terça-feira, 30 de novembro de 2021

Bicentenário de Fiódor Dostoiévski

 
8 Life Lessons from Fyodor Dostoievsky (plus 5 writing tips) 
Fiction Beast

"As grandes obras de arte passam através de nós como ventos de tempestade,  escancarando as portas da percepção, forçando a arquitectura das nossas crenças com os seus poderes transformadores."
        George Steiner 
 
Fiódor Dostoiévsky nasceu há duzentos anos, em Novembro de 1821.  Se há escritores  a celebrar, este grande romancista  russo está na primeira linha. Muitas características, que fazem da sua obra intemporal e valiosa, o obrigam. Foi o grande percursor e inspirador da Literatura  que se lhe seguiu. Continua a ser uma  fonte de inspiração, de aprendizagem, de reflexão. O amor, o ódio, a pobreza, a riqueza, o crime,  a perda,  a morte,  ou seja,  a verdadeira experiência humana povoam as páginas dos seus romances. As suas personagens afirmam-se, fazem-se ouvir, quase dialogam  independentes do narrador, numa polifonia  assertiva que se contradiz ou se expõe desnuda. Uma verdadeira teia de personagens.
O poder transformador da grande obra de Dostoiévsky  é  e foi real. Marcou gerações novas de escritores e de leitores ávidos e fiéis.
Há uma enorme variedade de textos  sobre o autor de Os Irmãos Karamázov​​​​​​​ (1879),  a sua última obra ,  considerada a sua obra-prima, porém, tendo em conta o espaço , optámos pelo texto que se segue.
Fiódor Dostoiévski, o pai do existencialismo literário
por Lucas Brandão
"Fiódor Dostoiévski foi um dos escritores mais emblemáticos de todos os tempos, tanto pelo impacto que teve nas correntes romancista e existencialista como na influência que viria a granjear nas gerações vindouras, integrando-se aqui nomes como Sigmund Freud ou Friedrich Nietzsche. De nacionalidade russa, o autor é considerado como um dos pilares da cultura deste país ao lado do também autor Lev Tolstoi. Uma obra marcada pela controvérsia dos seus temas e pela irreverência da sua abordagem, percorrendo tipologias de situações reais  como manifestações de loucura, homicídios e suicídios.
Nascido em Moscovo, em 1821, Dostoiévski iniciou a sua carreira literária após se ter licenciado em Engenharia e ter estudado autores como William Shakespeare, Victor Hugo e especialmente Honoré de Balzac. Em 1846, escreveu a sua primeira obra designada por “Gente Pobre”, e foi contundentemente elogiado pelos então mais famosos críticos literários do seu país, como Bielinski. Após outras obras de menor notoriedade e de acabar exilado na Sibéria por ter sido  associado a um grupo conspirativo denominado Círculo Petrashevski, adquiriu uma bagagem empírica de grande valor para os subsequentes episódios da sua carreira literária. No romance  “O Idiota” (1869), o autor constrói  um príncipe que padece da epilepsia, doença  que atormentou o autor russo durante toda a sua vida. Em “Recordações da Casa dos Mortos” (1862), expressa as segregações sociais que existiam mesmo dentro da prisão,onde o escritor esteve encarcerado e algumas das suas vivências dentro desta.
No entanto, as suas duas grandes obras, "Crime e Castigo” (1866) e “Os Irmãos Karamazov” (1879), viriam nos anos seguintes. De carácter bem mais metafísico e filosófico, são duas obras que marcaram profundamente os postulados dos teóricos que pontificaram nas décadas seguintes nas mais diversas temáticas. Na primeira obra, é narrada a história de um jovem que comete um homicídio e se vê limitado para prosseguir com a sua vida depois desse marcante episódio. É aqui que se compaginam os primeiros vestígios existencialistas, com Dostoiévski a suscitar a ideia de atingir a salvação através do sofrimento e a dar o mote para que rostos como Jean-Paul Sartre, George Orwell ou Aldous Huxley pudessem moldar as suas alegorias filosóficas. Já na segunda, caraterizada por Sigmund Freud como “a maior obra da história” (o “Complexo de Édipo” teve raízes neste conto), o russo atinge o auge da sua carreira artística ao expor as relações entre três irmãos e o seu pai, movidos pela complexidade psicológica e emocional inerente ao ser humano. Ao mesclar uma série de noções e de personificações, o escritor abre as portas para o mundo do subconsciente e para a nova vaga de concepções filosóficas do Homem, das suas intenções, das circunstâncias subjacentes a esta e da sua conduta.
De uma abrangência extraordinária e de uma acuidade social bastante afinada, os romances de Dostoiévski abrem a discussão de conceitos que até então poucos se tinham atrevido a debater, tais como as causas patológicas que levam à corporização dos suicídios e da autodestruição de um dado sujeito. Ao invés de situar a narrativa somente numa perspectiva mundana e superficial, o russo arrisca ao aventurar-se no campo da metafísica e no refúgio do Homem a esses preceitos e entidades intangíveis. Reflectindo subtilmente na ortodoxia e na intransigência czarista, Fiódor aborda também os valores essencialmente espirituais que se esmorecem e na emergência da ganância, do orgulho e do suicídio como via de escape para quem não percepciona  a fuga  possível a uma sociedade obtusa e intrincada. Apesar de Dostoiévski não se coibir de criticar as vicissitudes russas, o escritor moldava as suas personagens à imagem das várias camadas sociais da sua nação, como os cristãos modestos, os intelectuais insurgentes, os gananciosos cínicos e os existencialistas radicais que atingiam o patamar do niilismo. Tal como Lev Tolstoi, celebrizou alguns mitos tais como os limites da vida e morte e da razão e lógica associados a elementos da natureza. A componente espácio-temporal acaba por se subjugar à envolvência das personagens e às suas idiossincrasias, passando despercebida na dinâmica literária do autor.
Impregnado e contextualizado num decadente czarismo, Fiódor Dostoiévski teve um papel de enorme relevância ao expor as limitações políticas e sociais da Rússia do século XIX, através do seu trabalho literário. Não obstante esta sua faceta, o autor destacou-se sobretudo pelo cariz filosófico que conferiu às suas obras, assumindo com arrojo a explanação de emergentes correntes de pensadores e a sua compaginação em romances. Estabelecendo a ponte entre o tradicional romantismo e o incipiente existencialismo, Dostoiévski foi o embaixador de importantes intelectuais das décadas vindouras e abriu as portas para um novo mundo que, até então, era pouco mais que tabu. O russo foi um dos pioneiros no desmascarar dos preconceitos da sociedade e na exposição da sua decadência amorfa e entrópica. Foi com base nas suas obras, que Nietzsche, Freud, Sartre e Camus puderam questionar a sociedade e contemplar os seus contemporâneos com novas visões da realidade. Fiódor Dostoiévski afirmou-se, assim, como um despertador de consciências e como o apresentador de um novo mundo, onde a razão tentou explicar a vida e até a emoção.” 
Lucas Brandão,    publicado em Comunidade, Cultura e Arte, (13 Novembro, 2017)

