não sê-lo já estava o mal –, por outro lado, o ensino superior não era aquilo que eu sonhara: fiquei a respeitar e a admirar três ou quatro professores num curso de seis anos e dezenas de cadeiras, foi, no entanto, uma experiência rica, intensa e variada. Algumas disciplinas foram realmente inspiradoras, conheci colegas que ficaram amigos para a vida – alguns, como o António Brotas, o Manuel Graça Baptista e o Costinha ainda estão felizmente vivos, embora o Alves Marques já tenha falecido –, reatei contacto com velhas grandes amizades, como o Zeca (Tiago) Oliveira, descobri grandes autores, que passei a não ter medo de ler no original, descobri a grande literatura espanhola, fiz uma primeira e prolongada estadia em Paris (mesmo com pouco dinheiro) e, last but not least, o meu mau comportamento militar em Mafra atirou-me, como oficial miliciano, para Portalegre, onde tive a oportunidade de conhecer uma das maiores figuras da nossa literatura e cultura, de quem fiquei amigo até à sua morte: José Régio. Ao lado da sua estatura intelectual, artística, espiritual e moral, tantas glórias trombeteadas, laureadas e apaparicadas, de hoje, parecem-me pigmeus descartáveis e um pouco risíveis. Conheci também , pessoalmente, por intermédio do meu amigo Tiago Oliveira, um homem fascinante  que havia muito admirava: António Sérgio, cuja influência sobre a juventude (e não só) tanto mau sangue fez a tanta gente que ambicionava lavrar o mesmo território. Vergílio Ferreira foi um exemplo. Mas não foi o único.”Entrevista de Eugénio Lisboa a Júlio Conrado para a Revista Triplov( 2015)
O primeiro livro e o regresso a Lourenço Marques
“Publiquei o meu primeiro livro, há 50 anos. Vivia então na cidade da Beira (ainda hoje se chama assim), em Moçambique. O livro, diga-se de passagem, não foi publicado na Beira, nem sequer em Lourenço Marques, cidade onde nascera e onde vivera a maior parte da minha vida até então vivida. Também não foi publicado em Lisboa, onde tirara o meu curso de engenharia (como se vê, a minha vocação para eterno “outsider” é impecável). Viu a luz no Porto, onde nunca vivi, editado pela Livraria Tavares Martins, que o acolheu numa colecçãozinha intitulada “Poetas de Ontem e de Hoje”, dirigida por João Gaspar Simões, que eu não conhecia pessoalmente, e que me não conhecia a mim, nem pessoalmente, nem de maneira nenhuma: eu nunca publicara nada, nem em livro, nem em revista, nem em jornal e não tinha por costume andar atrás de escritores, mesmo dos que admirava. A responsabilidade do livro foi-me simplesmente cometida, de forma algo escandalosa, por um dos tais escritores que eu muito admirava – José Régio - , cuja obra conhecia como os meus dedos, mas sobre a qual não escrevera, nem sonhava escrever uma única linha. Uma noite, em Portalegre, regressando com ele do Café Central – hoje assassinado - , comunicou-me que, na sua recente visita ao Porto, o Tavares Martins lhe pedira autorização (e colaboração) para incluir na supra dita colecção, logo a seguir ao tomo dedicado a Garrett, uma antologia de poesia do autor de Poemas de Deus e do Diabo. Régio respondera-lhe que sim, com a condição de ser ele – e não Simões – a escolher o ensaísta que organizaria a antologia e para ela escreveria um estudo crítico introdutório. E que o escolhido seria um oficial miliciano chamado Eugénio Lisboa, que conhecera em Portalegre e ali se encontrava, a cumprir serviço. O Tavares Martins aceitara e, pelos vistos, o Simões também. (…) Portalegre serviu, também, para me apresentar o Alentejo, que ainda hoje é a minha província favorita num Portugal a que pertenço e não pertenço, visto encontrar-me maravilhosamente tripartido entre Moçambique, a Inglaterra e Portugal, minhas três pátrias de que não abdico: não sou um desenraizado, o que tenho é muitas raízes – em suma, sou rico. De qualquer modo, só para conhecer uma cabeça como a do Régio e um coração como o do Dr. Falcão, valeu a pena ir cumprir a pena de degredo, em Portalegre.
