Autumn in New York, por Salvador Sobral , do Álbum "Excuse-me", 2016
"A coisa mais indispensável a um homem é reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento" Platão
quarta-feira, 31 de maio de 2017
Interlúdio Musical
terça-feira, 30 de maio de 2017
Amor: egoísmo ou altruísmo?
“O amor que
temos por nós próprios e o amor que temos pelos outros confundem-se
psicologicamente; eis por que a velha questão de se saber se o amor não passa
de um sentimento egoísta em vez de ser um sentimento altruísta pôs o mais
ocioso dos problemas. A oposição do egoísmo e do altruísmo é completamente
suprimida no amor.” Thomas Mann acrescenta isto, como um suplemento
de afronta aos “recatados”, que têm medo de parecerem narcisos: “Goethe
vituperou, durante toda a sua vida, a afectação de recato com que se pretende
interditar a complacência com o próprio eu. Dava ele a entender que tal sentimento
só era bom para as pessoas a quem não assistia a mínima razão para se estimarem
a si próprias. Tomou mesmo a defesa descarada da pequena vaidade corrente,
declarando que a sua desaparição faria perecer a sociedade e que um snob tem ao
menos a vantagem de nunca chegar a ser demasiado grosseiro.”
segunda-feira, 29 de maio de 2017
O pessimismo de Huxley, segundo Miguel Urbano Rodrigues
A contra utopia de Huxley e o seu pessimismo
Por Miguel Urbano Rodrigues
Por Miguel Urbano Rodrigues
04.Jan.2016
“Admirável mundo novo” será talvez a mais conhecida obra de Aldous Huxley. Nela descreve uma sociedade contra-utópica, esvaziada de verdadeira humanidade. A burguesia tentou interpretá-la como uma expressão de anticomunismo, opinião que Huxley nunca confirmou. O seu pessimismo é de outra ordem. E é o imperialismo, nas suas diferentes formas de dominação actuais e na sua agressividade global, aquilo que a ficção huxleyana pareceu antecipar.
Foi há quase 70 anos.
Caíram-me nas mãos dois livros de Aldous Huxley: Contraponto* e Admirável Mundo Novo**. Devorei-os em poucas semanas.
A II Guerra Mundial terminara há pouco. O choque provocado pelas hecatombes nucleares de Hiroxima e Nagasaki abalara a Humanidade.
Tensões inesperadas anunciavam o início de uma guerra diferente: a chamada Guerra Fria.
Percebia-se que findara uma época e que o mundo ia mudar. Mas os contornos daquilo que se pressentia surgiam envolvidos numa neblina impenetrável.
Eu tinha 2O anos. Os romances de Huxley eram diferentes de tudo o que havia lido. Mergulharam-me em estado de choque e profunda meditação.
Reli-os agora.
Não esqueci que tinha acompanhado em São Paulo uma conferência de Huxley em 1958 quando ele visitou o Brasil. Estava quase cego e sabia que o seu corpo principiara a ser destruído pelo cancro que o mataria. A assistência tinha direito a perguntas e eu fiz uma. Disse-lhe que o admirava muito, mas que não compartilhava o seu pessimismo sobre o futuro da humanidade. Ele respondeu que era pessimista num patamar do pensamento, mas optimista noutro. Confesso que não conseguia enxergar o seu optimismo.
CONTRAPONTO
Sinto dificuldade em recordar o que senti ao ler Contraponto pela primeira vez. Ficaram gravados na memória os nomes das principais personagens. Durante dias pensei nelas, vivi com elas, atravessando as barreiras que separavam a sociedade do Portugal provinciano dos anos 40 da burguesia intelectual da Inglaterra da década anterior.
A leitura de Contraponto suavizou, recordo, o mal-estar provocado pela contra utopia do Admirável Mundo Novo.
Não há uma estória no livro. É um romance praticamente sem acção. Nele o importante é o discurso das personagens. Foi escrito em 1926 e publicado dois anos depois. As personagens foram criadas para transmitir ideias, mas não é um romance de tese. O autor expõe mundividências e reflexões muito diferentes, com frequência incompatíveis, mas não toma partido.
Duas obras musicais clássicas - uma de Bach, a outra de Beethoven - chamam a atenção na narrativa como fundo sonoro de alguns capítulos. Daí o título do romance, Contraponto, uma figura musical.
As personagens, intelectuais e artistas, são mostruário da época de transição posterior à Primeira Guerra Mundial, anos em que na Inglaterra a vontade de mudança se chocava com resistências muito fortes de uma sociedade conservadora, qualificada por Rudyard Kipling como «raça de senhores».
Huxley descreve bem esse estranho zoo humano, que vai tomando forma pelo que diz e não pelo que faz, porque – repito-o livro carece de acção. Para o criar inspirou-se em destacadas personalidades da época.
Mark Rampion, escritor e pintor, teria, segundo a crítica, como fonte de inspiração David Herbert Lawrence. Phiip Quarles é um intelectual, que ama a solidão, contemplativo, que seria o autorretrato do próprio Huxley. A sua mulher, Elinor, resiste ao fascínio que sobre ela exerce um político truculento,Webley, apontado por alguns como uma caricatura de Oswald Mosley, o fundador da British Union of Fascists. Walter Bidlake, um jornalista, engravidou uma amiga casada, mas está apaixonado por Lucy Tantamount, beldade filha de um lord. Este e Lucy surgem como «cópias» de uma poetisa famosa e de um cientista também célebre, John Haldane, amigo de Huxley.
São apenas algumas das muitas personagens que, ao longo de centenas de páginas, transmitem ideias que Huxley acredita contribuírem para a compreensão de uma época de mudança acelerada rumo ao desconhecido. Relendo hoje Contraponto, sinto que não atingiu o objectivo. Como leitor, identifico no conjunto díspar não mais do que um retrato magnífico da elite intelectual de uma classe social – a burguesia inglesa dos anos 20 do século passado- cuja reflexão sobre a vida e o mundo era tipicamente insular e foi desmentida pelo caminhar da História.
Sinto-me incapaz de encontrar resposta para uma pergunta: por que foi muito importante para mim Contraponto há setenta anos?
Recordando, concluo que contribuiu para atrasar a minha tomada de consciência dos problemas sociais do Portugal oprimido pelo fascismo.
UM GENTLEMAN ATÍPICO
Nascido numa abastada família aristocrática de intelectuais e cientistas, Aldous Huxley foi educado nas melhores escolas da Inglaterra pós vitoriana, ao tempo senhora do maior império que a História regista.