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Aviso talvez já tardio


Aviso talvez já tardio
por Eugénio Lisboa

Acabo de receber uma bela reportagem fotográfica sobre África, onde vivi, ao todo, trinta e oito anos inesquecíveis. Mas, a esta reportagem sobre o meu continente natal, fiz o doloroso comentário que transcrevo e que em muito transcende o que se passa no continente africano:

"A África é colorida, quente, generosa e mal governada. Foi mal governada por brancos e é pior governada por negros. Os brancos exploravam, os negros saqueiam. Mas a África é grande e bela, os homens é que dão cabo dela. Gosto mais do leão, da gazela, do elefante, da girafa, do camelo, do que gosto do homem. Os bichos não destroem a vida no planeta. Os bichos estão só no planeta. Os homens apropriaram-se do planeta. Quando o homem se tornou inteligente, a vida no planeta começou a ficar ameaçada. Quando o homem se tornou muito inteligente, a vida no planeta começou a definhar. Quando o homem se tornou ainda mais inteligente, a vida no planeta começou a chegar ao fim. Na obra de Dostoiewsky, o homem inteligente é uma representação do diabo. Talvez tenha razão. Aliocha era a bondade que salva e cura, mas Ivan era a inteligência que perverte e destrói. São duas personagens de OS IRMÃOS KARAMAZOV, espantosa fábula premonitória."
Eugénio Lisboa, 28.11.2021

domingo, 28 de novembro de 2021

Ao Domingo Há Música


A música é o verbo do futuro.
Victor Hugo

A música  é ruido pensante.
Victor Hugo

Sem a música, a vida seria um erro.
Friedrich Nietzsche

Há  cantoras de excepcional talento. Reinventam-se, quando lançam um novo álbum ou quando interpretam novas versões de peças famosas. Se tínhamos concluído que nada de surpreendente nos trariam, tudo se altera e ficamos, de novo, rendidos às sua vozes, logo que se deixam escutar .
Adele, em   Easy On Me (Official Video).
Diana Krall , em  Sorry Seems to Be the Hardest Word . 
Sinne Eeg , em  The Windmills Of Your Mind.
Vozes : Sinne Eeg. Piano: Jacob Christoffersen. Bateria: Morten Lund. Contrabaixo: Morten Ramsbøl.
 

sábado, 27 de novembro de 2021

Parabéns, Mãe


Esse tempo era bom...
Há tanto, coração!
Mas é lembrá-lo e tê-lo
mais uma vez à mão.
Sebastião da Gama, Pelo sonho é que vamos 
Querida Mãe
É neste dia que ponho em palavras escritas tanto daquilo que já lhe disse e que quero repetir.  Diz o poeta que esse tempo era bom. Roubei-lhe essas palavras  porque a memória de um tempo com a Mãe está sempre presente em mim. Como não o recordar? Como não o sentir? Como  o não ter mais uma vez à mão? Creio que nunca deixo de o vislumbrar. Não sei se foi bom todo esse tempo, sei apenas que tê-la como mãe foi uma ventura sem medida. A Mãe quis-me desde o primeiro dia. E só isso bastaria para ser uma fortuna inexcedível. Mas não  ficou por aí. Abriu-me caminho e não deixou de o supervisionar sem tutelar os meus passos. Permitiu que caminhasse , que fosse gente e me autonomizasse sem que me perdesse ou me afundasse numa solidão inesperada. Esteve comigo,  numa partilha de bem querer. E foi tanto o caminho percorrido, que deixar de a ter presente foi , então, a dor mais solitária que me tomou. A sua ausência nunca fora dimensionada. E a fragilidade da vida nunca uma realidade palpável entre nós. 
Não, Mãe, não venho falar da finitude. Quero, isso sim, falar  da vida e de tudo o que ela nos deu e pode dar. Hoje é o dia do seu aniversário. Um dia a celebrar.  Fizemos muitas celebrações deste dia. A Mãe sorria-nos, logo que descobria que todos a queríamos por perto. Juntávamo-nos  para, em uníssono,  a abraçar, a mimar por ser quem era: a nossa Mãe. Se não era a  melhor,   era  única . Aquela que  cantava   e reinava no nosso coração. Aquela que será sempre a Mãe mais desejada.  Como esse tempo era bom!
Parabéns, Mãe.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Quando o virtuosismo é Música

 

La musique est la langue des émotions.
             Emmanuel Kant
La musique, c'est du bruit qui pense.
             Victor Hugo

Yo-Yo Ma e  Kathryn Stott, em   The Swan, de Camille Saint-Saëns, em "Carnival of the animals".

   
Yo-Yo Ma , em "Poem for Carlita", de Mark O'Connor
   
"O trio que faz história, Yo Ma, Edgar Meyer e Mark O'Connor,  executa a composição de O'Connor "Poema para Carlita", no Avery Fisher Hall, no Lincoln Center, em Nova York. Os três virtuosos instrumentistas de cordas tocaram esta nova música clássica americana com tanta profundidade, paixão e detalhes que o público de Nova York explodiu em ovação, após a final de Yo-Yo Ma - nota harmónica quase silenciosa. Deve-se observar a expressão de admiração no rosto de O'Connor, quando  olha para Ma na conclusão da peça , impressionado com as habilidades interpretativas do violoncelista da sua música. É evidente que esta interpretação atingiu um novo lugar para o trio e um novo nível para o jogo clássico americano de cordas. 
Publica o  Chicago Tribune:  Com base nas duas peças mais extensas que o trio tocou na segunda-feira, "Vistas" e "Poema para Carlita", parece que a composição de O'Connor atingiu um nível novo e mais profundo. "Poema para Carlita" foi ainda mais comovente. Embora completamente tonal, o perfil harmónico do tema principal trouxe à mente os quartetos de cordas de Shostakovich, em que a beleza foi misturada com momentos de tensão inquietante. O trabalho tem potencial para se tornar um clássico, especialmente se arranjado para um conjunto mais típico, como um quarteto de cordas. " David Royko, Chicago Tribune