(…)Comecei por gaguejar com a honra que surpreendentemente me visitava e por dizer ao Régio que, sim senhor, me tocava muito o convite, mas que nunca publicara nada (embora rabiscasse um “diário” errático para a gaveta) e que, portanto, não fazia sentido aceitar a oferta. Mas o Régio sabia-a toda. E foi por ali fora, alegando isto e aquilo e ainda que, nas nossas alongadas conversas de café, eu mostrara um conhecimento, em profundidade, da obra dele, como nunca vira em ninguém, que, acrescentava ele, a escrever, é que se aprende a escrever, e que, em suma, ele não tinha qualquer dúvida quanto ao serviço asseado que sairia das minhas mãos. Mas eu iria, poucos meses depois, para África, atirei-lhe, a ver se o dissuadia... Que não fazia mal: acabava o trabalho antes de partir e ele, Régio, comprometia-se a rever, em Portugal, as provas, com todo o cuidado que punha nas suas próprias coisas.
(…)Parti para Lisboa em fim de Fevereiro de 1955, envaidecido e apavorado. Parecia-me cada vez mais uma enorme  loucura ter-me rendido ao desafio do grande escritor. De qualquer modo, pus-me ao trabalho, aboletado, em república, na casa do Rui Serrão, colega e amigo de batalhão, que também se fizera amigo do Régio e do Dr. Falcão e deixara, por acaso, o coração em Portalegre, nas mãos gentis da “bela Helena”, com quem viria a casar. De dia, fazia os estágios e ia preparando os relatórios e, à noite, relia o Régio, tomava notas, escrevia períodos que me pareciam dignos de, mais tarde, se irem encaixar no mítico ensaio-a-haver. E tinha cada vez mais medo de não ser capaz de escrever coisa com coisa. Mas sempre ia descobrindo, na obra do autor de A Velha Casa, recantos que, até então, só mal entrevira: dava-me um estranho gozo interior sentir, às vezes, que acertara, que tocara em algo de profundamente revelador, mas sufocava-me a angústia de ainda não ver o texto em que tudo aquilo se iria inserir. Foi um trabalho longo, minucioso, lento, angustiado, que durou de Março a Maio: três meses suados e bem suados. Acabei, com uma alegria que não há palavras para contá-la, por descortinar o guião geral em que as minhas pérolas singulares se iriam incrustar. Aqueles átomos de descoberta não iriam ficar pendurados, sem se articularem num todo que fizesse sentido. Finalmente eu via o argumento. Mas havia em tudo aquilo um defeito contra o qual não me apetecia lutar: era o meu primeiro livro, mais, era o meu primeiro texto, e era-o sobre um escritor que eu conhecia bem e que me “agarrara” aos quinze ou dezasseis anos, com um livro que nunca mais saíra de mim: Uma Gota de Sangue, primeiro volante de uma vasta e ambiciosa soma romanesca, que viria a ficar incompleta. Como acontece com os primeiros livros, eu queria meter “tudo” logo no primeiro parágrafo: tal era o medo de que se “perdesse” se o não registasse logo ali... Um ou outro período corria assim o risco de sair, não propriamente “rico”, mas sim “atafulhado”...
Escrevia à mão, com letra bem desenhada e, no fim, copiei o texto num caderno de trinta e cinco linhas (salvo erro, não juro, branco), que enviei ao Régio, em Portalegre. Passara as duas últimas noites a escrever, sem dormir, à custa de anfetaminas, de que, depois, nunca mais abusei. E fiquei à espera.
