sábado, 31 de dezembro de 2022

O ano 2022

Em jeito de revista de fim de ano, relembramos vídeos marcantes da infame  Guerra da  Rússia contra a Ucrânia, quando completou  100 dias de invasão. A  violência das  atrocidades, dos crimes , das infâmias que Putin tem perpetrado contra a Ucrânia está ainda em marcha. Recordar  é não permitir a banalização da guerra.
A  invasão da Ucrânia foi a 24 de Fevereiro deste terrível ano de 2022, marcado por tanta infelicidade. Putin continua feroz, hediondo e insaciável com a destruição e mortandade que tem feito num belo país que tentava e tenta , apenas,  viver em paz e em democracia.
Que 2023 erradique para sempre Putin e a sua guerra  e extermine   o ódio , a usura,  a ganância do coração dos ditadores que   espalham o terror no mundo.
Relembremos , também, algumas imagens que marcaram o ano que finda hoje.

O corpo do fotojornalista mexicano Margarito Martinez Esquivel, no chão ao lado
 do próprio carro após ter sido morto ao pé de casa, em Tijuana, México,
em 17 de Janeiro de 2022.
© Reuters
Uma mulher palestiniana gesticula em frente às tropas israelitas durante um protesto
 contra a morte de três homens armados palestinianos pelas forças israelitas, em 
Hebron, na Cisjordânia ocupada por Israel, a 9 de Fevereiro de 2022.© Reuters


Militares da Guarda Nacional Ucraniana assumem posições no centro de Kyiv,
depois de a Rússia ter lançado uma operação militar maciça contra a Ucrânia,
a 25 de Fevereiro de 2022.
© Reuters
Yana Bachek é consolada pelo seu companheiro Yevgeniy Vlasenko e
 a mãe Lyubov Gubareva, enquanto lamenta a morto do pai Victor Gubarev,
morto durante um bombardeamento em Kharkiv, na Ucrânia, em Abril de 2022.
© Reuters
A mão de Iryna Filkina, uma mulher que, segundo moradores, 
          foi morta por soldados do exército russo, em Bucha, região de Kyiv, 
na Ucrânia, em Abril de 2022.© Reuters

A mulher somali deslocada internamente Habiba Bile, junto  da carcaça 
do seu gado morto após secas severas perto de Dollow, região de Gedo,  
Somália, a 26 de Maio de 2022. © Reuters


A rainha Isabel II, de Inglaterra, o príncipe Charles e Catherine, duquesa de Cambridge, 
juntamente com a princesa Charlotte e o príncipe Louis aparecem na varanda do
 Palácio de Buckingham como parte do desfile Trooping the Colourdurante 
as celebrações do Jubileu de Platina da Rainha, em 2 de Junho de 2022.© Reuters


Manifestantes protestam dentro da casa do presidente Gotabaya Rajapaksa, 
após fuga ,  e sob  uma crise económica no Sri Lanka a  9 de Julho de 2022. 
© Reuters


O caixão da rainha Elizabeth de Inglaterra a ser carregado, quando o carro 
fúnebre chega ao Palácio de Holyroodhouse, em Edimburgo, 
Escócia, a 11 de Setembro de 2022. © Reuters


Um membro do público arrasta um activista que está a bloquear a estrada 
durante um protesto "Just Stop Oil", em Londres, Inglaterra, 
a 15 de Outubro de 2022. 
© Reuters

 
Saul, de 4 anos, limpa as lágrimas do pai, Franklin Pajaro, depois de terem sido expulsos
 dos Estados Unidos e enviados de volta ao México, a 17 de Outubro de 2022.
© Reuters

Pelo menos uma dezena de explosões foram hoje ( 31 de Dezembro) ouvidas em Kiev 
perto do meio-dia, segundo as autoridades locais que apelaram aos habitantes 
para se protegerem nos abrigos.31 de Dezembro de 2022. Lusa

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A Glória conspurcada


 Amanhã, estaremos todos mortos,
mortos e, provavelmente, esquecidos,
porque os futuros estarão absortos
com os novos génios aparecidos.
 
Mas, no fogacho que é o presente,
preferir a grandeza da coragem,
à glória lamacenta e contingente,
dá outro brilho e gosto à viagem!
 
Um gesto que seja inútil, mas belo,
vale todas as medalhas e prémios:
ele vem de um grande e puro anelo,
 
que rejeita sinecuras e grémios.
Que o presente dure pouco, mas limpo,
dando a poucos um merecido Olimpo!
                                    09.12.2022
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Um conselho de Balzac


Balzac e Stendhal

Balzac aconselhara a Stendhal
que reduzisse de cinquenta páginas
o seu romance tridimensional,
por considerá-las, talvez, anódinas.
 
Rendido de gratidão, prometeu
o autor da Chartreuse que o faria,
porém, logo também esclareceu
que só com grande dor praticaria
 
tal corte, no seu grande romance:
nessas páginas, ele só falava
de encantos seus, de longo alcance!
 
