domingo, 28 de fevereiro de 2021

Ao Domingo Há Música

Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.
E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro contemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais teres acordado,
Tu como um rio adormecido e doce
Seguindo a voz do vento e a voz do mar
Subindo as escadas que sobem pelo ar.
Sophia de Mello Breyner Andresen, CoralEditorial Caminho , 2003

Uma voz para duas grandes canções.  A beleza e a magnitude destas duas composições perder-se-iam sem uma   interpretação maior. 
Como um rio adormecido e doce   que  sobe para nos encantar,  fica a voz luminosa de Sissel Kyrkjebø, conhecida também apenas como Sissel, uma cantora norueguesa considerada como uma das melhores e mais talentosas sopranos do mundo. 

Sissel, em "  Pie Jesu - Requiem", de  Andrew Lloyd Webber.
Andrew Lloyd Webber começou a escrever música como uma maneira de lidar e expressar a dor. Quando ele terminou o Réquiem, dedicou-o ao seu pai que faleceu em 1982. Webber's Requiem é a sua composição mais pessoal e o único trabalho clássico completo. Foi apresentado pela primeira vez em Nova York, na Igreja de St. Thomas, em 25 de Fevereiro de 1985, com o maestro Lorin Maazel, a soprano Sarah Brightman (com quem, na época, era casado), o tenor Placido Domingo e o filho soprano Paul Miles-Kingston. Em 1986, Requiem de Lloyd Webber ganhou um Grammy de Melhor Composição Clássica Contemporânea .  "Pie Jesu" ficou entre as 10 melhores nas tabelas  musicais britânicas, ganhando o Requiem a Certificação prata pela Indústria Fonográfica Britânica
   
Sissel , em  "Going Home", canção baseada no famoso tema "Largo" do compositor tcheco Antonin Dvorak da sua Sinfonia nº 9 (From the New World), Op. 95. Esta sinfonia foi composta enquanto ele estava na América e foi interpretada pela primeira vez pela Filarmónica de Nova York no Carnegie Hall, em 16 de Dezembro de 1893.  Considera-se que  Dvorak  se inspirou nas  melodias folclóricas americanas, especialmente afro-americanas ou indianas americanas. A letra de "Going Home" foi escrita por um dos alunos de Dvorak, William Arms Fisher (1861-1948), que adaptou e organizou o tema Largo e acrescentou  as suas próprias palavras em " forma de um espiritual negro". Esta canção ficou especialmente conhecida como espiritual, após a morte do presidente americano Franklin D. Roosevelt, na década de 1940.
     
Eis o que Fisher escreveu na partitura publicada de sua canção, "Going Home" (Oliver Ditson Company): 
‎"O Largo", um solo assombroso, é o apelo da saudade de casa de Dvorak, com algo da solidão dos horizontes distantes da pradaria, a ténue memória dos dias passados do homem vermelho e um sentido da tragédia do homem negro enquanto canta "espirituais". É também a expressão comovente dessa nostalgia da alma que todos os seres humanos sentem. O tema de abertura lírica do "Largo" deve sugerir espontaneamente as palavras "Ir para casa, ir para casa" e as linhas que seguem a melodia devem assumir a forma dos acordes do espiritual negro com a génese da sinfonia." - William Arms Fisher, Boston, 21 de Julho de 1922.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

"Vamos Ler!"


A aventura que enriquece: Vamos Ler!

"Vamos Ler!é um pequeno e gostosíssimo livro de Eugénio Lisboa. Nele, o autor partilha, primeiro, a sua experiência de leitor – como se deixou seduzir, como se apaixonou por cada romance, como viveu em cada um vidas que de outro modo nunca viveria e diz mesmo, coisas desassombradas como esta: «… agradeço à extinta PIDE, com a sua boçal e brutal vigilância, ter aguçado e apimentado, em mim, o gosto pelas leituras proibidas.»
Depois, Eugénio Lisboa, com a sua arte de escrever com encanto e alegria, sugere 35 autores portugueses e 50 livros que vão injectar na pele dos leitores, para sempre, o gosto da leitura.

Vamos Ler! Um Cânone para um Leitor Relutante é um convite sedutor à aventura e ao prazer da leitura. O autor explica: «Entre nós, parece haver o culto, de um snobismo provinciano, da “dificuldade”, do “aborrecido”, do “opaco”, da “circunvolução”, do “arrebicado”, do “complicado”, que confundem com o “complexo”.»
Contra esse snobismo e contra a chatice, Eugénio Lisboa escolhe livros que vão cativar os seus leitores, abrir-lhes portas e iluminar realidades. Eis o princípio que guia este livro: «A leitura é, para os grandes leitores, um prazer, uma instrução e uma terapêutica… não há dúvida de que a grande literatura nos abre grandes e novas perspectivas sobre o mundo em que vivemos: fala-nos de lugares e de pessoas, de ideias e de emoções, de conflitos humanos e de aventuras que nos enriquecem.»
Se eu tivesse de escolher os pontos fortes deste livro, sublinharia três:

- É um pequeno cânone da literatura portuguesa que propõe a todos os leitores, mesmo aos que dizem não gostar de ler, os 50 livros e 35 autores portugueses com que vale a pena começar.
- É um cânone diferente dos outros. Além dos leitores fiéis, que vão delirar com as pequenas provocações, o livro quer sobretudo oferecer um cânone a quem quer começar a ler ou mesmo ao leitor irregular.
- Este é um livro que vive a literatura e a leitura com alegria e nos propõe livros cuja leitura nos oferece viagens de prazer e de grande emoção.

Vai chegar às livrarias no dia 23 de Março. Mas para os leitores menos relutantes e desejosos de uma aventura excitante, a Guerra & Paz manda-lhe já este livrinho para casa." 
Artigo publicado pela Guerra e Paz,  Editores, S.A ,   em  2021-02-26 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Manoel de Andrade em "Huasipungo"

