segunda-feira, 31 de maio de 2021

A propósito de Arte

Escultura Pietá (1499), de Michelangelo

‎”A arte é a contemplação: é o prazer do espírito que penetra a natureza e descobre que ela também tem uma alma. É a missão mais sublime do homem, pois é o exercício do pensamento que busca compreender o universo, e fazer com que os outros o compreendam.” Auguste Rodin

‎”A grandeza de uma obra de arte está fundamentalmente no seu caráter ambíguo, que deixa ao espectador decidir sobre o seu significado.” Theodor Adorno

“Na arte, a inspiração tem um toque de magia, porque é uma coisa absoluta, inexplicável. Não creio que venha de fora pra dentro, de forças sobrenaturais. Suponho que emerge do mais profundo ‘eu’ da pessoa, do inconsciente individual, colectivo e cósmico.” Clarice Lispector

"L'Art est un perpétuel sacrifice du sentiment à la vérité " Marcel Proust

" A arte deixa de ser  arte  quando pretende provar." André Malraux

" L'artiste qui accepte d'être classé dans un parti renie sa condition d'artiste. J'écris pour tous. Je peins pour tous. L'humanité, voilà mon clan." Henry de Montherlant

"En art, il ne faut pas conclure." Gustave Flaubert

" Mas quem disse que  a Crítica e o Ensaio não são a arte de bem cavalgar todos os riscos?" Eugénio Lisboa

" O que é então, a arte? Depois de quanto ficou dito, admitir-se-á melhor esta definição insuficiente: Uma expressão transfiguradora de mera expressão vital; um jogo em que se revelam todas as fundas intenções dos homens. Propriamente a essa expressão e a esse jogo chamaremos arte; mas sabendo que, sem a expressão vital que a exige , essa expressão pouco ou nada será, como pouco ou nada será esse jogo sem as intenções profundas que liberta. Assim toda a arte subentende comunicação; pois se , pelo menos em princípio, todos os homens  de todos os tempos e lugares se poderão comover com a autêntica obra de arte, ( e nunca será demais repetir que toda a arte visa ao universal e  ao eterno, sejam embora os seus motivos locais e transitórios...) é exactamente porque a expressão vital e as intenções profundas informadas na obra de arte pertencem , pelo menos em princípio, a todos os homens  de todos os tempos e lugares." José Régio

domingo, 30 de maio de 2021

Ao Domingo Há Música

Ouvir estrelas

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.

Olavo Bilac , Poesias ( Via Láctea), 1888



Ao visionar o  trecho musical  para este domingo , o soneto de Olavo Bilac surgiu-me insistente e assertivo,  numa exigência indeclinável. Era ele a palavra ,  a melhor legenda  para as  imagens  que compunham o vídeo. E não é que tinha razão. Este  "Tendre Amour ", a resplandecer  beleza, só poderia ser tocado e cantado por quem entende as estrelas. Basta ver o brilho nos olhos e os sorrisos nos lábios dos seus intérpretes. E, em verdade , dizem as estrelas, pois só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender estrelas.

Tendre Amour, de Jean-Philippe Rameau, em   Les Fleurs de Les Indes Galantes,  por Les Arts Florissants, sob a direcção do  Maestro William Christie, na Grande Salle Pierre Boulez de la Philharmonie de Paris, em Dezembro de 2019.
Tendre amour, que pour nous, cette chaîne dure à jamais. 
 