Tal excesso, é possível, pesava,
mas em arte, por vezes, o que pesa
significa inesperada beleza!
                     29.12.2022
Eugénio Lisboa

A esperança e o medo são ficções supremas

 

Incipit
por George Steiner
"Já não temos começos. Incipit: a orgulhosa palavra latina que designa o início sobrevive no poeirento vocábulo inglês inception. O escriba da Idade Média assinala o início de uma linha, o novo capítulo, por meio de uma capital iluminada. No seu turbilhão dourado ou carmim, o iluminista de manuscritos dispõe animais heráldicos, dragões matinais, cantores e profetas. A inicial, significando a palavra o começo e o primado, é uma fanfarra. Proclama a máxima de Platão, que nada tem de evidente: a origem é a excelência maior de todas as coisas, naturais e humanas. Hoje, entre as inclinações ocidentais — observe-se a presença muda da luz matutina deste mundo —, os reflexos, as inflexões da percepção são os da tarde, do crepúsculo. Estou a generalizar. (O meu argumento é, no seu todo, vulnerável e expõe-se ao risco daquilo a que Kierkegaard chamava as «feridas da negatividade».)
A cultura ocidental conheceu outrora sentimentos de fim, o fascínio pelo ocaso. Os testemunhos da filosofia, as artes, os historiadores da sensibilidade fazem-se eco dos «tempos de encerramento dos jardins do Ocidente» ao longo das crises da ordem imperial romana, dos medos apocalípticos à volta do Ano Mil, do rasto da Peste Negra e da Guerra dos Trinta Anos. Desde sempre, os sinais da decomposição, do Outono e da luz que declina acompanharam, nos homens e nas mulheres, a consciência da decrepitude física e da nossa mortalidade comum. Já antes de Montaigne, houve moralistas para sustentarem que o recém-nascido é velho o bastante para morrer. Na construção metafísica mais segura de si, na obra de arte mais afirmativa, há sempre um memento mori, um esforço, implícito ou explícito, para conter a fuga do tempo fatal, a entropia do ser vivo sob todas as suas formas. É a esse combate que o discurso filosófico e a geração da arte devem a tensão que os inspira, a crispação irresoluta que conta entre as suas modalidades formais com a lógica e a beleza. «O grande Pã morreu» é um grito que assombra até essas sociedades às quais associamos, talvez demasiado convencionalmente, uma atitude optimista.
 Na atmosfera espiritual deste fim de século, há todavia, segundo creio, um cansaço fundamental. A cronometria íntima, os contratos com o tempo, que em tão larga medida determinam a nossa consciência, indicam o fim da tarde sob formas ontológicas: que se referem à essência, ao tecido do ser. Chegámos tarde. Ou temos pelo menos a impressão de ter chegado tarde. A mesa foi levantada. «Vamos fechar, minhas senhoras e meus senhores, vamos fechar». Há no ar como que um perfume de «adeuses». Estas apreensões são ainda mais impressivas pelo facto de contrariarem o aumento da duração e da esperança da vida individual nas economias ocidentais. E, contudo, as sombras crescem. Dir-se-ia que nos inclinamos para a terra e para a noite, como plantas.
 A nossa natureza é sedenta de explicação, de causalidade. Queremos saber: Porquê? Que hipótese conceber, capaz de elucidar uma fenomenologia, uma estrutura da experiência vivida tão difusa, tão múltipla nas suas expressões como a daquilo que é «terminal»? Interrogações como esta exigirão uma resposta séria, ou não se prestarão mais que a palavreados vãos? Não sei ao certo.
Por mais longe que procuremos na história, a inumanidade é permanente. Não houve utopias, nem comunidades de justiça ou de perdão. As inquietações que são hoje as nossas — as violências na rua, a fome no Terceiro Mundo, as regressões sob a forma de conflitos étnicos bárbaros e os riscos de pandemias — têm de ser situadas contra o pano de fundo de um momento absolutamente excepcional. A traço grosso, desde Waterloo até aos massacres dos anos de 1915-1916 na Frente Ocidental, a burguesia europeia conheceu uma época privilegiada, um armistício com a história. Apoiando-se na exploração da mão-de-obra industrial, nas metrópoles, e no regime colonial, no exterior, os europeus conheceram um século de progresso, de larguezas liberais, de esperança razoável. É nos clarões póstumos, e sem dúvida idealizados, deste calendário excepcional — recorde-se a comparação persistente da época anterior a Agosto de 1914 com um «longo Verão» —, que vivemos o nosso actual mal-estar.
 Todavia, ainda que descontemos a parte da nostalgia selectiva e da ilusão, a verdade não deixa de o ser: para toda a Europa e para a Rússia, este último século tornou-se um período infernal. Os historiadores calculam em mais de setenta milhões de mortos o número dos homens, das mulheres e das crianças vítimas da guerra, da fome, das deportações, dos massacres e das infecções políticas entre Agosto de 1914 e a «limpeza étnica» dos Balcãs. Existiram no passado episódios atrozes de peste, de fome e de carnificina. A derrocada da humanidade no século XX comporta, no entanto, enigmas peculiares. Não é obra nem de cavaleiros das estepes nem de bárbaros que se atropelam às portas das cidades. O nazismo, o fascismo, o estalinismo (ainda que neste último caso as coisas sejam mais opacas) nasceram do interior, do contexto, do teatro e dos instrumentos de administração social dos lugares cimeiros da civilização, da educação, do progresso científico, bem como do humanismo cristão e do humanismo das Luzes.