O avô, Thomas Huxley, foi um biólogo célebre, íntimo de Darwin; os irmãos, Julian Huxley e Andrew Huxley (Premio Nobel de Fisiologia e Medicina) foram também cientistas famosos.
Na juventude, Aldous construiu amizade sólida com Bertrand Russell e DH Lawrence.
Viajante infatigável, viveu na Itália ainda jovem quando Mussolini implantou ali o fascismo. Essa experiência, segundo alguns críticos, contribuiu para a decisão de escrever O Admirável Mundo Novo, a contra utopia que o guindou aos píncaros da fama literária.
Redigido em apenas quatro meses, esse romance terá sido sobretudo inspirado - como ele esclareceu muitos anos depois - por NOUS AUTRES ***, uma deslumbrante novela de ficção científica do russo Yevgeny Zamyatin.
Inadaptado à vida na Inglaterra, Huxley fixou residência nos Estados Unidos em 1937. O cinema fascinava-o e escreveu na Califórnia o roteiro de filmes inspirados em livros seus.
Nessa fase da vida consumiu drogas, sobretudo a mescalina e o LSD. Fez essa opção, muito criticada, para estudar os efeitos dos alucinogénios sobre a mente humana, porque acreditava que ampliavam as potencialidades criadoras do cérebro. Mas nunca foi dependente.
Morreu em Los Angeles aos 69 anos, cego e tendo perdido a voz, no auge da glória literária, inseguro quanto ao julgamento do significado da sua contra utopia, alvo de muitas interpretações contraditórias.
Para os intelectuais anticomunistas, O Admirável Mundo Novo é uma denúncia do estado que tomava então forma na jovem União Soviética, um libelo contra o comunismo e uma apologia da liberdade individual.
Não perfilho a opinião. Huxley, que eu saiba, não se pronunciou alias sobre o assunto.
Historiadores e críticos literários prestigiados lembram que em 1931, quando escreveu O Admirável Mundo Novo, a sociedade soviética ainda reflectia a imagem da geração que conduzira à vitória a Revolução humanista de Outubro e o país gozava de enorme prestigio entre a intelectualidade progressista europeia.
SOBRE O ADMIRAVEL MUNDO NOVO
Como obra literária, O Admirável Mundo Novo (Brave New Word no original inglês) é, pela estrutura, um romance mal construído, sem a qualidade do livro de Zamiatyn. O segredo do seu êxito é inseparável da originalidade do tema, novidade absoluta.
Logo no prólogo, o leitor é arrastado para uma sala onde são produzidos seres humanos num laboratório. A procriação animal, há muito proibida, foi substituída pela fecundação in vitro.
Os bebés desenvolvem-se em incubadoras que desde o início os condicionam para uma integração harmoniosa, submissa, na sociedade em que vão viver. Nela não há conflitos, sequer tensões sociais.
É uma sociedade de castas, hierarquizada. No topo os alfas, seguem-se as betas, os deltas, os gamas. Em baixo os ipsílones, disformes, pequenos, feios, escravos de novo tipo. Mas todos são felizes, programados para realizarem trabalhos diferenciados e aceitarem com alegria a sua casta.
O sexo é livre, sem fronteiras, todos pertencem a todos. Mas o amor é encarado como aberração do passado. A literatura limita-se à apologia da civilização perfeita, implantada na Terra, após uma guerra apocalíptica que destruiu a antiga sociedade, recordada como época de barbárie. Os livros de Shakespeare e de todos os clássicos foram destruídos, apagados da memória da nova humanidade.
A música é sintética, o cinema, a pintura, a escultura concebidos para não provocar emoções.
A família como instituição desapareceu com o fim da procriação animal. Mas as relações monetárias sobreviveram, embora a sua função seja outra.
Veículos colectivos cruzam oceanos e continentes em tempo mínimo. Helicópteros e carros individuais conduzem os alfas e os betas dos locais de trabalho aos gigantescos edifícios onde residem, cada um no seu apartamento.
Uma droga maravilhosa, o soma, tomada em comprimidos, é remédio mágico contra tendências depressivas, mergulha as pessoas num olimpo de felicidade artificial.
Os alfas e betas, castas superiores, têm apelidos estranhos que recordam personalidades do mundo antigo: Marx, Trotsky, Napoleão, Engels, Rothschild, Bakunin, etc.
Na cúpula da casta dominante, um núcleo de super-alfas governa a Terra e é responsável pelo bom funcionamento do sistema. A sua excepcionalidade é assinalada pelo título de Sua Forderia, porque a lembrança de Ford permanece quase divinizada.
Deus desapareceu, tornou-se desnecessário, porque a morte não é temida.
Um ser genial, o Benfeitor, vela pela felicidade colectiva.
No sudoeste da América do Norte, onde existiram os Estados Unidos, alguns milhares de homens e mulheres primitivos vivem em Reservas que podem, com autorização especial, ser visitadas por alfas e betas em férias.
Bernard Marx, um alfa invadido por dúvidas e interrogações sem resposta - supostamente por um defeito de fabrico – visita, com uma beta, Lenina, uma dessas Reservas.
Aí encontram Linda e seu filho John, cujo pai, um super alfa, administrador influente, o gerou à moda antiga sem tomar sequer conhecimento do crime.
Marx traz Linda e John consigo, no regresso a Londres.
A última parte do livro é dedicada ao choque de John, o Selvagem, com uma sociedade que gradualmente lhe inspira repugnância. O Selvagem persegue o amor puro, e a diferença entre os humanos, é romântico, leu obras de Shakespeare num velho livro encontrado na Reserva. Sente necessidade de Deus. O nojo que o invade é tão insuperável que, isolando-se num farol, se suicida.
Em 1958, Huxley, já muito doente, escreve e publica Regresso ao Admirável Mundo Novo****.
É uma serie de ensaios em que sublinha, com um sentimento de angustia, que, transcorrido pouco mais de um quarto de século, muitas das previsões da sua contra utopia estavam a ser concretizadas pelos progressos da ciência e a desumanização da vida. Atribui essa evolução assustadora às armas nucleares, ao aumento galopante da população do planeta e à superorganização das sociedades industriais do mundo contemporâneo. Cita repetidamente Hitler num capítulo da obra.
O complexo industrial militar criado pelas gigantescas transnacionais do armamento tinha atingido tamanho poder nos EUA que Eisenhower o denunciou como um perigo. Mas muita água correria pelo Hudson até que a engrenagem de poder tivesse condições para impor à Casa Branca uma política belicista, inseparável de uma cadeia de guerras de agressão, erigindo o terrorismo de estado em instrumento de acção de uma estratégia de dominação planetária que exige na prática a alienação e robotização de uma humanidade com afinidades com a descrita no famoso romance huxleyano.