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Das sacrossantas responsabilidades da condição de mulher


"Recordava como, no tempo em que era homem, exigia das mulheres que fossem obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas. «Agora vou ter que pagar na minha própria carne esses desejos», reflectiu; «porque as mulheres não são ( a ajuizar pela minha breve experiência de pertença ao sexo) obedientes, castas, perfumadas e primorosamente ataviadas por natureza. Só podem alcançar essas graças, sem as quais não gozam nenhum dos prazeres da vida, mediante a mais enfadonha disciplina. Há o penteado», pensou, «que só por si me vai roubar cada manhã uma hora; há o ver-se ao espelho, mais uma hora; há o espartilho e as rendas; o banho e o pó-de -arroz; há o mudar de vestido, trocando o cetim pela renda e a renda pela seda; há o ser casta todos os dias do ano...». Aqui bateu o pé com impaciência, exibindo uma ou duas polegadas da perna. Um marinheiro empoleirado no mastro, que por acaso olhou para baixo neste instante, sobressaltou-se tão violentamente que perdeu o pé e só por um triz se salvou. «Se ver os meus tornozelos pode custar a vida a uma honesta criatura que com certeza tem mulher e filhos para sustentar, manda a mais elementar humanidade que os traga sempre cobertos», pensou Orlando. As pernas eram, porém, um dos seus maiores encantos. E pôs-se a pensar na bizarra situação a que se chegou quando a mulher é obrigada a cobrir os seus encantos para que um marinheiro se não despenhe do topo de um mastro. «Que os leve a peste!», disse, dando-se conta, pela primeira vez, daquilo que noutras circunstâncias teria aprendido desde criança, ou seja, das sacrossantas responsabilidades da condição de mulher."
Virginia Woolf, in Orlando - uma biografia, Relógio d'Água Editores, pp.111-112

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Os Versos do Capitão

TEU RISO

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, porém nunca
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que debulhas,
a água que de repente
em tua alegria estala,
essa onda repentina
de prata que te nasce.

De áspera luta volto
com olhos fatigados
por vezes de ter visto
a terra que não muda,
mas ao chegar teu riso
sobe ao céu me buscando,
e abre para mim todas
as portas desta vida.

Amor meu, no momento
mais escuros desata
o teu riso, e se acaso
vês que meu sangue mancha
as pedras do caminho,
ri, porque teu riso
será, em minhas mãos,
como uma espada fresca.

Junto ao mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e em primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Que te rias da noite,
ri do dia, da lua,
das ruas tortas da ilha,
ri do desajeitado
rapaz que te quer tanto,
porém quando mal abro
os olhos, quando os fecho,
quando os meus passos vão,
quando os meus passos voltam,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
senão, amor, eu morro.
Pablo Neruda, in “Os versos do capitão”. [tradução Thiago de Mello]. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004. pp.28-31.

O Amor por Matilde e Os Versos do Capitão
"E vou contar-lhes agora a história deste livro, (" Os versos do Capitão"), um dos mais controvertidos daqueles que escrevi. Foi durante muito tempo um segredo, durante muito tempo não ostentou o meu nome na capa, como se o renegasse ou o próprio livro não soubesse quem era o pai. Tal como os filhos naturais, filhos do amor natural, «Los versos del capitán» eram, também, um «libro natural».
Os poemas que contém foram escritos aqui e ali, ao longo do meu desterro na Europa. Foram publicados anonimamente em Nápoles, em 1952. O amor por Matilde, a nostalgia do Chile, as paixões cívicas, recheiam as páginas desse livro, que teve muitas edições sem trazer o nome do autor.
Para a 1ª edição, o pintor Paolo Ricci conseguiu um papel admirável e antigos tipos de imprensa «bodonianos», bem como gravuras extraídas dos vasos de Pompeia. Com fraternal fervor, Paolo elaborou também a lista dos assinantes. Em breve apareceu o belo volume, com tiragem limitada a cinquenta exemplares. Festejámos largamente o acontecimento, com mesa florida, «frutti di mare», vinho transparente como água, filho único das vinhas de Capri. E com a alegria dos amigos que amaram o nosso amor.
Alguns críticos suspicazes atribuíram a motivos políticos a publicação anónima do livro. «O partido opôs-se, o partido não o aprova», disseram. Mas não era verdade. Felizmente, o meu partido não se opõe a nenhuma expressão da beleza.
A única verdade é que não quis, durante muito tempo, que aqueles poemas ferissem Delia, de quem estava a separar-me. Delia del Carril, passageira suavíssima, fio de aço e mel que me atou as mãos nos anos sonoros, foi para mim durante dezoito anos uma companheira exemplar. O livro, de paixão brusca e ardente, atingi-la-ia como uma pedra atirada à sua terna compleição. Foram estas, e não outras, as razões profundas, pessoais e respeitáveis do meu anonimato.
O livro tornou-se depois, ainda sem nome e apelido, num homem, homem natural e valoroso. Abriu caminho na vida e eu tive, por fim, de o reconhecer. Andam agora pelos caminhos, quer dizer, pelas livrarias e as bibliotecas, os «versos do capitão» assinados pelo capitão genuíno.
Pablo Neruda, em “Confesso que Vivi,  Memórias”, Publicações Europa-América, Maio de 1975,  pp. 210, 211

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Para onde vou?