Pelo meio, acabei os estágios, amanhei à pressa e sem grande convicção, os relatórios e recusei, com desenvoltura e alguma leviandade, um bom emprego que me fora lisonjeiramente oferecido, para Alverca: decidira mesmo regressar a África, à minha África, onde tinha espaço, recordações, família, o Nero já enterrado e, quem sabe, amores à espera. Estava farto de Lisboa, de Portugal, da Europa, da pequenez disto tudo. Ir-me-ia embora – o Régio não aprovava – no princípio de Agosto. Entretanto, no meio da agitação que precedia a partida, chegaria a reacção do poeta aos meus trabalhos de Hércules. E, com efeito, com data de 22 de Maio (três dias antes do meu aniversário) veio por fim a carta acusando a recepção do meu manuscrito. Abri-a a tremer. Entre outras coisas, dizia o seguinte, começando com as “cautelas” do protocolo: “Ao fazer um juízo sobre o seu trabalho, tenho de ser muito sóbrio: isto porque – numa certa medida – louvando-o, quase teria a impressão de me estar louvando a mim próprio(...) Só quis dizer que Você é muito amável com as minhas coisas. As restrições também lá estão, por certo, e ainda bem! Mas os meus inimigos dirão que certos aspectos apologéticos excedem em muito as observações restritivas, Mais uma vez passemos adiante. O que não pode ser louvar-me, - é reconhecer eu a penetração, a densidade, o encadeamento lógico, visíveis (e creio que, felizmente, não só a mim!) em todo o seu estudo, e que, aliás, eu já esperava de Você. A forma nem sempre é lapidar, e até possível é que Você não tenha propensão especial para o lapidarismo. Ainda se não vê bem, perante certos seus longos períodos, o que é devido a uma inexperiência natural num jovem escritor, ou o que deriva de uma personalidade. Mas o emprego do termo próprio, justo, já é notável na sua prosa; e devo confessar que, se já esperava de Você as qualidades de inteligência e sensibilidade patentes num estudo tão completo e aprofundado a dentro dos seus limites de extensão, não sabia, por ainda não ter lido nada seu, quais seriam as suas possibilidades de expressão verbal. Vejo que tais possibilidades de expressão já não desmerecem da coisa exprimível. Estou, portanto, e em suma, verdadeiramente satisfeito com o ter escolhido, se me permite falar assim. Quando o livro saia, e me pedir alguém de fora (como já tem sucedido) um estudo que dê uma ideia da minha obra – terei, finalmente, um pequeno volume em que já se diz muito sobre ela.”  O elogio, vindo do cauteloso Régio, era de monta. Mas fui particularmente sensível ao facto de ele ter percebido o “encadeamento lógico” do meu texto: sofrera angústias, com o receio de não vir a dar uma articulação de enredo ao conjunto de observações que a obra regiana me suscitara. Temera, sobretudo, produzir um amontoado de “pérolas” sem fio de ligação – e, sem fio, como nota Ortega y Gasset, não há “colar”.  A carta de Régio vinha sossegar-me.”  Eugénio Lisboa, Texto  lido na Escola Portuguesa de Moçambique, em 7 de Junho de 2007
 O casamento com Maria Antonieta , o amor de toda uma vida
"No dia 21 de Março, acordei cedo, como de costume , em casa dos meus pais, na Rua Fernandes da Piedade. A cerimónia do casamento civil iria ter lugar no pequeno hall da entrada da casa, vindo o oficial do Registo até nós e não nós até ele. Eu estava vestido a carácter e a MA apareceu num vestido branco lindíssimo. Vinha serena, sorridente e menineira ( na véspera ou  antevéspera tinha estado invulgarmente nervosa).(…)
A MA era - é - uma pessoa extremamente perceptiva, sensível e de uma grande inteligência dos outros. " Mata-os", por assim dizer, muito antes de mim. Estar com ela era, para mim, um encanto - e,  em muitos aspectos uma  aprendizagem. Ela observava, com atenção disponível e fina, "as pequenas coisas" que me escapavam.
Receio não ter sido um grande cicerone, porque andava num grande tumulto de emoções. E tinha um medo enorme de cometer gafes que lhe ferissem a sensibilidade. Se calhar cometi.
Tinha planeado irmos passar uns dias às montanhas de Drakensberg, no Natal, mas não foi possível, por não haver vaga no hotel. De modo que terminámos a lua-de-mel, em Durban e seguimos para Lourenço Marques."