Abster-me-ei de entrar nos debates intermináveis, e de certo modo degradantes, em torno da unicidade da Shoah («holocausto» é um termo técnico grego, um termo nobre que designa o sacrifício religioso, e não um termo que signifique apropriadamente uma loucura controlada e um «vento de treva»). Dir-se-ia contudo que o extermínio pelos nazis da comunidade dos judeus da Europa é uma «singularidade», não tanto pela sua dimensão — o estalinismo fez um número infinitamente maior de mortes — como pelas suas motivações. Uma categoria inteira de seres humanos, incluindo as crianças, foi então declarada culpada de ser. O seu único crime era existir e pretender viver.
 A catástrofe que varreu a civilização europeia e eslava foi singular num outro sentido. Aniquilou progressos anteriores. Os próprios ironistas das Luzes (Voltaire) haviam predito com segurança a abolição duradoura da tortura judicial na Europa. Tinham decretado impensável um regresso generalizado à censura, aos autos-de-fé, para já não falarmos da liquidação dos hereges ou dos dissidentes. Para o liberalismo e para o positivismo científico do século XIX, era natural esperar que o desenvolvimento da escolarização, do saber científico e técnico e dos seus resultados, da livre circulação e dos contactos entre comunidades, se saldasse por um aperfeiçoamento regular da civilidade, da tolerância política e das práticas económicas tanto públicas como privadas. Os seus axiomas de esperança reflectida revelaram-se, uns atrás dos outros, falsos. A educação não só se mostrou incapaz de tornar a sensibilidade e o saber resistentes à «desrazão» assassina, como se passou qualquer coisa de mais desconcertante ainda: o refinamento intelectual, o virtuosismo e o gosto artísticos, a eminência científica colaboram de bom grado e activamente com os imperativos totalitários ou, no melhor dos casos, permanecem indiferentes ao sadismo circundante. Os concertos esplêndidos, as exposições dos grandes museus, a publicação de livros eruditos, o aprofundamento das investigações universitárias, tanto nas ciências como nas humanidades, florescem nas imediações dos campos da morte. A competência tecnocrática responderá ao apelo do inumano ou permanecerá neutra. O ícone do nosso tempo é a preservação de uma árvore da predilecção de Goethe no limiar de um campo de concentração.
Ainda não começámos a avaliar deveras os danos que os acontecimentos sobrevindos a partir de 1914 infligiram ao homem — ao homem enquanto espécie que atribui a si própria o qualificativo de sapiens. Ainda não chegámos a apreender a coexistência no tempo e no espaço — essa coexistência acentuada pela retransmissão imediata através da palavra e da imagem nos grandes meios de comunicação de massa mundiais — do supérfluo ocidental e da fome, da privação e da mortalidade infantil que actualmente governam três quintas partes da humanidade. Existe uma dinâmica da demência esclarecida na nossa maneira de desperdiçar o que resta dos recursos naturais, da fauna e da flora do mundo. A garganta Sul do Evereste é um depósito de lixo. Quarenta anos depois de Auschwitz, os Khmers vermelhos enterram vivos cerca de cem mil inocentes. O resto do mundo, que se encontra perfeitamente informado, nada faz. As novas armas saídas das nossas fábricas chegam sem perder tempo aos campos da carnificina.
Uma vez mais: a violência, a opressão, a sujeição económica e a irracionalidade social prosperaram de modo endémico na história — na das tribos como na das metrópoles. Mas, dada a extensão dos massacres, o contraste insensato entre a riqueza disponível e a miséria efectiva, a probabilidade de as armas termo-nucleares e bacteriológicas acabarem deveras com o Homem ou com o seu meio, a verdade é que o último século nos proporcionou novas razões de desespero. Deixou entrever claramente a possibilidade de uma inversão de marcha da evolução, de uma marcha atrás sistemática a caminho da bestialização. É o que faz de A Metamorfose de Kafka a fábula-chave da modernidade, ou o que, apesar do pragmatismo anglo-saxónico, torna plausíveis as célebres palavras de Albert Camus: «Só há um problema filosófico realmente sério: o suicídio».