sábado, 29 de maio de 2021

Ilustração: Susa Monteiro

 por António Lobo Antunes
 "Ambos pouco tolerantes aceitávamos sem qualquer dificuldade o feitio complicado do outro. O Zé costuma dizer – Posso ser amigo de um pintor, de um pedreiro, de um médico. Para ser amigo de um escritor tenho que admirá-lo. E, (...), aceitávamos o outro e criámos uma relação indestrutível. Faz vinte anos que morreu o meu melhor amigo, o Zé, e a sua ausência continua a doer-me, como me dói o telefone não tocar às dez da manhã todos os dias e eu já saber que era ele antes de pegar no aparelho, como me dói não almoçarmos nem jantarmos nunca, como me dói não poder abraçá-lo. Encontrámo-nos pela primeira vez no aeroporto, quando íamos ambos apanhar o avião para o Brasil e ele, que eu nunca tinha visto mas conhecia de fotografias ou da televisão, dessas coisas, conforme tinha lido os seus livros 
(eu começava a publicar nessa época) 
fiquei a vê-lo aproximar-se, surpreendido. A sua única frase foi – Olha que eu gosto de ti e a nossa amizade surgiu de imediato, instantânea e absoluta, lembrei-me do João a chegar (ainda vivíamos no mesmo quarto, ainda nenhum de nós saíra de casa dos pais) com os primeiros livros de contos do Zé, o Anjo Ancorado, acho que o Hóspede de Job também, me dizer – Comprei isto porque partilhávamos quase tudo e eu a olhar as páginas, eu a ler, eu a perguntar, todo trocista – Um escritor chamado Pires? que era uma palavra que costumávamos usar para outras situações, devolvi-lhe os livros, voltei a pegar neles dias depois, achei a linguagem diferente daquilo que costumava ler nessa época, que era também, quase sempre, o João que trazia, eu andava mais por autores estrangeiros, os portugueses que descobrimos na altura foram descobertas do meu irmão, Manuel da Fonseca (recordo-me, por exemplo, da Seara de Vento com a reprodução de um quadro de Vespeiro na capa) Urbano, Namora, Vergílio Ferreira, e depois o João lia e estudava e eu lia e escrevia. Cada um tinha a sua estante de um lado do quarto e não me recordo de alguma vez havermos discutido. Bom, li o tal José Cardoso Pires, pareceu-me um bocado obnóxio em relação aos outros, depois fui gostando mais, depois apareceu-me o milagre de Blondin a juntar-se ao milagre de Céline, depois comecei a ficar farto de escritores portugueses que só me contavam histórias de operários bons e patrões maus, depois percebi que o Zé era diferente disso, depois fui crescendo, depois os outros escritores portugueses vivos foram desaparecendo mas o Zé ficou, o Zé e a Agustina, depois aquilo que eu escrevia desatou a mudar, depois fui-me aproximando de uma voz interior que não sabia que tinha, tudo isto lento, penoso, ganho palmo a palmo entre angústias e dúvidas, depois a Memória de Elefante e depois, aí pela Explicação dos Pássaros, o Zé e eu conhecemo-nos no aeroporto, chegámos ao Brasil, viemos do Brasil e na vinda do Brasil éramos amigos íntimos, depois cresci o que me faltava e já tinha o único irmão que os meus pais não me deram. Nunca existiu entre nós uma sombra, quanto mais uma zanga, e nenhum da gente os dois era fácil. Tão diferentes em muita coisa havia uma sintonia absoluta e gostávamos das nossas dissonâncias, que nos uniam ainda mais. Ambos pouco tolerantes aceitávamos sem qualquer dificuldade o feitio complicado do outro. O Zé costuma dizer – Posso ser amigo de um pintor, de um pedreiro, de um médico. Para ser amigo de um escritor tenho que admirá-lo. E, apesar dos desacordos, por exemplo eu era do Benfica e ele era só do Néné, aceitávamos o outro e criámos uma relação indestrutível. Se um ganhava um prémio exultávamos ambos. Recordo-me, por exemplo, de ele começar um telefonema assim: – Quero dar-te os parabéns porque ganhei um prémio. Era o Pessoa, acho eu, e fiquei todo contente. Levei-o para a minha editora, proibia-lhe o vinho, ele ralhava-me quando não concordava, discutíamos aceitando-nos sem custo, eu admirava nele, para além do talento, claro, a coragem e a bondade, encorajavamo-nos nos momentos de desânimo, acreditávamos na capacidade um do outro, lembro-me de trabalharmos juntos o seu De Profundis, lembro-me das infinitas correções que ele sugeria para os meus livros, éramos de uma franqueza absoluta, se necessário às vezes brutal, a nossa amizade nunca sofreu um pingo. Depois o Zé adoeceu, depois o Zé morreu e eis-me, de repente, orfão do meu irmão de alma, mais velho vinte anos do que eu umas vezes e tão meu filho outras. O que a gente vibrava com os triunfos do amigo, o que a gente sofria com as dores! Quando o Zé morreu pessoas que eu não conhecia vinham dar-me os pêsames. E ficou dentro de mim um vazio que nunca cicatrizou. Já tinha tido um irmão, cinco irmãos mais novos, tu eras o meu irmão mais velho. Eras não: és. Tu serás para sempre o meu irmão mais velho. Meu Deus o que eu podia escrever acerca de ti. Mas o que eu gostava mesmo era voltar a encontrar-te. Consolo-me pensando que, mesmo sem nos vermos agora, continuamos juntos. Há com certeza um aeroporto por aí à espera de nos cruzarmos de novo." 
António Lobo Antunes, em Crónica publicada na VISÃO nº 1341, de15 de Novembro de 2018

sexta-feira, 28 de maio de 2021

MAIS UM SONETO À LÍNGUA PORTUGUESA

Eugénio Lisboa acaba de tecer um novo  soneto à Língua Portuguesa. Com prazer e rendidos, apresentamos essa magnífica  produção da sua sempre  fulgente oficina poética. 

MAIS UM SONETO À LÍNGUA PORTUGUESA

Com ela exploramos nossos assombros
e nomeamos o que descobrimos;
com ela exploramos os escombros
que escondem segredos que abrimos.

A nossa língua é que nos deu tudo,
foi ela que nos abriu este mundo:
sem ela teria ficado mudo
o nosso espanto arrasador e fundo!

Com ela explorámos o amor
e tudo o que o coração esconde;
com ela explorámos o ardor

que nos abrasa, queima e ensina.
Só mesmo ela às aflições responde
em clave de doçura feminina.
 
      27.05. 2021
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Novidades literárias


NOVIDADES
Livros da Relógio D’Água a sair em Junho:


1 — Como Se o Mundo Existisse, de Ana Teresa Pereira
2 — Cartografias de Lugares mal Situados (10 Contos de Guerra), de Ana Margarida de Carvalho (Grande Prémio de Romance e Novela APE 2013 e 2016 e Grande Prémio do Conto APE 2017)
3 — Viver Feliz Lá Fora, de José Gardeazabal (Prémio INCM/Vasco Graça Moura e finalista do Prémio Oceanos)
4 — Gilead, de Marilynne Robinson (vencedora do Prémio Pulitzer para Ficção)
5 — Aprender a Rezar na Era da Técnica, de Gonçalo M. Tavares (Reedição)
6 — As Pequenas Virtudes, de Natalia Ginzburg (Introdução de Rachel Cusk)
7 — Os Ensaios, de George Orwell (Prefácio de Pedro Mexia)
8 — Pradarias, de Louise Glück (Prémio Nobel da Literatura 2020)
9 — Um Adeus Mais-Que-Perfeito, de Peter Handke (Prémio Nobel da Literatura
2019)
10 — O Duelo, de Heinrich von Kleist (Tradução e Apresentação de Maria Filomena Molder)
11 — A Guerra do Mundo, de Niall Ferguson
12 — 1984 (Romance Gráfico), de George Orwell e Xavier Coste
13 — Sangue e Ferro: Ascensão e Queda do Império Alemão (1871-1918), de Katja Hoyer
14 — Direito de Propriedade, de Deborah Levy