Eugénio Lisboa, in " ACTA EST FABULA, Memórias -III - Lourenço Marques Revisited (1955-1976), Ed. Opera Omnia, Outubro de 2013
O grupo do café Nicola 
“ Mais tarde, em 1958, já em Lourenço Marques, e sobretudo a partir de 1959, ano do meu casamento, da morte de Reinaldo Ferreira  e da publicação de O País dos Outros , as nossas relações foram-se apertando, no grupo que se reunia  no café Nicola ( edifício que, depois da independência, ardeu e onde  até há pouco tempo, se lhe mijava em cima, com desenvoltura e en passant…)
Foram anos inesquecíveis de aventura intelectual, com o  Cine-Clube ( onde vimos , sob o olhar complacente  da Censura, o Wadja, o Eisenstein, o Poudovkine, o Kawalerowicz, o Forman e tutti quanti), com a Objectiva 60 e 61, a Voz de Moçambique, A Tribuna, o teatro do Mário Barradas do Norberto Barroca, num grupo de gente solidária mas não monolítica ( o Jorge Pais, já falecido, o Vergílio de Lemos , o Rui Baltazar, o Adrião Rodrigues, o finíssimo e mais tarde suicidado Sr. Morais – que  partilhou comigo, anos  a fio, as responsabilidades do conselho fiscal do Cine –Clube - ,  O Vieira Simões , o Gouvêa Lemos , um dos mais notáveis jornalistas portugueses que me foi dado conhecer, o José Craveirinha, que várias vezes levei à Mafalala, de regresso do Língamo, onde geria petróleos  e sonhava com outras coisas, o Grabato Dias, poeta grande que a Maria de Lourdes Cortez estudou como ninguém, e tantos outros que peço desculpa de aqui não mencionar (...)
Foram tempos exaltantes, naquela cidade à beira  do Índico, onde o sol se punha com uma magia de que nunca vi igual. Havia devoção, alegria de viver e havia , sobretudo, tempo: uma mercadoria  que os europeus, mais nórdicos, quase desconhecem, naquela quase monstruosa dilatação que nos  coloca num transe em que se percebe o que se  seja, afinal, a eternidade. Em Moçambique, naquele Moçambique que foi do Knopfli e também meu, o mundo e a felicidade duravam  - e nós também." Eugénio Lisboa, in "Recordando Rui Knopfli- Indícios de Oiro II"
África do Sul: o adeus a Moçambique 
"Os últimos dois anos, em Moçambique, tinham sido anos de emoções intensas e contraditórias: exaltação, receio, decepção, medo, rejeição… Vivêramo-los com intensidade, mesmo os sentimentos negativos e as amargas desilusões. O mundo ruíra, mas, mesmo o desmoronar, fora intenso e ocupara espaço emotivo dentro de nós. A paz que agora desfrutávamos contrastava demasiado com esse viver intenso, tornando-se desmobilizadora. O descanso tornava-se uma espécie de vazio. O sossego enfim alcançado era uma espécie de morte. Começávamos a experimentar uma estranha saudade: a saudade do perigo e da ameaça… No “hotel President” foi só o tempo de tratarmos de algumas pequenas coisas (papéis, dinheiro) e logo partimos para umas necessitadas e merecidas férias na Europa. Ia ser uma viagem, desde a partida, já sem o sabor das anteriores; nessas, partia-se de casa (Lourenço Marques) e regressava-se a casa: aos familiares e amigos. Agora, partíamos de terra estranha e regressaríamos a terra estranha, sem ter a quem contar, com alegria, o que tínhamos vivido na mítica Europa. Toda a magia da viagem tinha desaparecido.(…)
O tempo foi passando mas, em Junho, começou novo sobressalto. Mais ou menos em meados deste mês, minha mãe  telefonou-me de Lourenço Marques, dizendo-me que iam enviar o meu pai, de avião, para Joanesburgo. A arteriosclerose tomara conta dele, de forma profunda, tivera um AVC e encontrava-se  suficientemente mal para ter que vir a Joanesburgo ser visto e tratado como devia ser (o estado em que se encontrava o “hospital Miguel Bombarda”, depois da precipitada, absurda e criminosa “nacionalização” dos serviços de saúde, não era compatível com o tratamento decente que o estado do meu pai requeria.(…)
