"Iam os dois
pela rua, de mãos dadas. Dir-se-ia que não pisavam o chão. Dir-se-ia que
deslizavam, que vogavam, que voavam. A felicidade estava-lhes cunhada nos
rostos; e também nos gestos, nos sorrisos, no olhar. Iam de mãos dadas pela rua
e iam muito felizes.
Ela tinha os
cabelos longos e soltos, o tronco alto. Os seios puxados para a frente, as
pernas esbeltas e livres, saias curtas. Ele era um pouco mais alto, um pouco
apenas, camisa aberta, calças de ganga, uma pequena mala, daquelas malas dos
antigos guarda-freios da Carris, a tiracolo. Isso: a mala estava a tiracolo, e
eles iam muito felizes, os dois, de mãos dadas.
Nem sequer
reparavam que muitas pessoas os observavam. Algumas pessoas com a conivência de
um sorriso. Outras pessoas com um ressaibo de inveja, no olhar de esguelha.
Pararam um pouco em frente à Pastelaria Suíça, no Rossio, ele disse qualquer
coisa a ela, ela encolheu os ombros. Não deixavam de sorrir enquanto
conversavam. Depois entraram e beberam café.
A esplanada
da Suíça estava cheia de sol e de estrangeiros. Um vendedor de lotaria ofereceu
jogo. Um rapaz sujo pediu algum dinheiro. Dois homens encontraram-se e
abraçaram-se com efusão. Uma mulher apressada deu um encontrão num cego. Um
cigano tentava vender relógios. Um polícia contemplava as coisas com evidente
indiferença.
O rapaz e a
rapariga decidiram, depois de tomar café, passear pelo Rossio. Estavam muito
felizes. E é bom que se repita isto, porque as pessoas, habitualmente, andam
para aí cheias de infelicidade, ao menos que haja alguém feliz, mesmo que seja
uma ou duas pessoas.
Passeavam
pelo Rossio e, de vez em quando, davam beijos, sempre sorrindo um para o outro,
como se estivessem a sorrir para todo o mundo, e todo o mundo experimentava uma
grande sensação de espanto e de júbilo. Paravam junto às montras do Rossio,
olhavam, claro, mas não fixavam nada do que nas montras se expunha, só sabiam
um do outro, só estavam ali juntos para apenas estar um com o outro, juntos e
assim mesmo: de mãos dadas e aos beijos.
Foi numa
dessas ocasiões. Beijavam-se tão felizes, tão um do outro, que essa felicidade
molestou uma senhora obesa e flácida. A senhora obesa e flácida estacou,
indignada, a fuzilá-los com as balas do ódio. E gritou:
— Não podiam
fazer isso em casa?
A rapariga
dos longos cabelos e seios puxados para a frente deixou o beijo a meio. O rapaz
experimentou uma estranha sensação de pasmo. Olharam-se. E foi então que a
rapariga respondeu, indicando tudo em derredor:
— Esta é a
nossa casa!
Nesse
instante trémulo, o mundo feliz, começou a aplaudir."
Baptista-Bastos,
in “Lisboa contada pelos dedos” Montepio Geral,2001
Com este livro, “Lisboa Contada pelos Dedos", Baptista-Bastos ganhou o Grande Prémio de Crónica da Associação Portuguesa de Escritores. O livro reúne cerca de oitenta crónicas publicadas em jornais e revistas como o Diário Popular, República, Jornal de Notícias, Público, Tempo Livre e Bola.
Sobre o Prémio, Baptista Bastos afirmou: “Fiquei satisfeito e muito lisonjeado. Este
prémio é importante porque legitima uma velha batalha da literatura portuguesa.
A crónica é um género superior da literatura, que em Portugal só pode ser
publicada em jornais.”
Em qualquer espaço, a nossa casa, onde o afecto, o amor levanta voo como as aves!...
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