Editions Gallimard
Bibliothèque de la Pléiade

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terça-feira, 25 de maio de 2021

Festejar o 91º aniversário de Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa, na RTP , em 21 de Abril de 2021

Assombro
Chegamos, depressa, ao fim da viagem,
atordoados, confusos e sós:
pouco aprendemos, ficámos na margem
de viver, de saber quem somos nós.

Tudo foi frágil , incompleto, escuro,
tudo nos fugiu, pouco iluminou
esta passagem fugaz; resta puro,
nosso espanto, que nada conspurcou.
Eugénio Lisboa, Acta est Fabula , Memórias-V- Regresso a Portugal(1995-2015), Outubro de 2015, Opera Omnia

É com este belo poema que termina o V volume das Memórias de Eugénio Lisboa. Esperava o autor que fosse o último, mas acabou por ser o antepenúltimo. As memórias exigiram-lhe mais dois volumes que foram publicados  em Fevereiro e Novembro de 2017.
A passagem fugaz, o  instante da vida de Eugénio Lisboa ficou registado. E sobre o instante, ocorrem , com enfâse redobrado,  as palavras  de Octávio Paz: Faço mal em chamá-lo fragmento, pois é um mundo completo em si mesmo, tempo único, arquetípico, que já não é passado nem futuro, mas presente.
O que nos narra Eugénio Lisboa  é , em si mesmo ,   um mundo completo. O Assombro dominou–lhe  a vida. Começa na  criança, residente num bairro dos subúrbios de Lourenço Marques, a  crescer ávida  de curiosidade. Curiosidade que, desassombradamente, a transforma em omnívoro leitor compulsivo  e num ímpar e exímio cultor de um espanto que resta puro até ao presente, dia em que completa 91 anos.
O instante é o tempo do prazer, mas  também o da morte, o dos sentidos e o da revelação do mais além, continua Octávio Paz. De tudo isto nos fala Eugénio Lisboa na sua obra memorialística, "Acta est Fabula",  e nos dois  volumes de Diários, “Aperto Libro”,  já publicados.
À medida que se estabelecem laços com esses registos , vamos  entrando num mundo rico e fascinante. O memorialista ou o diarista alarga-se por outros horizontes e vai produzindo verbetes ou  entradas que são puros ensaios  de uma soberba profundidade. Acompanhando-o,  concluímos , inequivocamente,  que se trata de um precioso documento de quase um século e de um registo singular de um homem culto, erudito e de uma grandiosa sensibilidade.
Independente, livre e isento, não subscreve jargões nem professa credos, lançando, com inteligente acutilância, um olhar crítico a tudo o que lhe chega , a tudo o que o rodeia , a tudo o que preenche a vida, ao mundo.
Assim , olha Agustina, Saramago , Vergílio Ferreira, Gastão Cruz, Eduardo Prado Coelho,  Eduardo Lourenço e outros mais , sem temor por  ser uma voz diferente, fugindo a unanimidade oca que se pratica no falso meio intelectual.   Em sentido oposto, extrai, com mestria , a grandeza de um Camilo, de um Eça, de um Régio,  de um Sena, de um Montherlant, de um Gide , de um Domingos Monteiro , de um David Mourão-Ferreira, de uma galeria de grandes que são  engavetados   por um modismo tonto e provinciano. E, em igual honestidade intelectual, não deixa de aplaudir novos talentos que  surgem e  se  vão afirmando.
Mas não é apenas de memórias que se constitui a produção literária de Eugénio Lisboa. Poeta, ensaísta, crítico literário, o autor de “Acta est fabula” tem uma vasta e prolífera obra. É um incessante escritor em permanente laboração.  Desde o seu último aniversário, o nonagésimo,  publicou  dois novos livros. Um de Poesia e outro em magnífica e gostosa  prosa, que é um excelente breviário da Leitura, um forte alento para o  despertar desse vício impune, um esplêndido cânone para o leitor relutante.
Com Eugénio Lisboa,   nunca será possível esgotar-se,  em nós,  o prazer da descoberta , da aprendizagem, do encantamento. Reforça e valida, em magnificência, as palavras de Jorge Luís Borges: A verdade é que ninguém passa por nossa vida em vão. A diferença é que algumas pessoas são possibilidades de felicidade, outras de lições.
Eugénio Lisboa é tudo isso. Acumula todas as possibilidades. E, por ser verdade, acabamos com um outro poema, um soneto perfeito, retirado do seu último livro de poesia.

DA NÃO EVIDÊNCIA DE TUDO

 

É tão estranha a vida. É tão estranha a morte.

É estranho que seja tudo tão estranho

e tudo cause, em mim, um tal desnorte,

que o assombro seja, em mim, tamanho,

 

que fico detido, explorando o espanto

de coisa nenhuma ser evidente!

Resta-me, então, digo eu, o canto

que amacia o que não é transparente!