 " Donde venho eu e donde vem o mundo em que vivo e do qual vivo? Para onde vou e para onde vai tudo o que me rodeia? Que significa isto? Tais as perguntas  do homem assim que se liberta  da embrutecedora necessidade de ter de sustentar-se materialmente. E se virmos bem, veremos que sob estas perguntas não está tanto o desejo de conhecer um porquê quanto o de conhecer o para quê; não da causa , mas da finalidade. É conhecida  a definição que Cícero dava da filosofia, chamando-a  «ciência das coisas divinas e das causas humanas que nela se contêm», rerum divinarum et humanarum, causarumque quibus hae res continentur ; mas na realidade essas causas são, para nós , fins. E a Causa Suprema, Deus, que é senão o Supremo Fim? O porquê só nos interessa em função do para quê; só queremos saber donde viemos para melhor podermos averiguar para onde vamos.
(...) Porque quero eu saber donde venho e para onde vou, donde vem e para onde vai o que me rodeia, e que significa tudo isto? Porque não quero morrer totalmente, e quero saber se  hei-de ou não morrer definitivamente. E se não morro, que será de mim? E se morro, já nada tem sentido. E há tês soluções; a) ou sei que morro totalmente, e então é o desespero irremediável; ou b)  sei que não morro totalmente, e então é a resignação; ou c) não posso saber nem uma coisa nem outra, e então é a resignação no desespero, ou este naquela, uma resignação desesperada, ou um desespero resignado, e a luta.
« O melhor é», dirá algum leitor, «pôr de lado o que não se pode conhecer.» É isso possível? No seu formosíssimo poema  O Sábio Antigo ( The ancient sage) , Tennyson dizia: « Não podes provar o inefável  ( the nameless) , ó meu filho, nem podes provar o mundo em que te moves; não podes provar que és só corpo, nem podes provar que és só espírito, nem que és os dois num só; não podes provar que és imortal, nem mesmo que és mortal; sim, meu filho, não podes provar que eu, que falo contigo, não és tu que falas contigo mesmo,  porque nada digno de provar-se pode ser provado nem des-provado, pelo que sê prudente, agarra-te sempre à parte mais ensoalhada da dúvida e trepa à Fé para lá das formas da Fé!» Sim, talvez, como diz o sábio, nada digno de ser provado possa ser provado ou des-provado.
for nothing worthy proving can be proven,
not  yet disproven;
Mas  poderemos nós deter esse instinto que leva o homem a querer conhecer e, sobretudo, a querer conhecer aquilo que o leva a viver, e a viver sempre?  A viver sempre, não a conhecer sempre como o gnóstico alexandrino. Porque viver é uma coisa  e conhecer outra, e, como veremos , talvez haja  entre elas uma tal oposição que possamos dizer que tudo o que é vital é anti-racional, e não só irracional, e tudo o que é racional, antivital. E esta é a base do sentimento trágico da vida."
Miguel de Unamuno, in Do Sentimento Trágico da Vida nos homens e nos povos,  Círculo de Leitores, Setembro de 1989, pp.30,31,32

domingo, 21 de novembro de 2021

Ao Domingo Há Música


Hoje eu encontrei a Lua
Antes dela me encontrar
Me lancei pelas estrelas
E brilhei no seu lugar
Derramei minha saudade
E a cidade se acendeu
Por descuido ou por maldade
Você não apareceu

Hoje eu acordei o dia
Antes dele te acordar
Fui a luz da estrela-guia
Pra poder te iluminar
Derramei minha saudade
E a cidade escureceu
Desabei na tempestade
Por um beijo seu

Nem a Lua, nem o Sol, nem Eu
Quem podia imaginar
Que o amor fosse um delírio seu
E o meu fosse acreditar

Hoje o Sol não quis o dia
Nem a noite o luar.

Se  o Sol não quis o dia /Nem a noite o luar , Música não teimou em  chegar. E, para não permitir  qualquer borrasca,  saltou as fronteiras . Do Brasil , traz-nos uma voz ímpar, que se junta a outras,  para nos encantar. 

Maria Bethânia e Lenine, em  "Nem o Sol, Nem a Lua, Nem Eu" (Ao Vivo) , do Álbum Noite Luzidia.
Chico Cesar & Maria Bethânia, em  Onde estará o meu amor.
 

Como esta noite findará 
E o sol então rebrilhará 
Estou pensando em você 
Onde estará o meu amor? 
Será que vela como eu? 
Será que chama como eu? 
Será que pergunta por mim? 
Onde estará o meu amor?
 Se a voz da noite responder 
Onde estou eu, onde está você 
Estamos cá dentro de nós sós 
Onde estará o meu amor? 
Se a voz da noite silenciar
Raio de sol vai me levar 
Raio de sol vai lhe trazer 
Como esta noite findará 
E o sol então rebrilhará
 Estou pensando em você 
Será que vela como eu?
 Será que chama como eu? 
Será que pergunta por mim? 
Se a voz da noite responder 
Onde estou eu, onde está você
Estamos cá dentro de nós sós 
Onde estará o meu amor?
Se a voz da noite silenciar 
Raio de sol vai me levar
 Raio de sol vai lhe trazer
Será que pergunta por mim?
Onde estará o meu amor?

 
Maria Bethânia e Chico Buarque,  em "Sem Fantasia" (Ao Vivo) , do Álbum  Noite Luzidia

sábado, 20 de novembro de 2021

A Festa antes do tempo

 
A festa antes do tempo
(Malhas que o provincianismo tece)
por Eugénio Lisboa
 
A minha maneira de brincar
é dizer a verdade. É a brinca
- deira mais divertida do mundo.
George Bernard Shaw
 
Se, por um daqueles artifícios
cómodos, pelos quais simplifi-
camos a realidade com o fito
de a compreender, quisermos
resumir numa síndroma o mal
superior português, diremos que
esse mal consiste no provincianismo. 
Fernando Pessoa
  