 Aquilo que gostaria de considerar com brevidade é, por assim dizer, o impacto sobre a gramática destes tempos sombrios. Por gramática, entendo aqui a organização articulada da percepção, da reflexão e da experiência, a estrutura nervosa da consciência quando esta comunica consigo própria e com os outros. Pressinto (mas trata-se de um domínio quase inteiramente conjectural) que o futuro é um tempo que apareceu relativamente tarde na fala humana. Talvez se tenha formado a partir do fim da última era glaciar, ao mesmo tempo que os «futuros» engendrados pelo armazenamento de víveres, pelo fabrico e  pela conservação  de utensílios para além das necessidades imediatas, bem como pela descoberta muito gradual dos animais  e da agricultura. Numa espécie de registo ”meta” ou pré-linguístico, dir-se-ia que os animais têm consciência do “presente” e que , segundo podemos imaginar, possuem uma certa capacidade de rememoração. O futuro, a faculdade de evocar aquilo que pode  passar-se no dia seguinte ao do nosso funeral ou no espaço estrelar dentro de um milhão de anos, parece ser próprio do homo sapiensO mesmo acontece com o conjuntivo e com os modos contra-factuais, que, de certa maneira, se aproximam dos tempos futuros. Tanto quanto podemos concebê-lo , só o homem dispõe de meios que lhe permitem transformar o seu mundo através de cláusulas  condicionais, formular frases do seguinte tipo: « Se César  não tivesse ido ao Capitólio nesse dia…».  Parece-me  que esta “gramatologia” fantástica,  formalmente incomensurável, dos futuros verbais, dos conjuntivos e dos optativos  se revelou indispensável à sobrevivência , à evolução do “ animal dotado de linguagem” frente ao escândalo e à incompreensibilidade da morte individual. Num sentido muito real, qualquer uso  do verbo “ser” no futuro é uma negação , por limitação que seja,  da mortalidade, do mesmo modo que qualquer uso  do “se”, de uma frase no condicional, exprime  a rejeição  do curso bruto e inevitável das coisas, do despotismo dos factos. Ao descreverem círculos em campos de força semântica complexos em torno de um centro ou de um núcleo de potencialidades escondido, o “será” ou o “se” dão palavras de passe da esperança.
A esperança e o medo são ficções supremas que extraem a sua força da sintaxe. São tão inseparáveis uma da outra como da gramática. A esperança contém um medo de não-consumação. O medo tem em si um grão de esperança, o pressentimento de poder superado. É o estatuto da esperança que é hoje problemático.
(…) O século XX lançou a dúvida sobre os garantes teológicos , filosóficos e político-materiais da esperança. Põe em questão a razão de ser e a credibilidade dos tempos do futuro. Torna compreensíveis as palavras de Franz Kafka: « A esperança é abundante , mas não é para nós». "
George Steiner, in Gramáticas da Criação, Relógio D’Água Editores, 2002 , pp.11-17, 19
George Steiner
Sobre o Autor e o  Livro
"George Steiner inicia Gramáticas da Criação, a sua obra mais radical, com a frase «Já não temos começos». Este livro, pela exploração exaustiva da noção de criação no pensamento ocidental, na literatura, na religião e na história, pode ser considerado um opus magnum. George Steiner reflecte sobre as diferentes maneiras através das quais falamos de começos, sobre o «cansaço fundamental» que atravessa o nosso espírito de fim de milénio e sobre a gramática em mutação das discussões sobre o fim da cultura e da arte ocidentais.
Com o estilo habitual, Steiner analisa as forças que orientam o espírito humano e a nossa percepção das sombras que se estendem sobre a civilização ocidental.
George Steiner morreu aos 90 anos na sua casa de Cambridge, Inglaterra. Nascido em Paris, em Abril de 1929, no seio de uma família judia, George Steiner, que gostava de se pensar acima de tudo como professor, morreu a 3 de Fevereiro de 2020, três dias após a consumação do Brexit, que via como uma séria ameaça à Inglaterra, e 75 anos depois da libertação de Auschwitz, uma questão que sempre o acompanhou, .
George Steiner, tido como um dos mais importantes críticos literários das últimas décadas - a par de Harold Bloom - dedicou parte da sua vida ao ensino em universidades como Princeton, Yale, Nova Iorque, Cambridge e Genéve. Permanece como um dos mais conhecidos e conhecedores críticos literários do século XX e, também, do próprio século XXI. No entanto, o seu trabalho não se limita à crítica, mas também ao próprio estudo da sociedade e da literatura com as ferramentas que as suas leituras lhe proporcionaram. A sua reputação firmava-se, assim, como um consolidado professor académico e como um membro notável da academia europeia. Tal perceber-se-ia quando foi nomeado professor emérito em Génova, mas também membro honorário do Balliol College, de Oxford.
A carreira académica fomentava-o a redigir ensaios e, nessa sequência, a efetuar críticas literárias – mais de duzentas foram aquelas que escreveu para o “The New Yorker”. A Universidade de Chicago foi a mais beneficiada, assim como os jornais “The Times” e “The Guardian”.
George Steiner era membro do Churchill College em Cambridge. Recebeu vários prémios pelas suas obras, nomeadamente os das Fundações Fulbright e Guggenheim, o Prémio Morton Dauwen Zabel da Academia Americana de Artes e Letras e o Prémio Truman Capote. Entre os seus livros estão: No Castelo do Barba Azul, Antígonas, Errata: Revisões de Uma Vida, Depois de Babel, Paixão Intacta, Nostalgia do Absoluto e Os Logocratas."