 

Viver é assim não compreender,

que é a melhor forma de descobrir.

Se há virtudes no não entender,

 

se é bom forçar a porta, insistir,

contudo, a um mistério decifrado,

outro logo se apresenta fechado!

                                  

                                  20.05.2020

Eugénio Lisboa, 

em congeminações de sempre, que a solidão da peste agudiza!

Eugénio Lisboa, in “ poemas em tempo de peste”, Setembro de 2020, Guerra&Paz, Editores S.A.

Ao Eugénio Lisboa, o mais erudito intelectual português da actualidade, de quem o assombro de um imanente espanto jamais se extinguiu, apresentamos a nossa inacabada gratidão, em jeito de sentida embora sóbria homenagem.

Veja (AQUI) uma entrevista a  Eugénio Lisboa

domingo, 23 de maio de 2021

Ao Domingo Há Música


 A música é a linguagem de toda a gente, não conhece fronteiras, não carece de tradução, recusa ser parafraseada. E a música é uma actividade que nos diz que somos capazes de sentir. Sim, sabemos que há algo mais. Há algo que não somos capazes de dizer, há algo que não conseguimos explicar. E a música lembra-nos continuamente da possibilidade da transcendência, a possibilidade de haver algo mais.
 George Steiner,  Das Cinzas do Silêncio à Palavra de Fogo,

A felicidade está nas pequenas descobertas. Ali, aqui ou lá, onde o olhar não alcança, há sempre   algo  que pode provocar um momento novo, um frémito de magia. Talvez esse algo mais, essa real possibilidade de transcendência,  se concretize nestes belos e conhecidos sons. 

Secret Garden, em Song From A Secret Garden, de Rolf Løvland . Registo de  Secret  © 2015 Universal Music A/S.
   
Secret Garden , em Nocturne  (ao vivo em  Kilden / 2015).Canção que representou a Noruega e venceu o Festival da Eurovisão de 1995.

sábado, 22 de maio de 2021

Cheirar os livros


"(...) Segundo a crónica familiar, meu pai interpretava aquilo como uma grande sede de saber cruelmente insatisfeita e queria que eu aprendesse a ler já aos quatros anos, sendo demovido a muito custo, por uma pedagoga amiga nossa. Mas, depois que completei seis anos, ele não aguentou, fez um discurso dizendo que eu já conhecia todas as letras e agora era só uma questão de juntá-las e, além de tudo, ele não suportava mais ter um filho analfabeto. Em seguida, mandou que eu vestisse uma roupa de sair, foi comigo a uma livraria, comprou uma cartilha, uma tabuada e um caderno e me levou à casa de D. Gilete.
— D. Gilete — disse ele, apresentando-me a uma senhora de cabelos presos na nuca, óculos redondos e ar severo —, este rapaz já está um homem e ainda não sabe ler. Aplique as regras.
"Aplicar as regras", soube eu muito depois, com um susto retardado, significava, entre outras coisas, usar a palmatória para vencer qualquer manifestação de falta de empenho ou burrice por parte do aluno. Felizmente D. Gilete nunca precisou me aplicar as regras, mesmo porque eu de facto já conhecia a maior parte das letras e juntá-las me pareceu facílimo, de maneira que, quando voltei para casa nesse mesmo dia, já estava começando a poder ler. Fui a uma das estantes do corredor para selecionar um daqueles livrões com retratos de homens carrancudos e cenas de batalhas, mas meu pai apareceu subitamente à porta do gabinete, carregando uma pilha de mais de vinte livros infantis.
— Esses daí agora não — disse ele. — Primeiro estes, para treinar. Estas livrarias daqui são umas porcarias, só achei estes. Mas já encomendei mais, esses daí devem durar uns dias. Duraram bem pouco, sim, porque de repente o mundo mudou e aquelas paredes cobertas de livros começaram a se tornar vivas, frequentadas por um número estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis. Um pouco febril às vezes, chegava a ler dois ou três livros num só dia, sem querer dormir e sem querer comer porque não me deixavam ler à mesa — e, pela primeira vez em muitas, minha mãe disse a meu pai que eu estava maluco, preocupação que até hoje volta e meia ela manifesta.
— Seu filho está doido — disse ela, de noite, na varanda, sem saber que eu estava escutando.
— Ele não larga os livros. Hoje ele estava abrindo os livros daquela estante que vai cair para cheirar.
— Que é que tem isso? É normal, eu também cheiro muito os livros daquela estante. São livros velhos, alguns têm um cheiro óptimo.
— Ele ontem passou a tarde inteira lendo um dicionário.
— Normalíssimo .Eu também leio dicionários, distrai muito. Que dicionário ele estava lendo?
— O Lello.
— Ah, isso é que não pode. Ele tem que ler o Laudelino Freire, que é muito melhor. Eu vou ter uma conversa com esse rapaz, ele não entende nada de dicionários. Ele está cheirando os livros certos, mas lendo o dicionário errado, precisa de orientação."
João Ubaldo Ribeiro , in "Um Brasileiro em Berlim”, Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1995.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Poesia

Poesia

Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrasssem
No vazio da ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.
Daniel Faria, in  Poesia,(Ed. Assírio & Alvim)

Passagem 
Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e das serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?

Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reais,
tão perto que as palavras são de mais?

Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e diremos rios?
Manuel António Pina, in " Como se desenha uma casa" Ed. Assírio & Alvim

Revive ainda um momento
Na ‘sperança que perdi,
Flor do meu pensamento,
Hálito do que morri…

Inútil, irreal sorriso
Na penumbra de pensar…
Eu da vida que preciso?
O sonho com que a negar.