"No dia 16 de Novembro do próximo ano cumprem-se cem anos sobre o nascimento de José Saramago, perdão, do “nosso único Nobel”, como a nossa comunicação social tanto se derrete a dizer. Sim, convém roer bem este osso raro e apetecível, que tanto afaga a nossa autoestima e nos leva de novo para a grandeza dos descobrimentos! Seja como for, seria normal que as celebrações desse aniversário começassem em 16 de Novembro de 2022 e se prolongassem por um ano, até Novembro de 2023. É como se costuma fazer. Mas, desta vez, a impaciência lusíada foi tão grande, o desejo de se agitar freneticamente o milagre Nobel, em nada inferior ao outro de Fátima, foi tão impulsivo, que aí estamos nós, avançando de um ano a efeméride, e a tocar, com acintosa paixão, o tambor da glória. Tudo se vai fazer, em grande, para que lá fora se não esqueça que em Portugal também há um Nobel da Literatura! Com Saramago, nas letras, e Ronaldo, na bola, não há desculpa para depressões nem para vendas escandalosas de ansiolíticos. Os portugueses, quando celebram, não têm mãos a medir. Aperte-se o cinto, poupe-se no pão e nas ligaduras, mas faça-se um arraial de encher o olho. Uma festarola destas, em grande, é tão indispensável à imagem do país, como a construção de um novo estádio de futebol!  Os estrangeiros vão ver como é! Camões, em 1980 não teve nada de parecido com isto, mas também é bom de ver que o nosso Luis Vaz é muito bom, é muito bom, mas não teve nunca o Nobel. Essa é que é essa. Pode dizer-se que, no tempo em que Camões comeu o pão que o diabo amassou, não havia Prémio Nobel. Pois sim, mas a julgar por aqueles que os suecos têm desprezado, está muito longe de ser líquido que o nosso Luís Vaz o abichasse. Além do mais, o facto de ter sido castigado com um exílio para a Índia, de ter estado desempregado na Ilha de Moçambique um ror de tempo a coçar os tomates (e a defecar para cima do Índico, Cf. Jorge de Sena) e de ter andado por Lisboa, numa situação social mais do que duvidosa, a viver de uma tença e de esmolas, decerto incomodaria o olfacto fastidioso dos académicos de Estocolmo. Saramago, não! Saramago chegou e sobrou para o Prémio e os portugueses não cabem em si, de contentes. De aí, a festança que se aproxima. O Parlamento vai andar num afogadilho a produzir legislação punitiva, para quem se atrever a não gostar de Saramago. Mais: vai, parece, produzir legislação para OBRIGAR todos os portugueses a gostarem ostensivamente do autor de MEMORIAL DO CONVENTO. Sob pena de um severo castigo. De resto, esta ideia de castigar os dissidentes começou logo por altura em que o galardão foi atribuído a Saramago. Lembro-me de uma sessão qualquer em que o muito lido Eduardo Prado Coelho, num acesso de entusiasmo patriótico, apontou um dedo ameaçador à audiência que o escutava e disse: “Agora, sempre quero ver se alguém se atreve a criticar Saramago!” A ameaça já era bastante grotesca e indigna de um académico, mas o pior foi a estrondosa salva de palmas que ela desencadeou. Eu fiquei muito quieto, no meu lugar e não aplaudi. Intrigado, um meu vizinho perguntou-me: “Não gosta do Saramago?” Respondi-lhe: “Do que não gosto é de ser ameaçado de punição, caso não goste.” Espantosa descoberta, a de Prado Coelho: um escritor, ao receber o Prémio Nobel fica automaticamente imune à crítica! EPC disse, ao longo da sua vida, muitas coisas singulares, mas esta foi a cereja em cima do bolo. Saramago, os demónios que tu acordas! Estávamos a voltar ao tempo das ditaduras, as quais não só nos impediam de gostarmos de certas coisas, como nos obrigavam a gostar de outras. O Eduardo PC, afogueado em erotismo patriótico, já não distinguia alhos de bugalhos. Sem dar por isso, escorregara para o protocolo salazarento. Acontecia-lhe muito, porque lia tanta coisa, que, como, com muita graça, disse a Sophia, o Eduardo sabia mais do que aquilo que percebia. Enfim, o Nobel outorgado a Saramago tem o condão de produzir, entre nós, estas coisas excessivas.