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Zola, uma voz corajosa

Émile Zola por Edouard Manet, 1868.

Émile Zola nasceu em Paris, a 10 de Abril de 1840. Em 1843, ele e a família mudaram-se  para a cidade de Aix-en-Provence, situada no sul da França. Quando Zola tinha sete anos, o pai, François Zola um engenheiro de origem italiana , morreu, o que fez com que a mãe, Émilie Aubert, tivesse dificuldades financeiras para manter a família.
Em 1858, Zola e a mãe mudaram-se para Paris, para que ele pudesse  dedicar-se aos estudos. Contudo, no término da educação básica, como  não foi bem sucedido  no exame de conclusão da escola, não foi aprovado no curso de Direito.
Zola trabalhou na editora Hachette, além de ter colaborado em jornais, escrevendo crónicas, crítica literária e de arte, bem como textos sobre política, nos quais evidenciava antipatia por Napoleão III. Em 1864, publica uma colecção de novelas: “Les Contes à Ninon”. Em 1865, publica o primeiro romance, de inspiração autobiográfica, “La Confession de Claude”, tendo atraído  a atenção da opinião pública e da polícia. Nessa época, conheceu Manet, Pissarro e Flaubert.
Em 1865, casou-se com Alexandrine Meley.
Em 1867, Zola publica o primeiro romance de sucesso, “Thérese Raquin”, inaugurando o romance naturalista.
Em 1898, Émile Zola envolveu-se num caso polémico de grande repercussão ao defender, em público, o oficial judeu do Exército francês, o Capitão Alfred Dreyfus, num caso de traição montada pelos generais reaccionários da França.
Numa carta aberta ao presidente da República francesa, editada na primeira página do jornal L’Aurore, intitulada " J’accuse"* (Eu Acuso), Zola defende a inocência de Dreyfus e critica a postura antissemita do alto escalão do Exército francês. Por ter acusado o comando militar de ter forjado as provas de acusação, foi perseguido condenado à prisão, tendo que se refugiar em Inglaterra até 1899.
A 29 de Setembro de 1902, onze meses depois que o processo de Dreyfus foi reaberto e Dreyfus ser solto, Émile Zola e a mulher retornaram a França.
O casal morreu em circunstâncias misteriosas, asfixiados por monóxido de carbono enquanto dormiam. Surgiram especulações de que teriam bloqueado a chaminé de seu apartamento para o matar.
Como um acto de grande honraria dispensada aos franceses de grande mérito, os seus restos mortais foram transferidos, em 1908, para o Panteão de Paris.
Emile Zola é considerado um dos maiores escritores do século XIX. Pioneiro do Naturalismo , os seus romances retratam muitos dos problemas sociais da época. 
* "J'accuse" foi adaptado ao cinema ,  num magnifico  filme pela mão talentosa do polémico   realizador Roman Polanski.
Frases de Emile Zola
“Os governos suspeitam da literatura porque é uma força que lhes escapa.”
“Se calar a verdade e enterrá-la, ela ficará por lá. Mas, pode ter certeza que, um dia, ela germinará.”
“O artista não é nada sem o dom, mas o dom não é nada sem o trabalho.”
“O sofrimento é o melhor remédio para acordar o espírito.”
“Prefiro morrer de paixão a morrer de tédio.”
“O amor, como as andorinhas, dá felicidade às casas.”
“As dificuldades, como as montanhas, aplainam-se quando avançamos por elas.”
“A alegria de viver desaparece quando não há mais esperança.”
“O que é o amor? — um conto simples, dito de muitas maneiras.”
“Uma obra de arte é um canto da criação visto através de um temperamento."

O Finito e o Infinito

 
Alguma vez terá nascido um deus?
Preocupado com este planeta,
uma pequena poeira nos céus?
Um deus bem equipado com profeta?
 
Na imensidão deste universo,
um imenso deus todo poderoso
preocupar-se-ia, em prosa ou verso,
com este pobre planeta pomposo?
 
O infinito olhará o finito?
Que sentido faz o imenso universo
preocupar-se com terreno grito?
 
Não será o infinito adverso
às pretensões daquilo que é pequeno,
tonto, obsceno e cheio de veneno?
                             27.12.2022
Eugénio Lisboa

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Autobiografia

Autobiografia
 
Uma vida escreve-se devagar,
embora se viva muito depressa:
mal se partiu, já se está a chegar,
mesmo que, no meio, muito aconteça!
 
Escrevê-la é moroso e complicado:
a memória guarda mas também esquece
e, se parte fica resguardado,
o resto, ingloriamente, fenece!
 
Escreve-se a vida, pra vencer a morte,
para dar à vida uma outra vida,
fechando-a, enfim, num cofre forte.
 
No cofre guardada e não esquecida,
pensa quem escreve, mal sabendo
quanto tudo o tempo vai roendo!
                                  08.12.2022
Eugénio Lisboa
 

Duzentos Anos de Amor

Um dia de manhã, cheguei à porta
da casa da Senhora de Rênal.
Temeroso e de alma semimorta,
deparei com seu rosto angelical.

O seu modo e a sua doçura
de tal modo me apaziguaram,
naquela inesperada conjuntura,
que os meus temores se dissiparam.

De acalmado e grato que eu estava,
depressa me apercebi que ela
era um tesouro que encontrava!

Há duzentos anos, numa novela,
encontrei-a e descobri o amor
vestido de fervor e de pudor!
                  11.12. 2022
Eugénio Lisboa

A Senhora de Rênal é, como todos sabem, a admirável protagonista do romance de Stendhal, LE ROUGE ET LE NOIR. Como se deduz do meu soneto, sempre considerei o protagonista Julien Sorel indigno dela e apressei-me a ocupar o lugar dele no grande romance de Stendhal, porque é óbvio que, de mim, é que ela gostava e não dele.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A terra do fogo e do gelo


Iceland in (4K)
The land of Fire and Ice   
"A journey 12.688 km away from home. Enjoy in 4K for the best experience. - Gear: Shot in 4K, the gear I'm using is DJI Mini 3 Pro, iPhone 13 pro with a tiny bit of help from Sony RX10 Mk4 - Software editor: Wondershare Filmora - Music: Ludvig Forssell – Bridges e Craters" - Walk and fly, Nov. 2022.

