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"Já
nessa época tomava o pequeno almoço às sete da manhã e era sempre a primeira a
chegar à sala. Os pais diziam que ela era o galo lá de casa, pois punha em
movimento a criadagem logo de manhã.
Sentava-se
na mesa, no lugar que lhe fora destinado desde que era gente, e enquanto não
lhe colocassem o leite à frente não parava de o reclamar. Olhava à sua volta e
as paredes enormes da sala de pé direito muito alto pareciam protegê-la. A
madeira e a pedra que as revestiam transmitiam-lhe uma refinada solidez que ao
longo da vida sempre a aquietou. Sentia-se bem naquela sala, mesmo estando
sozinha na mesa.
O
silêncio da casa era um borbulhar surdo de ruídos melodiosos, eufónicos. Começava
na cozinha com os passos abafados da cozinheira até ao roçar da louça na
bandeja, estendia-se depois aos toques do relógio de pé do corredor que
compassadamente se iam fazendo ouvir e então vinham, em correria deslumbrante,
os sons do jardim, dos pássaros imensos, das folhas das árvores, das abelhas em
constante laboração, dos cães latindo baixinho, das vozes arrastadas dos
trabalhadores anunciando a apanha dos frutos, a recolha das verduras, a
passagem dos animais … Enfim, eram
tantos os sons que entravam magicamente
pelas janelas da sala que lhe pareciam
ser o apelo da vida rodopiando à sua
volta. E assim se sentia alegre e feliz logo bem cedo, de manhã.
A
mãe só aparecia às sete e meia seguida sucessivamente dos irmãos. A essa hora
já estava a respirar cá fora, reconhecendo o seu mundo.
Corria,
então, para a garagem seguida pelos cães e apanhava a bicicleta e lá ia directa
ao rio que atravessava a quinta. Pelo caminho, ia olhando cada árvore pois
conhecia o nome de todas e a todas ia saudando numa interminável e quase
ininteligível lengalenga que só ela e as árvores reconheciam. Os cães a seu
lado iam ladrando com carinho como que a anunciar que ela estava a passar.
A
luz ia penetrando através do arvoredo que se alterava conforme se aproximava do rio. Aqui, as árvores eram mais
espessas, mais imponentes no seu porte e apesar de tão grandiosas acabavam
abruptamente numa vasta clareira verde onde inesperadamente surgia o rio.
E
a alegria, o prazer e aquele bater descompassado do coração tomavam conta dela.
O rio era a sua paixão. Todos os dias assim que o avistava, emergia nela uma
plêiade de sentimentos num turbilhão descontrolado que tinha de parar e
obrigar-se a arfar o ar com sofreguidão para não morrer logo ali.
E era assim que imaginara a morte! Deveria ser
o transbordar de tanta alegria que entupia a respiração, deixando o coração sem
ar. Quem lhe dissera fora a Benta, num dia que a acompanhara ao rio.
“-Ai
menina –dissera ela – respire, porque se não meter ar nesse coração, morre já
de tanta alegria.”
Saltava
da bicicleta e lançava-se em correrias pela margem do rio até o cansaço tomar
conta dela. Então, estendia-se na erva e começava a olhar o céu e a chamar os
pássaros pelos nomes, reconhecendo o chilrear de cada um antes mesmo de o
avistar.
Antero,
o filho do caseiro, tinha sido o seu mestre, embora fosse mais novo que ela um
ano. Ele era o seu companheiro mais fiel e inteligente. Sabia de tudo da quinta
e do rio.
Todas
as manhãs, ele vinha para o rio, mas só depois da ordenha das vacas, tarefa que
realizava com o pai. Assim, era ela sempre a primeira a chegar.
Quando
ele aparecia, trazia o sol nos cabelos e a luz nos olhos. Todo ele brilhava e
esse brilho encantava-a.
Ficavam,
então, horas a fio reconhecendo a mata para além do rio ou descobrindo novas
plantas que germinavam pela quinta. Por vezes, ele desenterrava a jangada de
madeira que encontraram num recanto escondido da quinta e lá iam rio abaixo
encenando descobertas que retiravam dos livros de aventuras que o pai lhe
oferecia.