Manoel de Andrade
Quem leu o livro de Memórias do exílio de Manoel de Andrade retém, com prazer,  os vários capítulos em que este poeta, em boa prosa, foi relatando históricos acontecimentos da "sua" América Latina. O indigenismo, como um dos grandes temas que sempre o atraiu, é o leitmotiv que conduz Manoel de Andrade a produzir instrutivos ensaios, importantes recontos e extraordinários relatos de peregrinações a locais marcantes da História Latino-americana. Ao integrá-los no seu belíssimo livro de Memórias , Manoel de Andrade torna-nos cúmplices de uma verdade que nem todos conhecíamos. Com ele , aprendemos a olhar os lugares, por onde passa, com a visão maior de um grande investigador e de um humanista que ama e lutou pela justiça e pela liberdade de um continente. O passado das nações nem sempre foi pacífico e digno. O desbravar do mundo despertou o sonho, mas também a gula do poder, a cruel subjugação dos autóctones pela força das armas e de sevícias. Conquistar terras, alargar os territórios, expandir e colonizar aconteceu em África, na América e por muitas grandes parcelas deste nosso mundo. Em nome de uma Fé ou pelo prazer da descoberta ou pela sede de riqueza e poder, o homem atropelou, chacinou, injuriou, torturou, matou. Não bastou um Padre António Vieira para acordar as consciências. Antes e depois, o atropelo prosseguiu. Colonizada ou libertada, a América Latina continuou profundamente martirizada , numa infame desigualdade social que se arrasta até aos dias convulsos que vivemos. O passado, a história foi feita pelos homens. Existiu ora bela ora indigna. O homem é feito de tudo isso. É necessário recordá-la, divulgá-la , manter os seus vestígios aos nossos olhos e aos olhos vindouros para que se aprenda e não se repitam os erros. Limpar o passado, reescrever a História é permitir ao Homem a reincidência e proibir a redenção.
Partindo deste postulado e para que se não esqueça,  retirámos, deste grande memorial "No rastro da utopia, uma memória crítica da América Latina nos anos 70, " um longo capítulo  em que Manoel de Andrade nos leva a  apreender e conhecer  um romance centrado no real e dramático passado desse continente.
A sabedoria e a compaixão deveriam comandar o mundo.  Eis por que razão :
Manuela Sáenz, a Libertadora do Libertador Simón Bolívar
 XX
Huasipungo
por Manoel de Andrade
1. A revolucionária Manuela Sáenz
"Alguns dias depois que cheguei a Quito passei a frequentar, pelas manhãs, a Biblioteca Nacional “Eugenio Espejo”. Procurei a biblioteca a fim de pesquisar sobre a vida da revolucionária equatoriana Manuela Sáenz, nascida em Quito em 1797 e que, tal como a boliviana Juana Azurday Padilla, lutou pela independência da América e morreu no abandono. Alguns intelectuais que conheci naqueles dias referiam-se a ela como a maior heroína nacional e, nestes dias, em entrevista dada em outubro de 2011 o escritor, historiador e crítico equatoriano Hernán Rodríguez Castelo - autor de uma recente biografia sobre Manuela Saens - afirmou que no hay en América en la primera mitad del siglo XIX ninguna otra mujer de la grandeza de Manuela Sáenz.
Insurgindo-se contra uma sociedade colonial decadente e corrupta, envolveu-se desde a adolescência com as forças que organizaram, a partir de 1809, a emancipação do Equador. Foi posteriormente internada num convento de onde fugiu para Lima, integrando-se na luta libertária até a Independência do Peru, em julho de 1921. No ano seguinte conheceu e tornou-se amante de Bolívar, passando a tomar parte nos combates, vestida com uniforme militar e salvando-o da morte por duas vezes. Desterrada para a Jamaica, após a morte do Libertador e posteriormente para a cidade norte-peruana de Paita, onde morreu na pobreza em 1856, tal era a sua fama que ali foi visitada pelo revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi e pelo escritor Herman Melville. Enquanto lia a obra Manuela Sáens, la Libertadora del Libertador, do historiador equatoriano Alfonso Rumazo González, alguém comentou sobre a importância de um livro que, ano a ano, impunha-se na literatura equatoriana e hispano-americana e que eu desconhecia. Era o  romance Huasipungo de Jorge Icaza, publicado em Quito, em 1934.

2. O Huasipungo de Jorge Icaza
Desde as primeiras páginas, a narrativa indigenista despertou meu interesse a ponto de ler o livro duas vezes no Equador e ter relido recentemente numa surpreendente edição de 1941, publicada em Curitiba pela antiga Editora Guaíra. Foi realmente uma festa, para o “rato” de livraria que sou, encontrar a obra num dos sebos , (alfarrabistas em Portugal - informação de Livres Pensantes), da cidade, em uma das primeiras edições feitas na América Latina e, com certeza, a primeira no Brasil. E, contudo, apesar de ter sido traduzida para mais de 40 línguas e de outras edições nacionais, Huasipungo é um livro praticamente desconhecido entre nós. Huasipungo é uma palavra quechua que significa o local onde vive o índio com sua família: pais, avós, esposa e filhos. É a sua querência, o seu ancestral e sagrado pedaço de terra, a qual lhe emprestam pelo trabalho que executa na fazenda e onde constrói sua casa de taipa e seu quintal, onde planta e cria seus animais. Huasipungo, pela sua fidelidade cultural, é a obra indigenista por excelência do continente. A corrente indigenista, que precedeu o realismo mágico na narrativa latino-americana, surge no começo do século XX, com a novela Raza de bronce, do boliviano Alcides Arguedas (1879-1946), obra que circunstancialmente não pude ler quando passei pela Bolívia e de cujo autor conheço somente parte de sua grande poesia. Não faço aqui uma análise literária da obra porque essa não é minha ciência e nem minha paixão, mas apenas cito algumas passagens do romance, focadas na denúncia de um enredo chocante, marcado pelos sucessivos quadros de um drama continuado onde a opressão e o desprezo pelo ser humano se impõem ao longo de 200 páginas.
O realismo do romance deve-se, em parte, à própria vivência do escritor entre os índios numa região andina de selvas, batida pela fúria dos ventos e pelas enchentes dos rios que arrastam árvores, casas, homens e animais, sepultando tudo em poucos momentos. Foi, em parte nesse cenário natural que o talento de Icaza pintou as cenas mais sombrias de sua obra, retratando a cruel escravidão a que os habitantes indígenas eram submetidos e cujas vidas eram sacrificadas de forma banal conforme os interesses dos fazendeiros.
O enredo gira em torno de duas personagens: o fazendeiro Alfonso Pereira e o índio André Chiliquinga, e começa com Alfonso - pressionado por muitas dívidas - aceitando a proposta de seu tio Julio Pereira de internar-se na selva para construir uma estrada que a ligasse ao povoado de Tomachi e, na continuidade, a compra das terras da região e a destruição das aldeias de huasipungos para que o norte-americano Mr. Chapy instalasse a administração para a retirada da madeira, como um disfarçado pretexto para apoderar-se do petróleo da região.
Acompanhado da esposa Blanca e da filha Lolita, grávida de um cholo, um camba, - um índio aculturado - alguns indígenas de serviço e montando uma mula, Alfonso chega ao povoado a caminho da fazenda que mantinha numa localidade chamada Cuchitambo.