Falemos agora um bocadinho mais a sério. Não vou aqui discutir se Saramago é um bom escritor, um escritor razoável ou um escritor medíocre promovido por uma máquina bem oleada. Não interessa agora, até porque os juízos literários são muito subjectivos e escorregadios. Já um dia, quando mostrava sincera perplexidade pela promoção obscena que se andava a fazer de um jovem escritor e de um livro seu, de que se não aproveitava um único verso, alguém me observou: “Mas Você é um em um milhão, ao não admirar este escritor…” A este tipo de argumentação, que a mais rudimentar lógica rejeita, já Bertrand Russell respondera nestes termos luminosos: “O facto de uma opinião ser amplamente compartilhada não é nenhuma evidência de que não seja completamente absurda; de facto, tendo em vista a maioria da humanidade, é mais provável que uma opinião muito difundida seja tola do que sensata.” Basta lembrarmo-nos de que, durante muitos séculos, a esmagadora maioria dos homens tinha a certeza de que a Terra era plana, que o Sol girava em torno da Terra e que os antípodas andavam de cabeça para baixo e, no entanto, essa esmagadora maioria estava errada. Foi por os académicos do Brasil nunca terem deparado com estas palavras do grande lógico matemático, que Paulo Coelho foi parar à Academia Brasileira de Letras: eram tantos a comprá-lo e a lê-lo e a dizerem que era muito bom! Que haviam de fazer os académicos brasileiros se não estender-lhe o tapete? Quem se atreve a dispensar uma estrela mediática? Um homem traduzido em dezenas de línguas? Coragem, sim, mas devagar! Além disso os homens de letras, a quem falta, deploravelmente, um mínimo de formação científica, são normalmente muito assertivos, até porque acham que as chamadas ciências exactas são mesmo exactas, do género dois e dois serem quatro. Só que isso está longe de ser assim e, voltando ao grande lógico matemático, recomendo este aforismo dele, para uso dos dogmáticos das letras: “Todas as ciências exactas são dominadas pela ideia de aproximação.”
Voltemos então ao Nobel de Saramago e aos orgasmos de admiração parola que desencadeou no nosso país, não excluindo nem as elites intelectuais nem o próprio Presidente da República, Jorge Sampaio (um homem por quem sempre tive a maior estima, admiração e gratidão). Mas a verdade é que, em toda a história do Prémio Nobel, não me consta que o Presidente dos Estados Unidos tenha corrido para Estocolmo, por ocasião do Nobel ganho por O’Neill, Faulkner ou Hemingway, nem a Rainha de Inglaterra, tenha arrastado as suas vestes reais, desde o Palácio de Buckingham até aos frios nórdicos, para assistir à coroação nobélica do seu taciturno súbito, T. S. Eliot (que ela achava chato, soturno e incompreensível). Mas como tudo é diferente em Portugal! Não só o amor, celebrado pelos cardeais de Júlio Dantas, mas também a admiração, celebrada de cardeal para baixo! Somos diferentes, eis a questão. Quando admiramos, admiramos aos gritos e detestamos vesgamente quem ponha uma tímida reserva. Dizer-se que não se gosta lá muito deste ou daquele romance do miraculado escritor é crime de lesa idolatria. Porque é a idolatria que, nestas alturas, entra em vigor e a idolatria odeia a reserva cautelosa. Em 1998, ano do milagre, quem não idolatrasse Saramago era inimigo da pátria. Quem, em colóquio ou viagem de turismo cultural, não metesse Saramago era tido por odioso sabotador do êxtase nacional. Prado Coelho, promovido a inquisidor-mor, estava severamente vigilante. Nada de críticas! Nada de relaxações! O momento era de adoração e de justificada histeria.
A mim, que lera alguma coisa e que vivera quase duas décadas em Londres, onde a recepção de um Nobel de Literatura ou outro era um acontecimento extremamente sóbrio e discreto, durante o qual a comunicação social noticiava mas não se extasiava provincianamente, o espalhafato lusíada confesso que me incomodou. Mais do que um bocadinho. Que diabo, toda a intelectualidade adulta sabe que as decisões de um júri são apenas as decisões de homens falíveis.  É sempre agradável receber um prémio, mas um escritor consciente das fragilidades humanas, deve sempre fazê-lo, with a pinch of salt, como dizem os britânicos. Os dezoito suecos que presidem ao Nobel de Literatura, não possuem especiais poderes de avaliação. São homens e, como homens, são sujeitos a lobbies, interesses, limites de conhecimento, preconceitos e ocasionais lapsos de juízo crítico. Não é pecado de maior. É só um facto da vida. Compreende-se que o prémio seja apetecível pelo seu avultado valor monetário. Já o seu prestígio intrínseco é muito mais difícil de compreender e justificar: errare humanum est, mas errar à escala a que os júris do Nobel têm errado é digno de mais que algum espanto. E não só pelo que diz respeito ao prémio de Literatura. Muita gente não sabe, mas o júri do Nobel da Física não se atreveu a dar o Prémio a Einstein, pela teoria da Relatividade, que o tornou famoso e revolucionou a Física pós-Newton: atribuíram-no aos seus trabalhos sobre o efeito fotoeléctrico, provavelmente por se não sentirem muito à vontade com a teoria da relatividade (a restricta e a generalizada), à qual não chegavam. Em Literatura, a Academia Sueca consagrou, é certo, alguns grandes escritores, como Shaw, O’Neill, Pirandello, Anatole France, Thomas Mann, Herman Hesse, André Gide, Roger Martin du Gard, Bertrand Russell, Hemingway, Faulkner, Camus e não muitos mais. Em compensação, por motivos os mais variados mas que nada tiveram a ver com mérito literário, galardoaram um enormíssimo número de escritores francamente menores, a maioria dos quais está hoje esquecida, deixando de fora escritores notabilíssimos (alguns, verdadeiros gigantes), como Henry James, Mark Twain, Robert Frost, Robert Lowell, Emily Dickinson, Truman Capote, Arthur Miller, Tennessee Williams, Edward Albee, John dos Passos, Virginia Woolf, Aldous Huxley, W. H. Auden, Ortega y Gasset, Unamuno, Garcia Lorca, Pio Baroja, Karen Blixen, Strindberg, Alberto Moravia, Ibsen, Zola, Jorge Luis Borges, Graham Greene, Joseph Conrad, Lawrence Durrell, Phillip Roth, Proust, Claudel, Valéry, Malraux, Saint-Exupéry, Jean Anouilh, Rilke, Kavafis, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Régio, Torga, Sena, Sophia, Herberto Hélder. Deixo de fora ainda alguns, mas não quero alongar demais a lista.
Tudo isto nos deve conduzir a aceitar sempre com alguma sobriedade os juízos valorativos que nos chegam da Escandinávia, não nos deixando cair em tentação de idolatria. Lembrem-se da cáustica advertência do irlandês George Bernard Shaw (que aceitou o diploma e a medalha do Nobel, mas recusou galhardamente o dinheiro): “O selvagem adora ídolos de madeira e pedra, o homem civilizado, ídolos de carne e osso.” Eu prefiro não adorar nem uns nem outros. Admirá-los, sim; adorá-los, nunca." 
17.11.2021
Eugénio Lisboa, em Ensaio (prosa inédita)

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Viagens IV

 O mundo é um imenso livro do qual aqueles que nunca saem de casa lêem apenas uma página.
Agostinho  de Hipona
 
Rever o mundo,  em 2020, através de 34 vídeos belíssimos,  gravados pela Amazing Paces on our Planet. A música é de Herrin - Transcendence 
A Amazing Places on our Planet  dedica este vídeo à memória de Herrin (Herrin Larkan) - grande músico, ser humano e amigo, que partiu inesperadamente nesse ano de 2020. Herrin acreditava que a música é a melhor maneira de viajar.  Reutiliza-se, aqui,  a peça que ele escreveu originalmente para o vídeo da Nova Zelândia.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Cantar em português


Para conhecer um povo, deve-se escutar a sua Música.
Platão

O ano está a terminar , mas a mudança acontece. Novos poemas, novas canções . Eis, pois, uma longa  oferta para escolher ao jeito do momento. São vozes portuguesas que celebram a Música.

Carminho, em  Escrevi Teu Nome No Vento .
 
Marco Rodrigues, em  Amar Para Sofrer.
 
Bárbara Bandeira e Carminho, em Onde Vais .
( Letra: Ivo Lucas, Bárbara Bandeira, Carminho
Música: Bárbara Bandeira, Ivo Lucas, Carminho, Phelipe Ferreira, Tyoz
Produção: Bárbara Bandeira, Carminho, Sebastian Crayn . Gravado em: Atlântico Blue Studios. Engenheiro de captação: Bernardo Estrela, Sebastian Crayn. Mix: Sebastian Crayn. Assistente: Bernardo Estrela Master: André Tavares. Piano: Daniel Lima. Guitarra: Phelipe Ferreira . Cordas: Tiago Neto - 1° violino Vasco Broco - 2° violino Teresa Fernandes - viola Nelson Ferreira - violoncelo.)
  
CAMANÉ , em  Que Flor Se Abre No Peito.
(Letra/Música: Pedro Abrunhosa. Voz: Camané .Guitarra Portuguesa: José Manuel Neto. Viola de Fado: Carlos Manuel Proença. Contrabaixo: Carlos Bica. Gravado no Atlântico Blue Studios por André Tavares. Misturado e masterizado por André Tavares e Becas do Carmo.  Produção musical e arranjos de Pedro Moreira. Produção executiva de  Becas do Carmo.)
 
