“Nos lugares
remotos do Gerês há uma planta que produz um lírio azul, planta endémica e
maravilhosa. Não sei se se encontra na Serra Amarela ou nas ravinas das Terras
do Bouro; pode crescer nos fojos abrigados pelo mosteiro beneditino que foi
defesa fronteira. Não sei. Penso nela como sendo um olhar que a terra ergue das
suas profundezas e que nos empresta para que os segredos novos nos sejam
apontados. Pois é a terra quem nos persuade aos caminhos que ela tem ainda
invioláveis. Um lírio azul que parece perdido nas alturas roqueiras é talvez
algo mais do que a Iris boissieri; é um olhar que nos vigia, passe a candura
poética.
Aqui, não há
personagens, há só uma confiança que se pode descobrir com a raiz da vida. Não está Ana de Cales, com a sua touca de viúva e o ar ovino e sério; não estão os Alba Pereira nem os Wiesel, ramos dessa casta tenebrosa e amante da propriedade. Não está Francisco de Viana, ou Farina, cheio de " ribaldarias" intelectuais; nem Rosamaria, nem José Matildes, o casal ensombrado de batalhas perdidas. Nem os Marcianos, com os seus arranjos e adaptações de classes.
E também não estão as casas: Cales, com as janelas corridas, o telhado caiado, os armazéns que desprendem um cheiro forte a vinho, os laranjais carregados de frutos como os jardins las Hespérides deslocados para Nordeste. Ou então Ludwell, meio enterrada na areia, como um bunker abandonado, ou o palácio de Mr. Fhil, onde os anjos barrocos de tamanho natural nos seguem com o olhar esgaseado. Ou a casa da Ramada Alta, com escadas que parecem subidas de escotilhas e porões; ou a casa dos Matildes, com um gabinete à prova de som, onde se discutiam tácticas minuciosas para obter um negócio de terrenos, de material de urbanização, de alvarás, de plantas, sei lá! As geresianas não são produto da insistência da relação com objectos e pessoas. São o tempo original em que a alma convive com a eternidade; o coração repousado no amor do seu destino aguarda e vê. O indivíduo escapa ao nosso entendimento, as grandes ideias não se unificam nem se movem em turbilhão; a identidade extinguiu-se porque as pessoas, como chamas, se confundem, para sempre esquecidas da noção de dois mundos, de duas realidades. Desde que se atingem as vertentes das geresianas, um ser humano dissolve-se num outro “como uma gota de orvalho cintilante” – dizia o meu poeta, assim como disse que às vezes Deus dá o sinal de que passa pelas trevas distantes, e tudo se imobiliza, cóleras, segredos, vento que desce da serra, ecos das torrentes, palavras que descem como torrentes, tudo – e um amor imenso paira e reconcilia todas as coisas. Velha amiga que é a terra, ela não nos decepciona, e poderemos durante milénios chamar nobre à raça humana. Se uma lágrima descer sobre estas linhas como um fio de prata, é porque existe consolação até ao último homem que por último desaparecer; quando a Terra rolar à volta do Sol, com noites e manhãs, e só talvez o lírio geresiano olhe e pense no seu seio de cinzas.
E também não estão as casas: Cales, com as janelas corridas, o telhado caiado, os armazéns que desprendem um cheiro forte a vinho, os laranjais carregados de frutos como os jardins las Hespérides deslocados para Nordeste. Ou então Ludwell, meio enterrada na areia, como um bunker abandonado, ou o palácio de Mr. Fhil, onde os anjos barrocos de tamanho natural nos seguem com o olhar esgaseado. Ou a casa da Ramada Alta, com escadas que parecem subidas de escotilhas e porões; ou a casa dos Matildes, com um gabinete à prova de som, onde se discutiam tácticas minuciosas para obter um negócio de terrenos, de material de urbanização, de alvarás, de plantas, sei lá! As geresianas não são produto da insistência da relação com objectos e pessoas. São o tempo original em que a alma convive com a eternidade; o coração repousado no amor do seu destino aguarda e vê. O indivíduo escapa ao nosso entendimento, as grandes ideias não se unificam nem se movem em turbilhão; a identidade extinguiu-se porque as pessoas, como chamas, se confundem, para sempre esquecidas da noção de dois mundos, de duas realidades. Desde que se atingem as vertentes das geresianas, um ser humano dissolve-se num outro “como uma gota de orvalho cintilante” – dizia o meu poeta, assim como disse que às vezes Deus dá o sinal de que passa pelas trevas distantes, e tudo se imobiliza, cóleras, segredos, vento que desce da serra, ecos das torrentes, palavras que descem como torrentes, tudo – e um amor imenso paira e reconcilia todas as coisas. Velha amiga que é a terra, ela não nos decepciona, e poderemos durante milénios chamar nobre à raça humana. Se uma lágrima descer sobre estas linhas como um fio de prata, é porque existe consolação até ao último homem que por último desaparecer; quando a Terra rolar à volta do Sol, com noites e manhãs, e só talvez o lírio geresiano olhe e pense no seu seio de cinzas.