Vago luar de promessa,
Resto de sombra a morrer
Na antemanhã que começa
Ah, ter-te, e nunca viver.
Fernando Pessoa, in Quadras e Outros Cantares, Edição de Teresa Sobral Gomes, Relógio D’Água Editores, Lisboa ,1987

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Apostar no pano verde alheio

«Os livreiros venderão ou não o seu manuscrito. Para eles, é esse o problema. Para eles, um livro representa um capital a arriscar. Quanto melhor for o livro, menos hipóteses terá de ser vendido. Todo o homem superior se eleva acima das massas, o seu sucesso está, pois, na razão directa do tempo necessário para apreciar a obra. Nenhum livreiro gosta de esperar. O livro de hoje terá de ser vendido amanhã. Neste sistema, os livreiros rejeitam livros substanciais que exigem um elevado e lento reconhecimento.
(...)
Na época em que começa esta história, o prelo de Stanhope e os rolos de distribuição de tinta ainda não haviam entrado em funcionamento nas pequenas tipografias de província. Não obstante a especialização que permite compará-las à tipografia parisiense, Angoulême continuava a usar prelos de madeira, que deram origem à expressão fazer gemer o prelo, caída em desuso. A imprensa antiga ainda utilizava almofadas de couro embebidas em tinta, nas quais o impressor esfregava os caracteres. O quadro móvel onde se coloca a forma repleta de letras sobre a qual se aplica a folha de papel ainda era de pedra e justificava o nome por que era conhecida, mármore. As devoradoras imprensas mecânicas conduziram tão rapidamente ao esquecimento deste mecanismo, ao qual devemos, apesar das imperfeições, os belos livros dos Elzevier, dos Plantin, dos Alde e dos Didot, que se torna necessário mencionar os velhos instrumentos aos quais Jérôme-Nicolas Séchard votava um supersticioso afecto; na verdade, eles têm um papel a desempenhar nesta pequena história.
Séchard era um antigo oficial impressor, que os operários encarregados de alinhar as letras designavam por urso em linguagem tipográfica. O movimento de vaivém, muito semelhante ao de um urso enjaulado, executado pelos impressores que se deslocavam do tinteiro ao prelo e do prelo ao tinteiro, esteve com certeza na origem da alcunha. Por outro lado, os ursos chamaram macacos aos compositores tipográficos, por causa do exercício contínuo que estes homens realizam para retirar os tipos dos cento e cinquenta e dois caixotins em que se encontram arrumados.
(…) A casa Fendant e Cavalier era uma dessas editoras livreiras estabelecidas sem nenhuma espécie de capital, como então se viam muitas, e como sempre se verão, enquanto a papelaria e a tipografia continuarem a conceder créditos aos livreiros, durante o lapso de tempo em que se publicam umas tantas obras. Então como hoje, as obras eram compradas aos autores por meio de letras passadas a seis, nove e doze meses, pagamento baseado na natureza da venda que se salda entre livreiros em prazos mais dilatados. Estes livreiros pagavam na mesma moeda aos fornecedores de papel e às tipografias, que assim tinham nas mãos, grátis, durante um ano, toda uma livraria composta por uma dúzia ou uma vintena de obras. Admitindo dois ou três êxitos, o produto dos bons negócios pagava os maus, e eles sobreviviam apoiando uns livros nos outros. Se as operações fossem todas duvidosas, ou se, por um acaso, descobrissem bons livros, que só podiam vender-se depois de terem sido apreciados, saboreados pelo verdadeiro público, se os descontos sobre o seu valor fosse muito grande, se eles próprios perdessem dinheiro, abriam tranquilamente falência, previamente preparados para este resultado. Deste modo, todas as situações lhes eram favoráveis, apostavam no pano verde da especulação alheio, não o próprio.» 
Honoré de Balzac, in  Ilusões Perdidas [Illusions Perdues],  Dom Quixote Editora, Portugal 