O Natal , um alvoroço que nos acorda

Natal não é ornamento

“O Natal não é ornamento: é fermento
É um impulso divino que irrompe pelo interior da história
Uma expectativa de semente lançada
Um alvoroço que nos acorda
para a dicção surpreendente que Deus faz
da nossa humanidade

O Natal não é ornamento: é fermento
Dentro de nós recria, amplia, expande
O Natal não se confunde com o tráfico sonolento dos símbolos
nem se deixa aprisionar ao consumismo sonoro de ocasião
A simplicidade que nos propõe
não é o simplismo ágil das frases-feitas
Os gestos que melhor o desenham
não são os da coreografia previsível das convenções

O Natal não é ornamento: é movimento
Teremos sempre de caminhar para o encontrar!
Entre a noite e o dia
Entre a tarefa e o dom
Entre o nosso conhecimento e o nosso desejo
Entre a palavra e o silêncio que buscamos

Uma estrela nos guiará
O Natal não é ornamento”
Pe. José Tolentino Mendonça, in Ecclesia

domingo, 25 de dezembro de 2022

Ao Domingo Há Música

Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios
13 - Hino ao Amor *
Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine.
E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé de maneira tal que transportasse os montes, se não tivesse amor, nada seria.
E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
O amor é benigno; o amor não é invejoso; o amor não se vangloria, não busca os seus próprios interesses, não suspeita mal; não se regozija com a injustiça, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba.
Agora vemos por espelho, por enigma, mas quando vier o que é perfeito veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei plenamente.
Fé, esperança e amor: dos três o maior é o amor.

* Amor traduz do grego  ( agápe"αγάπη" e do latim "caritas" , que refere o  amor oblativo (que dá sem esperar retribuição).

Permitir  à Ucrânia o regresso de todos aqueles que dela se viram obrigados a sair  não pode ser um sonho , mas sim o  efectivo respeito por um direito inalienável. O amor terá de vencer.
É para a Ucrânia que vai o nosso abraço natalício . 
Que Deus salve a Ucrânia!

Refugiados Ucranianos, na Lituânia,  interpretam a canção Red Kalyna (legendado).
 

sábado, 24 de dezembro de 2022

Paz entre as pessoas de boa vontade

 

Evangelho de Lucas 2, 10-12
Não temais, eis que vos anunciamos uma Boa Nova, que será de alegria para todo o povo: Hoje vos nasceu, na Cidade de Davi, o Salvador, que é o Cristo e Senhor!

Evangelho de Lucas 2, 13-14
E de súbito surgiu, juntamente com o anjo, uma multidão do exército celeste, louvando a Deus e dizendo:
-Glória nas alturas a Deus!
E, sobre a terra, paz
entre as pessoas de boa vontade.

Que se  realize  a  Boa Nova   ,  em Paz e Amor,   e nunca mais feneça, no coração de todos nós e do mundo inteiro.

A belíssima voz de Barbara Hendricks, em Laudate Dominum , de Wolfgang Amadeus Mozart.

    

O Limpa-Palavras


Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.
 
Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.
 
A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papeis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.
 
No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.
 
A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.
 
Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.
 
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.
Álvaro Magalhães,
in  O Limpa-Palavras e outros poemas , Edições Asa

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

A palavra de minha escolha

 
O poeta Alberto de Lacerda
gostava da palavra “maravilha”,
que escrevia com mão direita e esquerda,
talvez porque ela rimava com ilha,
 
tendo ele nascido ao sol duma ilha.
Cada um faz a escolha que pode:
eu, por exemplo, gosto de “baunilha”,
palavra linda, que tanto eclode!
 
Mas se quer saber da qual eu mais gosto,
a que me traz o passado ao presente,
um passado, no qual, eu me recosto,
 
então, pegue na caneta e assente:
coisa bela como saia ou catraia,
só uma me ocorre e é “praia”!
                       02.12.2022
Eugénio Lisboa

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Naquele dia de Natal


Naquele dia de Natal tão frio
por Cormac McCarthy,
"Nevara um pouco durante a noite e o cabelo dela gelara e era dourado e cristalino e os olhos tinham congelado, duros como seixos. Uma das botas amarelas soltara‑se e estava de pé, na neve, por baixo dela. O casaco jazia na neve, um montículo coberto de poalha branca, onde o deixara cair, e ela tinha no corpo somente um vestido branco e pendia entre os postes despidos e cinzentos das árvores invernais, a cabeça curvada e as mãos um tudo‑nada voltadas para fora como as de certas estátuas ecuménicas cuja postura nos pede que meditemos na sua história. Que meditemos nos fundos alicerces do mundo, cuja substância é feita da dor das suas criaturas. O caçador ajoelhou‑se e cravou a coronha da espingarda na neve, a seu lado, e tirou as luvas e deixou‑as cair e entrelaçou as mãos uma na outra. Pareceu‑lhe que devia rezar, mas não sabia nenhuma prece para uma ocasião assim. Vergou a cabeça. Torre de Marfim, disse. Casa de Ouro. Ficou muito tempo ali ajoelhado. Quando abriu os olhos, viu uma pequena forma meio enterrada na neve e debruçou‑se e raspou a neve com os dedos e apanhou do chão uma corrente de ouro com uma chave de aço, um anel de ouro branco. Meteu a corrente no bolso do blusão de caça. Ouvira a ventania durante a noite. Os efeitos da ventania. Um caixote do lixo a estralejar por cima dos tijolos, nas traseiras da casa. A neve a soprar lá longe, no meio da floresta, no escuro. Ergueu o rosto e fitou aqueles olhos frios e esmaltados que cintilavam, azuis, à luz fraca do inverno. Ela prendera o vestido com uma faixa vermelha, para ter a certeza de que a encontravam. Um farrapo de cor na desolação escrupulosa. Naquele dia de Natal. Naquele dia de Natal tão frio e quase sem palavras."
Cormac McCarthy, in O Passageiro, Relógio D'Água Editores, tradução de Paulo Faria, 424 pgs., Lisboa, 10.2022