O meu pai ficou ali cerca de uma semana, com momentos de lucidez e grandes períodos de confusão. Teve visitas de amigos e familiares, nessa altura a viverem em Joanesburgo, e, por momentos, animava-se a conversar e mesmo a galhofar. O Dr. Alberto Reis Costa, que acompanhava o caso, dizia-me que o coração se encontrava muito dilatado, mas que estava optimista quanto ao resultado. Meu pai falava em partir para Portugal, o que me parecia uma boa solução, embora quase inconcebível: o meu pai adoptara África muito mais profundamente do que eu, que lá nascera e a considerava minha, não pensando, nunca, em de lá sair… Depois de um domingo, com muitas visitas e bastante conversa bem disposta, já à noite, regressámos a casa, na hengilcon Avenue. Levávamos boas esperanças, depois da conversa com o Dr. Alberto Reis Costa. Deitámo-nos, descansados, embora, no fundo, sempre um pouco apreensivos. O que iria ser a vida dos meus pais, naquele Portugal desarrumado e inquieto, uma terra em que eles nunca tinham concebido viver? Onde? A reforma permitir-lhe-ia viver com um mínimo de conforto? Como poderia eu ajudá-los? Acabei por adormecer. Mas o sono não foi longo: de madrugada, acordou-me a campainha do telefone. Quase me parou o coração: àquela hora, numa terra em que eu conhecia tão pouca gente que me telefonasse, aquele toque de campainha era ominoso. Levantei o telefone, sentindo-me esvaziar por dentro: era alguém, do hospital, a anunciar o falecimento do meu pai. Ataque cardíaco. Porque o coração estava grande demais? Era, em qualquer dos casos, para mim, a confirmação de que prosseguia a débacle: primeiro, a desagregação do nosso mundo, em Lourenço Marques, agora, o desaparecimento daquela força da natureza, que fora o meu pai. Ele estivera sempre perto, prestável, mesmo quando eu estivera ausente, em Portugal, durante mais de sete anos. Era um apoio óbvio, forte, omnipresente. Podia-se contar com ele. Estava lá, sempre. Mas afinal, quebrara, partira, cedera, não aguentara mais. O meu pai, afinal, não era imortal! Enterrámo-lo em Joanesburgo – a ele, que vivera quase toda a sua vida em Moçambique, de norte a sul, de fora para dentro… Um enterro simples, acompanhado por quase ninguém – ele, que ajudara tanta gente, uns agora mortos, outros dispersos, outros a tratarem simplesmente da sua própria sobrevivência.Em Joanesburgo, improvavelmente, ficou. No estado em que estava tudo,em Moçambique, incluindo uma burocracia sufocante, incompetente e desconfiada, não quis sujeitar o caixão e o corpo do meu pai a humilhações desnecessárias
(…)Os dias que se seguiram ao falecimento de meu pai foram dias sombrios. Pouco depois, fui a Lourenço Marques, com o fim de dar apoio a minha mãe e ver como estavam as coisas com ela,(...)As ruas eram as mesmas, mas já não eram as mesmas: tudo me parecia parado, inanimado, caricatura triste do que tinha sido bulício, noutro tempo. O poeta, romancista e contista Ernest Dowson, representante de um decadentismo literário, ficou célebre sobretudo por um verso e a metade de outro. O verso que, melancolicamente, gostaria de aqui recordar é este: “They are not long the days of wine and roses” (o meio verso – “gone with the wind” – seria aproveitado para título do romance de Margaret Mitchell, que o cinema celebrizaria). O verso que citei exprime, de modo agudo e de grande beleza sonora, o que eu senti, nesses três ou quatro dias em que divaguei pelas ruas de Lourenço Marques: “Não duram muito os dias de vinho e rosas”. E o meio verso – “gone with the wind” – diz o resto: tudo tinha ido com o vento, após um breve, ainda que intenso fulgor. Tinha de facto sido tudo tão bom e tão breve (o título do livro de Dowson, a que o verso pertence, é: Vitae Summa Brevis). Os dias de convívio, os dias de anos e de festa, os dias de criação literária, de praia, de amor e