Dulce Pontes, em  Amapola ( canção extraída do novo Álbum Perfil , a ser lançado em Fevereiro de 2022) .
(Letra e Música: Jose Maria Lacalle Garcia / Adaptação: Dulce Pontes. Arranjo: Dulce Pontes/Yelsy Heredia. Dulce Pontes - Voz. Luis Guerreiro - Guitarra Portuguesa. Diogo Clemente - Guitarra acústica. Yelsy Heredia - Contrabaixo .)
 
Mariana Reis , em "engana-me hoje, eu deixo" , single de estreia , retirado do EP "coisas por dizer".

O que canta o canto?


O que canta o canto?

O poeta canta só por cantar?
O canto que ele canta não tem objecto?
Cantar é uma forma de acabar?
Um dizer adeus de modo discreto?

O canto é isso e é mais do que isso:
O canto é fogo que tudo aquece,
O canto é o dito e o omisso,
O canto ouve-nos e não esquece!

O canto conhece o que nos devora,
Fustiga, acintoso, os nossos demónios
E é na fogueira que ele se demora!

O canto incentiva pandemónios,
Mas inventa bizantinos amores
Inesperados e multicolores!
16.11.2021
Eugénio Lisboa, ( Poesia inédita)

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Da impossibilidade de conhecer a História dos Homens

 


DA IMPOSSIBILIDADE DE CONHECER
A HISTÓRIA DOS HOMENS
(UM APÓLOGO)
por Eugénio Lisboa
« Anatole France foi, no último quartel do século XIX e primeiro quartel do século XX, talvez o mais admirado escritor francês e o mais internacionalmente conhecido. A Academia sueca ansiava por dar-lhe o Prémio, pois era escandaloso não galardoar o mais óbvio herdeiro de Voltaire. Mas andou a arrastar os pés, por puras razões de cobardia e paroquialismo: o facto de Anatole ter uma história de grande amor extra-conjugal, com Madame Arman de Caillavet. Experiência profunda e duradoura, que nos valeu esse belo romance sobre o ciúme, intitulado LE LYS ROUGE (O LÍRIO VERMELHO). Por fim, a nem sempre muito inspirada Academia lá lhe deu o galardão, em 1921, isto é, tarde e a más horas, três anos antes da morte do escritor. O autor de A ILHA DOS PINGUINS não precisava do Prémio para nada, mas o Prémio é que tinha muito a ganhar, pendurando-se no grande escritor. O número de romances e de ensaios que nos legou constitui um dos mais nobres e sedutores patrimónios de que todos, franceses e não franceses, se podem orgulhar e abundantemente servir. De uma invulgar erudição, dono de um espírito suavemente acutilante, perspicaz no sondar as grandezas e fraquezas do ser humano, iconoclasta sorridente, pessimista não amargurado, mas intrépido, sempre que foi necessário, o autor de THAÏS, LA RÔTISSERIE DE LA REINE PÉDAUQUE, LES DIEUX ONT SOIF, LES OPINIONS DE M. JERÔME COIGNARD, CRAINQUEBILLE, LA RÉVOLTE DES ANGES, LA VIE LITTÉRAIRE e tantos outros, fecundou, com o seu saber irónico mas tolerante, várias gerações de leitores e continua hoje vivo e activo no mercado dos livros. LES DIEUX ONT SOIF continua a ser um livro dolorosamente indispensável para se conhecer por dentro o mecanismo das revoluções e o apetite destas pelo Terror, em que acabam por descambar.
É do seu livro LES OPINIONS DE M. JERÔME COIGNARD, que eu hoje retiro e traduzo esta sorridente meditação sobre a impossibilidade de se fazer e ler História, de tal modo a documentação vai crescendo e tornando inviável o acesso completo a ela. Eis o apólogo de que o erudito e céptico Abade Coignard se serviu para entreter os seus ouvintes e fazer valer as suas sérias dúvidas sobre a viabilidade da História:
 
Quando o jovem príncipe Zémire sucedeu ao seu pai, no trono da Pérsia, chamou todos os académicos do seu reino e, tendo-os reunido, disse-lhes:
- “O Doutor Zeb, meu mestre, ensinou-me que os soberanos se exporiam a menos erros se fossem esclarecidos pelo exemplo do passado. Eis por que quero estudar os anais dos povos. Incumbo-vos, pois, de comporem uma história universal e de nada negligenciarem, para que ela resulte completa.”
Os sábios prometeram satisfazer o desejo do príncipe e, tendo-se retirado, meteram mãos à obra. Ao fim de vinte anos, apresentaram-se ao rei, seguidos por uma caravana de doze camelos, carregando cada um deles quinhentos volumes. O secretário da academia, tendo-se prostrado nos degraus do trono, falou nestes termos:
- “Senhor, os académicos do vosso reino têm a honra de depositar aos vossos pés a história universal que compuseram, à atenção de Vossa Majestade. Ela compreende seis mil tomos e engloba tudo o que nos foi possível reunir, no que respeita aos costumes dos povos e às vicissitudes dos impérios. Inserimos nela as antigas crónicas que foram felizmente preservadas e enriquecemo-las com notas sobre a geografia, a cronologia e a diplomacia. Os prolegómenos formam, por si só, o carregamento de um camelo e os paralipómenos são carregados, com grande dificuldade por outro camelo.”
O rei respondeu:
- “Meus senhores, agradeço-vos o incómodo que vos causei. Mas estou muito ocupado com os cuidados do governo. De resto, envelheci enquanto fazíeis o vosso trabalho. Já cheguei, como diz o poeta persa, ao meio do caminho da vida e, mesmo supondo que morro velho, não posso razoavelmente esperar ter tempo para ler uma história tão longa. Ela será, pois, depositada nos arquivos do reino. Façam-me um resumo mais proporcionado à brevidade da existência humana:”
Os académicos da Pérsia trabalharam mais vinte anos, levando depois ao rei mil e quinhentos volumes, carregados por três camelos.
- “Senhor”, disse o secretário perpétuo, com uma voz enfraquecida, “eis a nova obra. Julgamos não ter omitido nada de essencial.”
- “Pode ser que sim”, respondeu o rei, “mas não vou lê-la. As tarefas longas não dizem com a minha idade: resumi mais e sem demora.”
Eles demoraram tão pouco que, ao fim de dez anos, voltaram seguidos por um elefante jovem, carregando quinhentos volumes.
- “Gabo-me de ter sido sucinto”, disse o secretário perpétuo.
- “Não o fostes suficientemente”, respondeu o rei. “Cheguei ao fim da vida. Resumi, resumi, se quiserdes que eu conheça, antes de morrer, a história dos homens.”
Voltou a ver-se o secretário perpétuo, diante do palácio, ao fim de cinco anos. Caminhando com muletas, ele trazia, pela arreata, um burrico que carregava um livro enorme.
- “Apressai-vos”, disse um funcionário, “o rei está mesmo a morrer.”
De facto, o rei encontrava-se no leito de morte. Dirigiu ao académico e ao enorme livro um olhar quase apagado e disse, suspirando:
- “Vou morrer sem conhecer a história dos homens!”
- “Senhor”, respondeu o sábio, quase tão moribundo como o rei, “vou-vo-la resumir em três palavras: Eles nasceram, sofreram e morreram”
Foi assim que o rei da Pérsia aprendeu, já tarde, a história universal. »
Eugénio Lisboa , em ensaio  de 15.11.2021