Em o Regresso ao Admirável Mundo Novo, o pessimismo de Aldous Huxley é inocultável.
Miguel Urbano Rodrigues , em artigo publicado na imprensa digital.
*Contraponto, Aldous Huxley, ultima edição portuguesa, Livros do Brasil, 2007
**Le Meilleur des Mondes, Aldous Huxley, Plon, Paris
***Nous Autres, Yevgeni Zamyatin, escrito em 1920, foi editado pela primeira vez em l929 pela Gallimard, em França. A mesma editora lançou uma nova edição em 1971
**** Regresso ao Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley, Editora Antígona, 2014, Lisboa
Sobre Miguel Urbano Rodrigues
Miguel Urbano Rodrigues |
"O jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues faleceu, sábado (27), aos 91 anos, em Lisboa. Esteve exilado no Brasil entre 1957 e 1974, onde foi editorialista de O Estado de S. Paulo. Regressou a Portugal após o 25 de Abril de 1974. De regresso a Lisboa, leccionou História Contemporânea na Faculdade de Letras, foi presidente da Assembleia Municipal de Moura (1977/78), deputado à Assembleia da República, pelo PCP (1990/95), deputado às Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental.
Era um dos mais ilustres militantes do Partido Comunista Português.
Era um dos mais ilustres militantes do Partido Comunista Português.
Liderou o projecto do jornal “O Diário”, que tinha por lema “a verdade a que temos direito”, que foi montado entre Novembro e Dezembro de 1975. O primeiro número saiu a 6 de Janeiro de 1976, com uma redacção recrutada sobretudo no “Diário de Notícias”, de que tinha sido jornalista, entre 1949 e 1956, mas sem incluir José Saramago, ex-director-adjunto deste matutino. “O Diário” sobreviveria até 1990.
Às obras iniciais como “O Homem de Negro” (1958) e “Opções da Revolução na América Latina” (1968), suceder-se-iam “Revolução e Vida” (1977), “Polónia e Afeganistão” (1983), “Em Defesa do Socialismo” (1990), os romances “Alva” (2001) e “Etna no Vendaval da Perestoika” (2007), as memórias de “O Tempo e o Espaço em Que Vivi I e II” ou “Meditação descontínua sobre o envelhecimento” (2009).
“O Diário Liberdade”, “portal anticapitalista da Galiza e países lusófonos”, e "ODiário.info", publicação digital de que era coeditor, reúnem os derradeiros textos de Miguel Urbano Rodrigues.
Natural de Moura, Alentejo, Miguel Urbano nasceu a 02 de Agosto de 1925. Filho de Urbano Rodrigues era irmão do escritor Urbano Tavares Rodrigues.
Escritor, jornalista, historiador, ensaísta, Miguel Urbano Rodrigues foi sempre fiel ao seu ideário, nunca deixando de manifestar o seu pensamento, apesar da controvérsia que pudesse provocar."
domingo, 28 de maio de 2017
Ao Domingo Há Música
Guy de Maupassant
Há quem saiba dar às palavras a magia que nos transforma quando a música nos toma e nos faz vibrar em cada nova nota. Nem sempre o faz em plenitude, mas quando se gosta de música há um encantamento que trai qualquer inibição.
Para ouvir com toda a sensibilidade, apresentam-se registos de três bandas sonoras que encantaram e que ficaram na memória de quem as descobriu.
Do filme The Painted Veil , Love theme , de Alexandre Desplat.
Winning, de John Barry , composição extraída do Álbum "Eternal Echoes".
The Grace of Undómiel, composição de Howard Shore, do filme Lord of the Rings
sábado, 27 de maio de 2017
Almada Negreiros, o pintor
José Sobral de Almada Negreiros, mais conhecido por Almada Negreiros ou «Mestre Almada», nasceu em Trindade, São Tomé e Príncipe, a 7 de Abril de 1893.
"Artista da novidade e da provocação, em demanda de «uma pátria portuguesa do século XX», foi uma das grandes figuras da cultura portuguesa do século XX. Artisticamente activo ao longo de toda a sua vida, (pintor, escritor, poeta, ensaísta, dramaturgo e romancista) o seu valor foi reconhecido por inúmeros prémios. Faleceu em Lisboa no dia 15 de Junho de 1970."
Inimitável o perfil de cada um
Cada um tem o destino universal de fazer consigo mesmo o
modelo de mais uma estátua humana. E esta fabrica-se apenas com íntimo pessoal.
O nosso íntimo pessoal é inatingível por outrem. E é este o
fundamento de toda a humanidade, de toda a Arte e de toda a Religião. O nosso
íntimo pessoal é de ordem humana, estética e sagrada. Serve apenas o próprio. E
o seu único caminho. O melhor que se pode fazer em favor de qualquer é
ajudá-lo a entregar-se
a si mesmo. Com o seu íntimo pessoal cada um poderá estar em toda a parte,
sejam quais forem as condições sociais, as mais favoráveis e as mais adversas.
Sem ele, nem para fazer número se aproveita ninguém.
A individualidade e a personalidade são florescências desse
invisível do nosso ser a que chamamos o nosso íntimo. Tudo quanto de bom ou de
mau, de óptimo ou de péssimo exista em cada qual nasceu com ele e formou-se secretamente,
intimamente, a despeito de todo o aspecto que lhe venha do exterior, de toda a
educação e acção alheias.
O papel da sociedade é imediatamente mais evidente sobre
cada pessoa do que o atropelado movimento das gerações que a antecederam e lhe
determinaram o seu sangue, mas aquela não vale esta. Que uma pessoa tome a seu
cargo dirigir o próprio destino que lhe coube, é com ela. Que seja a sociedade
quem se proponha dirigi-lo, é ingenuidade. O mais que neste caso poderá a
sociedade é eliminar esse destino pessoal. A sociedade só tem que ver com
todos, não tem nada que cheirar com cada um!
Cada um nasce já bem ou mal educado. E depois de nascido bem
ou mal educado, tudo quanto se faça pode pouco para imediatamente. Vereis
gentes humildes, analfabetos, simples e perfeitamente bem educados, sabendo
medir as distâncias entre pessoas, sem se atrapalharem com as escalas sociais,
e perfeitamente uníssonos com o seu próprio caso pessoal. Vereis, por outra,
gentes de opinião, passados superiormente por cursos, e, uma vez na altura
oficial, não saberem distinguir pessoas de formigas, e outras vertigens dos
sítios altos, e, o que é pior, de costas voltadas para si mesmos como para o
diabo. Isto é, aquilo
em que eles poderiam merecer o nosso interesse é precisamente ao que eles voltaram
as costas!