Entardecia e a caravana entrava na povoação de Tomachi. O inverno, a montanha e a miséria, haviam feito de Tomachi uma povoação de lama, de imundície, de agachos. Agacham-se as choças, ao largo da única rua lamacenta e adornada de monturos. Agacham-se, às portas das vivendas, as crianças, para brincarem com o barro, ou para tiritar com os calafrios do paludismo. Agacham-se as mulheres junto ao fogo, desde a manhã à tarde, preparando as papas de farinha de cevada ou o guisado de batatas. Agacham-se os homens, de seis a seis, junto ao trabalho da chácara ou da montanha, ou se perdem pelos caminhos com as mulas, levando cargas às povoações vizinhas. A rua estreita está tatuada por um pequeno regato de água suja, onde se dá de beber ao gado existente nos huasipungos, e onde os suínos fazem suas camas de lodo, para espojarem-se em seus ardores. E ali mesmo, os meninos, pondo-se de quatro, saciam a sede. 327

Quanto ao índio André, fazia dois anos que ao terminar o trabalho no casarão de Alfonso, ao invés de voltar para o huasipungo dos pais, penetra escondido no bosque até chegar à choça onde vive com a Cunshi.

Ela o vê aproximar-se, solta a lenha, agacha-se em baixo como a galinha que espera o galo. E aguarda que atue a agressividade do macho, que, colhendo um bagaço de cana que há no pátio, o emprega para açoitar. Se alguém houvesse pretendido defendê-la, ela se voltaria irada e olhando para o defensor lhe cuspiria na cara em sinal de protesto, como todas as índias: “Intrometido, não faz mal que me pegue, para isso é o marido”. (35)  

3.Um seio indígena para uma criança branca
Depois que Lolita ficou sem leite para amamentar o filho bastardo, Dona Blanca manda o capataz Policarpo em busca de índias que possam amamentá-lo. Quando o filho da primeira índia morreu, por não poder disputar seu único alimento com o neto de nhá Blanquita, o leite acabou e Policarpo foi atrás de novas índias numa plantação da região, onde as mães carpem a terra e os filhos ficam na sombra da mata. As crianças choram de fome e o capataz diz que veio para levar uma jovem índia:

- Cadelas! E agora que vou, pois, tenho de levar a menina. O menino, chorando, ficou por mamar. A índia de Cachishano já lhe secou o leite. Ela o substituirá. (45)

As índias exibem seus filhos, espremem os seios respingando jatos de leite e o capataz seleciona duas índias para a escolha final:

- E nós, não?
- Vão trabalhar. E se não terminam a tarefa desse lado, verão, bando de cadelas. (46)

4. André fica coxo
Com a demanda da lenha e o carvão no comércio da capital,  Don Alfonso delega  ao mestiço Rodrigues o comando de trinta índios para tirar a madeira dos montes e entre eles André, que reluta em deixar Cunshi e seu filho recém-nascido, mas, ainda que tomado pela revolta, acaba obedecendo a Rodriguez, contratado para fazer o carvão. Ao usar o machado para picar o tronco, o objeto desvia-se e lhe atravessa o pé cravando-se no tronco. O capataz manda buscar teias de aranha e lhe aplicam todas emporcalhadas sobre o corte sangrando e enfaixando o pé. No terceiro dia seu pé era uma chaga viva, fétida, putrefacta e tomada pelos vermes. Foi levado para a fazenda, tratado e curado mas ficou coxo. 

5. A estrada da morte
A construção da estrada começou com grande entusiasmo, mas quando os trabalhos chegaram a uma região de pântanos foi necessário embriagar os índios para que eles tivessem coragem para entrar no lodo profundo onde eram mordidos por caranguejos famintos.
Naquele ambiente insalubre, atacados pelo impaludismo, tremores e febre, os índios são obrigados a trabalhar sob a ameaça do chicote de Rodrigues que está orientado pelo fazendeiro Alfonso para não deixar  atrasar as obras, ainda que muitos índios tenham que morrer no pântano.

- Vamos, canalhas! Corram... Corram...
Aferrada à febre, vai também a preguiça que torna lerdos os membros, impedindo-os de correr.
- Canalhada suja! Que se passa, pois? - afirma o zarolho, vendo que os índios atacados da palustre se movem apenas. Volta a lubrificar as mãos com a saliva e força o braço, enlouquecendo-se com os desmaios dos impaludados. (99)

Diante da pressa com que Don Alfonso exige o difícil trabalho dos índios retirando lodo e lama para drenar o pântano, o engenheiro da obra o adverte que não se pode secar pântanos à custa de cadáveres. Que se não se avançar aos poucos se poderão perder centenas de índios, morrendo enterrados em alguns sumidouros.

Um grito saído do meio da neblina faz emudecer todos os comentários. Ao longe se distingue, ligeiramente apenas, a silhueta de um índio, que levanta as mãos, como se buscasse apoio no ar. O engenheiro volta a olhar, procurando descobrir a tragédia em todas as direções, e ao ver o índio, que pede socorro, exclama triunfante:
- Veja, veja começa a submergir-se. Aí tem você um índio perdido. E será este o primeiro; mas, não será o último. (103)

 Diante da tragédia muitos mestiços falam em deixar aquele inferno e voltar ao povoado. Mas o fazendeiro Alfonso tem uma solução:

- Não...  Já verá que tudo se arranja. Aos mestiços é dar mais um trago. Vou mandar vir do povoado mais uns cinco barrís. Eles manterão o entusiasmo, pela insconsciência do álcool...  É preciso que o trabalho continue dessa maneira, pois do contrário teríamos um insucesso e veríamos sem cumprimento nossa missão cultural, de trazer a este povoado a imagem e semelhança de nossa civilização. Verá...   --- afirma o latifundista, alimentando projetos prazenteiros entre as mãos. (104-105)

O engenheiro comenta que tais mortes irão desencorajar os peões. Mas Don Alfonso retruca:

- Isto ficará a cargo, em primeiro lugar, do trago estimulador. E, em segundo, ao cargo de meu amigo cura...  Já verá você. Apenas venha o padre, que os ensope com um sermão, oferecendo-lhes a glória e alguma cousita mais, tudo entrará nos seus eixos. (105)


6. O “socorrinho” para os famintos
Era costume do fazendeiro Alfonso dar o resto das espigas de milho que sobrava no campo para os índios dos huasipungos. Naquele ano, porém, ele resolveu recolher tudo para vender, negando aos índios o socorro que eles contavam para matar a fome da família. O fato geraria uma revolta silenciosa e imprevisível entre os indígenas. Sentados naquela manhã em torno do pátio da casa da fazenda, esperam que o patrão se levantasse para fazer a petição daquilo que sempre receberam: o “socorrinho”, os grãos caídos na terra. O fazendeiro chega perguntando o que querem e nega o “socorrinho”.
Os índios, pressionados pela fome, permaneceram mudos e imóveis, ante a negativa dos “trinta quintais” de grãos que Alfonso pretendia vender no mercado de Quito. Depois, saíram dizendo em quéchua que à noite iriam recolher “os socorros”. Alertado, pelo mordomo, que estavam esfomeados e poderiam matar pela comida, o fazendeiro mandou que telefonasse para o Intendente de Quito pedindo um piquete policial contra um possível levante de índios.