de amizade, os dias de vinho e rosas – tudo tinha fugido tão depressa, levado por um vento desatento e indiferente! E ali estava aquela carapaça grotesca, feita de casas desabitadas, de cariz cinzento, mortiço, despido de vida… Revi alguns amigos, algumas das minhas alunas, a Maria de Lourdes Cortez, o Adrião Rodrigues. Mas já nada sabia ao mesmo, porque já nada era o mesmo. Se, ao menos, os desapossados de antes, estivessem agora a trincar o seu justo quinhão e a serem finalmente livres e felizes… Mas estaria a ser assim? Apertados naquele espartilho ideológico, de um hediondo puritanismo? Enfim, tudo flui, nada permanece, dissera-o já o velho heráclito. A minha própria vida passara já por muita mudança, alguma dela, profundamente dolorosa – como foi o caso da minha mudança, de Lourenço Marques para Lisboa, em 1947. Mas, agora, fora tudo muito brusco, muito brutal, muito desarrumador. E eu já não tinha dezassete anos, tinha feito, havia pouco, quarenta e seis e as “bases” não estavam intactas: o meu pai morrera (inconcebível) e a minha tia Maria (outro pilar) acusara, nos últimos tempos, fragilidades de saúde. Os “avisos” estavam por todo o lado. Para onde iria a minha mãe, com a pensão de viúva ainda a resgatar da infernal teia burocrática, que se assarapantava no Consulado português, em Maputo? O processo acabaria por se extraviar, entre o Maputo e Lisboa… E a tia Maria, nossa mãe sempre mais à mão, a envelhecer a olhos vistos… E o meu irmão? E as tias, sem vencimento, sem reforma e sem nada de material a que se agarrarem? (A casa do Alto Mahé, literalmente construída, pedra a pedra, degrau a degrau, pelo Tio Tropa, grande artista da madeira, que morreu pobre, fora, como tudo, “nacionalizada” – rima com “roubada” e rima com fundamento). Era o fim desordenado e feio de um mundo! De tudo isto ia congeminando, para arrumos e soluções que, não demoraria muito, haveria que tomar. E nós, numa África do Sul, no cú do mundo, e assente num vulcão, que não parava de emitir avisos… Estive, como disse, com algumas das minhas alunas de eleição, com a Maria de Lourdes, com a minha mãe e com a minha cidade, que deixara de ser minha! E regressei a Joanesburgo, desconsolado e com uma terrível sensação de perda irrecuperável.” Eugénio Lisboa, in “ Acta est fabula, Memórias IV Peregrinação: Joanesburgo. Paris. Estocolmo.Londres. (1976-1995), pp. 19,20,35-41, Editora Omnia Opera, Outubro de 2014
Em Moçambique: A propósito  dos 50 anos da publicação do primeiro livro
"Tem havido quem estranhe que eu, saído de Moçambique, tenha depois dedicado tão pouca da minha atenção às literaturas africanas de língua portuguesa. Como de costume, a estranheza é que é estranha. Nascido em Moçambique e aí tendo vivido um total de 38 anos, terei sido um dos primeiros – mas não seguramente o primeiro – a dedicar alguma atenção crítica e não pouco carinho a textos importantes de uma emergente literatura africana. Mas a minha cultura, como a de quase todos os europeus residentes em África, era uma cultura fundamentalmente portuguesa, europeia e universal no melhor sentido. Nunca me inculquei – porque nem era verdade, nem era a minha verdadeira vocação – como especialista de literatura moçambicana. Estudei-a, sim, e até muito antes de outros que depois se lhe dedicaram em exclusividade. Mas tive, desde muito novo, outras apetências, outros alimentos a que nunca soube, nem quis fugir. Se a África me está no sangue, no imaginário e no coração, a Europa e as Américas não o estão menos. Aluno de engenharia, em Lisboa, a partir de 1947, a minha curiosidade insaciável por nomes como Camões, Pessoa, Vieira, Sá-Carneiro, Eça, Garrett, Camilo, Régio, Gide, Proust, Montaigne, Montherlant, Thomas Mann, Racine, Stendhal, Balzac, Shakespeare, Dickens, George