O autor destas páginas também desenha e não sabe expressar
por palavras a extraordinária impressão que recebe sempre que copia o perfil de
qualquer pessoa. A natureza chega tão complexa às feições de cada um, que
somos forçados a não poder aceitar cada qual resumido ao lugar em que a
sociedade o põe. Através dos séculos, uma linha única e incessantemente seguida
acabou por tornar inimitável o perfil de cada um. Essa linha passa agora desde
o alto da testa até por baixo do queixo,
e às vezes lembra a de outros, mas é intransmissível.»
Almada Negreiros, in " Nome de Guerra", Edições Áticasexta-feira, 26 de maio de 2017
Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja
"A 14ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja arranca já esta sexta-feira, 26 de Maio, abraçando o centro histórico da cidade e em particular o Largo do Museu Regional, espaço ao ar livre que será o epicentro desta festa de BD.
Esta edição do Festival de BD contará com a presença de personalidades internacionais com cartas dadas no mundo da banda desenhada, onde se destaca, o italiano Paolo Mottura, desenhador da Disney e autor de bandas desenhadas do rato Mickey, que estará em Beja nos dias 26, 27 e 28 de Maio. Paolo Mottura tem os seus trabalhos patentes na Galeria do Largo de São João e estará disponível para conversar com os leitores e dar autógrafos no dia 27, na cafetaria do Pax Julia – Teatro Municipal de Beja.
Nos três primeiros dias do festival, Beja recebe também a visita do português Jorge Coelho, que está a fazer as bandas desenhadas do personagem Rocket Raccon, para a Marvel Americana. Rocket Raccon é um dos personagens do filme "Os Guardiões da Galáxia", um dos maiores êxitos de bilheteira dos últimos anos.
Outro nome grande da DB que irá marcar presença neste Festival é Davide Catenacci. Editor da Disney italiana que irá estar em Beja nos dias 26, 27 e 28. No sábado, dia 27, para além de participar numa conferência, na cafetaria do Pax Julia, também vai ver desenhos de autores portugueses.
Na noite de sábado, dia 27 de Maio, a cafetaria do Pax Julia recebe a entrega do prémio Geraldes Lino a Sofia Neto, uma jovem dona de um enorme talento. O Prémio será entregue pelo próprio Geraldes Lino, o editor, crítico, divulgador e fanzinista mais famoso de toda a História da BD Portuguesa.
Ao todo, temos 18 exposições, a que se junta o mercado, o lançamento de livros, debates e apresentação de projectos, que estarão à disposição do público Bejense e não só durante o Festival de BD de Beja que se prolongará até 11 de Junho."
Saiba mais em: www.festivalbdbeja.com
Sob o canto da ópera
O filme Magie noire, de Fanny Ardant, na Opéra de Paris.
"Duas histórias paralelas: a mulher de etnia cigana e as audições dos cantores. O cruzamento de dois mundos através do canto da ópera. Um universo visual e sonoro. Pouco importa o que dizem as palavras, é o imaginário que comanda." Opéra National de Paris
quinta-feira, 25 de maio de 2017
Eugénio Lisboa faz 87 anos
Talento é acertar um alvo que ninguém acerta. Genialidade é acertar um alvo que ninguém vê.
Arthur Schopenhauer
Celebrar a vida de Eugénio Lisboa é celebrar a Cultura. Ano após ano, não cessa de surpreender pela beleza e largueza com que semeia Cultura. A sua obra, nunca acabada, é um repositório magnânimo e um manual precioso de como se deve fazer Cultura, em qualquer parte do mundo. Portugal tem nele o obreiro mais insigne e engenhoso da actualidade.
Ler Eugénio Lisboa é descobrir a transcendente magia da Literatura.
Ouvir Eugénio Lisboa é viajar por um mundo cheio de inesperados assombros que nos deslumbra e desassossega.
Conhecer Eugénio Lisboa é verificar como a simplicidade, a humildade vestem sempre um grande Homem.
A sabedoria tem nele uma vantagem: a partilha. Dá-no-la em doses gigantescas , espalhando-a por sumptuosos ensaios, magníficas crónicas, extraordinárias intervenções, valiosos livros e na imperdível e rica obra memorialística, registada em seis volumes, com data prevista para novo volume, no próximo Outono.
Todos os títulos das obras de Eugénio Lisboa são ricos e sugestivos. Requisita-os com argúcia e apropriação que só um espírito sagaz e culto sabe fazer.
" Acta Est Fabula " é o título da vasta obra onde a memória se estende. Dos idos tempos de Lourenço Marques a S. Pedro de Estoril, a voz de Eugénio Lisboa faz a narração de uma vida singular: a sua. Com ela,atravessamos quase um século de descoberta e de encontros com vultos importantes da Literatura Nacional e Universal. Mas é Eugénio Lisboa que nos toca, que nos ensina como se constrói uma vida aberta à aprendizagem, ao conhecimento.
Eça de Queiroz, o notável autor de "Os Maias", afirmava: Não tenha medo de pensar diferente dos outros, tenha medo de pensar igual e descobrir que todos estão errados!
Eugénio Lisboa não teve medo de o fazer. Nunca pensou igual. Fê-lo diferente e proficuamente.
A nós ,cumpre agradecer-lhe por ter praticado a diferença ao produzir uma obra que nos faz mais felizes e igualmente mais sábios.
VIAGEM
Eugénio Lisboa não teve medo de o fazer. Nunca pensou igual. Fê-lo diferente e proficuamente.
A nós ,cumpre agradecer-lhe por ter praticado a diferença ao produzir uma obra que nos faz mais felizes e igualmente mais sábios.
E, porque homenagear um autor é celebrar a sua obra, transcrevemos um excerto do segundo volume das suas Memórias, Acta Est Fabula.
A nossa homenagem, hoje e sempre, Eugénio Lisboa.Lourenço Marques |
VIAGEM
“Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínquas miragens.
Aonde iremos ter? [...]
David Mourão-Ferreira, A Secreta Viagem
Saído o velho navio da barra, encontrámo-nos
no dorso imperioso do Índico. O barco estava decrépito e em breve viríamos a
saber que deveria ser a sua última viagem ou uma das últimas, antes de ir para
a sucata.