SOBRE O AUTOR:
"Cormac McCarthy nasceu em Rhode Island, em 1933, e estudou na Universidade do Tennessee, que deixou para ingressar na Força Aérea. Vive actualmente em Santa Fé, no sul dos Estados Unidos. Na Relógio D’Água tem publicados O Guarda do Pomar, Meridiano de Sangue, A Estrada, Este País não É para Velhos, Suttree, Belos Cavalos, Nas Trevas Exteriores, A Travessia, O Conselheiro, Filho de Deus e Cidades da Planície. De entre os prémios que recebeu, destacam-se o National Book Award, o National Book Critics Circle Award, o Pulitzer Prize e o James Tait Black Memorial Prize."
SOBRE O LIVRO:
"Dezasseis anos depois, Cormac McCarthy, vencedor do Prémio Pulitzer com A Estrada, regressa com o primeiro de dois novos livros. 
O Passageiro narra a história de um mergulhador de resgate, assombrado pela perda, receoso das águas mais profundas, e que, perseguido por uma conspiração que não compreende, anseia por uma morte que não consegue conciliar com Deus. 
O projecto ficará concluído com Stella Maris, livro que será igualmente publicado pela Relógio D’Água, em tradução de Paulo Faria."

quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Natal, digamos…


Que natal é este, que sabe a morte,
a destruição, a estupro e frio?
É isto promessa, é isto sorte?
Valerá mesmo o curso deste rio?
 
O natal foi então feito para isto?
Prometer, em vez dum começo, um fim?
Em vez de Jesus Cristo, um Mefisto?
E ter, no fim, um toque de clarim?
 
Mas que música ouvir, nesse fim?
A sinfonia selvagem do vento?
Os raios que presidem ao festim?
 
O horror visitado com espavento?
Um furacão, com música de Wagner,
e concebido por fino designer?
                               21.12.2022                   
Eugénio Lisboa

Romanze

.
De Franz Listz, Concerto No. 1 II. Romanze - Larghetto, por Lang Lang ao piano. Composição muito popular que pode ser evocada nestes dias de tanto clamor e duras mudanças como um oásis bem vindo.

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Elogio ao ócio


Elogio ao ócio
por Bertrand Russell
“Movimentar a matéria em quantidades necessárias à nossa existência não é, decididamente, um dos objetivos da vida humana. Se fosse, teríamos de considerar qualquer operador de britadeira superior a Shakespeare. Fomos enganados nessa questão por dois motivos. Um é a necessidade de manter os pobres aplacados, o que levou os ricos a pregarem, durante milhares de anos, a dignidade do trabalho, enquanto tratavam de se manter indignos a respeito do mesmo assunto. O outro são os novos prazeres do maquinismo, que nos delicia com as espantosas transformações que podemos produzir na superfície da Terra. Nenhum desses motivos exerce um especial fascínio sobre o verdadeiro trabalhador. Se lhe perguntarmos qual é a melhor parte de sua vida, ele dificilmente responderá: ‘É o trabalho manual, que sinto como a realização da mais nobre das tarefas humanas, e também porque fico feliz em pensar na capacidade que tem o homem de transformar o planeta. É verdade que meu corpo precisa de horas de descanso, que procuro preencher da melhor forma, mas meu maior prazer é ver raiar o dia para poder voltar ao trabalho, que é a fonte da minha felicidade.’ Nunca ouvi nada do género saindo da boca de nenhum trabalhador. Eles encaram o trabalho como deve ser encarado, uma forma de ganhar a vida, e é do lazer que retiram, aí sim, a felicidade que a vida lhes permite desfrutar.”
Bertrand Russell, in  O Elogio ao Ócio, Sextante, 2002. P. 31.

Little Cats

The day I met Ísis, my little cat,
was the beginning of a beautiful friendship!
A little cat is as blind as a bat
and moves funnily like a drunken ship.
 
Even if funny, they are beautiful,
as they obviously invented all grace.
A little cat is weak but forceful
and his story does not need a preface!
 
A cat will never understand a dog,
because a dog will never be a cat!
To obey orders is just a prologue
 
to slavery, to pain and all that!