Pela aldeia e pelo vale cruzam rajadas de fome, emprenhando-se pelas casas, pelas choças, pelos huasipungos.
Não é a fome dos rebeldes que se deixam morrer no cárcere. É a fome dos escravos, que se deixam matar.
Não é a fome das estrelas do cinema, que a aceitam para não perder a linha; é a fome dos índios que se matam para conservar a robustez das elites latifundistas.
Não é a fome dos desocupados; é a fome dos índios super-ocupados e esfomeados.
Não é a fome improdutiva; é a fome que há engordado os celeiros da serra, que há posto motor no orgulho da aristocracia capitalista.
Fome, que toca harpa nas costelas das crianças e dos cachorros.
Fome que se cura com a receita da mendicidade, da prostituição e do roubo. (144)

7. Um “banquete” de carne podre

Um dia aparece um boi morto num valo da fazenda de Don Alfonso. Os índios buscam o mordomo pedindo que interceda ao fazendeiro para que lhes deem a carne.

Que os regale com a carne? Não estou louco! Já mesmo, mandes fazer um fosso bem fundo, e enterres o boi. Os índios não devem provar, nem mesmo uma migalha de carne. Desde que se lhes dê, assanham-se e estamos fritos. Todos os dias me fariam rodar uma cabeça de gado. Mataram-me esta intencionalmente. Os pretextos não faltam. Carne para os índios!  Não faltava mais nada. Nem o cheiro. São como feras. Se se acostumam, quem os aguentará depois? Precisaria matá-los para que não acabassem com o gado.  Do mal o menor. Fazes enterrar o boi pintado, o mais profundo que se possa. (148)

Quando o mordomo chega ao local os urubus já estavam devorando o animal. O buraco foi feito e enquanto o corpo do boi é puxado para a cova, alguns índios arrancam pedaços de carne e ocultam sob a roupa. O mesmo faz o índio André escondendo um pedaço de perna por baixo do poncho.

(...) mas, o chicote do mordomo lhe envolve em um fustigo, que o atravessa até os ossos.
- Solta, canalha!
Não foi vergonha; foi ódio, foi desespero o que o índio sentiu, quando arrojou seu pequeno roubo ao fundo do buraco. Somente os corvos seguem pondo coroas alucinantes sobre os enterradores. (151)

 André, ante a fome da mulher e do filho que não para de pedir comida, espera a noite chegar e volta ao local onde o boi foi enterrado e encontra dezenas de índios cavando a terra fofa de onde exala o cheiro fétido da carne apodrecida. Repartem os sinistros despojos cobertos de vermes e voltam aos seus huasipungos ocultados pelas sombras da noite. André volta a sua choça trazendo o precioso banquete. Depois de fartos, os três tentam dormir. André levanta-se enjoado no meio da noite, sai da choça e vomita tudo. Cunshi sente queimar-lhe o estômago e grita de dor. Entre remédios para a dor de barriga, a fraqueza e a sonolência, o dia amanhece e Cunshi passa as horas retorcendo-se e retratando nos olhos esbugalhados o sofrimento mais cruel. A imensa dor faz dela uma possessa, contorcendo-se sem parar. Desesperado, André atira-se a ela tentando paralisar-lhe os movimentos entre seus gritos de tormento. Depois de lutar até às derradeiras forças, seu corpo prostra-se e silencia.


8. Quando se paga para entrar no paraíso
Depois das lágrimas de André, chegaram as carpideiras para o chasquibay, o ritual dos índios para prantear seus mortos. Ao fim de tantos lamentos, as mulheres levam o corpo de Cunshi para banhá-la no rio e após enxugá-la começam a catar seus piolhos e lêndeas. André sai em busca do padre para encomendar a missa e o enterro. Ao encontrá-lo, pergunta quando custa a cerimônia e o padre leva-o para mostrar suas mercadorias num cemitério de cruzes atrás da igreja.

- Olha! - ordena o bom pároco, passando a vista pelo campo de cruzes, com a cobiça igual ao fazendeiro observador de sementeiras bem carregadas.
- Jesus !
- Agora bem, estes que se enterram aqui, estão nas primeiras filas, como estão mais perto do altar mor, mais perto das orações e, portanto, mais perto de Nosso Senhor Sacramento - tira o gorro e faz uma reverência de caída de olhos, pondo um ar de mistério em suas afirmações - são os que vão mais rapidamente aos céus , são os que, geralmente, se salvam. Daqui ao céu, não há mais que um passinho.(...)
(...) Depois deste sermão, deu alguns passos, e começou de novo a farsa, diante das cruzes, que se erguiam no meio de cemitério. - Estas cruzes de paus sem pintura, são todas de índios pobres. Como podes perfeitamente compreender, estão um pouco mais afastadas do santuário; as rezas às vezes chegam até elas, às vezes não. A misericórdia de Deus, que é infinita - outra reverência e outra saudação com gorro - levou estes infelizes ao Purgatório. Tu já sabes que são as torturas do Purgatório, são piores que as do Inferno....) - E , por último...! Não caminhes mais - grita vendo que o índio avança campo a dentro.
- Acaso não percebes um olor estranho? Algo fétido... Algo enxofrado.
- Não paizinho.
(...) - Ali... Os distantes... Os esquecidos... Os reprobos!
Como se a palavra lhe queimasse a boca, como se tivesse visto um relâmpago sinistro, desembaraçou-se dela:
- O inferno! (167-169)

Depois de assustar o pobre índio, o pároco resolveu tratar de negócios:

Como te tens sempre portado serviçal para comigo, vou cobrar-te baratinho, coisa que não faço mais a pessoa alguma. Pela missa e pelo enterro nas primeiras filas, só te custam vinte e cinco sucres. Nas do meio, que serão as que te convêm, te custam quinze sucres.  E... nas últimas, onde habitam os demônios, cinco sucres. Coisa, que não te aconselharia, nem estando louco. Preferível  seria, deixá-la sem sepultura.(170)

Como o padre, ante a pobreza extrema de André, arrematou o negócio dizendo que o pagamento era à vista, o índio se afastou em lágrimas. Com receio que sua querida Cunhsi vá para o inferno, rouba uma vaca de Don Alfonso e vende por quarenta sucres para poder mandá-la para o céu. O roubo é descoberto e ele é açoitado até desfalecer.