A viagem que, havia muito, me fora prometida,
tinha começado, deixando para trás, intoleravelmente, a Lourenço Marques da
minha infância e adolescência de descobertas e espantos. Esta não era apenas a
minha maior viagem: era, na realidade, a minha primeira viagem. As que antes fizera – entre Lourenço Marques e
Porto Amélia, no norte de Moçambique – tinham ocorrido em idades de que não
guardo memória. Tirando modestas excursões – não frequentes – à Namaacha, a
poucas dezenas de quilómetros de Lourenço Marques, vivera sempre na minha
cidade natal. Joanesburgo, na África do Sul, era só para os mais ou menos
endinheirados. Fora também a Marracuene – a trinta quilómetros – e à Catembe,
do outro lado da baía. Viagens, portanto, só as da imaginação e as das leituras
intensas dos grandes autores que ia descobrindo. Das páginas dos romances de
Anatole France e Roger Martin du Gard, vislumbrara Florença e Paris, como, das
páginas de Lawrence e das irmãs Brontë, entrevira paisagens inglesas, ou, das
de Thomas Mann, pedaços da Alemanha, ou, com Pirandello e D’Annunzio, penetrara
em cidades e vilas de Itália. Era também um modo de viajar – a partir da janela
do meu quarto, na casa da Rua Mendonça Barreto. Já falei de tudo isto, no 1.º
volume destas minhas memórias. E só o repito aqui, porque serve de fio condutor
ou de ponte entre um livro publicado há três anos e este que agora tento
redigir.
O ano em que esta viagem se iniciava
era o de 1947, o mês, Setembro, e o dia, 10. Fazia um sol forte em cima do
convés do “Nova Lisboa”: paisagem de ferragens desarrumadas, velha e
desgastada, quase pelintra, a assinalar, de modo incompetente e desastrado, o
que eu sonhara glorioso: o dia do começo da minha antecipada odisseia. Tudo era
negativo: o cheiro da comida vomitada no convés por alguns dos meus companheiros
de viagem, acometidos do enjoo provocado pela vaga larga do oceano; a
decrepitude da nau; o meu próprio enjoo. Um deles, mais afoito, resolveu,
temerariamente, curar o mal de forma radical (mordedura de cão cura-se com pelo
do mesmo cão): após a agonia do vómito, voltou à sala do almoço e repetiu a
refeição. A teimosia surtiu efeito.
Eu recusei simplesmente ingerir fosse
o que fosse e fiquei-me a olhar, desamparado, para a desolação do convés do
navio, a que nem o Sol dava vida: todos os meus sonhos desfeitos, na amargura
fétida daquele palco indigno de tantas esperanças longamente alimentadas e
acarinhadas. Foi a primeira e funda desfasagem, por mim sentida, entre o sonho
e a realidade. Sentia-me pavorosamente logrado: o navio era uma paisagem hostil,
feia, quase infame, indigna de tão ínclitos sonhos.”
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memória-II-Lisboa,
(1947-1955), Editora Opera Omnia, Out. 2016, pp. 15,16
quarta-feira, 24 de maio de 2017
Construir uma ruína
Os
autores mais originais dos últimos tempos são originais, não por produzirem
algo novo, mas apenas porque são capazes de dizer as coisas que dizem como se
elas nunca antes houvessem sido ditas.
J.W. Goethe, in” Werk”, Berlin:
Direcmedia, 1998.
“Um
monge disse-me no caminho: "Eu queria construir uma ruína.
Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. A minha ideia era fazer alguma
coisa ao jeito de cabana. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono,
como as cabanas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem
debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança
presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha
entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem
ninguém dentro. (...) (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou:
digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro
dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das
ruínas, como o lírio pode nascer da lixeira.” E o monge calou-se desconcertado."
Manoel de Barros , in "Ensaios Fotográficos", Editora Record, 2000.
terça-feira, 23 de maio de 2017
Hora Grave
Hora Grave
Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.
Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.
Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.
Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.
Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.
Rainer Maria Rilke, in Poemas. Tradução e introdução de
José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993
segunda-feira, 22 de maio de 2017
Solidão é não precisar
«Dá-me a tua mão:
Vou te
contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi
a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de
música existe uma nota, entre dois factos existe um facto, entre dois grãos de
areia, por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um
sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a
linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua
do mundo e aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
(…)
E agora não
estou tomando tua mão para mim. Sou eu quem está te dando a mão.
Agora preciso de tua mão, não para que
eu não tenha medo, mas para que tu não tenhas medo. Sei que acreditar em tudo
isso será, no começo, a tua grande solidão. Mas chegará o instante em que me
darás a mão, não mais por solidão, mas como eu agora: por amor. Como eu, não
terás medo de agregar-te à extrema doçura enérgica do Deus. Solidão é ter
apenas o destino humano.
E solidão é não precisar. Não precisar
deixa um homem muito só, todo só. Ah, precisar não isola a pessoa, a coisa
precisa da coisa: basta ver o pinto andando para ver que seu destino será
aquilo que a carência fizer dele, seu destino é juntar-se como gotas de
mercúrio a outras gotas de mercúrio, mesmo que, como cada gota de mercúrio, ele
tenha em si próprio uma existência toda completa e redonda.
Ah, meu amor, não tenhas medo da
carência: ela é o nosso destino maior. O amor é tão mais fatal do que eu havia
pensado, o amor é tão inerente quanto a própria carência, e nós somos
garantidos por uma necessidade que se renovará continuamente. O amor já está,
está sempre. Falta apenas o golpe da graça - que se chama paixão.»
Clarice Lispector, in " A paixão segundo G.H.", Relógio D'Água, pp.79 e136
domingo, 21 de maio de 2017
Ao Domingo Há Música
Ouvidos e lábios dizem-nos, (...), que devemos dar ao tempo um canal mais vasto a fim de dar vida e espaço às múltiplas culturas de um mundo que corre o perigo da uniformidade global mas também da dispersão local.
Carlos Fuentes, Tempo - Aquilo em que acredito
De John Williams, Duelo dos destinos, pelos Músicos Solidários, no concerto "Voces para la Paz" , sob a direcção do Maestro Miguel Roa. Espectáculo realizado no Auditório Nacional de Música de Madrid , em 10 de Março de 2013.
O projecto tinha como finalidade a construção de uma Escola para 200 raparigas,no Uganda e recolha de alimentos para famílias necessitadas, em Espanha.
Madame Butterfly: Coro a boca cerrada de Giacomo Puccini, no Concerto "Vozes para Paz", pelos Músicos solidários , sob a direcção do Maestro Miguel Roa .