Porto,
25 de Junho de 1982 "
Agustina
Bessa Luís, in “ Os Meninos de Ouro”,
Guimarães Editores, 1983
Sinopse - “
Os Meninos de Ouro” é um romance onde
Agustina formaliza uma ideia já anteriormente sugerida, de que o mundo está em
vias de rejeitar as sociedades narcísicas, ou seja, as que são organizadas em
volta do líder emocionalmente projectado e vivido. A imagem narcísica, em que as pessoas depositam a renúncia da sua natureza original , é-nos imposta como a personalidade modelo.´Mas a personalidade é um efeito e não uma particularidade em si própria." Esta obra ganhou, em 1983, o Prémio de
Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores.
"Ficcionista,
autora dramática, cronista, autora de biografias romanceadas e de literatura
infantil, Agustina Bessa-Luís nasceu em Vila Meã, Amarante, a 15 de Outubro de
1922. Completou, ontem, 90
anos. O Douro, onde viveu a sua infância e aonde, durante a adolescência,
voltava durante as férias escolares, marcou indelevelmente o seu imaginário
romanesco. Depois de viver em Coimbra durante três anos, fixou, a partir de
1950, residência no Porto, onde publicou o seu primeiro romance, os Super-Homens.
Foi a publicação de A Sibila, obra distinguida com os prémios Delfim Guimarães,
em 1953, e Eça de Queirós, no ano seguinte, que a consagrou como nome cimeiro
da novelística contemporânea. Com efeito, logo em 1963, Eduardo Lourenço chamou
a atenção para a mutação operada pela Sibila no panorama das letras nacionais,
assinalando o ano da sua publicação como um marco histórico entre duas épocas
literárias. O significado mais profundo dessa obra foi, segundo o crítico,
“acaso, o de ter de novo imposto um mundo romanesco, insólito, veemente,
estritamente pessoal, desarmante e tão profuso e rico, verdadeira floresta da
memória, tão povoada e imprevisível como a vida, onde nada é esquecido e tudo
transfigurado, mundo grave e inesquecível soberanamente indiferente à querela
literária ideológica que durante quinze anos paralisara em grande medida a
imaginação nacional”. (cf. Eduardo Lourenço, "O Canto do Signo. Existência e
Literatura" (1957-1993), Lisboa, Presença, 1994, p. 162). Com efeito a
novelística agustiniana resolve alguns dos impasses do romance contemporâneo,
entre os quais merecem destaque: a possibilidade de conciliação entre
regionalismo e universalismo, ao encontrar na evocação do mundo rural e urbano
um veio profundo para a análise das relações humanas e da relação do ser com a
memória; a surpreendente anulação da oposição entre objectividade e
subjectividade do narrador, pela intromissão de uma voz, a um tempo, omnipresente,
constante, e “alheia a toda a complacência sentimental e como duplicada por uma
olhar distanciador” (Eduardo Lourenço, op. cit., p. 161); a conciliação de um
sentido social com uma dimensão mítica e trágica na construção das personagens;
ou ainda a reformulação dos modos de representação da realidade, que, sem ser
posta em causa, é subvertida na sua linearidade pelo movimento de evocação que
impõe a descontinuidade e o permanente deslize do vivido para o não vivido, do
real para o sobrenatural. Tendo merecido desde as suas primícias o
reconhecimento de autores e críticos como José Régio, Óscar Lopes, Eugénio de
Andrade, Vitorino Nemésio ou Jorge de Sena, a sua obra, ao longo de uma
carreira que conta com mais de cinco dezenas de títulos, foi distinguida com os
mais importantes prémios literários nacionais: Prémio Nacional de Novelística,
em 1967; Prémio Ricardo Malheiros, em 1966 e em 1977; Prémio PEN Clube e D.
Dinis, em 1980; Grande Prémio do Romance e da Novela da Associação Portuguesa
de Escritores, em 1984; Prémio da Crítica, do Centro Português da Associação
Internacional de Críticos Literários, 1993; Prémio União Latina, 1997; Prémio
Camões, 2004.” Fonte: Página Literária do Porto
O lançamento de dois inéditos de Agustina
Bessa-Luís e a criação de um círculo literário no Porto foram duas formas de comemorar os 90
anos da escritora.
Família,
amigos e especialistas na obra da autora reuniram-se na Universidade Fernando
Pessoa, no Porto, para criar oficialmente o círculo literário Agustina
Bessa-Luís. O objectivo é divulgar a obra da escritora com maior empenho, como
explicou a filha de Agustina Bessa-Luís, Mónica Baldaque.
Agustina Bessa Luís... Uma escritora de fundo, com uma obra notável publicada ao longo dos anos... Uns saudáveis 90 anos dissecando a textura da sociedade, tentando decifrar enigmas inconclusivos, abalando as estruturas do mundo, por dentro das microsociedades em que se moveu, que a envolveram sempre! Parabéns!...
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