Balanceia o índio, dependurado em regular altura. A corda aperta-lhe os pulsos, como mordidas de fogo. A cada movimento das pernas do dependurado, a corda aprisiona com mais firmeza e os calções, que foram as únicas vestes que lhe deixaram, começam a escorregar pela cintura. Um índio que estava aprendendo a contar, exercita em voz baixa, a sua sabedoria, contando as costelas de André.
(...) O desespero e o pranto infantil mexem com a alma dos índios, sacudindo-lhes com um tremor de lágrimas. Até as índias se sentem em estado de gritar. Basta, canalha!... Basta! Mas o protesto se esbarra de encontro à parede da humildade, da resignação, dos entraves que, desde pequenos, lhes puseram o cura, o amo, o delegado de polícia, e todos os brancos pregadores de moral, todas as elites da civilização, que vivem buscando espáduas submissas, sobre as quais passe o carro do progresso, por onde irão eles e seus satélites.
(...) Uma pausa para tomar alento, para cuspir nas mãos, para voltar ao começo. O chicote apazigua os gritos, apazigua as convulsões, faz calar as súplicas, imobiliza os protestos. As costas do delinquente se fizeram vermelhas de sangue, a cabeça se abate. Somente o chicote é capaz de fazer oscilar o corpo inerte. Não paga a pena, gastar as forças para golpear um corpo desmaiado.
Desafiante, o Jacinto grita para o dependurado:
- Índio cachorro, por que não aguentas mais? Maricão...
Como única resposta, o índio se balança dependurado na estaca, como bandeira hasteada, depois de uma tempestade. (179-182)

9. Os gringos mandam destruir os huasipungos

Correu a notícia que os norte-americanos iam chegar. Os mestiços engalanaram as portas das casas com bandeirolas e com “vivas aos gringos”. Os índios, desconfiados, ficaram à margem daquela alienante euforia. Numa manhã, três automóveis e sete caminhões, carregados com máquinas, cruzaram com rapidez o povoado sem tomar conhecimento das homenagens.

Encarapitados em uma elevação de barro, numa dessas tapias formada pelos tempos, Mr. Chapy e Don Alfonso faziam sobre a vasta planta da serra, com o ponteiro afilado dos indicadores, o croquis para os primeiros trabalhos.
- Isto aqui estará bem sem as choças. Teremos que construir nossas casas por aí, nossas oficinas, tudo --- comenta o estrangeiro, apontando para as margens do rio.
- Ah! O que ofereci, cumpro.
(...)- Well... Well... Nessa lombada poderíamos pôr a serraria grande --- afirma Mr. Chapy, arrastando o castelhano de uma pronúncia que tem os eixos dos “erres” e dos “esses” mal engraxados.
- Ali? - interroga o fazendeiro, assinalando o grupo dos huasipungos.
- Yes. Justamente, por isso, dizia a Mr. Julio que preciso de tudo limpo, completamente limpo
O gringo seguia, assinalando as diferentes choças, que inteiriçadas de frio entre as brenhas da montanha, se deixariam caçar pela necessidade civilizadora de Mr. Chapy.
- Temos bosques para um século. - atreve-se a comentar Don Alfonso, com o riso meloso dos que creem vender bagatelas.
- E outra coisa mais, todavia. Certamente, há lido você que toda a cordilheira oriental destes Andes está cheia de petróleo --- afirma Mr. Chapy em tom confidencial
- Ah? Sim?
- Não sabia você? Há bom tempo que já havíamos firmado o contrato. Aqui temos petróleo. Eu examinei isto. Você e seu tio também terão boa parte no negócio.
- Que grandes são vocês os Ianques!(184-186)

 Nos dias seguintes, dada a ordem de destruição, começa a demolição das choças.


Caíram sobre os primeiros huasipungos, com a voracidade de corvos, os senhores gringos, até deixar as choças em ossos.
(...)- Vão saindo com brevidade. Aqui vamos começar os trabalhos.
Da choça saiu um índio.
- Por que nos tirar? Este aqui é meu huasipungo. Desde o tempo do patrão grande, mesmo. Por que nos tirar?
- Não queremos saber de nada. Vá saindo. Na montanha, há terreno de sobra. Vá pra lá.
Como o índio, instintivamente, se opusesse ao despejo, um dos homens lhe deu um repelão, fazendo-o rodar sobre o milho, enquanto ordenava aos mestiços armados de picaretas, alavancas e pás:
- Já, fora tudo. Vamos começar... 
E começaram, em cumprimento ao mando, investindo sobre a miserável choça. Caiu a cobertura de palha, aos pedaços, sobre a nudez do lar índio. Diante dos olhos curiosos do sol, destapa-se a panela de cultivos de miséria, onde a magnificência de uma cultura feudal havia guardado, por séculos, o segredo de sua nobreza dourada.
- Canalha!... Eu vou avisar o patrão... --- ameaça o índio ultrajado, sem saber a quem dirigir seu despeito e sua impotência.
- Te há de mandar a patadas --- informa o capataz.
Acovardado, o índio, ao ver-se rodeado pela mulher, pelos filhos e pelos farrapos, suplicou humildemente:
- Então... Onde vamos, pois, passar o dia, patrãozinho?
Já lhe disse que nos montes. Por enquanto não se precisam desses terrenos. (187-188)

Diante dos gritos da família, o índio viu seu castelo desmoronar. Era como se lhe arrancassem o coração do próprio peito. Nascera ali, aquele quintal fora as fronteiras de sua infância. Ali criara seus filhos e agora amparava seu velho pai. Sua choça era o seu ninho, seu pequeno mundo, seu melhor lugar no universo.

 Fez uma maleta com os trapos; juntou as galinhas e o milho; carregou o pai paralítico e, seguido pela mulher, a quem entregou a maleta, pelos pequenos e pelo cão, o índio entrou no caminho do monte, pensando em ir pedir pousada ao compadre Tucuso. No caminho foi encontrando outras famílias despojadas, entre elas, também se encontrava a do compadre. (189)

 

10. A revolta
Nasce a revolta e ela chega até o coração de André, quando avisado pelo filho que estão derrubando os huasipungos.

- Não... Não hão de roubar assim não, grandes canalhas -- afirma o índio.
Sem atinar com a defesa imediata se pôs pálido, com os olhos mui abertos. Como podiam arrancar-lhe a sua chácara, se nela se sentia cravado como uma árvore da montanha. Teriam primeiramente, que tombá-lo a machado. (189-190)
(...) Parece que a encosta despertou, enquanto o vale e a montanha, com seus mil huasipungos, seguem dormindo, Despertar parcial, despertar imprevisto, que põe mais furor desordenado e selvagem nos rebeldes. O cartel sonoro da trompa não penetrou em todas as choças. As cem famílias índias se precipitam sozinhas. A terra sente a cócega de seus pés nus, que correm; os huasipungos da planície parecem ter mudado a atitude de agachamento pacífico para o agachamento de espreita nas barricadas. As árvores são torres de observação, com seu telegrafista, que abriram seus olhos nas copadas. As enseadas e as covas da rocha se engordam de material bélico. (191)