Espectáculo realizado no Auditório Nacional de Música de Madrid , em 10 de Junho de 2010.Espectáculo realizado no Auditório Nacional de Música de Madrid , em 10 de Junho de 2010.
sábado, 20 de maio de 2017
Cinquenta Anos de "Cem Anos de Solidão"
"Todos os anos, pelo mês de Março, uma família de ciganos andrajosos montava a sua tenda perto da aldeia e, num grande alvoroço de apitos e timbales, davam a conhecer as novas invenções. Primeiro levaram o íman. Um cigano corpulento, de barba ferina e mãos de pardal-dos-telhados, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração daquilo que ele próprio denominava de oitava maravilha dos alquimistas da Macedónia. Foi de casa em casa a arrastar dois lingotes metálicos, e toda agente ficou espantada ao ver como as caldeiras, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam dos seu lugares, e as madeiras rangiam pelo desespero dos pregos e dos parafusos que tentavam despregar-se, e até os objectos perdidos há muito tempo apareciam por onde mais se procurara e arrastavam-se em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. " As coisas têm vida própria", apregoava o cigano com um sotaque áspero, " é tudo uma questão de lhes acordar alma." José Arcadio Buendía , cuja imaginação desaforada andava sempre à frente do engenho da Natureza e ainda mais além do milagre e da magia, pensou que era possível servir-se daquele invento inútil para desentranhar o ouro da terra. Melquíades, que era um homem honrado , preveniu-o: " Para isso não serve." Mas José Arcadio Buendía não acreditava, naquela altura, na honradez dos ciganos, de modo que trocou a sua mula e algumas cabras pelos dois lingotes magnetizados. Úrsula Iguarán, sua mulher, que contava com aqueles animais para dar uma certa folga ao desmedrado património doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. "Depressa nos sobrará ouro com que empedrar a casa", replicou-lhe o marido. Durante vários meses empenhou-se em demonstrar o acerto das suas conjecturas. Explorou a região palmo a palmo, até ao fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o esconjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do século XV, com todas as suas partes soldadas por uma camada de ferrugem, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcadio Buendía mais os quatro homens da sua expedição conseguiram desarticular a armadura, encontraram lá dentro um esqueleto calcificado que tinha, pendurado ao pescoço, um relicário de cobre com uma madeixa de mulher."
Gabriel García Márquez, in Cem anos de Solidão, Publicações Dom Quixote
Gabriel García Márquez, in Cem anos de Solidão, Publicações Dom Quixote
"Cem anos de solidão é a obra mais famosa do Nobel de Literatura colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), sendo considerada também uma das mais importantes da literatura latino-americana. O livro foi publicado pela primeira vez em Buenos Aires, Argentina, em 1967, pela editora Editorial Sudamericana, com uma tiragem inicial de 10.000 exemplares. Desde então já foram vendidos cerca de 50 milhões de exemplares em 35 idiomas distintos, tornando-o num dos textos mais lidos e traduzidos em todo o mundo.
Durante o IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, realizado em Cartagena, na Colômbia, em Março de 2007, Cem Anos de Solidão foi considerada a segunda obra mais importante de toda a literatura hispânica, ficando apenas atrás de Dom Quixote de la Mancha. Utilizando o estilo conhecido como realismo mágico, Cem Anos de Solidão mantém-se um texto actual e é lido por milhares de leitores.
Gabriel García Márquez (Aracataca, Colômbia, 1927)
O escritor colombiano Gabriel García Márquez ingressou no curso de Direito da Universidade de Bogotá, não o chegando a concluir. Fascinado pela escrita, transferiu-se para a Universidade de Cartagena, onde estudou Jornalismo. Publicou o seu primeiro conto, La Hojarasca, em 1947. No ano seguinte, deu início a uma carreira como jornalista, colaborando com inúmeras publicações sul-americanas. Enviado para Roma como correspondente do jornal El Espectador, em 1954, acabou por permanecer na Europa quando o regime ditatorial colombiano encerrou a redacção. Em 1955 publicou o seu primeiro livro, uma colectânea de contos que haviam já aparecido em publicações periódicas. Em 1967 publicou a sua obra mais conhecida, o romance Cem Anos de Solidão, que se tornou num marco do realismo mágico. Entre as mais conhecidas obras do escritor contam-se ainda Crónica de Uma Morte Anunciada e Amor em Tempos de Cólera. Em 1982 foi-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura. Morreu em 2014, na Cidade do México.
A Casa da América Latina organiza, em parceria com a TSF e a Fundação José Saramago, no dia 30 de Maio, pelas 17h30 , na Casa da América Latina (Av. da Índia 110, Lisboa), com Entrada livre, um encontro que evoca os 50 anos desde a publicação de Cem Anos de Solidão de Gabriel García Márquez."
sexta-feira, 19 de maio de 2017
Quem inventou o amor
toda a espécie de melodias. Eu saberei cantar para ti,
como se fosses um deus!....
Ilíada, XXII, 347-249 in HÉLADE, Antologia da Cultura Grega, org. e trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Guimarães Editores, 10.ª ed. p.106
quinta-feira, 18 de maio de 2017
A Carta da Corcunda
A CARTA DA CORCUNDA PARA O SERRALHEIRO
Senhor António:
O senhor nunca há-de ver esta carta, nem eu a hei-de ver segunda vez porque
estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque
se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gosta das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Alem disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter - e agora menos que nem vida tenho - gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isto, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gosta das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Alem disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter - e agora menos que nem vida tenho - gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isto, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser.
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não
ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado
para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece
que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não sou mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vê, valha-me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida. Aí tem e estou a chorar.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não sou mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vê, valha-me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida. Aí tem e estou a chorar.
Maria José
Nota: texto
posterior a 1929
Fernando Pessoa, in Obra Essencial de Fernando Pessoa, Prosa Íntima e de Autoconhecimento.
Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007
quarta-feira, 17 de maio de 2017
terça-feira, 16 de maio de 2017
Filosofia para o dia a dia
"NIETZSCHE PARA ESTRESSADOS é um manual inteligente, provocador e estimulante que reúne 99 máximas do génio alemão e a aplicação prática a várias situações do dia a dia. A
filosofia de Nietzsche é de grande utilidade na busca de uma solução para uma
série de problemas, tanto na vida pessoal quanto na profissional.
Este breve curso de filosofia quotidiana foi criado para nos auxiliar
naqueles momentos em que precisamos de tomar decisões, recuperar o ânimo,
encontrar o caminho certo quando estamos perdidos e relativizar a importância
dos factos da vida. É indicado para pessoas que procuram inspiração no
pensamento do filósofo mais influente da era moderna para combater as angústias
e os medos dos dias de hoje.