terça-feira, 18 de maio de 2021

Os livros

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Ilustração de Susa Monteiro

Os livros. Nós – 4 (crónicas pequeninas)
 por António Lobo Antunes
 "Trabalhei como um danado, diariamente, anos a fio, de modo que me sinto no direito de repetir a frase de Bocage, depois de dizer aos outros um poema seu: – Isto é meu, isto não morre que é a única eternidade a que posso aspirar e que, de qualquer maneira, não me servirá de nada Acabei o livro que me ocupava de manhã à noite há quatro ou cinco dias, mandei para a Editora com as últimas correções e só o tornarei a ver, já impresso, para o ano. É o romance de 2019 e faltam-me agora três para completar o meu trabalho e deixar a obra redonda. Sei bem o que ela vale mas não me compete a mim pronunciar-me acerca disso. Não publicarei mais nada. Continuarei, que remédio, a escrever as crónicas para a revista Visão. Não passam de prosa alimentar, sem qualquer valor literário. Estupidamente publiquei ou consenti a publicação de quatro ou cinco coleções delas. Exijo que não o voltem a fazer. Não têm qualidade. Foi nos romances que joguei a minha vida e sei o que eles valem. As ditas crónicas são, evidentemente, medíocres: é pelos romances que quero ser julgado, não por esses textinhos baratos e sem valor, destinados a ajudarem financeiramente as minhas filhas. A sua qualidade é, no mínimo, questionável. Espero não ter de continuá-las durante muito mais tempo. Do mesmo modo proíbo que se imprimam a cerca de meia dúzia de artigos sobre a relação entre a Medicina e a criação artística que se editaram em revistas de vária índole, acerca de Antero, D. Duarte, Lewis Carrol, etc. e que nada valem também, os poemas mais ou menos juvenis espalhados em revistas dispersas, as primeiras tentativas, falhadas claro, de ficção. Resigno-me a deixar em circulação as Cartas da Guerra pelo seu provável valor documental, como lembrança de uma época horrível da nossa História colectiva em que, em consequência da censura militar e da censura política não pude descer muito fundo no horror de África, para mais com a censura tão atenta a mim em consequência da minha grande amizade com Ernesto Melo Antunes, sem dúvida o militar mais lúcido e corajoso que conheci, eu que vivi tanto tempo entre rapazes inigualáveis de humanidade e coragem, de mistura, claro, com alguns cobardes que sempre existem, e de situações abjectas de que jamais falei, eu que, evidentemente, nunca fui herói de nada. Portanto a única coisa que quero que fique de mim são os romances, a começar em Memória de Elefante e a terminar no último dos três que me falta compor. Tenho um alto conceito da minha obra, não conheço outra assim embora não me creia vaidoso. Trabalhei como um danado, diariamente, anos a fio, de modo que me sinto no direito de repetir a frase de Bocage, depois de dizer aos outros um poema seu: – Isto é meu, isto não morre que é a única eternidade a que posso aspirar e que, de qualquer maneira, não me servirá de nada. O que penso aspirar, como quando perguntaram a Evelyn Waugh o que aguardava dos seus leitores, é, como ele respondeu – Que rezem pela minha alma pecadora. Ouviste, Bento? Ouviste, Zé Tolentino? Por favor não se esqueçam de rezar pela minha alma pecadora." 
António Lobo Antunes , em Crónica publicada na VISÃO 13456, de 20 de Dezembro de 2018

domingo, 16 de maio de 2021

Ao Domingo Há Música

MAIS

É mais melancolia
que tristeza

mais cântico em vez
de queda
à minha espera

É mais violino
no meu peito

mais ópera
mais paixão
e mais eterno
Maria Teresa Horta, Estranhezas

Não sei se é melancolia, se tristeza. Não sei.  É  mais, isso sim,   um  cântico de vozes. Vozes  que trazem melodia na alma. Vozes portuguesas . Vozes jovens que lançaram novas produções para ouvir e degustar.

Carminho, em As Rosas, do novo Álbum Maria.
 
 Gisela João com Michael League, em  Tábuas do Palco,  do novo Álbum Aurora.
     
Ana Moura , em  Andorinhas (Official Video).

sábado, 15 de maio de 2021

Do Dia Mundial da Língua Portuguesa

 

A Câmara Municipal de Oeiras convidou Eugénio Lisboa e Rui Soares para uma conversa  com José Mário Silva , no Café com Letras , a fim de homenagear o Dia Mundial da Língua Portuguesa ,  dia 5 da Maio . Apresenta-se um excerto.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Eugénio Lisboa e a mente insubordinada

Eugénio Lisboa
A MENTE INSUBORDINADA
por Eugénio Lisboa

 

Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a falta de contradição é sinal de verdade.
                          Pascal