Os índios se levantam em fúria e seguem pela encosta, com mulheres e crianças aos gritos de “nosso huasipungo”. Encontram seis homens que sob o comando do delegado Jacinto haviam posto fogo na região. Cercam-nos, e André apoiado em muletas ataca Jacinto que morre sob seus golpes, assim como morrem os demais, e entre eles o capataz Rodrigues.
Enquanto à noite os índios invadem a casa do fazendeiro em busca de comida e retiram daquela servidão suas mães, irmãs e filhas, em Quito o governo envia trezentos soldados para combater a revolta.        
Nos círculos governamentais, a notícia caiu, como caem sempre estas notícias, como um ato de barbaria contra a civilização.
- Que sejam mortos
- Que os acabem.
- Que os eliminem.
(...) Quando a tropa chegou ao povoado, Don Alfonso recomendou ao oficial que a comandava:
- Oxalá consiga pegar alguns deles vivos, para que se faça um exemplo.
- Creio difícil. Quando do famoso levante em Cuenca 328, meu general Naranjo, que era bem compassivo, ameaçou-os fazendo descargas para o ar, mas foi tudo inútil. São uns néscios
- Como selvagens que são.
- Tivemos que os matar a todos; mais de dois mil ficaram estendidos. Demônios, que se alguém não está alerta bem pode ficar frito --- afirma o oficial, tomando um copo duplo com o fazendeiro, servido pela mulher do Jacinto, que começava a inquietar-se pela demora do marido. (196-197)

Eis aí o espírito do capitalismo - filho do feudalismo e da escravidão  -  transformando suas vítimas em algozes para justificar sua nefasta intervenção e seus atos criminosos.


11. O massacre 
Mais tarde as metralhadoras começaram a cantar, levando as famílias indígenas a se esconderem nas matas da encosta. Os soldados, cercando os fugitivos, metralhavam sem parar. Caem homens, mulheres e crianças
 
Os tiros de fuzis vão catando os índios de todos os esconderijos.
 Passam as horas. O sol vai se afundando entre algodões, empapados de sangue dos charcos. 
 Uma vintena de índios se fortificou no huasipungo de André Chiliquinga, o qual se encontra situado ao fim da quebrada grande. (198) 

Os soldados cercam o local e são atacados por blocos de pedras que os índios fazem descer do alto do morro e disparam contra os militares com escopetas de caçar rolas. O batalhão abre fogo sem piedade. 

 (…) No valado, as mulheres, os garotos e os índios começam a ficar imóveis. Uivam de dor todas as bocas. Os ais se revolvem, formando ninhos de lodo sanguinolento. Os garotos morrem no regaço de suas mães, as índias morrem no regaço dos alaridos infantis. Entre nuvens de pó e de dor, os poucos índios e os poucos rapazolas que restam, defendem-se a pedradas. De repente, à mandíbula inferior do valado, brotam dentes de baionetas. O refúgio se converte em focinho carnívoro, que se compraz em triturar a indefesa indiada, com seus caninos de aço. (199) 

Quais aves sem ninho e refugiados dentro da choça de André, os últimos índios ouvem as rajadas que chegam. As metralhadoras rasgam o teto da humilde choça. O fogo se acende sobre as palhas do telhado. O desespero, o pânico e a tosse asfixiante atingem a todos. André abre a porta e com o filho dos braços grita:
 - Canalhaaaaas... Nosso huasipungo!
 (...) Tudo emudece, até a choça terminou de arder. O sol se asfixia entre tanto algodão ensopado, ensopado com o sangue dos charcos.
 (...) Entre os despojos da dominação, entre as choças desfeitas, entre o montão de carne flácida ainda, surgiu a grande sementeira de braços fracos, como espigas de cevada, que, ao serem mexidas pelos ventos gelados dos páramos da América, murmuram, pondo os dominadores de pele eriçada, com voz ululante de trado:
 - N o s s o h u a s i p u n g o !
 - N o s s o h u a s i p u n g o ! (201) 

12. O porquê desse resumo:
Creio que uma simples resenha não daria a dimensão do dramático enredo dessa obra cuja via crucis somente pode ser avaliada pela sua leitura integral. Propus-me nessa síntese transcrever apenas os seus quadros mais reais e, lamentavelmente, os mais chocantes. Resolvi fazê-lo por saber que o romance Huasipungo, apesar de tantas edições pelo mundo e algumas no Brasil, é praticamente desconhecido dos nossos leitores. Creio também que para isso servem as memórias: para aproximar o que está distante, para que se relembre o que não deve ser esquecido e, sobretudo, para que o tempo faça a sua justiça, denunciando as injustiças, seja na ficção, seja na história. Foi por isso que, na primeira parte deste livro, dediquei tantas páginas para reavivar a “memória esquecida” dos araucanos no Chile e, se essas minhas memórias de viagem tiverem alguma importância, serão pelos frutos colhidos e pelas sementes deixadas pelos caminhos. Meus passos pela América não teriam sido tão fecundos se não tivesse encontrado os rastros libertários de Lautaro e Caupolicán, Tupac Amaru e Tupac Catari, bem como, em episódios mais recentes, os exemplos imperecíveis dos poetas Javier Heraud, Otto René Castillo e a luta atual e incondicional do ex-guerrilheiro Hugo Blanco em favor do indígena. O livro de Jorge Icaza é também uma trincheira aberta e ainda que seja uma ficção é o retrato fiel de uma amarga realidade que continua marcando a história do índio no continente. O indigenismo, no contexto andino, é virtualmente um problema estranho aos estudos brasileiros, mas é uma bandeira desfraldada pelos hispano-americanos conscientes e cada vez mais presente nos debates nacionais promovido por movimentos e governos populistas e democráticos que se formaram nas últimas décadas. O livro de Jorge Icaza é um protesto e o testemunho de um sonhador contra a injustiça social em seu país, um gesto corajoso de denúncia que transcende pela sua universalidade. Huasipungo é o enredo da crueldade e da cobiça do branco e do mestiço ante a inocência e o desamparo do índio. Supersticioso e ingênuo, o índio retratado por Icasa é explorado pelos engodos do sacerdote que negoceia, com descarada cupidez, o lugar no paraíso, ameaçando com o fogo do inverno. Impotente e humilde nas relações de trabalho, o indígena é sugado pelo poder da ganância até o extremo de suas forças, levando-o ao desfalecimento ou à morte. Humilhado perante seus iguais, sob o látego cortante dos castigos mais cruéis e, massacrado ante a ousadia da revolta, cai abatido como uma ave indefesa, numa luta desigual, ante o ribombar das metralhadoras dos “heroicos” militares, defensores da “civilização” e dos interesses norte-americanos.
Ao comentar, recentemente, a importância da obra com alguns intelectuais amigos, causou-me surpresa ouvir de alguns que não a conheciam. Quem sabe eu também não a conhecesse, se não tivesse passado pelo Equador. Eis porque achei interessante resumir esse livro cujo tema constitui uma crítica frontal à exploração desumana dos índios na região andina. Quem sabe alguns leitores perguntem por que, ao invés de um enfoque tão pontual, não escrevi sobre os grandes poetas equatorianos. Quero dizer que muitos dos seus versos povoaram de encanto alguns de meus momentos mais especiais. Mas a literatura pela literatura era um luxo que não se alinhava na luta aberta e no compromisso com a história daqueles anos. A literatura que me interessava, sobretudo, era aquela que abria um caminho, cerrava os punhos contra as injustiças, escrevia o nome dos opressores e apresentava-se com uma visão crítica dos factos sociais, porque é disso que é feito o mundo e a história: de factos..., sejam eles tecidos com tragédias ou esperanças.
Como cruzar o continente sem deparar, a todo o momento, com o grande drama por que passa, há quinhentos anos, o indígena americano, seja na região andina ou na América Central. Descendentes das civilizações pré-colombianas, herdeiros culturais de sagas gloriosas, atualmente sobrevivem marcados pela servidão e pela extrema pobreza. Huasipungo, como um retrato desse drama, não somente é considerada a obra literária mais importante do Equador, mas pelo seu significado se tornou a grande novela indigenista por antonomásia. Em 1934, já no ano de sua publicação, o livro recebeu o primeiro prêmio de novela em um concurso realizado em Buenos Aires, e foi publicado pela importante casa editorial Losada.
Quando passei pelo Equador em 1970, o sistema de servidão do “huasipungo” vigorava incólume na sua estrutura agrária, gerando o empobrecimento massivo e a fome da população indígena que, na época, correspondia à metade dos habitantes do país. Uma ansiada reforma agrária e a educação do índio foram os sonhos de notáveis intelectuais equatorianos como Pio Jaramillo Alvarado e Benjamin Carrión. Diante de uma realidade tão cruel, da ganância e do desprezo por uma raça tão nobre, esses belos projetos abortaram pela ausência de responsabilidade social, pela indiferença do poder e pelo silêncio da própria cultura. Além do sonho, sobrevive a esperança. Creio que a esperança apenas, nada mais..."
Manoel de Andrade, in “Nos rastros da utopia, uma memória crítica da América Latina nos anos 70”, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil, 2014, pp.557-576