Cada capítulo é iniciado por um aforismo desse grande pensador, seguido
de uma interpretação actual que nos ajuda a alcançar o bem-estar, feita por
Allan Percy, autor da compilação.
No final, há um anexo que explica o valor terapêutico da filosofia e suas
aplicações no quotidiano. Conheceremos o trabalho dos filósofos terapeutas,
popularizado pelo livro Mais Platão, menos Prozac, de Lou Marinoff, e
entenderemos como máximas dos pensadores de todos os tempos podem oferecer uma
ajuda da melhor qualidade.
Antes de conhecer seus pensamentos, saiba um pouco sobre a vida do grande
mestre.
Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 1844, na cidade alemã de Röcken. O seu pai era pastor evangélico e faleceu quando o filho tinha 5 anos. Cresceu num ambiente religioso protestante dominado por mulheres.
Após frequentar um internato, onde foi apresentado à Antiguidade grega e
romana, estudou filosofia clássica nas universidades de Bonn e Leipzig. Nessa
última, entrou em contacto com as ideias de Schopenhauer e com a música de
Wagner, compositor que admirava e que mais tarde conheceria pessoalmente.
Em 1869, com apenas 25 anos, Nietzsche já era professor de filologia
clássica na Universidade da Basileia. No entanto, a actividade docente foi
interrompida em 1870, quanto rebentou a Guerra Franco-Prussiana.
Nietzsche participou do conflito como enfermeiro, até ser obrigado a
abandonar por causa de uma disenteria, da qual nunca se recuperou
totalmente.
Em 1881, conheceu Lou Andreas Salomé, mulher por quem se apaixonou
perdidamente mas que se ligaria a um amigo seu. A rejeição ajudou a
consolidar a sua proverbial misoginia.
Obrigado a aposentar-se prematuramente por conta de sequelas da doença,
Nietzsche viveu na Riviera francesa e no norte da Itália, lugares que
considerava ideais para pensar e escrever.
Sozinho e frustrado por suas obras não alcançarem a recepção desejada,
foi vítima de seus primeiros acessos de loucura em 1889, quando morava em Turim
e estava praticamente cego.
Após longas temporadas internado em clínicas da Basileia e de Jena,
Nietzsche passaria o fim da vida na casa da mãe, que cuidou dele até morrer,
deixando-o ao encargo da irmã. Nietzsche faleceu em 1900.
O seu ambicioso legado
filosófico até hoje não perdeu o poder inspirador e contagiante.
Eis, reunidos, os
99 aforismos de Nietzsche, compilados por Allan Percy:
1 — Quem tem uma razão de viver é capaz de suportar
qualquer coisa.
2 — O destino dos seres humanos é feito de
momentos felizes e não de épocas felizes.
3 — Nós nos sentimos bem em meio à natureza
porque ela não nos julga.
4 — Precisamos pagar pela imortalidade e morrer
várias vezes enquanto estamos vivos.
5 — O valor que damos ao infortúnio é tão grande
que, se dizemos a alguém “Como você é feliz!”, em geral somos contestados.
6 — Nossos tesouro está na colmeia de nosso
conhecimento. Estamos sempre voltados a essa direcção, pois somos insectos alados
da natureza, colectores do mel da mente.
7 — A palavra mais ofensiva e a carta mais
grosseira são melhores e mais educadas que o silêncio.
8 — Nossa honra não é construída por nossa
origem, mas por nosso fim.
9 — O homem que imagina ser completamente bom é
um idiota.
10 — As pessoas que nos fazem confidências se
acham automaticamente no direito de ouvir as nossas.
11 — Precisamos amar a nós mesmos para sermos
capazes de nos tolerar e não levar uma vida errante.
12 — Só quem constrói o futuro tem o direito de
julgar o passado.
13 — Alegrando-se por nossa alegria, sofrendo por
nosso sofrimento — assim se faz um amigo.
14 — Não devemos ter mais inimigos que as pessoas
dignas de ódio, mas tampouco devemos ter inimigos dignos de desprezo. É
importante nos orgulharmos de nossos inimigos.
15 — O sucesso sempre foi um grande mentiroso.
16 — O homem é algo a ser superado. Ele é uma
ponte, não um objectivo final.
17 — Falar muito de si mesmo pode ser uma forma
de se ocultar.
18 — As pessoas nos castigam por nossas virtudes.
Só perdoam sinceramente nossos erros.
19 — O reino dos céus é uma condição do coração e
não algo que cai na terra ou que surge depois da morte.
20 — O homem é, antes de tudo, um animal que
julga.
21 — A melhor arma contra o inimigo é outro
inimigo.
22 — Os maiores êxitos não são os que fazem mais
ruído e sim nossas horas mais silenciosas.
23 — O indivíduo sempre lutou para não ser
absorvido por sua tribo. Se fizer isso, você se verá sozinho com frequência e,
às vezes, assustado. Mas o privilégio de ser você mesmo não tem preço.
24 — Quem é activo aprende sozinho.
25 — Nossas opiniões são a pele na qual queremos
ser vistos.
26 — Não há razão para buscar o sofrimento, mas,
se ele surgir em sua vida, não tenha medo: encare-o de frente e com a cabeça
erguida.
27 — A razão começa na cozinha.
28 — O futuro influi no presente da mesma maneira
que o passado.
29 — Não deveríamos tentar deter a pedra que já
começou a rolar morro abaixo; o melhor é dar-lhe impulso.
30 — A maneira mais eficaz de corromper o jovem é
ensiná-lo a admirar aqueles que pensam como ele e não os que pensam de forma
diferente.
31 — Toda queixa contém em si uma agressão.
32 — No amor sempre existe algo de loucura e na
loucura sempre existe algo de razão.
33 — Quem deseja aprender a voar deve primeiro
aprender a caminhar, a correr, a escalar e a dançar. Não se aprende a voar
voando.
34 — Quem luta contra monstros deve ter cuidado
para não se transformar num deles.
35 — São muitas as verdades e, por esse motivo,
não existe verdade alguma.
36 — A mentira mais comum é a que o homem usa
para enganar a si mesmo.
37 — Deveríamos considerar perdido o dia em que
não dançamos nenhuma vez.
38 — Há mais sabedoria no seu corpo do que na sua
filosofia mais profunda.
39 — Se ficar olhando muito tempo para o abismo
olhará para você.
40 — As posições extremas não são seguidas de
posições moderadas, e sim de posições contrárias.
41 — Preciso de companheiros, mas de companheiros
vivos, não de cadáveres que eu tenha que levar nas costas por toda parte.