"Vou hoje falar de um certo número de coisas inconvenientes ou mesmo antipáticas. Coisas que normalmente não são ditas, num meio cultural timorato e vastamente acomodatício. Mesmo nas universidades, que são areópagos onde tudo pode e deve ser questionado, prevalece quase sempre uma verdade “aceite” contra a qual se não atrevem os candidatos a uma carreira académica. Em vez de intemeratamente se questionar o que deve ser questionado, sonda-se para que lado sopram os ventos e ajusta-se o curriculum ao sabor da ventania. É triste mas é assim.
Sempre que um personagem de notório gabarito no meio cultural faz a demolição de um nome em voga, ninguém mais se atreve a tocar-lhe nem com pinças. Poderia dar inúmeros exemplos. Quando Eça terçou armas com Pinheiro Chagas, a propósito dos reparos sensatos feitos por este aos desmandos críticos do autor de O Primo Basílio à saga dos descobrimentos, Eça foi, sem dúvida, dos dois, o que teve mais gracinha, mas Pinheiro Chagas foi, também sem dúvida, quem teve razão. “Brigadeiro Chagas” ou não, dizer a Eça que não fazia sentido julgar feitos dos séculos XV e XVI, com a ética do século XIX , era do mais razoável que se poderia observar. Reduzir a saga das descobertas a uma “ignomínia”, como fez o grande romancista realista, era completamente tonto. Mas, para sempre, Chagas passou a ser o “brigadeiro Chagas”, coberto de ridículo, e Eça, o espírito progressista e iluminado. Ninguém, nem a universidade, questionou esta injustiça. Ninguém se atreveu, ao menos, a dizer que a argumentação de Chagas estava admiravelmente construída e melhor escrita. Fazê-lo não renderia juros e era perigoso e, portanto, não se fez. Chagas foi publicamente destruído e mais ninguém se lhe referiu, a não ser como objecto de troça. Assim vai a nossa cultura.
Outro exemplo seria o do célebre ensaio de António Sérgio dedicado ao “Caprichismo romântico na obra do Sr. Junqueiro”. Sérgio, fino crítico literário e bom ouvido para a música do verso, fez muito claramente questão de separar o trigo do joio: o seu ensaio visou não o poeta exímio que era Junqueiro, mas sim o exageradamente aplaudido “maître-à-penser”, que Sérgio desvalorizava. De facto, nessa altura, o desvairo promontório da grandeza de Junqueiro, como filósofo e pensador (ver o que dele dizia, por exemplo, Raul Brandão) só pode comparar-se com a gritaria encomiástica que fez de Eduardo Lourenço o homem “que ensinou os portugueses a pensar”. Nós somos mesmo assim: foge-nos sempre o pé para a idolatria. De qualquer modo, Sérgio, como disse, foi muito cauteloso: sublinhou as egrégias qualidades poéticas de Junqueiro, mas demoliu o pensador que ele pretendia ser. Pois bem: apesar de todas as cautelas, era tão grande a (justa) aura de Sérgio, por essa altura, que Junqueiro morreu para sempre: nunca mais ninguém lhe pegou (até muito recentemente), nem mesmo com pinças. Que pensar de um meio cultural e académico que assim se deixa tão completamente subjugar pela mal lida opinião de um grande “clerc”?
Outro exemplo foi o de Júlio Dantas, destruído pelo “gavroche” Almada Negreiros, com o seu manifesto anti-Dantas. A malta gozou e ainda hoje goza e nunca mais foi ver aos textos se o Dantas só merecia a surriada que lhe fez o autor de Nome de Guerra. O que nunca ninguém disse, porque borrava a pintura, foi que o rebelde Almada não só foi pedir desculpa ao autor de A Ceia dos Cardeais, pela agressão feita, como foi também mexer meio mundo para ser apresentado a Salazar. Assim vão estes egrégios rebeldes. De qualquer forma, se o seu intuito foi assassinar o académico, conseguiu-o plenamente. Assim fazendo sair do horizonte literário, para sempre, um dos nossos mais admiráveis cronistas, homem culto, cosmopolita e civilizadíssimo, cuja prosa limpidamente clássica e vigorosa ficaria bem nas antologias escolares. Uma nota: notável gente da esquerda foi para a Academia, pela mão não ressentida de Júlio Dantas.
Só mais um caso, aliás, dois mas ambos originados pela acção de um grande figurão das nossas letras – refiro-me a Eduardo Lourenço e à sua esforçada tentativa de “reduzir” a estatura da revista Presença (que nunca tinha folheado e nem para ela tinha olhado…) e a não menos esforçada tentativa (coroada de êxito) de apear Sérgio do trono em que este se encontrava, para lá ir-se instalar ele e aí permanecer até à altura da sua morte. Lourenço viu, no segundo modernismo dos presencistas uma inesperada contra-revolução de que a revolução teria sido o primeiro modernismo dos argonautas do Orpheu. Ora o segundo modernismo não se pôs nada contra o primeiro, antes o estudou e carinhosamente o promoveu e, no plano criativo, não o copiou e fez coisa muito diferente, interessando-se por áreas dos séculos XIX e XX, a que os do Orpheu tinham voltado as costas. Em suma, fizeram diferente, mas não agiram contra. Dizer que os alegados terramotos ontológicos de Álvaro de Campos eram superiores a certas sondagens místico-psicológicas, como fez Lourenço, é estar completamente desfocado em relação ao que seja arte. E comparar a alegada contra-revolução do segundo modernismo com o bonapartismo deixa-nos, no mínimo, perplexos. Napoleão não veio pôr travões à revolução de 1789, veio, sim, travar, com decisão, o Terror de 1793, isto é a loucura sanguinária dos Robespierres e quejandos. Por isso foi admirado por grandes espíritos do século XIX, como Beethoven, Goethe e Stendhal, entre outros. Confundir bonapartismo com contra-revolução é um erro histórico de palmatória, o que não impediu a intelligentsia universitária lusíada de glosar, embevecidamente, este dislate de Lourenço, que passou a ser doutrina obrigatória de quem quisesse fazer carreira. E creio que ainda é.
A outra vítima de Lourenço e do seguidismo beato à sua frechada absurda foi, como dissemos, António Sérgio, a quem atacou a razão, para maior glória exclusiva da intuição Bergsoniana e a quem acusou de não ter ideias inocentes e virgens, limitando-se a atacar ideias de outros. Esta segunda catilinária é tão absurda, tão desconhecedora do que tenha sido todo o progresso do conhecimento científico e filosófico e todo o percurso da arte, desde tempos imemoriais até hoje, que, mais do que surpreender-me tê-la Lourenço emitido, choca-me tê-la o meio universitário aceite durante tantas décadas. A ciência tem avançado precisamente por aquilo que alguém, referindo-se a Bertrand Russell, apelidou de “mente insubordinada” A ciência não nasce, virgem de influências, nas mentes inocentes e descontaminadas do cientista. Copérnico, Kepler e Galileu opuseram o heliocentrismo (o Sol, como centro do sistema solar) ao geocentrismo de Ptolomeu (a Terra, como centro desse sistema). O cientista alimenta-se dos erros ou insuficiências dos que o precederam. Newton, muito provavelmente, o maior cientista de todos os tempos, não hesitou em proclamar: “Se cheguei até aqui, foi porque me apoiei no ombro de gigantes”, gigantes que sabiam menos do que ele, mas sem os quais ele não teria feito o que fez. Grande e admiravelmente abrangente como era, a macro-física de Newton partiu, por sua vez, os dentes quando se chegou ao estudo do comportamento das partículas. Aí, o determinismo sumptuário de Newton teve de dar lugar às hipóteses não deterministas dos físicos quânticos. Nem estes ficaram diminuídos por estarem só a opor-se a Newton, nem este ficou diminuído por a sua física não chegar para sondar a incerteza das partículas. Foi o mesmo Newton quem afirmou: “Nenhuma descoberta foi feita sem um palpite ousado.” Esse palpite é “ousado” precisamente porque pode estar a pôr em causa uma hipótese até aí aceite. E não é por assim surgir, isto é, por oposição a outra hipótese anterior, que ela é menos meritória. A desqualificação de Sérgio por Lourenço foi, assim, totalmente inepta. Com a arte é a mesma coisa. Malraux disse-o de uma vez por todas, ao afirmar que nenhum quadro é descontaminado ou inocente: ele é sempre a resposta a outro ou outros quadros. Renoir ou Matisse respondem a Delacroix com uma pintura diferente e com propósitos diferentes. Mas teria sido pouco provável que se tivesse chegado a Picasso se Delacroix não tivesse existido.
Eduardo Lourenço temeu sempre a contradição, porque achava que a contradição diminuía o contraditado. Esqueceu-se de ir arejar as ideias com o grande Pascal, que dizia: “Nem a contradição é sinal de falsidade, nem a falta de contradição é sinal de verdade.” Fugiu de ser contraditado como da peste. Mas isso não lhe garante que a posteridade lhe diga que estava certo." Eugénio Lisboa ,03.03.2021