Eliot, Shelley, Wordsworth, Pessoa, Sá-Carneiro, Régio, Lorca, Unamuno, Ortega y Gasset, T.S. Eliot, Sherwood Anderson, Edgar Poe, Hemingway, Faulkner, Pirandello, D’Annunzio, Huxley, Bertrand Russell, Bernard Shaw, o inimitável Oscar Wilde, Tolstoi, Tcheckov, Dostoiewsky ou Fiodor Sologub, [a minha curiosidade por todos estes nomes] nunca cessou de me devorar e estimular no melhor sentido. Se estudei Craveirinha, Luis Bernardo Honwana, Rui Knopfli, Rui Nogar ou Glória de Sant’Ana, que em Moçambique viveram (e, alguns, nasceram, e outros, ainda, nasceram e morreram), se o fiz com um cuidado e uma imparcialidade crítica que nem sempre se tem votado às literaturas africanas, não me senti por isso obrigado a jugular aquelas outras apetências que eram, para mim, vitais. De nada disto me sinto com vontade de pedir desculpa ao povo de Moçambique. Porque o povo de Moçambique tem a grandeza de Moçambique e deve portanto saber alcançar o que está para além de Moçambique. O melhor do que é particular é também universal. Foi para mim um privilégio inconcebível, uma permanente fonte de assombro – e é o assombro que leva a todas as descobertas – ter nascido em Moçambique: aqui descobri os afectos, os saberes, o respeito sagrado pelas crianças e pelos velhos, o Oceano Índico, as praias como não há outras, o amor, a leitura, a ciência, o calor, os mais bonitos outonos e invernos do universo, mas aprendi também – e assim é a humanidade – que se é muitas vezes feliz e cumulado de riquezas no meio de outros que são menos felizes e bem menos municiados pelos alimentos terrestres. Aprendi que existe a injustiça que fere como um espinho que nunca se arranca. E aprendi que a nossa simpatia para com o sofrimento dos injustiçados nos pode marginalizar numa sociedade que se construiu sobre a injustiça e teme a justiça como o fim de privilégios que se habituara a ter como bens de direito divino. Aprendi a sofrer, também, aqui, em Moçambique. E aprendi a deixar de ser feliz daquela maneira inocente de ser feliz que me visitara a infância e a adolescência, mas que a idade adulta foi desassossegando como quem mina fundações que pareciam tão sólidas. Moçambique.  Dei-lhe o que podia, sendo eu quem sou. Não lhe dei, talvez, tudo quanto devia. Repito: tenho raízes em mais do que um quintal. Sou rico – e vário. Ao fim de cinquenta anos de escrever e publicar, agora que se aproxima o fim da minha aventura, agradeço do coração a todos os que me enriqueceram com o seu convívio, com as luzes que em mim acenderam, com os acordes que me encantaram os ouvidos. Moçambicanos ou não, o meu temperamento não se dá nem com a rejeição, nem com a exclusão. Dizia Montaigne – e melhor conselheiro do que ele não há! – que a diversidade é a qualidade mais universal que há no mundo. Com ela me dei sempre bem, ao seu calor me aqueci, com o seu estímulo, caminhei. E, aqui, neste Moçambique que visito provavelmente pela última vez e onde descobri, com assombro inextinguível, o milagre de estar vivo e de estar vivo com outros um pouco diferentes de mim, aqui me despeço de vós, com quem aprendi, entre outras coisas, aquilo que há muitos séculos fora já descoberto por um escravo chamado Terêncio: que, sendo humano, a nada do que é humano sou alheio.” Eugénio Lisboa, Texto lido na Escola Portuguesa de Moçambique, em 7 de Junho de 2007

Eugénio Lisboa é um exímio mestre, "narra como se qualquer coisa acontecida há muito tempo acontecesse de  novo." 
Descobrir o novo volume das Memórias de Eugénio Lisboa é reiterar o privilégio de poder aceder à história recente  do mundo através de uma luminosa e clara escrita e de um olhar profundo  e preclaro. 
Apresenta-se um sempre e redobrado agradecimento ao escritor, ao poeta , ao homem, ao amigo que, ao brindar-nos tão prodigiosamente,  nos permite homenageá-lo.
Brindemos com o mestre, ab imo corde.