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327 -Icasa, Jorge. Huasipungo. Tradução de De Plácido e Silva. Editora Guaíra Limitada. Curitiba, 1941, p.28-29.
Como farei citações seguidas do mesmo livro, optei por quebrar as normas editoriais, e colocar, no fim de cada texto citado, a referida página. O texto foi atualizado pela nova ortografia.

328 .Jorge Icaza refere-se aqui à greve dos indígenas de Cuenca, por ocasião do centenário da Independência do Equador. Célebre na história do país, a revolta ocorrida entre 1920 e 1921 deu-se ante a notícia de novos impostos para os trabalhadores indígenas, pelo abuso e os maltratos praticados pela burguesia agrária e as fortes tensões sociais e políticas no campo em face da reação de fazendeiros conservadores revogando as conquistas liberais do governo de Eloy Alfaro (1895-1911) que proibia a servidão do índio equatoriano e os protegia legalmente contra as arbitrariedades e a exploração dos latifundiários

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Portugal, Património Natural

 
 Portugal, Património Natural 

O Reino Lusitano

Eis aqui, quase cume da cabeça
De Europa , toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa,
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá, na ardente
África, estar quieto o não consente.

Esta é a ditosa Pátria minha amada,
A qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne , com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela, antam, os íncolas primeiro.
Luís de Camões, in " Os Lusíadas- Canto III ", Emp. Literária Fluminense, LD

PORTUGAL
por Miguel Torga
"Há nações que nascem feitas e nações que se fazem. Portugal é das que se fizeram, contra todos e contra tudo, e nunca teve sossego nas fronteiras que chegaram a situar-se nos cinco continentes. Começou o seu caminho independente nas brumas da pré-história, dolménico, litoral magro, debruado por um mar aberto e convidativo, que navegou desde logo em todas as direcções e transformou mais tarde no palco de uma das maiores façanhas de que a civilização ocidental se pode orgulhar . Microcosmos variegado, ora montanhoso, ora ondulado e plano, de cada miradoiro é inédito e diverso. Árido aqui, verdejante ali, terroso acolá, passeá-lo é conhecer em miniatura as feições aráveis da Terra. Sulcado por rios líricos ou dramáticos , consoante o leito, espelha-se neles ao natural o perfil da paisagem. Um Minho bucólico, uma Estremadura monumental , um Ribatejo toureiro. Invadido sucessivamente por muitos povos , a nenhum se submeteu inteiramente. Antes pelo contrário, resistiu-lhes a conviver . Na essência, permaneceu o mesmo, dono e senhor da sua personalidade profunda, livre , visionário, aventureiro, obstinado. E sempre cordial. Quem percorre o país de norte a sul pode queixar-se de tudo, menos dos panoramas e , ainda menos, das gentes. Austeras em Trás-os Montes, sóbrias nas Beiras, graves no Alentejo, reservadas no Algarve, identifica-as, no entanto, a mesma índole solícita, prestante, disponível. Criaturas simples, chegadas ao húmus, tudo nelas tem ainda o sabor saudável do autêntico e primordial. Na maneira como trabalham, cantam, dançam, rememoram. O observador autêntico pode descobrir os sinais vivazes de uma sã tradição rural, comunitária, o vizinho a dar a mão ao vizinho, o velho a ensinar o novo, o prudente a avisar os incautos(...)"
Miguel Torga, in "Obra completa , Diário XV" , Círculo de Leitores,

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Porque está destinado a acontecer...

 

 56

"Comparando-me a Pope, a professora Marcie Frank teceu-me um elogio. Assim, para acabar, permitam-me que cite os últimos versos de Dunciad, versos que  aprendi, voluntariamente, quando andava na escola.


Nem chama pública nem privada, ousa brilhar;
Nem centelha humana resta, nem olhar de relance divino!
Olhai! , o vosso medonho império, CAOS!, foi restaurado;
A luz esmorece perante a vossa palavra por criar;
A vossa mão , grande Anarquia, baixa a cortina, 
E a Escuridão universal a todos enterra.

Em 1943, quando recitei isto numa aula da Academia Phlips Exetter, ele ficou espantado.
« Por que é que aprendeste isso?» perguntou. Porque está destinado a acontecer um destes dias.» respondi.

E assim é , 1 de Janeiro de 2006."
Gore Vidal, in Navegação Ponto por Ponto, Memórias 1964 - 2006 ,Casa das Letras, Junho de 2010, p 271 

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Aproveitar o confinamento?


APROVEITAR O CONFINAMENTO?
por Eugénio Lisboa

"Pascal sabia Física, sabia Matemática, deixou um notável livro de pensamentos e um polémico e saboroso livro de cartas provinciais, além de se deixar arrastar para congeminações teológicas (ninguém é perfeito: ninguém foi intelectualmente maior do que Newton, o que o não impediu de desperdiçar tempo com a alquimia e com a Bíblia). Foi também Pascal quem disse, por exemplo, esta coisa preciosa, que parece ter sido escrita para benefício dos que atravessam este período sombrio e altamente mortífero: “É preciso fazer um bom uso das doenças”, o que pode ser entendido, de modo mais lato, como devendo aproveitar-se, positivamente, mesmo situações muito negativas. Quando estamos doentes – ou, como agora, confinados, o que é uma espécie de “doença” – temos, em muitos casos, bastante tempo à nossa disposição, para meditarmos, lermos, escrevermos, ouvirmos música (os que dela gostem) e até para convivermos com amigos e familiares, pela internet 
ou pelo telefone.
Mas será mesmo assim? Poderemos aproveitar, assim tão completamente, esse tempo “disponível”? A minha experiência pessoal (pode ser que seja muito particular, mas é a minha), de pessoa com idade avantajada e tendo em casa, como única companhia, a minha gatinha Ísis, fez-me questionar muito seriamente o mito da produtividade do confinamento. Tanto que nem sequer sei se terminarei este texto que comecei agora a escrever. Eu explico (se conseguir).