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Literatura não é Teoria, é Paixão”

Recuperamos uma pequena e interessante entrevista do filósofo Tzvetan Todorov , falecido em Fevereiro de 2017, à revista Bravo, a propósito do seu livro A Literatura em Perigo!
Tzvetan Todorov – “Literatura não é Teoria, é Paixão”
"Tzvetan Todorov afirmava que o excesso de “ismos” afasta os jovens da leitura, e que a principal função de um professor é ensinar o aluno a amar os livros
por Anna Carolina Mello e André Nigri
Nascido em 1939 em Sófia, na Bulgária, e naturalizado francês, o filósofo e linguista Tzvetan Todorov é um dos mais importantes pensadores do século XX. Traduzida para mais de 25 idiomas, a sua obra inspira críticos literários, historiadores e estudiosos do fenómeno cultural do mundo todo. No seu mais recente livro publicado no Brasil, A Literatura em Perigo, Todorov faz um mea culpa raro entre intelectuais. Ele diz que estudos literários como os seus, cheios de “ismos”, afastaram os jovens da leitura de obras originais – dando lugar ao culto estéril da teoria. De Paris, ele falou à BRAVO! por telefone:
BRAVO!: Gostaria que o sr. falasse sobre o seu primeiro contacto com a literatura quando criança, e como ela se transformou numa paixão.
Tzvetan Todorov: Eu cresci na Bulgária durante a Segunda Guerra, quando quase ninguém vivia em Sófia, sob constante bombardeio. A maior parte da população vivia fora da capital, em apartamentos divididos por várias famílias. Dentro da colectividade em que habitávamos, havia um especialista em literatura. Foi ele que me ensinou a ler, antes que eu atingisse a idade escolar. Ele me incentivou a praticar a leitura nos livros infantis, e logo comecei a gostar dos contos populares. Apreciava especialmente as histórias dos irmãos Grimm e As Mil e Uma Noites. Essas obras faziam minha alegria. Eu já tinha um sentimento do enriquecimento pessoal que o contacto com a ficção podia proporcionar.
Por que  razão o contacto com a ficção é tão importante?
Os livros acumulam a sabedoria que os povos de toda a Terra adquiriram ao longo dos séculos. É improvável que a minha vida individual, em tão poucos anos, possa ter tanta riqueza quanto a soma de vidas representada pelos livros. Não se trata de substituir a experiência pela literatura, mas multiplicar uma pela outra. Não lemos para nos tornarmos especialistas em teoria literária, mas para aprender mais sobre a existência humana. Quando lemos, nos tornamos antes de qualquer coisa especialistas em vida. Adquirimos uma riqueza que não está apenas no acesso às ideias, mas também no conhecimento do ser humano em toda a sua diversidade.
A escola e a família têm um papel importante. As crianças não têm ideia da riqueza que podem encontrar num livro, simplesmente porque eles ainda não conhecem os livros. Deveríamos então ser iniciados por professores e pais nessa parte tão essencial de nossa existência, que é o contacto com a grande literatura. Infelizmente, não é bem assim que as coisas acontecem.
Quando nós professores não sabemos muito bem como fazer para despertar o interesse dos alunos pela literatura, recorremos a um método mecânico, que consiste em resumir o que foi elaborado por críticos e teóricos. É mais fácil fazer isso do que exigir a leitura dos livros, que possibilitaria uma compreensão própria das obras. Eu deploro essa atitude de ensinar teoria em vez de ir directamente aos romances, porque penso que para amar a literatura – e acredito que a escola deveria ensinar os alunos a amar a literatura – o professor deve mostrar aos alunos a que ponto os livros podem ser esclarecedores para eles próprios, ajudando-os a compreender o mundo em que vivem.
Ao comentar esse assunto no livro, o sr. fala em “abuso de autoridade”. Poderia explicar melhor?
É um abuso de autoridade na medida em que é o professor quem decide mostrar aos alunos o que é importante, com base  num programa definido previamente pelo Ministério da Educação. E isso é sempre uma decisão arbitrária. Não temos o direito de reduzir a riqueza da literatura. O bom crítico – e também o bom professor – deveria recorrer a toda sorte de ferramentas para desvendar o sentido da obra literária, de maneira ampla. Esses instrumentos são conhecimentos históricos, conhecimentos linguísticos, análise formal, análise do contexto social, teoria psicológica. São todos bem-vindos, desde que obedeçam à condição essencial de estar submetidos à pesquisa do sentido, fugindo da análise gratuita.
Como conciliar esse desejo de liberdade num sistema em que o professor tem que atribuir notas, como ocorre no Brasil e na França?
Acredito que o essencial é escolher obras literárias que sejam, por sua complexidade e temas, acessíveis à faixa etária a que se destinam. Cabe ao professor mostrar o que esses livros têm de enriquecedor para os alunos, levando em consideração a realidade deles. O importante é não ter medo de estabelecer pontos em comum entre o presente dos alunos e do sentido dos livros.
É verdade que hoje lemos muito diante da tela, mas não acho que o livro vá desaparecer. Ele estabelece uma relação de possessão e de interiorização que nós não podemos estabelecer com algo tão imaterial quanto o texto na tela do computador. Claro que eu mesmo, quando busco uma referência, o faço facilmente diante da tela. Mas se eu desejo me embrenhar num livro, se eu quiser me render ao seu interior, é preciso que seja com o objecto “livro”. A isso ele se presta maravilhosamente."Anna Carolina Mello e André Nigri, Revista Bravo!
O LIVRO: A Literatura em Perigo, de Tzvetan Todorov, Difel, 96 pags