42 — Eis a tarefa mais difícil: fechar a mão
aberta do amor e ser modesto como doador.
43 — A arrogância por parte de quem tem mérito
nos parece mais ofensiva que a arrogância de quem não o tem: o próprio mérito é
ofensivo
44 — Todos os grandes pensamentos são concebidos
ao se caminhar.
45 — Quem não sabe guardar suas opiniões no gelo
não deveria entrar em debates acalorados.
46 — Dois grandes espectáculos são muitas vezes
suficientes para curar uma pessoa apaixonada.
47 — Quem declara que o outro é idiota fica
chateado quando, no final, descobre que isso não é verdade.
48 — Amigos deveriam ser mestres em adivinhar e
calar: não se deve querer saber tudo.
49 — Usar as mesmas palavras não é garantia de
entendimento. É preciso ter experiências em comum com alguém.
50 — Estava só e não fazia outra coisa além de
encontrar-se consigo mesmo. Então, aproveitou sua solidão e pensou em coisas
muito boas por várias horas.
51 — A potência intelectual de um homem se mede
pelo humor que ele é capaz de manifestar.
52 — Gosto dos valentes, mas não basta ser um
espadachim: também é preciso saber a quem ferir. E, muitas vezes, abster-se
demonstra mais bravura, reservando-se para um inimigo mais digno.
53 — De que vale o ronronar de alguém que não
sabe amar como um gato?
54 — Para chegar a ser sábio, é preciso querer
experimentar certas vivências. Mas isso é muito perigoso. Mais de um sábio foi
devorado nessa tentativa.
55 — O cérebro verdadeiramente original não é o
que enxerga algo novo antes de todo mundo, mas o que olha para coisas velhas e
conhecidas, já vistas e revistas por todos, como se fossem novas. Quem descobre
algo é normalmente este ser sem originalidade e sem cérebro chamado sorte.
56 — Quem não dispõe de dois terços do dia é um
escravo.
57 — O melhor meio de ajudar pessoas muito confusas
e deixá-las mais tranquilas é elogiá-las de forma veemente.
58 — O homem amadurece quando reencontra a
seriedade que demonstrava em suas brincadeiras de criança.
59 — Ninguém é tão louco que não possa encontrar
outro louco que o entenda.
60 — Na maior parte das vezes que não aceitamos
uma opinião, isso acontece por causa do tom em que ela foi manifestada.
61 — Acredito que os animais vêem o homem como um
ser igual a eles que perdeu, de forma extraordinariamente perigosa, a sanidade
intelectual animal. Ou seja: vêem o homem como um animal irracional, um animal
que sorri, que chora, um animal infeliz.
62 — Antes de se casar, pergunte a si mesmo:
serei capaz de manter uma boa conversa com essa pessoa até a velhice? Todo o
resto é passageiro num matrimónio.
63 — É muito difícil os homens entenderem a sua
ignorância no que diz respeito a eles mesmos.
64 — Pobre do pensador que não é o jardineiro,
mas apenas o canteiro de suas plantas.
65 — Um poeta escreveu na porta: “Quem entrar
aqui me honrará. Quem não entrar me proporcionará um prazer”.
66 — A verdade é que amamos a vida não porque
estamos acostumados a ela, mas porque estamos acostumados com o amor.
67 — O homem é a causa criativa de tudo o que
acontece.
68 — Seus maiores bens são seus sonhos.
69 — Quem não sabe dar nada não sabe sentir nada.
70 — As ilusões são certamente prazeres
dispendiosos, mas a destruição delas é mais dispendiosa ainda.
71 — A essência de toda arte bela, de arte
grandiosa é a gratidão.
72 — Não é raro encontrar cópias de grandes
homens. E, como acontece com os quadros, a maior parte das pessoas parece mais
interessada nas cópias do que nos originais.
73 — Quem não teve um bom pai deve procurar um.
74 — Os poços mais profundos vivem as suas
experiências lentamente: esperam um bom tempo até saberem o que caiu em suas
profundezas.
75 — Quando temos muitas coisas para guardar
nele, o dia tem 100 bolsos.
76 — Uma alma delicada se sente mal quando sabe
que receberá agradecimentos. Uma alma grosseira se sente mal quando sabe que
precisa agradecer a alguém.
77 — Não se pode odiar enquanto se menospreza.
Não se pode odiar mais intensamente um indivíduo desprezado do que um igual ou
superior.
78 — Quantos homens sabem observar? E, desses
poucos que sabem, quantos observam a si próprios? “Cada pessoa é o ser mais
distante de si mesmo.”
79 — A guerra embrutece o vencedor e deixa o
vencido rancoroso.
80 — Cada mestre não tem mais que um aluno e esse
aluno lhe será infiel, pois está predestinado a ser mestre também.
81 — O mundo real é muito menor que o mundo da
imaginação.
82 — Se for magoado por um amigo, diga-lhe: “Eu o perdoo pelo que me fez, mas como poderia perdoá-lo pelo que fez a si
mesmo?”
83 — A esperança é muito mais estimulante que a
sorte.
84 — O que não nos mata nos fortalece.
85 — Quem vê mal sempre vê pouco. Quem escuta mal
sempre escuta demais.
86 — Toda vez que me elevo, sou perseguido por um
cachorro chamado Ego.
87 — Todo idealismo perante a necessidade é um
engano.
88 — Tem o seu caminho. Eu tenho o meu. O
caminho correcto e único não existe.
89 — Toda convicção é uma prisão.
90 — Nossa vida nos parece muito mais bonita
quando deixamos de compará-la com as dos outros.
91 — As pessoas esquecem de seus erros depois de
confessá-los ao outro, mas o outro normalmente não se esquece.
92 — Eis a fórmula da felicidade: um sim, um não,
uma linha recta, uma meta.
93 — A melhor maneira de começar o dia é comprometer-se a fazer feliz ao menos uma pessoa antes de o sol se pôr.
94 — A simplicidade e a naturalidade são o
objectivo supremo e último da cultura.
95 — A vida não é muito curta para que fiquemos
entediados?
96 — Não atacamos apenas para ferir o outro,
para vencê-lo, mas, algumas vezes, pelo simples desejo de adquirir consciência
de nossa força.
97 — Nossas carências são os melhores
professores, mas nunca mostramos gratidão diante dos bons mestres.
98 — Quem fica remoendo alguma coisa se comporta
de maneira tão tola quanto o cachorro que morde a pedra.
99 — O amor não é consolo — é luz."
Artigo publicado na revista "Veja", Brasil.
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