Era
ele que lhe ensinava o nome das flores, das árvores, dos frutos, dos pássaros e
lhe traduzia os sinais que a natureza apresentava para anunciar a mudança das
estações.
Assim, passou a reconhecer o arco-íris, as falsas marés do rio e até o prenúncio da
chuva e da trovoada.
A
Primavera era a sua estação preferida. Quando vinha a casa, nas férias da
Páscoa, era um deslumbramento permanente.
Antero
tinha sempre um novo segredo que ia demoradamente revelando. Recordava-se da
ninhada de coelhos numa toca recôndita junto à nascente que abastecia a quinta.
Da coruja que ficara presa no galinheiro, do cordeirinho quase um anjo de tão
branco, enfeitado com um grande laçarote pastando no jardim à sua espera e de
tantos e tantos outros.
Nessa
altura, as mimosas e as túlipas enchiam a
quinta de cor. O amarelo salpicando a verdura e o contraste colorido dos
canteiros cheios de túlipas variadas eram uma visão que a emocionava logo à
chegada.
Os
cheiros frescos da terra espalhavam-se no ar e aí ela reconhecia o seu lugar.
Era este o cheiro que Antero trazia com
ele.
Que
saudade tinha de Antero quando estava longe. Que saudade teria sempre dele.
Os
irmãos eram mais novos e ficavam em casa, entregues aos cuidados da mãe coadjuvada pela preceptora. Naquele tempo,
todos eles faziam os primeiros anos de escolaridade em casa. Só mais tarde iam para os colégios em regime de internato a fim
de completarem os restantes graus de ensino.
Havia
um recinto junto à casa que funcionava como um parque de recreio. Tinha
baloiços de madeira suspensos por cordas largas e resistentes,
escorregas e um pequeno carrossel.
Existia também um cesto para lançamento de bolas .
Todas
as manhãs, os irmãos brincavam neste recinto sob a atenta
vigilância da mãe e da Augusta, a criada
que os vira nascer, enquanto ela corria pela quinta na companhia de Antero.
Na
parte da tarde, antes da merenda havia a
“hora da leitura”. A essa nunca faltava, nem mesmo quando crescera e os contos
infantis foram sendo substituídos pelas
aventuras inéditas de Jules Verne, pelo romance histórico de Walter Scott ou de Alexandre Dumas, pelas
Lendas e Narrativas de Alexandre Herculano ou até pelo acervo bucólico de Júlio Dinis.
Antero
fora sempre convidado para assistir. Lá aparecia de roupa lavada e engomada e
sentando-se a seu lado, na mesa redonda
, fechava os olhos quando a preceptora iniciava a leitura e a sua voz se
ia cambiando em matizes diferentes e expressivos para dar forma ora ao narrador,
ora a uma personagem, ora a outra e
ainda outra que fulgurantemente ia alternando e que de tão diversas e de
bem engendradas o transportavam para lugares longínquos e fantásticos onde
protagonizava peripécias surpreendentes.
E
assim nascera o gosto pela leitura que o acompanharia por toda a vida.
Quando
a merenda chegava, Antero bebia sumo e comia o bolo de cenoura que a Benta fazia
quase diariamente. Para ele tinham acabado as tarefas de ajuda ao Pai na
quinta. Ficava então pela casa e juntos iam descobrindo o segredo dos livros.
A
biblioteca era um lugar mágico. As paredes eram apenas livros já que eram eles
que ressaltavam em tantas estantes enfileiradas e repletas até ao cimo quer por
grandes exemplares, quer por pequenos. As enciclopédias distribuíam-se pelo
lado direito da sala junto à mesa de entrada. Seguiam-se os dicionários e só
depois se iam enfileirando todos os outros livros. Descobri-los passou a ser
uma campanha diária.
E para eles o mundo girava entre estas duas grandes campanhas: os livros e a Quinta." Maria José Vieira de Sousa, in " O Lugar, memórias de um romance", Junho de 2008