Cats are not inclined to live like slaves,
as they were born belonging to the braves!
                                  18.12.2022
Eugénio Lisboa

O segundo verso da primeira quadra é uma imortal citação do grande clássico do cinema: CASABLANCA. Ficaria mal um soneto dedicado aos felinos, na língua de Shakespeare, sem recurso a um inesquecível clássico da sétima arte. Na realidade, o segundo verso é a última fala do filme, proferida, para a eternidade, pelo grande actor Claude Rains, saindo de cena, de braço dado, com Bogart. Shakespeare teria assinado por baixo.

Glosa sobre o esquecimento

Se a morte mata profundamente,
o esquecimento que lhe sucede
mata até mais definitivamente,
porque, além dele, nada procede.
 
O esquecimento remata o que a morte
apenas tristemente começou:
o esquecimento não tem passaporte,
porque, nele, a viagem terminou.
 
O esquecido desapareceu,
para sempre: definitivamente!
Depois de morrer, ainda morreu,
 
mas morreu de vez, absolutamente:
porque, então, não há mesmo regresso,
sendo que o nada se impôs com sucesso!
                                   28.11.2022
Eugénio Lisboa

domingo, 18 de dezembro de 2022

Ao Domingo Há Música

 

As ilusões sustentam a alma como as asas sustentam o pássaro.                                                Victor Hugo


O que cada um toma por ilusão é diferente em cada ser humano. Diz-se que um engano foi uma grande ilusão. Não quer isso dizer que foi mau. Há quem invente ilusões à medida das suas necessidades. Há ilusões de todos tamanhos e para todos os sustentos.
O apontamento musical de hoje não traz ilusões , apenas motivos para as criar e alimentar a alma.

The family Bocelli: Andrea Bocceli, Matteo Bocelli e Virginia Bocelli , em The Greatest Gift, em The Royal Legion Festival of Remembrance 2022,  no Royal Albert Hall, Londres.
   
Shona McGarty, interpreta Hallelujah , a belíssima canção de Leonard Cohen,  em The Royal Legion Festival of Remembrance 2022, no Royal Albert Hall, Londres.

sábado, 17 de dezembro de 2022

O valoroso D. Quixote na aventura dos moinhos de vento

Capítulo VIII — Do bom sucesso que teve o valoroso D. Quixote na espantosa e jamais imaginada aventura dos moinhos de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação.
por Miguel de Cervantes
“Quando nisto iam, descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento, que há naquele campo. Assim que D. Quixote os viu, disse para o escudeiro:
— A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que o soubemos desejar; porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é boa guerra, e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.
— Quais gigantes? — disse Sancho Pança.
— Aqueles que ali vês — respondeu o amo — de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.
— Olhe bem Vossa Mercê — disse o escudeiro — que aquilo não são gigantes, são moinhos de vento; e os que parecem braços não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mós.
— Bem se vê — respondeu D. Quixote — que não andas corrente nisto das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.
Dizendo isto, meteu esporas ao cavalo Rocinante, sem atender aos gritos do escudeiro, que lhe repetia serem sem dúvida alguma moinhos de vento, e não gigantes, os que ia acometer. Mas tão cego ia ele em que eram gigantes, que nem ouvia as vozes de Sancho nem reconhecia, com o estar já muito perto, o que era; antes ia dizendo a brado:
— Não fujais, covardes e vis criaturas; é um só cavaleiro o que vos investe.
Levantou-se neste comenos um pouco de vento, e começaram as velas a mover-se; vendo isto D. Quixote, disse:
— Ainda que movais mais braços do que os do gigante Briareu, heis-de mo pagar.
E dizendo isto, encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcinéia, pedindo-lhe que, em tamanho transe o socorresse, bem coberto da sua rodela, com a lança em riste, arremeteu a todo o galope do Rocinante, e se aviou contra o primeiro moinho que estava diante, e dando-lhe uma lançada na vela, o vento a volveu com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando desastradamente cavalo e cavaleiro, que foi rodando miseravelmente pelo campo fora.
Acudiu Sancho Pança a socorrê-lo, a todo o correr do seu asno; e quando chegou ao amo, reconheceu que não se podia menear, tal fora o trambolhão que dera com o cavalo.
— Valha-me Deus! — exclamou Sancho. — Não lhe disse eu a Vossa Mercê que reparasse no que fazia, que não eram senão moinhos de vento, e que só o podia desconhecer quem dentro na cabeça tivesse outros?
— Cala a boca, amigo Sancho — respondeu D. Quixote —; as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças; o que eu mais creio, e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestão, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos, para me falsear a glória de os vencer, tamanha é a inimizade que me tem; mas ao cabo das contas, pouco lhe hão-de valer as suas más artes contra a bondade da minha espada.
— Valha-o Deus, que o pode! — respondeu Pança.
E ajudando-o a levantar, o tornou a subir para cima do Rocinante, que estava também meio desazado.
Conversando no passado sucesso, continuaram caminho para Porto Lápice, porque por ali dizia Dom Quixote, não era possível que se não achassem muitas e diversas aventuras, por ser sítio de grande passagem. Que pesar o ver-se então sem lança! (como ele dizia ao escudeiro)…”
Miguel de Cervantes, in  Dom Quixote de La Mancha, Capítulo VII, 1605, Publicações Dom Quixote.