quarta-feira, 12 de maio de 2021

A LÍNGUA PORTUGUESA (2)


A LÍNGUA PORTUGUESA 
(continuação)
por Eugénio Lisboa

Em entrada  anterior, neste blog, publicámos  uma  breve  antologia de  testemunhos/ /homenagem à língua portuguesa, precedidos de algumas considerações sobre a riqueza dela e modos de a usar. Hoje juntamos mais algumas homenagens, em verso e em prosa.

AFONSO LOPES VIEIRA

(1878 – 1946)

A LÍNGUA PORTUGUESA

Ó Portuguesa língua, quando um dia

Floresceste nos rústicos cantares,

Quem te diria que por sobre os mares,

Com tua alma o teu génio cresceria!

 

Soou na Terra a tua melodia

E pelo orbe criou nações e lares;

Com teu ritmo de impulsos e vagares

Foste laço de povos e harmonia.

DAVID MOURÃO-FERREIRA

(1927 – 1996)

EXCERTO DO LIVRO

Magia, Palavra, Corpo 1993

Faça-se todo o possível – mesmo o possível impossível – para que os povos de língua portuguesa leiam cada vez mais os autores de língua portuguesa qualquer que seja a nacionalidade a que pertençam: angolanos, brasileiros, caboverdianos, portugueses, santomenses, sem prejuízo, aliás, do estimulante conhecimento de autores de outras línguas, e pouco a pouco virá a verificar-se a crescente e saborosa mestiçagem do idioma que de Portugal “banzou”, não para “xingar” os demais povos nem para com eles “cutucar”, mas para que a todos servisse de vivo instrumento de fraterna aproximação.

 

ALBERTO DE LACERDA

(1928 – 2007)

A LÍNGUA PORTUGUESA

Esta língua que eu amo

Com seu bárbaro lanho

Seu mel

Seu helénico sal

E azeitona

Esta limpidez

Que se nimba

De surda

Quanta vez

Esta maravilha

Assassinadíssima

Por quase todos que a falam

Este requebro

Esta ânfora

Cantante

Esta máscula espada

Graciosíssima

Capaz de brandir os caminhos todos

De todos os ares

De todas as danças

Esta voz

Esta língua

Soberba

Capaz de todas as cores

Todos os riscos

De expressão

(E ganha sempre a partida)

Esta língua portuguesa

Capaz de tudo

Como uma mulher realmente

Apaixonada

Esta língua

É minha Índia constante

Minha núpcia ininterrupta

Meu amor para sempre

Minha libertinagem

Minha eterna

Virgindade

EUGÉNIO LISBOA

(1930 -     )

OUTRO SONETO À LÍNGUA PORTUGUESA

Com a língua portuguesa me caso,

com ela vivo quando é preciso;

a língua portuguesa não tem prazo

e veste-se de luxo e conciso.

 

Vive de tristeza e de alegria,

sossega, como sabe, os aflitos

e sabe matizar a euforia,

apaziguando, suave, os altos gritos!

 

Enfeita-se com cores e buzinas,

desperta, com clamores bem sentidos

e com ares de grande dançarina,

 

aqueles que andando adormecidos

acordam àquele toque de alerta:

a língua é clamor e é oferta!

TERESA RITA LOPES

(1937 -     )

A LÍNGUA É UMA PÁTRIA

- é dito de Junqueiro e de Pessoa

mil vezes repetido

mas não sei se sentido.

Foi sobretudo no exílio que saboreei

 

essa verdade amarga e doce.

Quando o chão do meu país me faltava

debaixo dos pés,

errava sonâmbula dia e noite

agarrada às palavras

- meu colo minha respiração meu sustento.

Hoje orgulho-me de partilhar a pátria pobre

que somos

com miríades de irmãos constelando os céus

de todos os continentes.

A riqueza maior que ter podemos

não está em cofres, bancos ou acções

mas na música da nossa língua, ecoando

por milhões e milhões de gargantas.


Assim damos por concluída esta modesta mas sentida homenagem à língua de Camões e Vieira.
Eugénio Lisboa, Maio de 2021