Ter-se um gato, como companhia, o dia inteiro, é um presente dos deuses. O grande Dickens sabia isso, quando afirmava que “there is no greater gift than the love of a cat”. O gato é um animal bonito, elegantíssimo, inteligente e extremamente inventivo. Está sempre a ter ideias, embora muitas delas francamente turbulentas e algo destrutivas. E, ao contrário do que dizem os ignorantes (que nunca tiveram gatos ou os tiveram e não lhes prestaram a devida atenção), o gato, se bem tratado e acarinhado, torna-se não só nosso amigo, como se torna até um amigo fiel e assíduo, sendo de opinião que é mal empregado todo o tempo que lhe não dediquemos, embora ele necessite de algum tempo para retiro, meditação e soneca. De facto, ele só não está connosco, quando DECIDE que tem, ELE, de fazer coisas mais importantes, como, por exemplo, partir um prato ou um copo ou um bonito objecto de arte que seja frágil e esteja mesmo a pedi-las. Ou, como já dissemos, dormir. Um gato pode ser muito nosso amigo, mas recusará terminantemente ser nosso escravo: o seu orgulho felino nunca lhe permitiria esse abaixamento, que ele vê, com desprezo, praticado pelo cão, nunca elevado ao estatuto de deus, pelos egípcios. Mas não lhe passa pela cabeça que os humanos tenham o mesmo comportamento orgulhoso. Quando lhe apetece – ao gato – saltar-nos para o colo ou para as costas, dificilmente aceita que recusemos. Ele SABE quando quer estar sozinho, mas não aceita que nós queiramos estar sozinhos, quando a ELE lhe APETECE estar connosco. Isto pode parecer estranho a um humano, mas o gato percebe-o perfeitamente. O homem foi feito para servir o gato e não o gato para servir o homem: um deus manda e não é mandado! Isto está inscrito no ADN dos felinos de salão.


Agora, um exemplo: a minha gatinha, de pelo preto e branco, cores distribuídas pelo seu corpo, segundo padrões que deixavam embevecidos os contemporâneos da Rainha Vitória, não se importa nada que eu oiça música, mostrando até um interesse cativante por um quinteto de Mozart ou por uma qualquer peça de Haydn, de Beethoven (desde que não seja o primeiro andamento da quinta sinfonia, nunca percebi porquê, até porque aguenta perfeitamente a nona, mesmo com o estardalhaço dos corais), de Schubert ou de Chopin. Nunca experimentei Wagner, por temer o pior (já me partiu um número suficiente de objectos que eu muito estimava). Também tolera, moderadamente, que eu leia, desde que, de vez em quando, interrompa a leitura, para lhe dizer quanto gosto dela e quanto ela é, para mim, mais importante do que Os Irmãos Karamazov. Mas há uma coisa que ela, decididamente, não suporta: é que eu ESCREVA! Aí, perde completamente os pedais. Quando me sento num sofá e abro um bloco com linhas, em cima do tabuleiro colocado em cima das minhas pernas e me preparo para uma boa tarde de escrita, ela, esteja em que ponto da casa estiver, apercebe-se misteriosamente do meu acto sacrílego – ESCREVER! – e surge na sala em que me encontro, a correr em quinta velocidade, salta para cima do tabuleiro, deita-se, em cheio, em cima do que estou a escrever e olha-me com ar desafiante, de quem diz: “Esquece o que estavas para aí a rabiscar. Vim para ficar!”

Agora, pergunto: que fazer, numa situação destas? A resposta imediata do ignoramus seria correr com o gato e retomar a escrita. Mas, quem todo o dia ouve o seu afectuoso gato recordar-lhe que, no tempo dos faraós, ELE tinha o estatuto de um deus e como tal era venerado, só lhe resta vergar-se e ajudá-lo a recuperar a eminência perdida. Sim, porque os apelos do bichano são tão pungentes que, diante deles, pergunta-se: QUE FAZER? (assim perguntava Lenine, num livro célebre, mas com assunto de bem menor importância do que o estatuto do gato!) Fica-se dilacerantemente perplexo. Sim, que vale um poema (mesmo sublime e longo), um romance, um ensaio ou um verbete de um diário, comparados com o amor de um gato? Se Camões gostasse de gatos e tivesse um gato, quando naufragou, na foz do Mecom, que acham Vocês que ele salvaria: o gato ou os Lusíadas? Qualquer genuíno amante de gatos conhece a resposta. Por mim, sacrifico sempre a escrita ao afecto de um gato. Não troco esse afecto por nenhum pífio triunfo literário. Posso mesmo afirmar, com orgulho, que os meus três últimos felinos – Jim, Secotine e Ísis – contribuíram decisivamente para diminuir a dimensão da minha bibliografia activa. Mas que importância tem isso?  Que vale a mais aparatosa bibliografia, em face do elegante esplendor de um gato?

P. S. confirmativo: escrever o pequeno texto acima consumiu-me, devido à presença da Ísis, o triplo do tempo que me levaria a fazê-lo, se ela não estivesse presente.
                                                                       18.01.2021
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no blog De Rerum Natura.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Ao Domingo Há Música


No arco luminoso  desse canto
Perpassam
Momentaneamente
Os  deuses.
Alberto de Lacerda, Átrio


Somos seres diversos mas tão iguais através da música. Ouvimo-la e, apesar de cada um a sentir diferentemente, elegemo-la como nossa, quando nos toca. 
Há cantores  que  se distinguem por um luminoso timbre  e pela beleza da sonoridade  das suas vozes. 
Duas talentosas cantoras, embora muito jovens , iluminam o palco deste domingo. Trazem nas vozes a  musicalidade  de um  eufónico canto antigo . 

Laura Bretan , em  Adagio . Música de  Tomaso Albinoni | Letra de Lara Fabian.  Arranjos  & Piano por  Giora Linenberg. Violoncelo por   Yoed Nir.  Edição & Mistura por  Ran Aviv , no  Aviv Studio Voice.
  
Lucy Thomas, em Somewhere - (There's A Place For Us). 
 "Somewhere" foi composta em 1957 para o musical West Side Story. A música é de Leonard Bernstein e a letra de Stephen Sondheim.